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Plataformização do trabalho

A Revista Sociologias traz neste número a reflexão muito atual sobre a plataformização do trabalho. Em um dossiê intitulado “Trabalho em plataformas digitais: perspectivas desde o Sul global”, os organizadores Ludmila Costhek Abílio, Henrique Amorim e Rafael Grohmann propõem “fundamentar um olhar sociológico atento às transformações e permanências das formas de organização e controle do trabalho a partir do Sul” (Abílio; Amorim; Grohmann, nesta edição). O conjunto de trabalhos apresentados privilegia a análise da plataformização no campo da Sociologia do Trabalho, a partir do olhar do chamado Sul global, considerando que se trata de um processo de alcance global atrelado às especificidades locais. Trata-se, pois, de olhares periféricos com abrangência global.

O fenômeno da plataformização comporta uma multiplicidade de abordagens. É possível discuti-lo sob a ótica da datificação ou da vigilância, da financeirização, do papel dos algoritmos, entre outros. O que define transversalmente o fenômeno nas diversas abordagens é a gestão algorítmica do trabalho, vigilância invisível e constante sobre o trabalhador, extração de dados e sua incorporação ao capital, disponibilização constante do trabalhador sem qualquer obrigação de nenhuma das partes, trabalho como mero fator de produção sem qualquer responsabilidade sobre a sua reprodução (Abílio, 20201 ABILIO, Ludmila. Uberização ou plataformização no contexto da pandemia do Covid-19. Youtube, 17 junho 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pp8ZNhxnS7E. Acesso em: 10 ago. 2020.
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). A plataformização possibilita transformar o trabalhador em just-in-time, ou seja, um trabalhador (qualquer um) sempre disponível para o trabalho e que pode ser utilizado na exata medida das demandas do capital.

Em regra, as plataformas afirmam que são empresas do setor da tecnologia e apenas otimizam o contato entre tomadores de serviço e trabalhadores. Há, no entanto, um importante descompasso entre discurso e prática: embora se considerem como espaços virtuais em que tomadores e prestadores de serviços se encontram, atuam muitas vezes como empregadores. Ou seja, ao mesmo tempo em que obrigam os trabalhadores a se reconhecerem como independentes, plataformas delimitam as margens de autonomia no trabalho, uma vez que decidem quando e onde trabalhar, penalizam a recusa de tarefas, e impõem taxas e padrões de qualidade não passíveis de negociação (BIT, 20193 BIT. Les plateformes de travail numérique et l’avenir du travail. Pour un travail décent dans le monde en ligne. Genebra: Bureau Internacional do Trabalho, 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_721011/lang--fr/index.htm. Acesso em: 04 abr. 2019.
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, p. 113).

O processo de plataformização do trabalho aponta para novas formas de instabilidade e desregulamentação social do trabalho. Ao que vem se juntar a Reforma Trabalhista de 2017, segundo a qual qualquer trabalhador formal pode se tornar trabalhador sob demanda. A inserção pelo trabalho ruma para a instabilidade, para a incerteza dos rendimentos e para ausência de proteção social.

A lógica da exploração é a desresponsabilização completa do empregador/ intermediador, a construção de um mercado mundial, a outorga da gestão a uma falsa neutralidade dos algoritmos, a fragmentação da atividade, a responsabilização e invisibilização do trabalhador que se torna empreendedor de si mesmo.

Neste momento, as plataformas não são regulamentadas pelos governos, mas isso não significa que se trate de uma livre troca de serviços entre partes independentes. Ao contrário, as plataformas são autorreguladas e regulam o mercado: estabelecem políticas, decidem quando e como os participantes se comunicarão, quais informações estarão disponíveis e como serão exibidas. As plataformas também definem o que será negociado, sob quais condições e preços. Em caso de disputas, é comum as plataformas não retornarem os questionamentos e demandas dos trabalhadores, e quando realizam a intermediação, sua decisão é sempre soberana e inquestionável (Berg, 20162 BERG, Janine. Income security in the on-demand economy: findings and policy lessons from a survey of crowdworkers. (Conditions of work and employment series; nº. 74). Geneva: ILO, 2016., p. 18).

A sociologia do trabalho se vê diante da complexa tarefa de compreender e definir o papel dos diferentes atores (ou stakeholders) numa nova configuração das relações de trabalho, em que os trabalhadores da plataforma não são completamente independentes, nem completamente subordinados. Da mesma forma, as empresas da plataforma não são propriamente intermediárias de mercado, nem exatamente empregadoras (Dieuaide; Azaïs, 20204 DIEUAIDE, Patrick., AZAÏS Christian. Platforms of work, labour, and employment relationship: the grey zones of a digital governance. Frontiers in Sociology, v. 5, n. 2, p. 1-14, 2020.). Esse embaralhamento abre espaço para indefinições que favorecem a concentração do poder econômico e a exploração do trabalho.

