Acessibilidade / Reportar erro

A caminhada como prática de resistência: uma análise a partir da visão sociológica de David Le Breton

Walking as a practice of resistance: an analysis from the sociological view of David Le Breton

Resumo

Caminhar é uma das práticas corporais mais elementares, mas que pode assumir diferentes significados a depender do contexto social e histórico. No âmbito da sociologia do corpo, David Le Breton é detentor de uma posição de prestígio intelectual e científico, porém, suas obras e reflexões sobre a caminhada são ainda pouco conhecidas no Brasil. O objetivo deste artigo é analisar como a caminhada pode ser considerada uma prática de resistência, a partir da visão sociológica de Le Breton. Com base em fontes documentais e entrevistas com o autor, foram desenvolvidos dois eixos de análise: o primeiro explora a caminhada como forma de resistência a determinados aspectos da sociedade contemporânea, que privilegiam a velocidade, o efêmero e o caráter utilitário das relações e emoções; no segundo, a caminhada emerge como uma forma satisfatória de desaparecer de si, diante da resistência à imperiosa necessidade de lidar com diferentes identidades imposta pela sociedade. Estudar a caminhada nessa perspectiva pode colaborar para o repensar das lógicas presentes em torno das práticas corporais e – por que não? – presentes em nosso enraizamento social. Refletir sobre aspectos sociológicos fundamentais ligados a ser corpo é mais que pertinente quando valores associados ao ritmo vertiginoso de nossa existência estão sendo colocados em xeque.

Palavras clave
sociologia do corpo; antropologia do corpo; atividade física; caminhada; práticas corporais

Abstract

Walking is one of the most elementary bodily practices, but it can have different meanings depending on the social and historical context. In the field of the sociology of the body, David Le Breton holds a position of intellectual and scientific prestige, however, his works and reflections about hiking are not well known in Brazil. The aim of this paper is to analyze how walking can be considered a practice of resistance, from the sociological view of David Le Breton. Based on documentary sources and interviews with the author, two axes of analysis were developed. The first explores walking as a form of resistance to certain aspects of contemporary society, such as speed and the ephemeral and utilitarian aspects related to the social relations. In the second axe, walking emerges as a satisfactory way to disappear from yourself, as it is important to resist to the imperative need of dealing with different identities imposed by society. To analyse walking in this perspective can collaborate to rethink the logics that operate around bodily practices and – why not? – present in our social roots. The reflection upon fundamental sociological aspects of being a body is more than pertinent in a social context where values associated to a dizzying rhythm of our existence are being put in check.

Keywords
sociology of the body; anthropology of the body; physical activity; walking; bodily practices

Introdução

Onde está a verdade, ou melhor, a pertinência da pesquisa, senão nas condições de sua produção, em permanência submetidas à dúvida, ao rigor, à troca com os outros

(Le Breton, 200711 CROSSLEY, Nick. Researching embodiment by way of “body techniques”. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 80-94, 2007., p. 93).

Caminhar é uma das atividades mais elementares praticadas pelo ser humano. Colocar o corpo em movimento era necessário à sobrevivência desde os primórdios da humanidade. Nas sociedades pré-industriais, correr, nadar, dentre outras, eram atividades motoras que permitiam a locomoção e o intercâmbio corporal com a natureza (Pámpols, 199543 PÁMPOLS, Carles F. La aventura imaginaria. Uma visión antropológica de las atividades físicas de aventura em la natureza. Apunts, Educación Física y Deportes, v. 41, p. 36-43, 1995.). Estudos associados à caminhada apresentam enfoques variados, como os que tratam dos benefícios para a saúde e bem-estar (Gidlow et al., 201613 GIDLOW, Christopher J. et al. Where to put your best foot forward: psycho-physiological responses to walking in natural and urban environments. Journal of Environmental Psychology, v. 45, p. 22-29, 2016.; Wolf; Wohlfart, 201453 WOLF, Isabelle D.; WOHLFART, Teresa. Walking, hiking and running in parks: a multidisciplinary assessment of health and well-being benefits. Landscape and Urban Planning, v. 130, p. 89-103, 2014.) ou na perspectiva de lazer e turismo (Svarstad, 201052 SVARSTAD, Hanne. Why hiking? Rationality and reflexivity within three categories of meaning construction. Journal of Leisure Research, v. 42, n. 1, p. 91-110, 2010.; Marafa; Ting; Cheong, 200738 MARAFA, Lawal M.; TING, Ho Yan; CHEONG, Chau Kwai. Perceived benefits of hiking as an outdoor recreation activity in Hong Kong. Licere, v. 10, n. 2, p. 1-26, 2007.). Em que pese a importância de estudos sobre a caminhada a partir dos pressupostos biológicos ou, ainda, como atividade de lazer, analisar aspectos socioculturais envolvidos nessa primordial atividade constitui-se em exercício fundamental para se compreender algumas das dimensões das práticas corporais à luz da sociedade contemporânea.

Para Le Breton (2011)24 LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., o corpo é o eixo de relação com o mundo, um analista de grande porte para a compreensão do presente. Assim, as ações da vida cotidiana e os usos do corpo, como as atividades físicas e esportivas, e a caminhada, envolvem sistemas simbólicos, representações e imaginários construídos por atores sociais em dados contextos e tempos.

Estudos sobre corpo experimentaram avanço considerável nas últimas décadas, especialmente nas ciências humanas e sociais (Shilling, 200750 SHILLING, Chris. Sociology and the body: classical traditions and new agendas, The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 1-18, 2007.; Wainwright; Turner, 200657 WAINWRIGHT, Steven P.; TURNER, Bryan S. “Just crumbling to bits”? An exploration of the body, ageing, injury and career in classical ballet dancers. Sociology, v. 40, n. 2, p. 237-255, 2006.; Blackman; Featherstone, 20105 BLACKMAN, Lisa; FEATHERSTONE, Mike. Re-visioning body & society, Body & Society, v. 16, n. 1, p. 1-5, 2010.). Como campo de estudos de característica transdisciplinar, a sociologia do corpo, por sua vez, consolida-se de modo enfático a partir da década de 1990 e é acionada para subsidiar discussões das mais variadas temáticas, tais como trabalho, mídias, tecnologias, artes, esportes, vida, condutas de risco etc. (Blackman; Featherstone, 20105 BLACKMAN, Lisa; FEATHERSTONE, Mike. Re-visioning body & society, Body & Society, v. 16, n. 1, p. 1-5, 2010.; Zarias; Le Breton, 201958 ZARIAS, Alexandre; LE BRETON, David. Corpos, emoções e risco: vias de compreensão dos modos de ação individual e coletivo. Sociologias, v. 21, n. 52, p. 20-32, 2019.). As atividades físicas e esportivas, neste contexto, despertam cada vez mais interesse das abordagens sociológicas.

