Acessibilidade / Reportar erro

Encarceramento e desencarceramento no Brasil: a audiência de custódia como espaço de disputa

Incarceration and disincarceration in Brazil: the detention hearing as a space for dispute

Resumo

A população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta no período pós-Constituição de 1988. O percentual de presos provisórios é elevado. Considerando que nesse período foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e medidas alternativas, supõe-se a coexistência entre a prisão e as alternativas ao cárcere. O artigo analisa dados coletados em pesquisa nacional sobre Audiências de Custódia, que permitem discutir tensões e funcionamento recíproco de medidas descarcerizantes e mentalidade punitiva. Por meio de análise de observação direta das audiências e entrevistas com os operadores do direito, reflete-se sobre padrões de escolha e mecanismos de seletividade que, por hipótese, se relacionam às concepções dos operadores jurídicos acerca do crime, do criminoso e da punição. São analisadas as mentalidades institucionais no campo jurídico relacionadas com opções de política criminal e os seus reflexos na tomada de decisão judicial, aprofundando possibilidades teóricas de interpretação desses dados.

Palavras-chave
encarceramento; audiência de custódia; prisão provisória; política criminal; alternativas penais

Abstract

The Brazilian prison population have been growing continuously uninterruptedly in the post-Constitution period of 1988. The percentage of pre-trial prisoners is high. Considering that in this period the possibilities of alternatives to imprisonment were expanded, the coexistence between incarceration and its alternatives is assumed. The article analyzes data collected in a national research on Detention Hearings, which allow to discuss tensions and the reciprocal progress of disincarceration policy and punitive mentality. Through direct observation of the hearings and interviews with law enforcement actors analysis, patterns of choice and selectivity mechanisms had been identified, which, hypothetically, are related to the concepts of legal operators about crime, the offender and punishment. Institutional mentalities in the legal field related to criminal policy options and their impact on judicial decision-making were analyzed, deepening theoretical possibilities for interpreting these data.

Keywords
incarceration; detention hearing; pretrial detention; criminal policy; alternative sentencing

Introdução

A população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta há três décadas, coincidindo com a vigência da Constituição de 1988 e a democratização do Estado em vários setores. Nesse ínterim, também foram ampliadas as possibilidades de aplicação de penas e medidas alternativas à prisão e ao encarceramento provisório, como a Lei nº 12.403/2011 e as audiências de custódia, objeto de análise deste artigo. Diante desse cenário aparentemente contraditório, supõe-se que a relação entre a prisão e as alternativas ao cárcere não é necessariamente de ruptura, mas de coexistência, continuidade e funcionamento recíproco. Os efeitos das alternativas à prisão vinculam-se tanto às interações entre as diversas tendências político-criminais presentes quando de sua emergência e implementação, quanto às formas de compreensão acerca do crime e do criminoso que, num dado momento, orientam a sua configuração específica.

Nesse sentido, este artigo explora questões ligadas à implementação das audiências de custódia em seis cidades brasileiras, analisando a coexistência entre práticas descarcerizantes e visões punitivistas da punição em seu funcionamento cotidiano. Para tanto, serão analisados dados quantitativos e qualitativos da pesquisa Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares – Obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ/FBSP, 2018CNJ/FBSP – Conselho Nacional de Justiça/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Relatório de pesquisa, Brasília: 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ze1e6j.
https://bit.ly/2ze1e6j...
), oferecendo uma interpretação autoral. Além disso, serão analisados os dados quantitativos do Infopen, sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, mantido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e do CNJ, para verificar a dinâmica de funcionamento do sistema penal nos diferentes estados. A interpretação reflete sobre os usos e funções atribuídas às audiências de custódia, sobre como a prisão e as alternativas penais são implementadas e percebidas pelos agentes jurídicos e sobre os obstáculos à efetivação de uma política de desencarceramento.

O crescimento do encarceramento no Brasil

Há uma tensão no Brasil contemporâneo que desafia o quadro apresentado pela literatura internacional que analisa o crescimento do encarceramento e das políticas de endurecimento penal. David Garland (2008)GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008., Loïc Wacquant (2003)WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA. Rio de Janeiro: Revan, 2003., Zygmunt Bauman (1999)BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. e outros expoentes concordam com a ideia de que o punitivismo1 1 O punitivismo refere-se a uma visão da punição dissociada dos objetivos de reinserção social que marcaram o arranjo institucional do welfare. Trata-se de um movimento global de reformas legislativas e práticas institucionais no sentido da ampliação do sistema penal no tratamento dos conflitos sociais, endurecimento das penas, pautado por uma visão individualista do conflito, reemergência da leitura ontológica do crime e do criminoso, relacionado a políticas neoliberais. é uma tendência em ascensão quando as políticas sociais do bem-estar entram em declínio. No caso brasileiro, no entanto, durante, pelo menos, os últimos quinze anos, o governo federal contribuiu para a implementação de políticas distributivas, elevação dos padrões de desenvolvimento humano, redução das desigualdades regionais e sociais. Contudo, no mesmo período, a população carcerária cresceu de forma ininterrupta. Em 1990 havia 104,7 presos por 100 mil habitantes acima dos dezoito anos, e em 2019 esta taxa era de 367,9. O número de encarcerados no país chegou a 773.151 em 2019, considerando os presos dos sistemas estaduais e federal e das carceragens de delegacias (Depen, 2019DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen, 2019. Painel Interativo. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen...
).

O crescimento do encarceramento brasileiro pode ser explicado, em parte, por uma demanda punitiva que encontrou respaldo tanto nos legisladores quanto na atuação das instituições de segurança pública e justiça criminal, mas que não surtiu o efeito esperado de queda da criminalidade. Como exemplo, é possível citar a lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) que impediu a progressão de regime, ampliando consideravelmente a população dentro das prisões. A lei, no entanto, não teve os efeitos esperados na redução da criminalidade (Ilanud, 2005ILANUD – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente. A lei de crimes hediondos como instrumento de política criminal. Relatório final de pesquisa. São Paulo: Ilanud, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3bPEXsS.
https://bit.ly/3bPEXsS...
). Já nos anos 2000, os efeitos perversos da lei 11.343/06 (lei de drogas) impulsionou o encarceramento de pequenos traficantes e usuários de drogas e surtiu pouco efeito no desmantelamento de cadeias internacionais do tráfico. Dentre outros aspectos, o crescimento exponencial da população encarcerada no Brasil foi responsável, ainda, pelo surgimento e consolidação de facções criminais e produziu o incremento dos mercados ilegais.

Por outro lado, como apontam Campos e Azevedo (2020)CAMPOS, Marcelo da S.; AZEVEDO, Rodrigo G. A ambiguidade das escolhas: política criminal no Brasil de 1989 a 2016. Revista de Sociologia e Política, v. 28, n. 73, e-002, 2020. https://doi.org/10.1590/1678-987320287302
https://doi.org/10.1590/1678-98732028730...
, a análise das reformas penais ocorridas no Brasil de 1988 até 2018 coloca em xeque a ideia de que o Brasil reproduz de forma mecânica o aumento unilateral do poder de punir do Estado contemporâneo no Ocidente, com base na experiência dos EUA e de países como Inglaterra ou França. Dito de outra forma: a política de segurança pública e justiça criminal no Brasil aprovada em lei não reproduz unilateralmente um “Estado Penal”, porque existem meios de comunicação de massa, partidos políticos, movimentos sociais, presidentes, ministros, ONGs, lobbies e outros atores que influenciam, por meio de práticas sociais (diretas ou indiretas), esse processo no sentido da ambiguidade.