Este dossiê vem enfrentar com propriedade “os desafios para a compreensão e debate dessas temáticas, criando, revisando e atualizando teorias e conceitos” (Abílio; Amorim; Grohmann, nesta edição). Tarefa nada fácil, já que não basta apontar o quanto o trabalho por plataformas está distanciado da norma do trabalho standard. Nem tampouco lançar mão de termos cujos sentidos estão em transformação, tais como trabalhador independente, empregador e consumidor. Os discursos e práticas se tornam híbridos, derramando-se por entre fronteiras já indefinidas. Este dossiê vem contribuir de maneira definitiva e urgente com a reflexão sobre a plataformização do trabalho, tema hoje incontornável no campo da Sociologia do Trabalho.

Neste número de Sociologias, os leitores ainda poderão encontrar na seção Artigos cinco textos sobre temas diversos, iniciando com o artigo de Camilla Oliveira e Rodolfo Hoffmann, intitulado “Mobilidade socio-ocupacional no Brasil: novo procedimento para delimitação dos estratos ocupacionais e análise dos dados da PNAD de 2014”. A partir dos dados da PNAD de 2014, o trabalho analisa a mobilidade socio-ocupacional inter e intrageracional na sociedade brasileira e a influência de fatores como migração e cor da pele no processo de mobilidade social, propondo uma nova metodologia de estratificação para a construção de estratos socio-ocupacionais.

“Experiência, linguagem e narração: problemas teóricos e reflexões a partir de pesquisa de campo” é o segundo artigo desta seção, de autoria de Guilherme F. W. Radomsky. O autor recorre a uma variedade de escritos sobre experiência, linguagem, narração e processos de subjetivação, especialmente de Walter Benjamin, Michel Foucault e Giorgio Agamben, para, com base em pesquisa etnográfica com agricultores, problematizar os modelos de desenvolvimento rural.

O terceiro artigo desta seção, “Exploração social e estrutura de classes: a atualidade de um quadro de análise”, de Luiz Inácio Gaiger, aborda os conceitos de relações de exploração, classes e estrutura de classes, com o objetivo de demonstrar que ainda são relevantes para a análise tanto da estrutura quanto da ação social. O autor retoma algumas objeções que vêm sendo feitas ao foco nas classes na análise social, visando superá-las para demonstrar que há ganhos analíticos em retomar as formulações de Marx sobre o conceito de classes, à luz de seus intérpretes neomarxistas, de modo a evidenciar sua relação com a desigualdade e a exploração.

Rafaela N. Pannain é autora do artigo “A caminho do Araguaia: três trajetórias militantes”. Nele, buscando apreender o processo de construção do sentido de um engajamento político que implicava alto risco para os militantes, a autora analisa as trajetórias militantes de Maurício Grabois, Elza Monnerat e João Amazonas, membros do Partido Comunista do Brasil enviados à região do Araguaia para organizar um movimento armado contra a ditadura civil-militar instaurada com o golpe de 1964. O último artigo desta seção, “Notas sobre a tortura em um debate do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo”, de Camila Nunes Dias e Mayara de Souza Gomes, analisa, ao longo da sua história, o grupo criminal autodenominado Primeiro Comando da Capital (PCC). Partindo da análise de um processo crime envolvendo práticas de tortura na cidade de São Paulo e que se referia à ocorrência de um debate do tipo “vida e morte”, dispositivo instituído pelo PCC para resolução de conflitos, as autoras discutem como, nesses debates, o grupo criminal têm recorrido ao uso da tortura para obter confissões e punir indivíduos acusados de violar a “disciplina do crime”. Ressaltam, ainda, o recurso a valores sociais e morais amplamente disseminados para fundamentar a ética regulatória das práticas do mundo do crime e para orientar as ações deliberadas por seus agentes, legitimando o uso da violência como forma de resolução de conflitos e de punição.