O estudo de Mauss (2003)41 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. sobre as técnicas corporais é considerado clássico e seminal para as discussões sobre corpo e cultura (Le Breton, 201124 LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011.; Crossley, 200711 CROSSLEY, Nick. Researching embodiment by way of “body techniques”. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 80-94, 2007.; Shilling, 200750 SHILLING, Chris. Sociology and the body: classical traditions and new agendas, The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 1-18, 2007.), mas nota-se expressivo aumento das abordagens que tematizaram as práticas corporais nas últimas décadas. Exemplarmente, análises de cunho sociológico e antropológico de modalidades esportivas como boxe (Wacquant, 200256 WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.; 200655 WACQUANT, Loïc. Los tres cuerpos del boxeador profesional. Educación Física y Ciencia, v. 8, p. 11-35, 2006.; 201054 WACQUANT Loïc. L’habitus comme objet et méthode d’investigation : retour sur la fabrique du boxeur. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 4, n. 184, p. 108-121, 2010.), ballet (Aalten, 20071 AALTEN, Anna. Listening to the dancer’s body. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 109-125, 2007.; Wainwright; Turner, 200657 WAINWRIGHT, Steven P.; TURNER, Bryan S. “Just crumbling to bits”? An exploration of the body, ageing, injury and career in classical ballet dancers. Sociology, v. 40, n. 2, p. 237-255, 2006.) e natação (Scott, 201048 SCOTT, Susie. How to look good (nearly) naked: the performative regulation of the swimmer’s body. Body & Society, v. 16, n. 2, p. 143-168, 2010.) permitem conhecer os múltiplos significados associados ao corpo, saúde, desempenho e dor, a depender dos contextos e grupos sociais. Academias de ginástica também têm sido alvo de interesse de variados estudos, tais como: investigação sobre as identidades corporais, normas e funcionamento desses ambientes (Sassatelli, 200047 SASSATELLI, Roberta. Interaction order and beyond: a field analysis of body culture within fitness gyms. In: FEATHERSTONE, Mike. Body modification. Londres: Sage, 2000. p. 227-248.; 201546 SASSATELLI, Roberta. Healthy cities and instrumental leisure: the paradox of fitness gyms as urban phenomena. Modern Italy, v. 20, n. 3, p. 237-249, 2015.); análise do esporte feminino e algumas atividades físicas de fitness a partir do referencial de Michel Foucault sobre as tecnologias de si (Markula, 200340 MARKULA, Pirkko. The technologies of the self: sport, feminism and Foucault. Sociology of Sport Journal, v. 20, p. 87-107, 2003.; 200439 MARKULA, Pirkko. “Tuning into one’s self”: Foucault’s technologies of the self and mindful fitness. Sociology of Sport Journal, v. 21, p. 302-321, 2004.); técnicas corporais e conversão das interações em capital social nos chamados health clubs (Crossley, 200711 CROSSLEY, Nick. Researching embodiment by way of “body techniques”. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 80-94, 2007.; 200810 CROSSLEY, Nick. (Net)working out: social capital in a private health club. The British Journal of Sociology, v. 59, n. 3, p. 475-500, 2008.) ou o que representa o bodily capital (Hutson, 201314 HUTSON, David J. Your body is your business card: bodily capital and health authority in the fitness industry. Social Science and Medicine, v. 90, p. 63-71, 2013.).

Diante deste que parece um panorama encorajador, são raros os estudos que se detiveram na análise, do ponto de vista sociológico, de uma das atividades mais básicas do ser humano, a caminhada. Conforme Rauch (1997)45 RAUCH, André. La marche, la vie: solitaire ou solidaire, ce geste foundateur. Paris: Éditions Autrement, 1997., o movimento do corpo que consiste em avançar, passo a passo, sem instrumentos ou aparelhos, simboliza a vida dos indivíduos e da sociedade. Inúmeros são os sentidos evocados pela caminhada, como aqueles ligados à felicidade, amizade e liberdade, como também, ao cansaço, fadiga, dores, fuga, dentre outros (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.), que necessitam ser investigados. Assim, estudar a caminhada nessa perspectiva pode colaborar para o repensar das lógicas presentes em torno das práticas corporais e – por que não? – também presentes em nosso enraizamento social. Refletir sobre aspectos sociológicos fundamentais ligados a ser corpo é mais que pertinente no momento único que vivemos atualmente, quando valores associados ao ritmo vertiginoso de nossa existência são colocados em xeque.

Um dos expoentes do campo da sociologia e antropologia do corpo é o francês David Le Breton, com várias obras traduzidas – também – para o português. Curiosamente, embora bastante conhecido no Brasil, os livros de sua autoria sobre caminhada, ou marcha1 1 Em francês, la marche poderia ser traduzida por marcha ou caminhada. No entanto, caminhada é o sentido mais usualmente reconhecido. Neste artigo, serão usados os dois termos a partir de agora, com a mesma conotação proposta por Le Breton. , como será visto, ainda não foram aqui explorados. Le Breton (200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000.; 2012a)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a. já antecipava, em seus empreendimentos analíticos, a necessidade de práticas de resistência ao ritmo avassalador imposto pela sociedade contemporânea. Entretanto, até que ponto a caminhada poderia ser considerada uma dessas práticas? O que a lente interpretativa de Le Breton poderia proporcionar em termos de compreensão da caminhada, em uma perspectiva sociológica?

Diante da problemática apresentada, este estudo foi desenvolvido com base em fontes documentais, compreendendo-se documento em um sentido amplo, conforme Le Goff (1990)32 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990., uma vez que pode ser escrito, transmitido por som, imagem ou de outras maneiras. Assim, além da análise de duas obras específicas do autor sobre caminhada e outras, conforme será explicado posteriormente, foram realizadas duas entrevistas pessoais com David Le Breton. As interações foram derivadas de um estágio sabático desenvolvido junto ao professor no Laboratoire de Dynamiques Europeénnes (Laboratório de Dinâmicas Europeias) da Universidade de Strasbourg (França). As entrevistas foram fundamentais para iluminar os caminhos a serem percorridos no presente manuscrito, pois permitiram circunscrever o tipo de caminhada a ser abordado, assim como nortear e aprofundar a linha de interpretação desenvolvida por Le Breton.

Este artigo, portanto, tem por objetivo analisar uma das vertentes da caminhada, ligada aos percursos mais longos (por horas ou dias), em ambientes naturais ou afastados dos centros urbanos, a partir da visão sociológica de David Le Breton. Mais especificamente, pretende-se analisar a argumentação do autor sobre como a caminhada pode ser considerada uma prática de resistência.

Talvez, as reflexões aqui propostas possam colaborar para revisitar alguns dos propósitos de nossa existência em momentos tão conturbados pelo quais passamos na atualidade.

Notas sobre a caminhada e a sociologia do corpo em David Le Breton

Em A sociologia do corpo, um dos primeiros livros de Le Breton, no qual faz uma espécie de inventário sobre as pesquisas relacionadas a corpo, de modo mais pedagógico e generalista (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010., p. 109), a primeira página revela a condição corporal: “moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (Le Breton, 200711 CROSSLEY, Nick. Researching embodiment by way of “body techniques”. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 80-94, 2007., p. 7).

Para Le Breton (2007, p.120)27 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007., a sociologia aplicada ao corpo deve também se consagrar a conhecer “[...] as modalidades corporais colocadas em jogo nos diferentes grupos sociais e culturais, extrair suas formas e suas significações, suas vias de transmissão”. Dentre as modalidades corporais, as atividades físicas e esportivas, e a caminhada, aqui evocada, podem ser consideradas elementos essenciais para o engajamento social, pois participam, à sua maneira, da construção e reconstrução identitária do sujeito e podem revelar estatutos do corpo na contemporaneidade (Le Breton, 200330 LE BRETON, David. Activités physiques et sportives et intégration : aspects anthropologiques. Empan, v. 3, n. 51, p. 58-64, 2003.).

David Le Breton consagrou dois livros à caminhada: Éloge de la marche (2000) e Marcher: éloge des chemins et de la lenteur (2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.), até o momento, não traduzidos no Brasil. Praticante de caminhada, um “grande viajante” (Le Breton, 2016a17 LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016a.) e leitor insaciável (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010.) de diversas áreas de conhecimento e de vários gêneros de literatura, o autor revela que estas obras sobre a marcha não estão necessariamente presas ao rigor acadêmico, pois “a sensorialidade e o deleite do mundo estão no coração da escrita e da reflexão” (Le Breton, 200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000., p. 16). 2 2 Destaque-se que foi efetuada tradução nossa para todas as citações de obras em francês utilizadas neste artigo, bem como no caso das entrevistas com David Le Breton.

Na primeira obra, Le Breton (2000, p. 11)31 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000. demarca que “Caminhar, é viver pelo corpo, provisoriamente ou por um longo tempo”. Diante de uma condição humana primordialmente sentada ou com pouca mobilidade, a caminhada é uma atividade corporal que proporciona uma experiência sensorial em todos os sentidos, pois quem caminha “participa com sua carne das pulsações do mundo” (p. 31). Sem a pretensão de ser um guia ou ter conotação histórica sobre a marcha, o autor faz um convite ao prazer de pensar e caminhar juntos para trocar impressões, “como se estivéssemos ao redor de uma boa mesa em um albergue ao longo da estrada [...].” Assim, em perspectiva singular, Le Breton explora temas relacionados à caminhada, desde a bagagem, hospedagem e itinerário, até as possibilidades sensoriais e espirituais proporcionadas por esta atividade.