Tais elementos, que são muito próprios do caso brasileiro, mostram a insuficiência dos modelos explicativos de autores como Loïc Wacquant para compreender a realidade nacional.

Gráfico 1
Taxa de encarceramento por 100 mil habitantes Brasil, 1990 – 2020

Além das particularidades mencionadas, a situação carcerária atual no país é também preocupante pelo alto número de presos provisórios. Segundo os dados do Depen/Infopen, considerando somente a população do sistema prisional, em junho de 2019, os presos ainda sem uma condenação criminal representavam 33,4% do total. Apesar de leve redução em 2018 e 2019, o crescimento do número de presos provisórios se manteve constante na última década, inclusive após a entrada em vigor da Lei 12.403/11, que deu ao Judiciário novas possibilidades para a garantia do andamento do processo penal sem a necessidade da prisão do acusado, entre as quais o monitoramento eletrônico, medida pouco utilizada, seja por resistência dos juízes, seja pela falta de estrutura nos estados (Instituto Sou da Paz, 2014Instituto Sou da Paz. O Impacto da Lei de Cautelares nas Prisões em Flagrante na Cidade de São Paulo. Relatório de pesquisa. São Paulo, Instituto Sou da Paz, 2014. Disponível em: http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/sistema-de-justica-criminal/prisao-provisoria/?show=documentos#1742.
http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhec...
).

As taxas de aprisionamento são variáveis entre os estados, tornando a geografia do encarceramento no Brasil bastante diversa no que tange ao total de pessoas encarceradas, quanto à porcentagem em situação de prisão provisória. Em junho de 2019, estavam no estado de São Paulo aproximadamente 20% do total de presos provisórios do país: 51.093 (21,8% dos encarcerados no estado). Na região sul, o Rio Grande do Sul apresentava a maior proporção de presos provisórios no total da população carcerária: 31,2% (Depen, 2019DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen, 2019. Painel Interativo. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen...
).

Quatro estados tinham mais da metade de seus presos em situação provisória: Piauí (56,03%), Ceará (52,79%), Rio de Janeiro (52,16%) e Bahia (50,69%). Além disso, 15 apresentaram um percentual de presos provisórios acima da média nacional (Depen, 2019DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen, 2019. Painel Interativo. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen...
). Entre outros aspectos, isso se relaciona à ausência das garantias processuais para determinados perfis de acusados, que ficam presos durante o processo, por até dois anos ou mais.

A opção pelo aumento do encarceramento no Brasil não é acompanhada da garantia de condições carcerárias mínimas, contribuindo para a violência no interior do sistema prisional, a disseminação de doenças e o crescimento das facções criminais. Em 2011, o déficit era de 175.841 vagas. Em 2019 esse número passou a 312.125, chegando a 1,6 presos por vaga no sistema. Nenhum estado brasileiro garante a quantidade de vagas necessárias ao número de presos.

Como o terceiro país com maior número de encarcerados do mundo, o Brasil mantém a aceleração da taxa de encarceramento, enquanto os dois primeiros países apresentaram desaceleração. Os Estados Unidos iniciaram políticas federais e estaduais de redução do encarceramento, com a revisão de políticas penais e decisões judiciais, aumento de penas alternativas e concessão de liberdade condicional (parole) (Simon, 2014SIMON, Jonathan. Mass incarceration on trial: a remarkable court decision and the future of prisons in America. Nova York: The New Press, 2014.), auxiliadas pela descriminalização e regulamentação do uso recreativo da maconha em diversos de estados.

Nesse aspecto, as teorias internacionais que relacionam o endurecimento penal às tendências de redução das políticas de bem-estar, modificando intrinsecamente as funções da pena, esbarram em uma situação paradoxal no quadro brasileiro. O crescimento de políticas de assistência social, ações afirmativas em educação, redução da pobreza, coexistiu no tempo com disputas pela expansão do sistema penal e das polícias militares, crescimento de homicídios e de mortos pela polícia, ainda que políticas descarcerizantes tenham sido patrocinadas pelo governo federal (Azevedo; Cifali, 2015AZEVEDO, Rodrigo G. de; CIFALI, Ana Cláudia. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, v. 15, n. 1, p. 105-127, 2015. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.19940
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015....
).

Como sustentam Azevedo e Cifali (2015)AZEVEDO, Rodrigo G. de; CIFALI, Ana Cláudia. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, v. 15, n. 1, p. 105-127, 2015. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.19940
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015....
,

por diversos motivos, entre os quais os diversos escândalos de corrupção que se sucederam ao longo dos 12 anos de governo, assim como a falta de uma orientação mais clara sobre um programa descarcerizante e que ao mesmo tempo dê conta da demanda social por redução da violência, os governos dirigidos pelo PT no Brasil não tiveram a capacidade para construir uma efetiva hegemonia de uma concepção de segurança pública vinculada à afirmação de direitos e ao funcionamento adequado e republicano dos órgãos responsáveis pela persecução criminal. Perderam também a possibilidade política de incidir sobre outras esferas de governo, como os estados e municípios, e mesmo outras dimensões institucionais, como parlamento e judiciário, para a mudança de orientação das decisões judiciais e a ampliação de um sistema legal capaz de reestruturar os órgãos policiais e implementar mecanismos eficazes de controle (p. 125).

Os autores destacam, ainda, que é preciso também considerar, entre outros fatores, o peso do estado de São Paulo no crescimento do encarceramento no Brasil. Há muitos anos sob o controle do PSDB, que adotou, tanto discursivamente quanto em suas práticas de gestão, políticas vinculadas aos movimentos de Lei e Ordem, na defesa de encarceramento duro especialmente para delitos ligados ao mercado da droga, o estado ilustra o peso da orientação do poder executivo estadual, responsável pela coordenação da atuação das polícias civil e militar (Azevedo; Cifali, 2015AZEVEDO, Rodrigo G. de; CIFALI, Ana Cláudia. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, v. 15, n. 1, p. 105-127, 2015. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.19940
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015....
).

A partir de 2016, houve uma inflexão das políticas federais e o abandono das iniciativas descarcerizantes e de redução de desigualdades. O país passou a corresponder ao tipo descrito na literatura internacional (e.g. Wacquant, 2003WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA. Rio de Janeiro: Revan, 2003.; Garland, 2008GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.) em que a redução do bem-estar social está vinculada ao reforço do punitivismo, especialmente após a ascensão da extrema direita nas eleições de 2018.

Nesse quadro, 2017 e 2018 foram extremamente violentos no interior das penitenciárias. O país assistiu à intensificação de rebeliões e mortes, especialmente no Norte e no Nordeste, com a evidência de organização de grupos violentos no interior dos cárceres. O que não apenas deixa evidente a deterioração das garantias de vida e segurança, mas também sinaliza para os efeitos perversos e nefastos da prisão como um espaço de organização da delinquência. Da mesma forma, a passagem da organização das quadrilhas locais para redes criminais de larga abrangência territorial tem as cadeias como ponta de lança de empreendimentos econômicos e políticos (Dias, 2013DIAS, Camila C. N. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.; Paiva, 2015PAIVA, Luiz Fábio. Mortes na periferia: considerações sobre a chacina de 12 de novembro em Fortaleza. O público e o privado, v. 1, n. 26, p. 269-281, 2015.; Lourenço; Almeida, 2013LOURENÇO, Luiz Claudio; ALMEIDA, Odilza L. de. “Quem mantém a ordem, quem cria desordem”: gangues prisionais na Bahia. Tempo Social, v. 25, n. 1, p. 37-59, 2013.).

