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Do político ao econômico: aportes da teoria dos sistemas a uma crítica do neoliberalismo

From political to economic: contributions of systems theory to a critique of neoliberalism

Resumo

Este artigo propõe uma leitura cruzada entre a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e os estudos sobre governamentalidade neoliberal inspirados por Michel Foucault. Em vez de sugerir um déficit na autopoiese dos sistemas, o texto avança a hipótese de que o neoliberalismo se expressa na forma de uma colonização dos mecanismos operacionais dos sistemas funcionais: o direito e a política, especialmente, são tomados de uma racionalidade econômica específica que passa a reger suas formas de autorreferência (reflexividade e reflexão) e heterorreferência (observação de segundo grau, sobretudo pela ciência). Por essa específica colonização da autopoiese dos sistemas funcionais, a racionalidade neoliberal paradoxalmente mantém a diferenciação funcional mas restringe seus pressupostos: um grau de inclusão social e desintegração sistêmica que permita manter a distinção entre os códigos e programas econômicos, políticos e jurídicos.

Palavras-chave
teoria dos sistemas; autopoiese; governamentalidade; neoliberalismo; colonização sistêmica

Abstract

This paper proposes a cross-reading between Niklas Luhmann’s systems theory and the studies on neoliberal governmentality inspired by Michel Foucault. Instead of suggesting a deficit in the autopoiesis of systems, the text advances the hypothesis that neoliberalism is expressed in the form of a colonization of the operational mechanisms of functional systems: law and politics, especially, are taken by a specific economic rationality that governs their forms of self-reference (reflexivity and reflection) and hetero-reference (second-order observation, mainly by science). Due to this specific colonization of the autopoiesis of functional systems, neoliberal rationality paradoxically maintains functional differentiation but restricts its assumptions: a degree of social inclusion and systemic disintegration that allows maintaining the distinction between economic, political and legal codes and programs.

Keywords
systems theory; autopoiesis; governamentality; neoliberalism; systemic colonization

Introdução

Este artigo tem como objetivo principal apresentar, a partir de alguns conceitos elaborados pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, elementos para a redescrição e a crítica do neoliberalismo. Para tanto, o trabalho propõe um diálogo da teoria dos sistemas com os estudos sobre a governamentalidade, os quais, como se sabe, se desenvolveram na esteira do curso que Michel Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010. ministrou no Collège de France em 1979 sob o título Nascimento da biopolítica.

O texto mobiliza e problematiza aspectos da caracterização teórica do neoliberalismo como “arte de governar” dotada de racionalidade específica. Em linhas gerais, o neoliberalismo é concebido por esses estudos como uma racionalidade política de governo de condutas pela qual uma grade de inteligibilidade econômica, que tem no centro a forma-empresa e o princípio da concorrência que lhe é próprio, é estendida a diferentes esferas da vida social, levando a uma erosão crescente das fronteiras entre economia e sociedade (Lemke, 201214 LEMKE, Thomas. Foucault, governamentality and critique. Boulder: Paradigm, 2012.), a novas formas de constituição da subjetividade (Dardot; Laval, 2016a8 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016a., 2016b9 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Neoliberalismo e subjetivação capitalista. O Olho da História, v. 22, p. 1-15, 2016b.) e ao esvaziamento semântico da democracia (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015.).

Partindo de conceitos desenvolvidos pela vertente luhmanianna da teoria dos sistemas, propõe-se uma redescrição do neoliberalismo como racionalidade eminentemente econômica voltada à instituição social do primado do subsistema da economia pelo espraiamento de seu código, seus programas e suas descrições para outras esferas da sociedade, como a política e o direito, com potencial para gerar efeitos desdiferenciantes ou bloqueadores do processo de diferenciação funcional (Minhoto; Gonçalves, 201532 MINHOTO, Laurindo D.; GONÇALVES, Guilherme L. Nova ideologia alemã: a teoria social envenenada de Niklas Luhmann. Tempo Social, v. 27, n. 2, p. 21-43, 2015. https://doi.org/10.1590/0103-2070201522
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; Minhoto, 201430 MINHOTO, Laurindo D. Nota crítica sobre a teoria dos sistemas, o neoliberalismo e o direito à cidade. Direito e Praxis, v. 5, n. 9, p. 462-474, 2014. http://dx.doi.org/10.12957/dep.2014.13741
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), o qual pressupõe certo grau de desintegração entre os sistemas.

Ao acionar mecanismos jurídicos e políticos de instituição social da norma da concorrência e da forma-empresa, a arte neoliberal de governar parece ter que ver menos com o fato de que direito e política são acionados para a instituição dessa norma, do que com a extensão de uma racionalidade econômica que refaz, por dentro, o modo de operação destes mesmos sistemas sociais. De um lado, diferentes sistemas tendem a incorporar uma racionalidade econômica externa a seus padrões de funcionamento; de outro, essa incorporação restringe possibilidades de fazer valer suas racionalidades internas específicas.