Em seu segundo livro, lançado dez anos depois, Le Breton (2012a)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a. retoma a escrita sobre o tema para compartilhar outras experiências, encontros e leituras, uma vez que, como afirma, nunca parou de caminhar. O autor destaca que os imaginários contemporâneos associados à marcha se modificaram e se referem mais ao lazer ou às possibilidades de reencontros, consigo ou com os outros. Entremeado a exemplos de diferentes experiências ligadas à caminhada, amplia e aprofunda a análise oferecida em sua primeira obra. Ao tratar, desde passeios curtos e caminhadas na cidade até longos trajetos, Le Breton reforça sua tese de que o caminhar permite transportar-se a outro mundo, cujos valores são diferentes daqueles da vida cotidiana conturbada e apressada, ao favorecer a interioridade, a contemplação e a lentidão.

De fato, durante as leituras desses dois livros, há a percepção de compartilharmos uma longa caminhada, dadas a leveza da escrita, a interlocução com diversos autores, chamados de compagnons de route, e a sensibilidade demonstrada pelo autor. Entretanto, a marcha é um dos temas aos quais David Le Breton destina o seu olhar antropológico, visto que se debruça a outros como, por exemplo, o risco, os sentidos, as emoções e a tatuagem (Le Breton, 2004a28 LE BRETON, David. The anthropology of adolescent risk-taking behaviours, Body & Society, v. 10, p. 1-15, 2004a.; 2012b23 LE BRETON, David. Sociologie du risque. Paris: PUF, collection « Que sais-je ? », 2012b.; 201321 LE BRETON, David. Conduites à risque: des jeux de mort au jeu de vivre, 3. ed., Paris: PUF/Quadrige, 2013.; 2016a17 LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016a.; 200925 LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009.; 2004b29 LE BRETON, David. Sinais de identidade: tatuagens, piercings e outras marcas corporais. Lisboa: Miosótis, 2004b.).

Le Breton (2016a) afirma que é um “antropólogo do mundo contemporâneo” e que escolheu o “continente” corpo para dedicar suas análises de modo mais preciso. Em suas palavras:

sou professor de sociologia, mas minha tese foi em antropologia do corpo, meus livros se intitulam Antropologia do silêncio, Antropologia do rosto. Faço parte de uma geração que considera que não há diferença entre sociologia e antropologia. É como se fosse um retorno às origens, Émile Durkheim, Marcel Mauss, para mim, o pensador que mais me acompanha, [...] Simmel também, foi um nome próximo à antropologia, sobretudo em seus artigos sobre os sentidos, o rosto, [...] fazem parte de um alargamento da sociologia [...]. A minha perspectiva é a de antropólogo do mundo contemporâneo, portanto utilizo todas as ferramentas da sociologia e todas as ferramentas da antropologia igualmente e depois, como sou grande leitor da psicanálise, psicologia e outros, [...] uso as ferramentas disponíveis e as retrabalho, remodelo na perspectiva antropológica [...] é uma característica particular do meu trabalho

(Le Breton, 2016a17 LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016a.).

Seu trabalho é próximo a uma sociologia sensível, inaugurada pela Escola de Chicago e prolongada pelo interacionismo simbólico e, nessa perspectiva, “o trabalho da antropologia é uma imensa conversa com o mundo que nos rodeia e nossa tarefa, como Marc-Alain Ouaqnin propõe, é simplesmente de tentar lhe tocar, lhe cuidar talvez” (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010., p. 64).

A marcha a que David Le Breton se refere é a atividade de caminhar por percursos de média (algumas horas) a longa duração (por dias consecutivos), geralmente em ambientes rurais, por trilhas já demarcadas ou a serem descobertas. Por vezes traduzida para o inglês por hiking (Svarstad, 201052 SVARSTAD, Hanne. Why hiking? Rationality and reflexivity within three categories of meaning construction. Journal of Leisure Research, v. 42, n. 1, p. 91-110, 2010.) ou trekking (Bétran, 19954 BÉTRAN, Javier O. Las actividades físicas de aventura en la naturaleza: análisis sociocultural, Apunts, Educación Física y Deportes, v. 41, p. 5-8, 1995.), remete a uma atividade externa (outdoor) (Svarstad, 201052 SVARSTAD, Hanne. Why hiking? Rationality and reflexivity within three categories of meaning construction. Journal of Leisure Research, v. 42, n. 1, p. 91-110, 2010.; Marafa et al., 200738 MARAFA, Lawal M.; TING, Ho Yan; CHEONG, Chau Kwai. Perceived benefits of hiking as an outdoor recreation activity in Hong Kong. Licere, v. 10, n. 2, p. 1-26, 2007.), podendo estar associada aos esportes de natureza, aventura ou ao ecoturismo. Acessível a pessoas das mais diversas idades, não exige habilidades ou instalações específicas, sendo praticada em percursos com diferentes níveis de dificuldade e com duração igualmente bastante variável.

De acordo com Pámpols (1995, p. 37)43 PÁMPOLS, Carles F. La aventura imaginaria. Uma visión antropológica de las atividades físicas de aventura em la natureza. Apunts, Educación Física y Deportes, v. 41, p. 36-43, 1995.,

uma visão biológica poderia considerar que os esportes de risco e aventura na natureza são um fenômeno universal. Mas nem atividade física, nem natureza, nem aventura possuem significados unívocos no tempo e espaço. Cada cultura define os âmbitos em que as práticas corporais, o entorno natural e a percepção de risco coexistem. Mas o significado destas atividades pode ser muito variável.

Nesse sentido, a caminhada pode evocar felicidade, sol, liberdade, mas também, cansaço, fadiga, dores etc. Quando não são praticadas voluntariamente, como no caso de fuga de conflitos ou combates, ou seja, se é imposta, pode indicar miséria ou provação pessoal, às vezes por não existir outro meio de transporte disponível (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.). Há também a possibilidade de estar sendo praticada de modo competitivo, quando são organizados eventos esportivos, ou quando há o desafio de percorrer o trajeto no menor tempo possível, mas esse não é o escopo de análise de Le Breton.

Apesar de não necessariamente implicar em competições formais, a caminhada pode ser considerada um campo esportivo, na perspectiva de Bourdieu (1978)6 BOURDIEU, Pierre. Sport and social class. Social, Science, Information, v. 17, n. 6, p. 819-840, 1978., pois congrega instituições e serviços especializados, além de movimentar mercados ligados ao consumo de equipamentos, vestimentas e calçados esportivos, ou ainda, ao nicho turístico, que inclui trilhas, localidades, hospedagem, alimentação etc.

Para Le Breton (2012a, p. 24-25)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.,

o estatuto da marcha se modificou enormemente nos últimos trinta anos. Ir a pé, livre em seu próprio corpo e à sua vontade, é um anacronismo em um tempo marcado pela pressa, fulgurância, eficácia, rendimento e utilitarismo. [...] Atualmente a marcha se impõe como uma atividade essencial de reencontro com seu corpo, com os outros. [...] os imaginários contemporâneos da marcha são positivos, referem-se sobretudo ao lazer, à disponibilidade.

É importante ressaltar que as representações da caminhada evocadas por Le Breton se remetem basicamente ao contexto europeu e aos países em que essa prática é bastante disseminada (Svarstad, 201052 SVARSTAD, Hanne. Why hiking? Rationality and reflexivity within three categories of meaning construction. Journal of Leisure Research, v. 42, n. 1, p. 91-110, 2010.). A despeito de reconhecer que na França e em outros países da Europa, assim como nos Estados Unidos e Japão, há certa tradição de trilhas nas montanhas, Le Breton (2016c)19 LE BRETON, David. A sociologia do corpo e a marcha. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf], Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 20 maio, 2016c. se surpreende pelo fato de essa prática corporal não ter sucesso semelhante no Brasil e aponta alguns impedimentos, possivelmente relacionados à segurança, infraestrutura e acesso ao lazer. Le Breton (200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000.; 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.; 2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b. também destina reflexões sobre a caminhada em cidades, mas que não serão objeto de análise nesta oportunidade.