Na seção Interfaces são apresentados dois artigos. O primeiro deles intitula-se “Brasil da financeirização: do consumo familiar à cooptação da assistência social”, de Horígenes Fontes Soares Neto, Lessi Inês Farias Pinheiro e Marcelo Inácio Ferreira Ferraz. Focados no contexto das políticas neoliberais e da concomitante financeirização da vida, os autores indagam sobre o apresamento, pela ciranda de financeirização, da população da base da pirâmide social, especialmente as beneficiárias dos programas sociais de transferência de renda. Questionam, ainda, se os fundos públicos destinados aos programas sociais têm servido, também, para alimentar o sistema financeiro privado e a acumulação de capital por esses grupos, agravando as desigualdades e, portanto, desvirtuando as políticas de seus objetivos. A análise de dados secundários empreendida revela o aumento dos gastos de consumo e do endividamento das famílias. Mostra também que o sistema financeiro de apropria de quantias milionárias dos fundos públicos, a título de remuneração pelos serviços de operacionalização das políticas de transferência de renda.

O segundo artigo desta seção, de autoria de Danielle Maia Cruz e Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto, intitulado “Terrorismo, manifestações sociais e democracia: uma análise sobre a proposta de alteração da Lei nº 13.260/2016 no Brasil”, examina os possíveis riscos à democracia na eventualidade de aprovação do projeto de alteração da Lei Antiterrorismo. Partindo de eventos de violência e intimidação promovidos por facções de coletivos criminais no Ceará, em 2019, que serviram de estopim para reavivar o debate e o clamor por legislação mais rígida contra atos ditos “terroristas”, os autores apontam as dinâmicas das facções no Ceará e diferenças com relação a outras modalidades de organização social voltadas historicamente à luta por direitos constitucionais, ressaltando as dificuldades em tipificar como terroristas atos praticados por coletivos criminais sem, ao mesmo tempo, prover ao Estado meios para também coibir as práticas de movimentos sociais, inclusive por motivações políticas. O artigo conclui que os efeitos de possíveis alterações na Lei Antiterrorismo seriam severos para a dinâmica da democracia, ao reprimir possivelmente práticas coletivas historicamente fundamentais para assegurar direitos diversos em uma sociedade plural.

Na seção Resenhas são oferecidos aos leitores de Sociologias dois textos. O primeiro deles, “Um ‘Marx pós-colonial’? Revoluções e colonialismos ao Sul global”, de Deni Ireneu Alfaro Rubbo, resenha o livro de Kevin Anderson “Marx nas margens: nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais”, editado pela Boitempo em 2019.

A segunda resenha intitula-se “Da emancipação ao autoritarismo: a teoria do pós-materialismo e o “cultural backlash”. Os autores, Julian Borba e Gregório Unbehaun Leal da Silva, resenham a obra de Pippa Norris e Ronald Inglehart “Cultural backlash: Trump, Brexit, and authoritarian populism”, publicado por Cambridge University Press em 2019.

Por fim, na seção Brazil Today apresentamos o resumo expandido da pesquisa “Reconfigurations of the social sphere in Brejo da Paraíba in the 21st century: imprints of plantations in Latin America” (Reconfigurações do espaço social do brejo paraibano no século XXI: as marcas das plantations na América Latina), de Patrícia Alves Ramiro. A pesquisa, inserida num debate mais amplo referente às marcas deixadas por séculos em espaços sociais dedicados às plantations com vocação exportadora na América Latina, visa identificar e analisar, a partir de uma abordagem etnográfica, as estratégias de reconversão das atividades de reprodução social adotadas pelos atores da região do brejo paraibano, tanto das elites (“senhores de engenho”) quanto dos trabalhadores dos canaviais, após a falência da principal usina da região.

Desejamos a todos leitores uma boa leitura.

Os Editores

Referências

  • 1
    ABILIO, Ludmila. Uberização ou plataformização no contexto da pandemia do Covid-19 Youtube, 17 junho 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pp8ZNhxnS7E Acesso em: 10 ago. 2020.
    » https://www.youtube.com/watch?v=Pp8ZNhxnS7E
  • 2
    BERG, Janine. Income security in the on-demand economy: findings and policy lessons from a survey of crowdworkers. (Conditions of work and employment series; nº. 74). Geneva: ILO, 2016.
  • 3
    BIT. Les plateformes de travail numérique et l’avenir du travail. Pour un travail décent dans le monde en ligne. Genebra: Bureau Internacional do Trabalho, 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_721011/lang--fr/index.htm Acesso em: 04 abr. 2019.
    » https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_721011/lang--fr/index.htm
  • 4
    DIEUAIDE, Patrick., AZAÏS Christian. Platforms of work, labour, and employment relationship: the grey zones of a digital governance. Frontiers in Sociology, v. 5, n. 2, p. 1-14, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021
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