Audiências de custódia: entre o punitivismo e o desencarceramento

Desde 2015, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais, passou a estimular a adoção da Audiência de Custódia como rotina. As audiências preveem a apresentação dos presos em flagrante à autoridade judiciária no prazo de 24 horas após a detenção, na tentativa de garantir a prisão apenas nas hipóteses estritamente necessárias. A medida foi implementada em consonância com o Pacto de San Jose da Costa Rica2 2 O Decreto nº 678 de 1992 promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) celebrada em 1969. No art. 7º do pacto há o dispositivo: “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”. e regulamentada pela Resolução 213 de 2015 do CNJ.3 3 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234. Acesso em 17/02/2020. A audiência foi criada com duas funções: analisar a necessidade de prisão durante o processo e verificar as condições da pessoa detida, apurando situações de maus-tratos e tortura durante a detenção. Em audiência são ouvidos, além do acusado, Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado particular.

Anteriormente, os juízes analisavam apenas a documentação relativa à prisão provisória e decidiam estritamente com base no pedido de conversão da prisão flagrante em prisão preventiva. A introdução das audiências buscou reforçar o caráter acusatorial do processo penal, numa fase do rito processual em que as características inquisitoriais tendiam a predominar para a grande maioria dos acusados.

A implementação das audiências de custódia tem sido objeto de estudos acadêmicos, monitoramento por parte de organizações da sociedade civil (IDDD, 2017IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Audiências de custódia: panorama nacional pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Relatório de pesquisa. São Paulo: IDDD, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2LI67ay.
https://bit.ly/2LI67ay...
; Conectas, 2017CONECTAS. Tortura blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/tortura-blindada.
https://www.conectas.org/publicacoes/dow...
) e do próprio CNJ. Ballesteros (2016)BALLESTEROS, Paula R. Audiências de custódia e prevenção à tortura: análise das práticas institucionais e recomendações de aprimoramento. Relatório de Pesquisa. Brasília: Departamento Penitenciário Nacional, 2016. Disponível em: https://bit.ly/36cDQCm.
https://bit.ly/36cDQCm...
concluiu que as audiências têm servido mais ao cumprimento do ritual imposto aos operadores, do que para averiguar a real necessidade de manutenção da prisão. Isso porque a maior parte dos juízes e promotores não tem dado credibilidade aos fatos apresentados pelos presos, mas à versão policial dos fatos. O uso recorrente de linguagem técnico-jurídica prejudica a compressão dos presos acerca do que é debatido em audiência, além da padronização de decisões, observada pela autora, com pouca consideração às particularidades de cada caso.

O estudo de Jesus (2016)JESUS, Maria Gorete M. de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03112016-162557.
https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03...
em São Paulo debruçou-se sobre a crença de juízes e promotores na narrativa policial em caso de prisões em flagrante, especialmente em casos de tráfico de drogas. Segundo a autora, não se questiona a forma como as informações foram produzidas e adquiridas pelos policiais. Com isso, práticas de violência, tortura ou ameaça raramente são averiguadas, e expressões como violência policial, extorsão, flagrante forjado não aparecem nas deliberações de promotores e juízes (Jesus, 2016JESUS, Maria Gorete M. de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03112016-162557.
https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03...
). Já o estudo realizado por Silvestre e colaboradores (2021)SILVESTRE, Giane; JESUS, Maria Gorete M. de; BANDEIRA, Ana Luiza V. de V. Audiência de custódia e violência policial: análise do encaminhamento das denúncias em duas gestões na cidade de São Paulo. Antropolítica, n. 51, 2021. https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i51.a44595.
https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
mostra como mudanças institucionais ocorridas, tanto no Tribunal de Justiça quanto na coordenação das audiências de custódia da capital paulista, enfraqueceram a já precária apuração dos fatos que envolvem casos de tortura e violência policial.

Küller (2017)KÜLLER, Laís B. F. Audiência de custódia: um ponto de inflexão no sistema de justiça criminal? 2017. Dissertação (mestrado em Ciências Humanas e Sociais) – Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, 2017., também em São Paulo, concluiu que, apesar de pontos de inflexão na tendência do encarceramento, observam-se também permanências nas audiências, no que diz respeito ao descrédito atribuído às narrativas dos indivíduos presos sobre o delito e sobre a violência institucional. Abreu (2018)ABREU, João Vitor F. D. Quando é preciso soltar: os dilemas morais dos magistrados ao conceder o alvará de soltura numa Central de Audiências de Custódia. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 42, Caxambu, 2018. Anais [...]. Caxambu: ANPOCS, 2018., sobre o Rio de Janeiro, apontou que o contato entre preso e juiz tem pouco ou nenhum efeito na construção da decisão, já que os juízes decidem sobre os casos apresentados na pauta do dia antes mesmo da realização das audiências. Albuquerque (2017)ALBUQUERQUE, Laura G. A compatibilidade da audiência de custódia com o ordenamento jurídico-penal brasileiro. 2017. Monografia (Especialização em Ciências Penais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. destacou a relevância das audiências como mecanismo humanizador da justiça criminal, ao possibilitar a superação do modelo cartorário da verificação dos atos da prisão em flagrante. Contudo, aponta necessário esforço dos órgãos estatais e atores processuais para que não se torne apenas mais um ritual burocrático da racionalidade punitiva.

O presente estudo enfoca a coexistência entre práticas descarcerizantes e punitivistas na condução das audiências de custódia pelos operadores jurídicos. Além dos dados compilados com a ajuda de 955 formulários utilizados em seis cidades – São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Florianópolis, João Pessoa e Palmas (CNJ/FBSP, 2018CNJ/FBSP – Conselho Nacional de Justiça/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Relatório de pesquisa, Brasília: 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ze1e6j.
https://bit.ly/2ze1e6j...
) – sobre o perfil dos acusados que passaram pelas audiências e o perfil das decisões, o tópico posterior utiliza informações provenientes de entrevistas com os operadores judiciais que participaram de audiências.

Perfil dos acusados

O perfil dos acusados conduzidos às audiências de custódia foi analisado com o auxílio de um formulário padronizado preenchido exclusivamente com as informações obtidas durante a observação presencial das audiências. Por razões operacionais, não foram consultados os autos para a obtenção de informações complementares ou checagem. Também não foi usada amostra estatística, pois o número de audiências e a forma como são realizadas é muito diferente conforme a cidade. Em alguns lugares uma amostra estatística seria inviável para os recursos disponíveis, em outros foi possível acompanhar todas as audiências nos dias da visita da equipe. Procedimentos de aleatoriedade foram adotados para não concentrar observações em alguns juízes ou horários, procurando recobrir a máxima diversidade possível.4 4 O detalhamento da metodologia, dificuldades e contexto da coleta em cada cidade e a composição da equipe estão detalhadas no relatório (CNJ/FBSP, 2018).