Apontamentos metodológicos: diálogo com as fontes e a escolha do trajeto

A escolha por analisar as ideias de David Le Breton se deve à sua notoriedade intelectual e ao seu papel de destaque no campo da sociologia e antropologia do corpo. Baseando-se em Bourdieu (1984)7 BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984., pode-se afirmar que David Le Breton é detentor de uma posição de prestígio intelectual e científico, pois acumula vários tipos de poder que o colocam em posição elevada no campo, como o poder universitário e a autoridade científica. Conforme Bourdieu (1984)7 BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984., o poder universitário é constituído principalmente pelo domínio de um capital adquirido nas funções e atividades acadêmicas e, quanto mais complexas, mais elevada a posição e titularidade do professor ou pesquisador.

David Le Breton é professor titular de Sociologia, coordena o Laboratoire de Dynamiques Européennes e é membro do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Strasbourg. Integra também um seleto grupo de especialistas, reconhecidos em suas áreas, do Institut Universitaire de France, além de outras qualificações não menos importantes, mas impossíveis de serem todas aqui apresentadas.

Além desse poder socialmente codificado, há outros tipos, segundo Bourdieu (1984, p. 108)7 BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984., especificamente valorizados em especialistas das ciências humanas e sociais:

o poder ou autoridade científica manifestada pela direção de uma equipe de pesquisa, o prestígio científico medido pelo reconhecimento no campo científico, principalmente no exterior – ou através de citações e das traduções – a notoriedade intelectual, mais ou menos institucionalizada [...], pertencimento a comitês de edição de revistas intelectuais, e enfim, a ligação com instrumentos de grande difusão [...], que é o índice, por um lado, de um poder de consagração e de crítica, e de um capital simbólico de notoriedade.

Com vasta publicação a respeito, Le Breton3 3 Ver informações e publicações de David Le Breton em: http://sspsd.u-strasbg.fr/Le-Breton.html. publicou cerca de trinta livros e centenas de capítulos de livros e artigos sobre sociologia e antropologia do corpo. Suas obras são disseminadas em várias partes do mundo, havendo cerca de sessenta traduções em, pelo menos, 12 idiomas.4 4 Ver detalhes em: http://www.usias.fr/en/chairs/david-le-breton/. O autor desenvolve incontáveis parcerias e projetos em nível internacional, além de ser frequentemente requisitado para conferências e palestras ao redor do mundo.

Estudar a abordagem antropológica da caminhada na perspectiva de Le Breton é parte do exercício de delimitação, diante da riqueza de temáticas presente em suas obras e da necessidade de “formular problemas”, característica do espírito científico (Bachelard, 20133 BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.). Para Lahire (2002)15 LAHIRE, Bernard. Reprodução ou prolongamentos críticos? Educação & Sociedade, v. 23, n. 78, p. 37-55, 2002., a crítica argumentada é imprescindível a uma vida científica saudável, pois “gostar” de um autor não significa uma identificação paralisante no plano científico, mas submeter suas ideias regularmente a discussões.

Ao eleger a caminhada como um objeto sociológico, considera-se que se trata de uma técnica corporal e uma das formas de usos do corpo, conforme Mauss (2003)41 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003., portanto, moldada pela tradição e por diferentes contextos sociais. Assim, a caminhada assume diversos sentidos, visto que poderia estar associada ao trabalho, como no caso de um carteiro, por exemplo, ou à sobrevivência, como ocorre nas marchas de refugiados em busca de uma vida melhor, bem como outros, conforme será investigado. Longe de ser uma ação humana “natural”, é carregada de simbolismos e construída socialmente. Nesse sentido, a caminhada necessita ser perscrutada do ponto de vista sociológico, posto que é inerente ao corpo tratado como “[..] signo das relações sociais, que encerra um conjunto de representações da vida individual e coletiva” (Almeida, 20192 ALMEIDA, Jalcione. Corpos, emoções e risco como objetos sociológicos. Sociologias, v. 21, n. 52, p. 09-16, 2019., p. 11).

Embora tratar da caminhada possa representar certa delimitação, cabe destacar que o refinamento analítico do estudo foi se construindo ao longo do trajeto investigativo. De acordo com Le Breton (2012a, p. 37)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., “para que o conhecimento do mundo se desenvolva infinitamente, você precisa de caminhos ou trilhas [...]. As trilhas não estão sempre bem balizadas ou reconhecíveis.”

Ao perceber que tratar apenas dos livros sobre caminhada não seria suficiente para captar a dimensão argumentativa do autor, outras possibilidades foram exploradas. Dessa forma, para este estudo, foram utilizadas fontes documentais como livros, capítulos de livros e artigos científicos publicados por David Le Breton, bem como entrevistas e palestras disponibilizadas na Internet, seja na forma transcrita, como no original audiovisual.

Além desses documentos, diante da necessidade de melhor compreender as interpretações e pensamentos do autor sobre a caminhada, foram realizadas duas entrevistas pessoalmente com David Le Breton, em seu escritório na Universidade de Strasbourg, em francês. Conforme Pallares-Burke (2000)42 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000., a entrevista é um gênero intermediário entre a escrita elaborada e o pensamento, pois permite apreender as ideias em movimento e revelar aspectos que somente a leitura não possibilita serem desvendados. As entrevistas foram traduzidas e transcritas para serem utilizadas também como fonte documental, mediante autorização do professor.

Os documentos foram, então, analisados procurando-se desvelar os sentidos associados à caminhada, seguindo em linhas gerais os passos propostos por Creswell (2003)9 CRESWELL, John. W. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches. 2. ed. Londres: Sage, 2003.: organização dos dados das diferentes fontes de informação; leitura em busca dos principais sentidos ou pensamentos; processo de codificação; geração de categorias ou temas descritivos; avançar na representação dos temas, interconectando as diferentes fontes e categorias; interpretação com base na literatura e experiência do pesquisador.

Longe de elaborar resenhas dos livros de Le Breton (200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000.; 2012a)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a. ou a transcrição das entrevistas realizadas, trajetos esses também possíveis, o diálogo com as diferentes fontes documentais, em especial as oportunidades de interação com o autor, permitiu que gradativamente a tessitura interpretativa fosse construída. Desse processo emergiram duas temáticas ou, metaforicamente, dois caminhos que, como as trilhas, podem se intercruzar, se aproximar ou se distanciar, mas intentam o mesmo destino, neste caso, a compreensão da caminhada como prática de resistência na perspectiva de Le Breton.

Primeira trilha: a caminhada como forma de resistência ao caráter utilitarista da sociedade contemporânea

A marcha é o retorno às noções básicas do ser humano, como quando era preciso caminhar, nadar, correr, para lutar pela sobrevivência. O ato de caminhar, ou antes, colocar o corpo em movimento, vem sendo deixado de lado, até em trajetos do cotidiano. Em contrapartida, é uma atividade de lazer cada vez mais procurada, que pode permitir contato com a natureza e se opõe às imposições do rendimento, da urgência, da disponibilidade absoluta ao trabalho e aos outros (Le Breton, 200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000.).

Para Le Breton (2012a, p.17)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.,

anacrônica no mundo contemporâneo, que privilegia a velocidade, a utilidade, o rendimento, a eficácia, a marcha é um ato de resistência ao privilegiar a lentidão, a disponibilidade, a conversação, o silêncio, a curiosidade, a amizade, o inútil, um tanto de valores opostos às sensibilidades neoliberais que condicionam nossas vidas.

Em uma sociedade hipercapitalista, hipertecnológica e regida pela cultura do hiperconsumo (Lipovetsky; Serroy, 201137 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), a marcha seria como um “contragolpe” no que se refere aos valores vigentes, como a concorrência, a pressa e o desempenho, na visão de Le Breton (200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000.; 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.; 2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b.. Associadas à marcha, algumas dessas características, tais como o tempo, os sentidos, o silêncio e a interioridade, merecem olhar mais detido, principalmente porque assumem significados diferenciados a depender do contexto de análise.

O tempo, por exemplo, distante de uma visão cronológica, é um imperativo do mundo atual, ao considerarmos as jornadas diárias ligadas ao trabalho, transporte, família e demais atividades do cotidiano, nas quais pouco espaço sobra à disponibilidade ao outro ou a si. Em contrapartida, pode significar uma temporalidade diferente quando se associa a atividades prazerosas, como no caso da caminhada. Conforme Le Breton (2016a)17 LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016a., somos pressionados pelo tempo em virtude das inúmeras obrigações e papéis que desempenhamos na atualidade: “na caminhada há a intenção de reencontrar uma temporalidade própria, ou seja, o tempo não é mais imposto pelos ritmos sociais, pelo universo profissional, mas é uma maneira de o marcheur5 5 Em francês, marcheur é aquele que caminha. A tradução disponível (Le Breton, 2018) seria viandante, mas eventualmente o termo será utilizado na língua nativa. ter o tempo para si, e não do tempo impor-se a ele.” (Le Breton, 2016c19 LE BRETON, David. A sociologia do corpo e a marcha. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf], Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 20 maio, 2016c.).

O viandante é seu próprio mestre de obras, controlando seu corpo, recursos físicos, tempo e ritmo para progredir, decidindo onde e quando parar, podendo alterar a observação do imenso e do minúsculo, com energia direcionada unicamente ao desejo de finalizar seu trajeto (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.). Assim, é como se a marcha proporcionasse uma “suspensão feliz do tempo”. Conforme o autor (2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., p. 45),

a marcha não ocorre apenas no espaço, o tempo igualmente é mobilizado. Não é mais a duração do cotidiano que se esvai com as tarefas do dia e os hábitos, mas um tempo que se alonga, perambula, se desprende do relógio. Caminhada em um tempo interior, retorno à infância ou aos momentos de existência propícios a um retorno a si, lembranças que contam, durante o trajeto, as imagens da vida, a marcha solicita uma suspensão feliz do tempo, uma disponibilidade de se entregar às improvisações de acordo com os eventos do percurso.

Nesse sentido, em uma sociedade em que o tempo exerce pressão crescente, acompanhado de tensões e exigências em todos os âmbitos, até mesmo no lazer (Lipovetsky, 200435 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.), entregar-se à caminhada é um sinal de resistência. Para Le Breton (2012a, p. 51)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., o mundo é percebido através dos sentidos e cada percepção, em ressonância com inúmeras outras, fornece inesgotáveis proposições. Neste raciocínio, a marcha é, antes de tudo, uma arte dos sentidos:

o marcheur é um homem ou uma mulher que se sente vivendo apaixonadamente e não esquece jamais que a condição humana é, a princípio, uma condição corporal. E que o deleite do mundo é aquele da carne, e de uma possibilidade de se movimentar, de se desligar de suas rotinas.

É como se o corpo ficasse em suspensão durante a caminhada, com os pensamentos voltados a uma dimensão mais reflexiva, enraizados na sensorialidade (Le Breton, 201520 LE BRETON, David. Interview David le Breton Version Intégrale. [Entrevista cedida a Laurent Espinosa]. Les interviews de Laurent en partenariat avec l’île de Tara en Eaunes. Publicado em 04 mar., 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFhQpo
https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFh...
), na percepção do momento que se vive, como fica mais claro em suas próprias palavras:

o fato de fechar a porta atrás de si e pegar o caminho para a caminhada, é deixar também para trás as preocupações. E então, mergulhar em um universo sensorial e afetivo completamente diferente. Reencontrar uma respiração da vida pessoal, uma vez que somos pressionados pelos ritmos sociais, pela performatividade, e então ali, encontramos uma respiração, uma distância, um relaxamento da vida pessoal

(Le Breton, 2016a17 LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016a.).

A prática da caminhada como momento de reflexão ou antes, um tempo para si, conforme Le Breton (2012a)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., é mencionada por vários filósofos e pensadores, como Rousseau e Nietzsche. Na filosofia contemporânea, Pavie (2014)44 PAVIE, Xavier. Le corps, matière d'exercices spirituels. Sociétés, v. 3, n. 125, p. 69-79, 2014. analisa a relação da atividade física com a reflexão sobre si do ponto de vista do desenvolvimento espiritual e, igualmente, ressalta a importância da caminhada para Nietzsche, uma atividade que possibilitava que os pensamentos pudessem emergir.

No entanto, segundo Le Breton (2012a, p. 29)22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., a qualidade do pensamento depende de algumas circunstâncias:

[...] do calor, do cansaço, do ritmo em que se mergulha numa espécie de transe e induz principalmente a um apagamento de si na direção de uma sensação de mundo mais físico, muscular. Intuitivamente, cada um busca seu ritmo para refletir ou se esquecer um momento. A lentidão é mais propícia à reflexão, assim como o fato de estar a dois em uma conversa tranquila na qual nada dissipa a atenção ao outro porque mesmo as paisagens acabam por participar desta troca.

Pensar na marcha como prática de resistência é entendê-la como portadora de valores de resistência capitais ao mundo atual. No ponto de vista de Lipovetsky e Serroy (2015, p. 36)36 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. vivemos a era do capitalismo-artista, que difunde inúmeras formas de existência do tipo estético, tais como prazer, emoção, divertimento e sonho,

mas o modelo estético de existência voltado para o consumo que ele promove está longe de ser sinônimo de vida bela, a tal ponto é acompanhado de adicção e de frenesi, de sujeição aos modelos mercantis, de uma relação com o tempo e o mundo dominada pelos imperativos da velocidade, do rendimento, de acumulação.

Ao fruir da caminhada, em oposição a este modo de viver contemporâneo, Le Breton destaca valores como o silêncio, a interioridade, a reflexão, a solidariedade, o diálogo, e afirma que “praticá-los é ir contra a corrente neste mundo da pressa, da urgência, da comunicação, da mercantilização e, seguramente, da falta de diálogo” (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010., p. 115).

Em uma sociedade somática que privilegia a profusão de estímulos visuais e o uso cada vez mais intenso dos aparatos tecnológicos, o fio condutor da vida, ao invés de ser os eventos tradicionais ligados à família, trabalho e relacionamentos, passa a ser constituído de mercadorias eletrônicas e serviços de mídia por meio dos quais as experiências são filtradas e construídas (Crary, 20148 CRARY, Jonathan. Late capitalism and the end of sleep. Londres: Verso, 2014.).

Nesse contexto, usar o tempo para caminhar é uma subversão do cotidiano e, também, um longo mergulho em uma interioridade que parece um abismo para numerosos contemporâneos de uma sociedade da imagem e da aparência, “[...] que não habitam mais que a superfície de si mesmos [...]” (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., p. 17). A interioridade se constitui, assim, em uma forma de resistência, visto que o silêncio é percebido como uma ameaça em um mundo carregado de estímulos externos, porque força um olhar para si, uma interioridade quase insuportável nos dias atuais.

Um dos pensadores de grande influência na obra de Le Breton é Georg Simmel (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010.; Le Breton, 2016b18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b.) e, talvez, esteja também na raiz da interpretação sobre as formas de resistência a partir da caminhada. Lewis (2000)34 LEWIS, Neil. The climbing body, nature and the experience of modernity. Body and Society, v. 6, n. 3-4, p. 58-80, 2000. argumenta que Simmel foi um dos primeiros sociólogos a desenvolver ideias sobre a modernidade e destacar os impactos para o corpo, enfraquecido, individualizado e indiferente em relação ao mundo cada vez mais automatizado e menos sensível.