Em 90% dos casos as pessoas detidas eram do sexo masculino. Das pessoas apresentadas à audiência de custódia observadas pelas pesquisadoras, 65% foram identificadas como negras5 5 A heteroclassificação da cor de pele pelas pesquisadoras tratou-se de um procedimento inusual e possivelmente discutível, adotado em razão da ausência da coleta de informação cor nas audiências. Nos autos judiciais é comum que o registro da informação cor também se baseie em heteroclassificação realizada por quem preenche os documentos, o que acarreta divergências no registro da cor da pele da mesma pessoa ao longo dos atos. A informação autodeclarada não costuma ser coletada em audiências judiciais. A categoria negra resultou da soma de preta e parda. , conforme tabela 1:

Tabela 1
Pessoas detidas apresentadas à audiência de custódia segundo cor/raça

Das 955 pessoas apresentadas à audiência de custódia e acompanhadas pela pesquisa, foi possível coletar a idade de 7416 6 Informação geralmente perguntada pelo juiz no início da audiência, junto a perguntas sobre endereço, profissão, grau de escolaridade, filhos e uso de álcool e drogas. Houve uma audiência realizada com um acusado de 17 anos que afirmou ser maior de idade, contudo posteriormente foi comprovada necessidade de conduzi-lo à vara especial de infância e juventude. . A maior incidência encontrada foi de pessoas de 18 anos e 25% das pessoas tinham menos de 20 anos. Mais da metade (51%) tinha até 25 anos de idade. A concentração de pessoas muito jovens (gráfico 2) fica mais evidente entre as pessoas negras, o que corrobora outras análises sobre a vulnerabilidade dos jovens negros à prisão (Brasil 2015aBRASIL. Índice de vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014. Brasília: Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude, Ministério da Justiça e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015a. Disponível em: https://bit.ly/2ylZpUI.
https://bit.ly/2ylZpUI...
, 2015bBRASIL. Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da República e Secretaria Nacional de Juventude, 2015b. Disponível em: https://bit.ly/3bKUuKG.
https://bit.ly/3bKUuKG...
; Sinhoretto et al., 2013SINHORETTO, Jaqueline; SILVESTRE, Giane; MELO, Felipe A. L. de. O encarceramento em massa em São Paulo. Tempo Social, v. 25, n. 1, p. 83-106, 2013. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100005.
https://doi.org/10.1590/S0103-2070201300...
).

Gráfico 2
Idade das pessoas apresentadas à Audiência de Custódia segundo cor/raça

Os dados do tipo de delito pelo qual a pessoa custodiada foi acusada mostram que o roubo motiva o maior número de detenções (22,1%). Tráfico de drogas aparece em segundo lugar (16,9%), seguido de furto (14%) e receptação (11%).

Tabela 2
Crime imputado às pessoas detidas apresentadas às audiências de custódia

Os crimes patrimoniais somados (roubo, furto e receptação) respondem por 47,2% dos casos observados pela pesquisa. Delitos contra a vida somaram 2,9% das audiências observadas, sendo que houve mais prisões por homicídios tentados do que consumados e baixa incidência de latrocínio. Violência doméstica aparece com incidência de 7,8% e outras lesões corporais com 1,8%.

Uma das questões mais exploradas nas audiências é a existência de antecedentes criminais, sendo que 51% das pessoas detidas tinha antecedentes criminais. Os delitos cometidos com violência presumida ou exercida somaram 34,8% das acusações que motivaram prisões em flagrante, enquanto 43,6% não são tipos penais relativos ao uso da violência, incidência também predominante na categoria ‘outros’ que representou 21,6% e agrupou as capitulações com apenas um registro. Se não mais do que 34,8% das prisões em flagrante observadas se referem a delitos violentos, torna-se evidente que a liberdade se tornou exceção na prática policial e que a regra tem sido a prisão para crimes patrimoniais (cometidos ou não com violência) e de drogas que, somados, correspondem a 64,1% dos delitos identificados nas audiências, o que justifica a adoção do instituto das audiências de custódia.

Procedimento e observação de garantias

A pesquisa abordou o cumprimento de garantias de direitos das pessoas detidas, com especial atenção àquelas estabelecidas para o funcionamento das audiências de custódia (Resolução CNJ nº 213 de 15/12/2015). Observou-se que 81% das pessoas estavam algemadas durante as audiências de custódia, contrariando expressamente a Resolução. Chamou a atenção o forte aparato de segurança sobre os presos no momento das audiências, quando algemas e a presença dos agentes se combinam, mesmo em situações de baixa resistência. Em relação às explicações e informações que os juízes devem fornecer às pessoas custodiadas para assegurar os direitos, em 26% dos casos não foi informada a finalidade da audiência e na metade (49,9%) desses não foi explicado o direito de permanecer em silêncio.

O enfrentamento à violência e aos maus tratos cometidos no momento das prisões em flagrante é outra finalidade das audiências de custódia. No entanto, durante as observações, foi possível notar que o ambiente se torna frequentemente hostil a esse tipo de denúncia, dada a presença de policiais dentro das salas de audiência7 7 Nesse aspecto, o resultado corrobora o levantamento realizado pela organização Conectas Direitos Humanos (Conectas, 2017). . Justamente por isso, é fundamental que o juiz faça perguntas e demonstre interesse sobre a ocorrência de violência no momento da prisão. Nesse sentido, é preocupante o fato de que, para 31,8% dos presos em flagrante, não tenha sido feita nenhuma pergunta sobre violência e/ou maus tratos no momento da prisão.

Desfecho das audiências

Em relação ao resultado das audiências, o latrocínio (baixa incidência na amostra) teve a totalidade dos flagrantes convertidos em prisão preventiva. O homicídio tentado (baixa incidência) teve 87,1% de conversão em preventiva. O roubo, cuja participação na amostra foi predominante, teve 86,8% de conversões em preventiva. Homicídio consumado teve percentual de conversões em flagrante inferior ao roubo (75%). Quanto ao flagrante por tráfico de drogas, 57,2% das pessoas detidas foram mantidas presas enquanto aguardavam o julgamento. A manutenção da prisão por tráfico foi mais frequente do que nos casos de violência doméstica, em que 39,8% dos presos em flagrante permaneceram encarcerados após a audiência de custódia, proporção esta maior do que a lesão corporal em outros contextos (26,3% de conversão). Receptação (36,8%) e furto (30,2%) foram delitos em que a concessão de liberdade provisória foi bastante frequente. Lesão corporal (10,5%), receptação (7,7%) e tráfico de drogas (7,8%) são os delitos de maior incidência de relaxamento de flagrantes.

O tipo de crime parece fortemente correlacionado à decisão tomada na audiência de custódia sobre a necessidade de aguardar o julgamento em cárcere. O roubo (seguido ou não de morte) foi o crime de prisão mais frequente, mais do que o homicídio. O tráfico de drogas mereceu destaque na análise por ser um crime sem violência e que despertou nos juízes a disposição para a prisão processual.

Na busca por refinar a observação, foi realizado um agrupamento dos crimes violentos (com violência presumida no tipo penal) e não violentos, o que permite perceber como as decisões se distribuíram, como se vê na tabela 3.

Tabela 3
Crimes violentos e não violentos segundo a decisão na audiência de custódia

Constatou-se que 65,1% dos crimes violentos que passaram pelas audiências de custódia observadas tiveram a conversão em prisão preventiva e 40% dos crimes cometidos sem violência receberam o mesmo tratamento. Isso coloca em dúvida o papel da audiência de custódia na gestão da violência do crime, posto que, se é alta a manutenção da prisão em crimes violentos, como o roubo, também é alta sua manutenção em crimes não violentos, com destaque para o tráfico. Pode-se admitir que há um uso excessivo da prisão provisória para delitos sem violência contra a pessoa.

Em relação à influência dos antecedentes sobre a decisão dos juízes, 65,4% dos custodiados com antecedentes criminais tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva, e o mesmo aconteceu com 37,3% dos custodiados que não tinham antecedentes. Entre os que não tinham antecedentes foi maior a frequência de liberdade provisória com medidas cautelares (52,8%); decisão semelhante beneficiou 26% entre os que tinham antecedentes criminais. O antecedente criminal, portanto, influencia a decisão a respeito da necessidade de prisão durante o processo.

Tabela 4
Antecedentes criminais do custodiado segundo decisão em audiência de custódia

Entre as pessoas brancas conduzidas à audiência de custódia, 49,4% permaneceram presas e 41% receberam liberdade provisória com cautelar. Entre os negros (maioria na amostra) 55,5% tiveram a prisão mantida e 35,2% receberam liberdade provisória com cautelar, o que indica que o tratamento judicial é mais duro para os acusados negros. Na audiência de custódia, a filtragem racial na prisão em flagrante não é revertida ou anulada. Isso não significa que os operadores tenham plena consciência de que fazem análises baseadas na discriminação racial, trata-se de um dado objetivo que materializa a situação mais dura que os negros enfrentam perante a justiça criminal.