Em entrevista, Le Breton destaca que o “taylorismo”, ou seja, a ideologia do aproveitamento do tempo e racionalização das ações para maior produtividade, ainda marca profundamente a sociedade contemporânea, pois promove um ritmo acelerado e intenso, em que não cabem momentos de contemplação e de respiração (Le Breton, 201520 LE BRETON, David. Interview David le Breton Version Intégrale. [Entrevista cedida a Laurent Espinosa]. Les interviews de Laurent en partenariat avec l’île de Tara en Eaunes. Publicado em 04 mar., 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFhQpo
https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFh...
). Por outro lado, a marcha possibilitaria esse encontro consigo e com o outro, uma vez que seria possível conversar com intensidade e disponibilidade incomuns: “temos o tempo à nossa frente, podemos nos escutar, nos olhar, calar juntos. Parece-me que no interior da marcha há todos os valores essenciais a serem preservados no mundo de hoje: a lentidão, a curiosidade, a descoberta do mundo[...]” (Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010., p. 122).

Nesse sentido, suas ideias se aproximam de uma versão de vida estética postulada por Lipovetsky e Serroy (2015, p. 37)36 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., a qual se opõe à submissão às normas aceleradas e ativistas do consumismo em prol de “uma estética da tranquilidade, uma arte da lentidão que é abertura para as fruições do mundo, permitindo ‘estar mais próximo da própria existência’”.

Segunda trilha: a caminhada como forma de resistência pelo “desaparecer de si”

Na sociedade contemporânea, ser um indivíduo autônomo, que possa sustentar um lugar no contexto social, é uma árdua tarefa. É preciso se ajustar às circunstâncias, assumir este papel, estar à altura do desafio de se construir permanentemente, em meio a um contexto de responsabilização individual, a despeito de não possuir recursos econômicos ou simbólicos (Le Breton, 201816 LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018.).

Em uma era de economia global, Sennet (1999)49 SENNET, Richard. Growth and failure: the new political economy and its culture. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scott. Spaces of culture: city, nation, world. Londres: Sage, 1999. argumenta que as pessoas experimentam o fracasso de novas maneiras, o que leva a uma erosão do autoconceito, ao mesmo tempo em que abala as instituições que tradicionalmente protegiam o indivíduo do mercado, visto estarem mais flexíveis e menos seguras. Já Lipovetsky e Serroy (2011, p. 24)37 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. argumentam que, em tempos de capitalismo absoluto, quando praticamente tudo é regido pela concorrência, “[...] é preciso ser sempre mais moderno, reativo, informado, eficaz, o que não se dá sem pressões provocadoras de ansiedade e dúvidas sobre si próprio”.

As relações sociais parecem estar cada vez mais desinvestidas de sentido e empobrecidas. Para Le Breton (2011)24 LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., há cada vez menos comunicação, contato, calor humano e solidariedade, valores esses esmagados pelos imperativos sociais que impelem o sujeito à busca, na esfera particular, do que a sociedade não mais lhe oferece. Le Breton expõe suas percepções assim:

o gosto de viver se perde com esses imperativos de consumir, de comunicar, da pressa, do rendimento, da rentabilidade. [...] Assiste-se aos inúmeros efeitos do desligamento social. As incivilidades se banalizam [...]. Mais que a violência, a indiferença em relação ao outro me parece atualmente impressionante. É um fenômeno novo. Estamos, cada vez menos, juntos, e cada vez mais, ao lado uns dos outros

(Le Breton em entrevista a Lévy, 201033 LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010., p. 53).

A deterioração da relação com o mundo implica falta de reconhecimento do outro no cotidiano, na incivilidade entre as pessoas, na existência de consumidores, mais que cidadãos. Uma das questões preocupantes da atualidade, para Le Breton (2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b., é a dificuldade de lidar com o peso das identidades, que são múltiplas, a depender das circunstâncias. A identidade não é substancial, mas relacional, portanto, pode se modificar diante da consistência ou precariedade das relações sociais (Le Breton, 200810 CROSSLEY, Nick. (Net)working out: social capital in a private health club. The British Journal of Sociology, v. 59, n. 3, p. 475-500, 2008.).

Dessa maneira, outra forma de resistência, em sua análise sobre a marcha, seria contra as imposições ligadas às nossas identidades. Conforme Le Breton (2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b., estamos imersos em inúmeras responsabilidades ligadas ao universo profissional, pessoal, amigável, familiar e social, que nos deixam permanentemente com a “sensação de termos contas a prestar”. Analogamente, Sennet (1999)49 SENNET, Richard. Growth and failure: the new political economy and its culture. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scott. Spaces of culture: city, nation, world. Londres: Sage, 1999. reconhecia esta situação ao analisar as formas com que as pessoas lidam com os fracassos do cotidiano: poderia gerar um efeito positivo, como conhecer os próprios limites ou, ao contrário, tornar-se um fardo muito pesado ao indivíduo, constantemente testado e sem suporte institucional, ao que poderíamos acrescentar, emocional, nesta nova era.

O gesto de se colocar a caminho para a marcha poderia ser analisado a partir de seus simbolismos, pois, se é uma prática corporal que pode levar a uma distância efetiva de casa, significaria, também, distanciar-se e experimentar certa liberdade das obrigações, por vários motivos. Nas palavras do autor, “marchar equivale a se colocar de férias de sua história e a se entregar às solicitações do caminho” (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a., p. 26).

Diferentemente da liberdade básica experimentada na sociedade de consumo, de acordo com Featherstone (1999)12 FEATHESTONE, Mike. The body in consumer culture. In: FEATHERSTONE, Mike; HEPWORTH, Mike & TURNER, Brian. The body: social process and cultural theory. London: Sage, 1999. p. 170-196., atrelada à liberdade de consumir, aquele que caminha parece se desprender, em certo sentido e durante a prática, das tentações mercantilistas. Para Le Breton (2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b., existem questões de ordem prática, como não poder carregar muito peso na mochila, portanto deve-se racionalizar o que será levado (por exemplo, computadores ou derivados eletrônicos). Caminhar distante dos centros urbanos implica também experimentar falta de acesso às conexões via internet ou rede telefônica, o que pode ser uma sensação desagradável, considerando-se o contexto hipermoderno (Lipovetsky; Serroy, 201137 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), em que nunca houve tantas possibilidades de conexão uns com os outros pelas redes de comunicação e tamanha sensação de isolamento e “miséria subjetiva”.

Por outro lado, é também, uma sensação libertadora do peso das identidades, no sentido proposto por Le Breton (2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b., ao destacar a possibilidade do anonimato na marcha:

marchar, [...] é como experimentar a liberdade de todas essas obrigações de identidade, faz com que, nas trilhas, sejamos anônimos, ninguém sabe quem nós somos, não há necessidade de se apresentar, falar o que faz, falamos simplesmente das trilhas [...]. Por um tempo, não carregamos mais o peso de nossa identidade individual, profissional, social, cultural [...]. É o tempo de se reposicionar.

Essa sensação do anonimato, ou da necessidade de se distanciar das identidades que carregamos, é motivo de análise pormenorizada no livro Desaparecer de si: uma tentação contemporânea (Le Breton, 201816 LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 14), no qual o autor cria a noção de “branco”:

[...] chamarei de branco este estado de ausência de si mais ou menos pronunciada, esse fato de abdicar de si de um modo ou de outro por causa da dificuldade ou do caráter penoso de ser si mesmo. Em última análise, trata-se de uma vontade de aliviar a pressão. [...] O branco responde ao sentimento de saturação, de excesso vivido pelo indivíduo. Busca de uma relação enfraquecida com os outros, ele é uma resistência aos imperativos de construir para si uma identidade no contexto do individualismo democrático de nossas sociedades. Entre o vínculo social e o nada, ele desenha um território intermediário, uma maneira de fazer-se de morto por algum instante.

Há várias formas de “desaparecer de si” tratadas pelo autor, que podem ser mais ou menos graves, a ponto de a pessoa efetivamente perder o seu lugar social, mas, no caso da atividade física e, exemplarmente, da marcha, é considerada uma forma prazerosa, deliberada, positiva, um exercício lúdico e controlado de “desaparecimento” para se reapropriar de sua existência (Le Breton, 201816 LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018.).

Um dos aspectos interessantes no tocante ao anonimato é que as pessoas não estariam presas a um estatuto. Conforme o autor, as interações sociais implicam risco de imposição de determinados estatutos, pois o indivíduo entra na esfera de influência dos outros e perde o controle das significações a ele atribuídas (Le Breton, 200826 LE BRETON, David. L’interactionnisme symbolique. 2. ed. corrigida. Paris: PUF, 2008.). Para Strauss (1999, p. 97)51 STRAUSS, Anselm. L. Espelhos e máscaras: a busca da identidade. São Paulo: Edusp, 1999., “como muitos autores já observaram, as relações sociais raramente existem sem uma certa dose de hipocrisia e mascaramento convencional do pensamento e do sentimento”.

Nesse sentido, Le Breton (2016b)18 LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b. exemplifica que a marcha é procurada por pessoas depressivas ou portadoras de doenças, mas que não necessariamente lhes são atribuídos estatutos como o de doente ou depressivo. Isso se explica pelas formas de contato durante a marcha, que privilegiam trocas de informações sobre percursos ou assuntos afins, ao invés de informações de caráter pessoal, como para saber se está melhor ou quais as condições da pessoa. No ponto de vista dele, talvez isso explique em parte o imenso sucesso sociológico da caminhada.

Caminhar é viver pelo corpo, provisoriamente ou de modo durável. Os trajetos na floresta, nas rodovias ou nas trilhas, não nos isentam de nossas responsabilidades crescentes na direção das perturbações do mundo, mas permitem retomar o fôlego, refinar os sentidos, renovar a curiosidade. A marcha é sempre um desvio para se unir a si

(Le Breton, 200031 LE BRETON, David. Éloge de la marche. Paris: Métailié (Suites), 2000., p. 11).

Conclusão

Desde a noção de técnicas corporais cunhada por Mauss (2003)41 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003., o campo de estudos da sociologia do corpo se ampliou consideravelmente, em especial, nas últimas décadas. Em meio às diversas temáticas que atravessam o corpo, as atividades corporais, como a caminhada, ainda carecem de olhares que ultrapassem o caráter biológico ou técnico. A perspectiva sociológica, nesse sentido, contribui para avançar na desnaturalização e no deslindamento dos sentidos associados a este ato considerado elementar, contudo pouco abordado de forma sistemática.

Em que pese David Le Breton ser um intelectual de destaque no campo da sociologia do corpo, suas reflexões sobre a marcha são pouco conhecidas no âmbito brasileiro. Com o intuito de colaborar para avançar nessas lacunas, empreendeu-se um estudo baseado em fontes documentais, inclusive entrevistas com o próprio autor. A partir do intercruzamento dessas fontes, foi possível direcionar o foco de análise à caminhada como prática de resistência, eixo central desenvolvido neste artigo.

O encantamento de Le Breton pela caminhada é nítido não apenas nas obras visitadas, mas em suas palavras e empolgação, conforme observado por ocasião das interações pessoais. Alinhado a uma sociologia sensível, promove uma análise ímpar dessa prática corporal, ao descrever em detalhes a experiência sensorial provocada pela caminhada. Aquele que caminha, de acordo com sua interpretação, experimenta a organicidade do corpo, como o suor, o cansaço e a respiração, e se mistura ao entorno de seu trajeto, como que em um prolongamento do corpo (Le Breton, 2012a22 LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.).

Le Breton defende a ideia de que a marcha é uma ruptura diante das atividades cotidianas, em vários sentidos. Desse modo, proporcionaria algumas horas de paz e de certa liberdade de diferentes papéis sociais e preocupações, ao utilizar-se do corpo em movimento como uma forma de resistir às exigências contemporâneas, notadamente atreladas ao rendimento, ao aprisionamento do tempo e das vontades, e às constantes obrigações sociais.

Diante das formas de resistência associadas à caminhada, como resistência à “civilização sentada” (Le Breton, 2016c19 LE BRETON, David. A sociologia do corpo e a marcha. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf], Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 20 maio, 2016c.) dos dias atuais, optou-se por abordar duas trilhas no intuito de explorar as lentes analíticas do autor. A primeira busca compreender o caráter elementar da caminhada como prática de resistência a determinados aspectos da sociedade contemporânea, que privilegiam a velocidade, o efêmero e o caráter utilitário das relações e emoções. O ponto de vista de Le Breton permite refletir sobre os usos do corpo na contemporaneidade, muitas vezes atrelados mais à aparência e ao desempenho, em contexto de precariedade das relações sociais. A caminhada, por sua vez, seria uma forma de suspensão do tempo para sentir-se corpo, que se permite reconstruir a partir das experiências de aguçamento dos sentidos propiciadas pela contemplação e lentidão.

A segunda trilha envereda por este contexto social conturbado, em que há a imperiosa necessidade de se lidar com as diferentes identidades construídas face aos vínculos sociais. O desaparecer de si, no olhar de Le Breton, enseja saídas para se escapar dos inúmeros papéis sociais a serem desempenhados rotineiramente, mesmo que por um tempo. A caminhada emerge, então, como uma forma de resistência às imposições da sociedade, constituindo-se em uma forma deliberada, lúdica e feliz de desaparecer. Isso porque, ao se dispor às trilhas, libera-se o fardo relativo aos estatutos sociais, estando-se disponível a si para mergulhar em outro universo, no qual prevalece o anonimato e a introspecção. Ao experimentar o corpo em suas dimensões física e muscular, sente-se o percurso e os elementos que o envolvem e não há necessidade de se sustentar o peso das coerções sociais.

Assim, Le Breton avança nas potencialidades analíticas ligadas à sociologia do corpo, ao propor a centralidade da experiência e da sensibilidade como aspectos fundamentais para as possibilidades de ser sujeito enredado nas tramas sociais. Dado o caráter transdisciplinar da sociologia do corpo e das temáticas que a atravessam, como as atividades corporais, a compreensão da caminhada como prática de resistência pode ser uma chave interpretativa pertinente para se repensar algumas características do cenário atual, marcado pela responsabilização individual e por constantes desafios de ordem social e emocional.

O teor destas reflexões em torno dos usos do corpo na sociedade contemporânea interessa não apenas às ciências sociais e humanas, mas a diversos campos de conhecimento que se aliam à tarefa, nunca simples, de conhecer o corpo como sujeito e vetor das relações sociais. Outrossim, pode fornecer vias interpretativas que provoquem questionamentos sobre as condições sociais que estão por trás de corpos que têm sido privilegiados ou invisibilizados nessas práticas. Resistir também significaria desconstruir determinados discursos que parecem sustentar a condição corporal, mas que necessitam ser escrutinados face às diversidades e tensões sociais.

Há muitas possibilidades de análise a serem realizadas, porém espera-se que as argumentações desenvolvidas nestas trilhas, sob a lente teórica de David Le Breton, possam colaborar para o exercício fundamental de buscar compreender algumas das dimensões de ser corpo diante das complexidades sociais.

  • 1
    Em francês, la marche poderia ser traduzida por marcha ou caminhada. No entanto, caminhada é o sentido mais usualmente reconhecido. Neste artigo, serão usados os dois termos a partir de agora, com a mesma conotação proposta por Le Breton.
  • 2
    Destaque-se que foi efetuada tradução nossa para todas as citações de obras em francês utilizadas neste artigo, bem como no caso das entrevistas com David Le Breton.
  • 3
    Ver informações e publicações de David Le Breton em: http://sspsd.u-strasbg.fr/Le-Breton.html.
  • 4
  • 5
    Em francês, marcheur é aquele que caminha. A tradução disponível (Le Breton, 2018) seria viandante, mas eventualmente o termo será utilizado na língua nativa.