A percepção dos operadores

Na análise das entrevistas, a pesquisa constatou que ver a pessoa detida é considerado importante para a finalidade da audiência de custódia, dada a existência de um saber profissional acumulado que indica que os operadores da justiça criminal se consideram capazes de “bater o olho” e reconhecer, na apresentação corporal do acusado, um conjunto de informações relevantes para a sua decisão. A relevância do procedimento do reconhecimento – a que os policiais dão o nome de tirocínio – como elemento que produz filtragem racial e tratamento desigual entre negros e brancos vem sendo discutida na literatura sobre policiamento e racismo, e os dados apontam que as audiências judiciais não são menos propícias a esse debate.

A análise das entrevistas com os operadores atuantes na cidade de São Paulo deixa evidente o campo de tensões, em que as práticas descarcerizantes enfrentam a resistência de concepções e práticas de defesa de social8 8 Defesa social entendida como uma visão de política criminal em que a defesa da sociedade contra o crime deve prevalecer sobre as garantias individuais dos acusados. arraigadas e naturalizadas pelos agentes jurídicos.9 9 As entrevistas aqui relatadas foram realizadas em 2016. Em 2018, toda a equipe de magistrados atuantes nas Audiências de Custódia em São Paulo foi substituída. Uma juíza de perfil conservador assumiu a coordenação e designou juízes ideologicamente alinhados a ela, o que foi contestado numa ação civil pública ainda não julgada. Desde então, a proporção de solturas reduziu-se significativamente, indicando a precariedade institucional dos cargos ligados à gestão do encarceramento. Ver: https://www.conjur.com.br/2018-fev-18/entrevista-juiza-patricia-alvarez-cruz-chefe-dipo-sp e http://www.justificando.com/2017/12/15/juiza-que-condenou-mulher-por-furto-de-xampu-e-cotada-para-coordenar-audiencias-de-custodia-em-sp/ Acesso em: 20/02/2020. Por ser uma inovação, a reflexão dos operadores sobre a audiência de custódia é propícia para identificar como permanências são disputadas por novas sensibilidades e como se reorganizam no interior do campo judicial.

A audiência de custódia é vista por alguns operadores como uma oportunidade de confirmar as categorias de suspeição e seleção utilizadas pelos policiais em campo. A capacidade de, como disseram, “bater o olho” e saber que alguém ou a oportunidade de “separar o joio do trigo” foram descritas por eles como parte de um saber que orienta sua ação de defesa social. Para outros, garantias de defesa e argumentos em torno de direitos fundamentais são colocados em relevo como saberes organizadores da sua prática judicial. Há uma corrente de opinião que reivindica uma insuficiência do direito penal na resolução de problemas sociais que desembocam na audiência de custódia, sem renunciar à sua aplicação.

Foi relatada uma forte resistência inicial à implantação do instituto. Essa resistência, segundo os entrevistados, vem desde o estranhamento de uma intervenção vinda de organismos internacionais no direito nacional, até uma dificuldade de aceitação de que trabalho policial necessite de verificação. Um promotor afirmou:

Eu era um pouco contra. Você fala “nossa, parece inversão de valores isso, né? Quem está certo é o bandido e a polícia, o Estado que está errado?” Bom, uma coisa que eu pensava antes, né? (Promotor, SP).

Os promotores relataram mudança de posição em relação à audiência de custódia assim que passaram a atuar na prática, a constatar a existência de casos inequívocos de maus-tratos por parte de policiais, embora se preocupem em “separar o joio do trigo” nas acusações de tortura, por considerar uma estratégia adotada por muitos réus para tentar desacreditar a versão policial sobre a prisão. Preocupam-se com a correição das operações da Polícia Civil, pois consideram que elas produzem uma quantidade grande de prisões apenas para registro estatístico de produtividade. Não obstante, há, entre os promotores, preocupação em não lançar suspeitas infundadas sobre os policiais, sobretudo os militares, não desqualificar o seu trabalho, não fazer afirmações generalizantes. Entendem que o próprio ato de realizar prisões produz lesões que não deveriam ser objeto de investigação por serem resultado da resistência do preso em ser detido e imobilizado. O mesmo cuidado com garantias de acusação, no entanto, não se verifica em relação aos réus apresentados em audiência, deixando perceptível que a vigilância das garantias individuais depende de se é “joio” ou “trigo”.

Juízes e defensores consideram que o Ministério Público deixa a desejar em sua atuação na apuração de violências e maus-tratos cometidos pelos policiais, posto que é sua a função de controle externo da polícia, assim como a titularidade da ação penal nos casos em que as violências são visíveis.

Juízes e promotores asseveram que a finalidade da audiência de custódia é verificar, caso a caso, a necessidade da prisão durante o processo. O desencarceramento não seria um dos objetivos a serem atingidos com a criação do instituto. Contudo, defensores reconhecem que o encarceramento excessivo é um dos problemas a que a justiça criminal deve responder.

“Separar o joio do trigo”, função primordial atribuída pela maioria dos interlocutores à audiência de custódia, também se refere a direcionar a administração dos conflitos envolvendo a extrema pobreza e o uso abusivo de crack às políticas sociais e não ao tratamento penal. Mas para que isso seja efetivo – e corresponda às concepções morais e políticas desses operadores da justiça – é necessária a articulação da justiça criminal com a rede de atendimento dos serviços sociais, que consideram falhos e insuficientes para atender à demanda.

Especialmente em São Paulo, a convivência com os conflitos decorrentes da gestão do complexo socioespacial chamado de Cracolândia foi muito presente. Os entrevistados das três instituições pareceram refratários à ideia de uma administração da questão apenas pela via repressiva. Haveria uma sobrecarga do sistema penal com delitos motivados por extrema pobreza, em que a solução penal não é adequada. Comunicaram a crença de que a atenção à saúde e à assistência social contribuem muito mais para a dignidade das pessoas envolvidas e para o interesse de toda a sociedade do que a solução penal, daí a necessidade de “separar o joio do trigo”. O momento da realização das entrevistas ocorreu no auge do programa municipal “De braços abertos”, já extinto.

A observação do ritual das audiências permitiu constatar a existência de “tipos” que organizam a experiência dos operadores jurídicos no desenvolvimento do seu trabalho. Há um conhecimento compartilhado sobre os “tipos” de audiência em que o resultado provável será a soltura ou a conversão da prisão em preventiva. O “tipo” é constituído de uma combinação do delito (se grave ou leve na gramática cotidiana do fórum) com características do acusado (primariedade, trabalho e estudo, uso de drogas, residência fixa). Com pouco tempo de prática, era possível apreender a aplicação dos “tipos”, bem como saber da maior ou menor adesão dos juízes e promotores na mobilização desses tipos. Os tipos não estão necessariamente em desacordo com a lei, mas orientam a conduta dos agentes e a análise que fazem dos casos individuais.

A senhora esteve aqui embaixo, deve ter visto que crimes com violência, crimes com uma reincidência pesada não são objetos de qualquer tipo de benesse judicial, como não devem ser. Existem pessoas que não podem conviver em sociedade. (...) Então, eu vejo com muita tristeza essas primeiras chamadas e já vi gente, promotores, falando que aqui a gente soltava latrocidas e homicidas perigosos, o que é uma flagrante inverdade

(Juiz, SP).