Referências

  • 1
    AALTEN, Anna. Listening to the dancer’s body. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 109-125, 2007.
  • 2
    ALMEIDA, Jalcione. Corpos, emoções e risco como objetos sociológicos. Sociologias, v. 21, n. 52, p. 09-16, 2019.
  • 3
    BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
  • 4
    BÉTRAN, Javier O. Las actividades físicas de aventura en la naturaleza: análisis sociocultural, Apunts, Educación Física y Deportes, v. 41, p. 5-8, 1995.
  • 5
    BLACKMAN, Lisa; FEATHERSTONE, Mike. Re-visioning body & society, Body & Society, v. 16, n. 1, p. 1-5, 2010.
  • 6
    BOURDIEU, Pierre. Sport and social class. Social, Science, Information, v. 17, n. 6, p. 819-840, 1978.
  • 7
    BOURDIEU, Pierre. Homo academicus Paris: Les Éditions de Minuit, 1984.
  • 8
    CRARY, Jonathan. Late capitalism and the end of sleep Londres: Verso, 2014.
  • 9
    CRESWELL, John. W. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches. 2. ed. Londres: Sage, 2003.
  • 10
    CROSSLEY, Nick. (Net)working out: social capital in a private health club. The British Journal of Sociology, v. 59, n. 3, p. 475-500, 2008.
  • 11
    CROSSLEY, Nick. Researching embodiment by way of “body techniques”. The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 80-94, 2007.
  • 12
    FEATHESTONE, Mike. The body in consumer culture. In: FEATHERSTONE, Mike; HEPWORTH, Mike & TURNER, Brian. The body: social process and cultural theory. London: Sage, 1999. p. 170-196.
  • 13
    GIDLOW, Christopher J. et al Where to put your best foot forward: psycho-physiological responses to walking in natural and urban environments. Journal of Environmental Psychology, v. 45, p. 22-29, 2016.
  • 14
    HUTSON, David J. Your body is your business card: bodily capital and health authority in the fitness industry. Social Science and Medicine, v. 90, p. 63-71, 2013.
  • 15
    LAHIRE, Bernard. Reprodução ou prolongamentos críticos? Educação & Sociedade, v. 23, n. 78, p. 37-55, 2002.
  • 16
    LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • 17
    LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos Petrópolis: Vozes, 2016a.
  • 18
    LE BRETON, David. Aproximações em relação à marcha como prática de resistência. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf]. Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 4 maio, 2016b.
  • 19
    LE BRETON, David. A sociologia do corpo e a marcha. [Entrevista cedida a Silvia Lüdorf], Bureau 5217, Faculté de Sciences Sociales, Université de Strasbourg, Estrasburgo, França, 20 maio, 2016c.
  • 20
    LE BRETON, David. Interview David le Breton Version Intégrale. [Entrevista cedida a Laurent Espinosa]. Les interviews de Laurent en partenariat avec l’île de Tara en Eaunes Publicado em 04 mar., 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFhQpo
    » https://www.youtube.com/watch?v=CSVwXhFhQpo
  • 21
    LE BRETON, David. Conduites à risque: des jeux de mort au jeu de vivre, 3. ed., Paris: PUF/Quadrige, 2013.
  • 22
    LE BRETON, David. Marcher : éloge des chemins et de la lenteur. Paris: Métailié (Suites), 2012a.
  • 23
    LE BRETON, David. Sociologie du risque Paris: PUF, collection « Que sais-je ? », 2012b.
  • 24
    LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade Petrópolis: Vozes, 2011.
  • 25
    LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009.
  • 26
    LE BRETON, David. L’interactionnisme symbolique 2. ed. corrigida. Paris: PUF, 2008.
  • 27
    LE BRETON, David. A sociologia do corpo 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
  • 28
    LE BRETON, David. The anthropology of adolescent risk-taking behaviours, Body & Society, v. 10, p. 1-15, 2004a.
  • 29
    LE BRETON, David. Sinais de identidade: tatuagens, piercings e outras marcas corporais. Lisboa: Miosótis, 2004b.
  • 30
    LE BRETON, David. Activités physiques et sportives et intégration : aspects anthropologiques. Empan, v. 3, n. 51, p. 58-64, 2003.
  • 31
    LE BRETON, David. Éloge de la marche Paris: Métailié (Suites), 2000.
  • 32
    LE GOFF, Jacques. História e memória Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
  • 33
    LÉVY, Joseph. Entrétiens avec David Le Breton: déclinaisons du corps. Montreal-Paris: Tétraèdre, 2010.
  • 34
    LEWIS, Neil. The climbing body, nature and the experience of modernity. Body and Society, v. 6, n. 3-4, p. 58-80, 2000.
  • 35
    LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos São Paulo: Barcarolla, 2004.
  • 36
    LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • 37
    LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • 38
    MARAFA, Lawal M.; TING, Ho Yan; CHEONG, Chau Kwai. Perceived benefits of hiking as an outdoor recreation activity in Hong Kong. Licere, v. 10, n. 2, p. 1-26, 2007.
  • 39
    MARKULA, Pirkko. “Tuning into one’s self”: Foucault’s technologies of the self and mindful fitness. Sociology of Sport Journal, v. 21, p. 302-321, 2004.
  • 40
    MARKULA, Pirkko. The technologies of the self: sport, feminism and Foucault. Sociology of Sport Journal, v. 20, p. 87-107, 2003.
  • 41
    MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • 42
    PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
  • 43
    PÁMPOLS, Carles F. La aventura imaginaria. Uma visión antropológica de las atividades físicas de aventura em la natureza. Apunts, Educación Física y Deportes, v. 41, p. 36-43, 1995.
  • 44
    PAVIE, Xavier. Le corps, matière d'exercices spirituels. Sociétés, v. 3, n. 125, p. 69-79, 2014.
  • 45
    RAUCH, André. La marche, la vie: solitaire ou solidaire, ce geste foundateur. Paris: Éditions Autrement, 1997.
  • 46
    SASSATELLI, Roberta. Healthy cities and instrumental leisure: the paradox of fitness gyms as urban phenomena. Modern Italy, v. 20, n. 3, p. 237-249, 2015.
  • 47
    SASSATELLI, Roberta. Interaction order and beyond: a field analysis of body culture within fitness gyms. In: FEATHERSTONE, Mike. Body modification Londres: Sage, 2000. p. 227-248.
  • 48
    SCOTT, Susie. How to look good (nearly) naked: the performative regulation of the swimmer’s body. Body & Society, v. 16, n. 2, p. 143-168, 2010.
  • 49
    SENNET, Richard. Growth and failure: the new political economy and its culture. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scott. Spaces of culture: city, nation, world. Londres: Sage, 1999.
  • 50
    SHILLING, Chris. Sociology and the body: classical traditions and new agendas, The Sociological Review, v. 55, n. s1, p. 1-18, 2007.
  • 51
    STRAUSS, Anselm. L. Espelhos e máscaras: a busca da identidade. São Paulo: Edusp, 1999.
  • 52
    SVARSTAD, Hanne. Why hiking? Rationality and reflexivity within three categories of meaning construction. Journal of Leisure Research, v. 42, n. 1, p. 91-110, 2010.
  • 53
    WOLF, Isabelle D.; WOHLFART, Teresa. Walking, hiking and running in parks: a multidisciplinary assessment of health and well-being benefits. Landscape and Urban Planning, v. 130, p. 89-103, 2014.
  • 54
    WACQUANT Loïc. L’habitus comme objet et méthode d’investigation : retour sur la fabrique du boxeur. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 4, n. 184, p. 108-121, 2010.
  • 55
    WACQUANT, Loïc. Los tres cuerpos del boxeador profesional. Educación Física y Ciencia, v. 8, p. 11-35, 2006.
  • 56
    WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
  • 57
    WAINWRIGHT, Steven P.; TURNER, Bryan S. “Just crumbling to bits”? An exploration of the body, ageing, injury and career in classical ballet dancers. Sociology, v. 40, n. 2, p. 237-255, 2006.
  • 58
    ZARIAS, Alexandre; LE BRETON, David. Corpos, emoções e risco: vias de compreensão dos modos de ação individual e coletivo. Sociologias, v. 21, n. 52, p. 20-32, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br