A percepção da existência dos tipos e da força de sua aplicação despertava em uma defensora a necessidade de atenção redobrada, de consciência em alerta permanente para não rotinizar demais o exercício profissional.

Você está duvidando de uma pessoa com toda a sua complexidade, você tem que falar com ela em certa rapidez, a audiência acontece de forma rápida, então acho que isso, para quem passa pela audiência deve ser muito complicado. (...) Você tem que estar o tempo todo se lembrando que você precisa fazer a mesma explicação para todo mundo porque você fez muitas vezes, mas são pessoas que estão vendo aquilo pela primeira vez. É uma dinâmica muito de massa, é difícil lidar com isso, você tem que estar muito presente para não se deixar ir com o fluxo

(Defensora, SP).

Apesar do alerta sobre a atuação “em massa”, a maior parte dos operadores jurídicos envolvidos na audiência de custódia têm uma visão positiva sobre o instituto exatamente por ele possibilitar um contato pessoal entre acusados e profissionais do direito, o que aproxima o seu fazer de um ideal de justiça.

Os interlocutores da pesquisa em São Paulo foram contundentes ao afirmar a existência de uma dinâmica do trabalho policial na cidade que afeta o ritmo de ocorrências das audiências de custódia e, portanto, a dinâmica das prisões em flagrante e do encarceramento. Trata-se da percepção de existência de metas a cumprir no trabalho policial que, segundo os operadores, produzem prisões indevidas ou tecnicamente frágeis, em que as circunstâncias do flagrante e o enquadramento dos delitos não convencem os operadores jurídicos. Vários comentários se coadunaram na percepção de que a maioria dos delitos não envolve uma exacerbação da violência, mas trata de delitos de pequena monta, cometidos com técnicas até rudimentares, como comentou um promotor, “os caras estão assaltando no grito”. E alguns relacionam esse perfil de baixa complexidade dos casos à crise econômica vivida pelo país.

Percebe-se, assim, que a preocupação primordial em “separar o joio do trigo” é movida por duas angústias sempre presentes no trabalho da justiça criminal, relativas a como tratar diferentemente os desiguais. Nesse caso, os desiguais são tanto os usuários de crack e moradores de rua, para os quais o direito penal é equivocadamente mobilizado por uma gigantesca máquina de prisão, ou então pessoas jovens que são presas “para bater metas” policiais. Mas é, também, uma tentativa de diferenciar o tratamento entre as pessoas, posto que não se deve lançar suspeitas sobre o trabalho policial confiando na palavra “do suspeito” de cometer crimes.

Analisando as entrevistas, percebe-se que a criação do instituto da audiência de custódia é uma medida cuja necessidade e função deve ser compreendida no contexto de uma política de segurança pública que tem na produção de prisões em flagrante uma medida de produtividade, que afeta e interfere no funcionamento da justiça criminal e nas dinâmicas do encarceramento. Pelas falas ouvidas, os operadores sentem que devem exercer uma função de correição sobre esse tipo de atuação a fim de inibi-la. De certa forma, as entrevistas oferecem uma confirmação empírica das análises recentes sobre o protagonismo da Polícia Militar (PM) no campo estatal de administração de conflitos criminais, assim como sobre a centralidade da prisão provisória no controle social contemporâneo.

Sinhoretto e Lima (2015)SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato S. de. Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime. São Carlos. Contemporânea, v. 5, n. 1, p. 119, 2015. avaliam que a composição do sistema prisional hoje reflete um modelo de segurança pública que tem como principal iniciativa o policiamento ostensivo realizado pelas PMs. O resultado disso é o alto número de prisões em flagrante em decorrência dessa lógica de policiamento que, por sua vez, impacta significativamente no número de prisões provisórias, também analisado em Silvestre (2018)SILVESTRE, Giane. Controle do crime e seus operadores: política e segurança pública em São Paulo. São Paulo: Annablume, 2018..

O protagonismo das PMs está ancorado no fato de que cabe a elas a definição de ordem pública e, nesse sentido, são elas que determinam como será a composição da clientela do sistema penal e, por decorrência, da população prisional. Além do mais, o controle do crime realizado pelas PMs acaba demandando do sistema de justiça criminal uma celeridade no processamento desses flagrantes que está muito além da sua capacidade e estrutura. O alto número de prisões em flagrante e a recorrente manutenção das prisões provisórias, em detrimento da aplicação de medidas cautelares, faz com que tanto as Polícias Civis, quanto o Judiciário acabem desempenhando um papel de coadjuvantes na seleção dos conflitos sociais e dos acusados que vão receber a atenção da justiça criminal.

A punição criminal no Brasil recai, sobretudo, sobre os jovens e negros acusados do cometimento de delitos relativos à circulação indevida da riqueza: roubos, furtos e tráfico de drogas. A circulação indevida da riqueza é a principal preocupação dos mecanismos de controle do crime, em detrimento do tratamento dos conflitos violentos, da proteção da vida e da integridade física, numa lógica de administração de conflitos própria de uma sociedade rica e violenta, considerando que, tanto a riqueza quanto a violência são desigualmente distribuídas (Sinhoretto, 2014SINHORETTO, Jaqueline. Reforma da Justiça: gerindo conflitos em uma sociedade rica e violenta. Diálogos sobre Justiça, v. 2, n. 1 2014, p. 49-56. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/650c0835c07311b04026c0d2e52c867b.pdf.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
). Isso se torna verificável quando uma acusação de crime cometido sem violência produz manutenção de prisão provisória, enquanto é muito difícil para a justiça criminal identificar e punir os maus-tratos e a tortura policial.

Considerações finais

A contribuição almejada por este artigo refere-se à captação das mentalidades, sensibilidades e convicções compartilhadas no interior do campo judiciário, bem como na identificação das descontinuidades e divergências existentes hoje nos discursos penais, nos quais, apesar da disputa, há o predomínio de postulados e concepções hegemonizados pelos cânones punitivistas.

Foi apresentada a persistência do alto encarceramento provisório no Brasil, um dos motivos que impulsionou a implantação das audiências de custódia. Entre os resultados obtidos em seis capitais, destacam-se as barreiras e bloqueios para a contenção da utilização abusiva da prisão provisória, bem como para a contenção da violência policial. Apesar de todo o esforço de múltiplos atores, as prisões em flagrante estão no centro do modelo de policiamento conhecido como “ostensivo”, executado pelas polícias militares, e o sistema judicial não é capaz de rever os resultados do aprisionamento em massa para delitos ligados ao patrimônio e às drogas. Tampouco é capaz de reverter os efeitos da filtragem racial no policiamento.

Se, pela nova sistemática prevista pela Lei nº 12.403/2011, a prisão preventiva somente pode ser decretada pelo juiz quando não forem cabíveis outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do acusado, a bibliografia consultada apontava não ter havido o rompimento do binômio prisão preventiva/liberdade provisória, sendo a prisão preventiva cotidianamente aplicada nos tribunais do país, muitas vezes sem sequer verificar o cabimento de medidas alternativas e em desrespeito a garantias fundamentais como a legalidade, a presunção de inocência, a proporcionalidade, o devido processo legal e sua razoável duração.

Os dados divulgados pelo Depen/Infopen, relativos a 2018 e 2019, mostram uma leve queda no percentual de presos provisórios no país, ainda que o crescimento tenha sido constante na última década. Essa recente queda está possivelmente relacionada com a implementação das audiências de custódia em todos os tribunais. No entanto, mais de um terço da população encarcerada segue sem julgamento no país, o que mostra a coexistência entre as medidas descarcerizantes e a permanência do encarceramento como principal ferramenta de controle do crime.

Como já destacado, a proporção de liberdades e prisões em cada Unidade da Federação depende de uma série de questões, como as políticas de segurança pública adotadas pelos estados, a cultura profissional e corporativa dos profissionais do sistema de justiça criminal, o retrospecto de utilização de alternativas penais assumidas pelo Judiciário, bem como a disponibilidade e a qualidade das políticas sociais e assistenciais do poder executivo de cada estado e município. Por exemplo, em São Paulo, a organização do serviço de atenção aos usuários de drogas em situação de rua, programa De Braços Abertos, reforçava nos operadores jurídicos, naquele momento, a tendência de tratamento judicial menos duro, em benefício do tratamento assistencial da questão.

Quanto aos fatores que levam à conversão em prisão preventiva no momento da audiência de custódia, constatou-se que o tipo de crime parece fortemente correlacionado à decisão tomada. O roubo (seguido ou não de morte) é o crime em que a prisão é mais frequente, mais do que o homicídio. O tráfico de drogas merece destaque na análise, por ser um crime sem violência e com alta proporção de manutenção da prisão processual. Embora predomine a manutenção da prisão provisória nos crimes com violência contra a pessoa, há também um percentual significativo de casos em que, mesmo sem violência na prática do delito, ocorre a decretação da prisão preventiva em audiência. Observada sob esse aspecto, pode-se admitir que há um uso excessivo da prisão provisória para delitos sem violência contra a pessoa. O encarceramento e a aplicação dura da lei penal predominam sobre a visão descarcerizante que se preocupa com os efeitos perversos do encarceramento, especialmente nos delitos de drogas.

Outro fator determinante para a decretação da prisão preventiva diz respeito aos antecedentes criminais do acusado. Nesse sentido, os antecedentes criminais, mesmo que sem trânsito em julgado, se configuram como um elemento que parece fortemente relacionado com a decisão a respeito da necessidade de manter a prisão durante o processo. A presunção de culpa prevalece sobre a presunção de inocência, quando se trata de uma “clientela” do sistema de justiça criminal. A análise dos antecedentes criminais é o elemento decisivo na “separação do joio e do trigo”, considerada uma das funções relevantes das audiências para seus operadores.

Constatou-se que o tratamento judicial é mais duro para os acusados negros, incluindo o que se passa na audiência de custódia. Nela, a filtragem racial que ocorre nas abordagens policiais dificilmente é revertida ou anulada. Isso acontece tanto no resultado da manutenção da prisão, mais frequente para negros, como no sentido de filtragem atribuído pelos operadores jurídicos, em que “ver” o acusado é considerado fundamental para conhecer o caso e “separar o joio do trigo”, ou seja, diferenciar o tratamento dos acusados conforme características não propriamente processuais, mas presentes no corpo dos que são apresentados ao julgamento.

A expressão “separar o joio do trigo”, utilizada pelos operadores para caracterizar o benefício da audiência de custódia para o funcionamento da justiça, mostra que os operadores trabalham com a aplicação de “tipos” muito mais do que com análise de direitos individuais, e que trabalham com a lógica da “clientela preferencial”, num sistema de justiça em que o tratamento não é aplicado de maneira igualitária. Dessa forma, o punitivismo é corroborado para certos tipos de crimes e criminosos, mas para outros a saída da prisão é bem-vinda. Com a utilização dessa expressão, os operadores admitem fazer avaliações baseadas na corporalidade dos acusados (“cara de bandido”, “cara de coitado”) para distinguir os perfis que merecem a prisão dos que merecem tratamentos alternativos.

No tocante à atuação dos operadores jurídicos durante as audiências, embora tenha sido possível identificar diferenças individuais de postura, convicções e concepções, não há como negar a existência de uma forte unidade entre magistrados e promotores, tanto na condução das audiências, como nas motivações decisórias. Tanto é assim que em nenhuma das audiências observadas foi encontrado qualquer encaminhamento divergente entre representantes do Ministério Público e Poder Judiciário. Logo, os papéis de acusadores/fiscais e julgadores muitas vezes se confundem e complementam, nem sempre em favor da garantia de direitos ao custodiado. Constatou-se que os representantes da Defensoria Pública acabam, muitas vezes, subordinando-se às práticas estabelecidas, quando passam a corroborar com a dinâmica “de massa” imposta por alguns juízes, e condensam suas atuações a falas muito rápidas, pois já sabem que, na maioria dos casos, o juiz já tomou sua decisão antes mesmo de ouvir o defensor. Foram presenciados, na observação das audiências, comportamentos desrespeitosos por parte de magistrados e promotores quando os defensores apresentam suas versões dos fatos e seus pedidos de reforma da decisão. Mesmo diante desse cenário, foram observados defensores que seguiam desempenhando diariamente suas funções com qualidade técnica, defendendo os princípios constitucionais da liberdade como regra, produzindo assim, uma disputa pelo sentido de justiça.

O consórcio entre juízes e promotores na produção da verdade, inclui a aceitação acrítica das versões policiais numa maioria extensa dos casos, como foi também documentado na pesquisa de Jesus (2016)JESUS, Maria Gorete M. de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03112016-162557.
https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03...
. “Separar o joio do trigo” é também diferenciar o valor da palavra de acusados e de policiais na produção da verdade jurídica quando os acusados denunciam maus-tratos ou contestam a versão policial sobre as prisões, porque isso poderia ser ruim para a imagem e a carreira dos policiais. Mas não se considera ruim que o sistema de justiça produza encarceramento em massa ou filtragem racial, ou que não assegure o direito de defesa.

Os resultados encontrados corroboram pesquisas anteriores realizadas pelos autores, que identificaram o predomínio, especialmente no interior do Ministério Público, mas também na Magistratura, de concepções de política criminal vinculadas à ideologia da Defesa Social, e críticas a uma perspectiva garantista. Tal situação acaba por favorecer a atualização de um modelo inquisitivo de processo penal, em que os fins de “combate ao crime” são colocados à frente da garantia de direitos constitucionalmente assegurados. Nesse contexto, as inovações legais e a tentativa de criação de novos procedimentos tendentes à descarcerização, como as audiências de custódia, acabam por ser neutralizadas pela atuação dos operadores nas audiências.

A análise dos acórdãos de tribunais superiores relativos aos recursos de decisões das audiências de custódia também demonstrou a legitimação de prisões preventivas sem o devido amparo legal, com fins de contenção da criminalidade (CNJ/FBSP, 2018CNJ/FBSP – Conselho Nacional de Justiça/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Relatório de pesquisa, Brasília: 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ze1e6j.
https://bit.ly/2ze1e6j...
). Fazem isso, mesmo às expensas de levar em consideração as condições reais dos cárceres no Brasil e os efeitos perversos do crescimento do encarceramento no fortalecimento do poder das grandes redes criminais e facções que controlam a vida no interior das prisões. Fazem isso às expensas de produzir uma sociedade desigual e com fortes traços autoritários, na qual o encarceramento serve muito mais à defesa do patrimônio, criminalização das drogas e, contenção da população negra e pobre, do que para a defesa da vida e dos direitos fundamentais de acusados e vítimas de violência.

  • 1
    O punitivismo refere-se a uma visão da punição dissociada dos objetivos de reinserção social que marcaram o arranjo institucional do welfare. Trata-se de um movimento global de reformas legislativas e práticas institucionais no sentido da ampliação do sistema penal no tratamento dos conflitos sociais, endurecimento das penas, pautado por uma visão individualista do conflito, reemergência da leitura ontológica do crime e do criminoso, relacionado a políticas neoliberais.
  • 2
    O Decreto nº 678 de 1992 promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) celebrada em 1969. No art. 7º do pacto há o dispositivo: “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
  • 3
    Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234. Acesso em 17/02/2020.
  • 4
    O detalhamento da metodologia, dificuldades e contexto da coleta em cada cidade e a composição da equipe estão detalhadas no relatório (CNJ/FBSP, 2018CNJ/FBSP – Conselho Nacional de Justiça/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Relatório de pesquisa, Brasília: 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ze1e6j.
    https://bit.ly/2ze1e6j...
    ).
  • 5
    A heteroclassificação da cor de pele pelas pesquisadoras tratou-se de um procedimento inusual e possivelmente discutível, adotado em razão da ausência da coleta de informação cor nas audiências. Nos autos judiciais é comum que o registro da informação cor também se baseie em heteroclassificação realizada por quem preenche os documentos, o que acarreta divergências no registro da cor da pele da mesma pessoa ao longo dos atos. A informação autodeclarada não costuma ser coletada em audiências judiciais. A categoria negra resultou da soma de preta e parda.
  • 6
    Informação geralmente perguntada pelo juiz no início da audiência, junto a perguntas sobre endereço, profissão, grau de escolaridade, filhos e uso de álcool e drogas. Houve uma audiência realizada com um acusado de 17 anos que afirmou ser maior de idade, contudo posteriormente foi comprovada necessidade de conduzi-lo à vara especial de infância e juventude.
  • 7
    Nesse aspecto, o resultado corrobora o levantamento realizado pela organização Conectas Direitos Humanos (Conectas, 2017CONECTAS. Tortura blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/tortura-blindada.
    https://www.conectas.org/publicacoes/dow...
    ).
  • 8
    Defesa social entendida como uma visão de política criminal em que a defesa da sociedade contra o crime deve prevalecer sobre as garantias individuais dos acusados.
  • 9
    As entrevistas aqui relatadas foram realizadas em 2016. Em 2018, toda a equipe de magistrados atuantes nas Audiências de Custódia em São Paulo foi substituída. Uma juíza de perfil conservador assumiu a coordenação e designou juízes ideologicamente alinhados a ela, o que foi contestado numa ação civil pública ainda não julgada. Desde então, a proporção de solturas reduziu-se significativamente, indicando a precariedade institucional dos cargos ligados à gestão do encarceramento. Ver: https://www.conjur.com.br/2018-fev-18/entrevista-juiza-patricia-alvarez-cruz-chefe-dipo-sp e http://www.justificando.com/2017/12/15/juiza-que-condenou-mulher-por-furto-de-xampu-e-cotada-para-coordenar-audiencias-de-custodia-em-sp/ Acesso em: 20/02/2020.

Referências

  • ABREU, João Vitor F. D. Quando é preciso soltar: os dilemas morais dos magistrados ao conceder o alvará de soltura numa Central de Audiências de Custódia. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 42, Caxambu, 2018. Anais [...]. Caxambu: ANPOCS, 2018.
  • ALBUQUERQUE, Laura G. A compatibilidade da audiência de custódia com o ordenamento jurídico-penal brasileiro 2017. Monografia (Especialização em Ciências Penais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
  • AZEVEDO, Rodrigo G. de; CIFALI, Ana Cláudia. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, v. 15, n. 1, p. 105-127, 2015. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.19940
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.19940
  • BALLESTEROS, Paula R. Audiências de custódia e prevenção à tortura: análise das práticas institucionais e recomendações de aprimoramento. Relatório de Pesquisa. Brasília: Departamento Penitenciário Nacional, 2016. Disponível em: https://bit.ly/36cDQCm
    » https://bit.ly/36cDQCm
  • BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
  • BRASIL. Índice de vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014 Brasília: Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude, Ministério da Justiça e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015a. Disponível em: https://bit.ly/2ylZpUI
    » https://bit.ly/2ylZpUI
  • BRASIL. Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da República e Secretaria Nacional de Juventude, 2015b. Disponível em: https://bit.ly/3bKUuKG
    » https://bit.ly/3bKUuKG
  • CAMPOS, Marcelo da S.; AZEVEDO, Rodrigo G. A ambiguidade das escolhas: política criminal no Brasil de 1989 a 2016. Revista de Sociologia e Política, v. 28, n. 73, e-002, 2020. https://doi.org/10.1590/1678-987320287302
    » https://doi.org/10.1590/1678-987320287302
  • CNJ/FBSP – Conselho Nacional de Justiça/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Relatório de pesquisa, Brasília: 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ze1e6j
    » https://bit.ly/2ze1e6j
  • CONECTAS. Tortura blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/tortura-blindada
    » https://www.conectas.org/publicacoes/download/tortura-blindada
  • DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen, 2019. Painel Interativo. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen
    » http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen
  • DIAS, Camila C. N. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
  • GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
  • IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Audiências de custódia: panorama nacional pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Relatório de pesquisa. São Paulo: IDDD, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2LI67ay
    » https://bit.ly/2LI67ay
  • ILANUD – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente. A lei de crimes hediondos como instrumento de política criminal Relatório final de pesquisa. São Paulo: Ilanud, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3bPEXsS
    » https://bit.ly/3bPEXsS
  • Instituto Sou da Paz. O Impacto da Lei de Cautelares nas Prisões em Flagrante na Cidade de São Paulo Relatório de pesquisa. São Paulo, Instituto Sou da Paz, 2014. Disponível em: http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/sistema-de-justica-criminal/prisao-provisoria/?show=documentos#1742
    » http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/sistema-de-justica-criminal/prisao-provisoria/?show=documentos#1742
  • JESUS, Maria Gorete M. de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03112016-162557.
    » https://doi.org/10.11606/T.8.2016.tde-03112016-162557
  • KÜLLER, Laís B. F. Audiência de custódia: um ponto de inflexão no sistema de justiça criminal? 2017. Dissertação (mestrado em Ciências Humanas e Sociais) – Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, 2017.
  • LOURENÇO, Luiz Claudio; ALMEIDA, Odilza L. de. “Quem mantém a ordem, quem cria desordem”: gangues prisionais na Bahia. Tempo Social, v. 25, n. 1, p. 37-59, 2013.
  • PAIVA, Luiz Fábio. Mortes na periferia: considerações sobre a chacina de 12 de novembro em Fortaleza. O público e o privado, v. 1, n. 26, p. 269-281, 2015.
  • SILVESTRE, Giane. Controle do crime e seus operadores: política e segurança pública em São Paulo. São Paulo: Annablume, 2018.
  • SILVESTRE, Giane; JESUS, Maria Gorete M. de; BANDEIRA, Ana Luiza V. de V. Audiência de custódia e violência policial: análise do encaminhamento das denúncias em duas gestões na cidade de São Paulo. Antropolítica, n. 51, 2021. https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i51.a44595.
    » https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i51.a44595
  • SIMON, Jonathan. Mass incarceration on trial: a remarkable court decision and the future of prisons in America. Nova York: The New Press, 2014.
  • SINHORETTO, Jaqueline; SILVESTRE, Giane; MELO, Felipe A. L. de. O encarceramento em massa em São Paulo. Tempo Social, v. 25, n. 1, p. 83-106, 2013. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100005.
    » https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100005
  • SINHORETTO, Jaqueline. Reforma da Justiça: gerindo conflitos em uma sociedade rica e violenta. Diálogos sobre Justiça, v. 2, n. 1 2014, p. 49-56. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/650c0835c07311b04026c0d2e52c867b.pdf
    » https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/650c0835c07311b04026c0d2e52c867b.pdf
  • SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato S. de. Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime. São Carlos. Contemporânea, v. 5, n. 1, p. 119, 2015.
  • WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2020
  • Aceito
    13 Out 2021
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br