Dito de outra maneira, se o neoliberalismo supõe um mínimo de intervenção econômica e um máximo de intervenção político-jurídica, tal como sugerido por Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010., é a natureza mesma dessa intervenção que parece indicar a ativação de uma racionalidade econômica que vai redefinindo e restringindo, em situações concretas, o campo do juridicamente e do politicamente possível. Trata-se, a rigor, de um padrão de intervenção pelo qual a racionalização neoliberal de direito e política constitui uma espécie de a priori para o seu acionamento. Nos modos de acionamento dessas intervenções, as racionalidades jurídica e política são tensionadas e, no limite, crescentemente esvaziadas pelo predomínio da racionalidade econômica.

Tal rotação do político ao econômico na análise do neoliberalismo permitiria compreender e desenvolver, com novos instrumentos analíticos, um dos principais efeitos sublinhados pelos estudos sobre a governamentalidade neoliberal, a saber, o de que o novo primado do econômico não se restringe aos conhecidos processos de mercantilização, monetarização e privatização de esferas ou organizações sociais, configurando, antes, uma colonização dos seus próprios modos de funcionamento.

Distanciando-se parcialmente das formulações originais de Luhmann sobre o primado da diferenciação funcional, que já teria se realizado plenamente na modernidade, esta perspectiva concebe as distintas esferas sociais como campos de força em que se apresentam tanto tendências de autonomia quanto de colonização intersistêmica (Minhoto, 201731 MINHOTO, Laurindo D. Notes on Luhmann, Adorno, and the critique of neoliberalism. Thesis Eleven, v. 143, p. 56-69, 2017. https://doi.org/10.1177/0725513617741138
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). Note-se que, ao conceber as esferas sociais como campos de força ou locais de disputas, o trabalho não pretende resolver aqui a intrincada questão de saber, de uma vez por todas, se a auto-observação (ou a capacidade de manejar distinções e de processar informações) é ou não um pré-requisito de sistemas autopoiéticos” (Luhmann, 1990a25 LUHMANN, Niklas. Essays on self-reference. Nova York: New York University Press, 1990a., p. 82).1 1 Todas as traduções de textos publicados em outras línguas foram realizadas pelos autores. Portanto, não se trata de retomar o conhecido debate sobre o déficit de autonomia dos subsistemas parciais, em especial do direito e da política, na chamada modernidade periférica, em que se configurariam situações de alopoiese sistêmica, ou seja, de “(re)produção do sistema por critérios, programas e códigos de seu ambiente” (Neves, 200733 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 142). Em princípio, o comprometimento da autonomia de sistemas sociais parece compreender um gradiente de múltiplas possibilidades empíricas, variando em situações concretas desde formas de autonomia fraca até a “alopoiese” propriamente dita. Este trabalho sugere que o decisivo é mostrar como tendências de colonização podem afetar mecanismos internos da própria reprodução dos sistemas sociais, comprometendo, no todo ou em parte, essa reprodução.

É por esse mesmo motivo que o presente artigo também não se volta para casos de corrupção sistêmica explícita, com evidente sobreposição de códigos, como em situações de compra de sentenças ou de votos. Antes, pretende-se indicar possibilidades analíticas para a compreensão de tendências mais sutis de economização de esferas sociais, precisamente aquelas que possibilitam caracterizar o neoliberalismo como uma “revolução furtiva” (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015.); para tanto, propomos o acionamento dos conceitos teórico-sistêmicos de reflexão, reflexividade e observação de segunda ordem.

Na medida em que indica limites à plausibilidade empírica de alguns conceitos propostos por Luhmann, este artigo se insere no âmbito dos debates atuais sobre possibilidades de apreensão crítica da obra do autor (Amato; Barros, 20184 AMATO, Lucas F.; BARROS, Marco Antonio L. L. de (orgs.). Teoria crítica dos sistemas? Crítica, teoria social e direito. Porto Alegre: Fi, 2018.). Nesse sentido, a leitura cruzada aqui proposta entre teoria dos sistemas e estudos sobre governamentalidade poderia contribuir para a identificação de alguns pontos cegos recíprocos entre essas distintas vertentes da teoria social contemporânea. De um lado, se é certo que a descrição sistêmica da sociedade moderna como uma sociedade policontextural, formada por esferas autônomas, ao mesmo tempo fechadas e abertas, parece crescentemente confrontada por “formas múltiplas e historicamente situadas de entrelaçamento, interpenetração ou indiferenciação” (Silva, 201836 SILVA, Lucas T. da. Biopolítica e o enunciado da autonomização das esferas sociais. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018., p. 19, grifo no original), associadas à emergência do neoliberalismo, de outro, são os próprios conceitos luhmannianos que poderiam nos oferecer instrumentos analíticos mais finos para avançar na compreensão dessas tendências em diversas situações concretas. Dessa perspectiva, argumenta-se que a teoria dos sistemas, ao se debruçar sobre as operações internas dos subsistemas sociais – em especial, do direito e da política – poderia funcionar em negativo como bússola e mapa de processos de neoliberalização.

A hipótese deste trabalho é de que a semântica neoliberal, ao promover uma “reengenharia” das observações de segunda ordem dos sistemas sociais, entrincheirando critérios econômicos em suas formas de reflexividade e reflexão, carrega um potencial de esvaziamento e erosão da autonomia sistêmica – isto é, de integração e concentração social, corroendo tanto o fechamento operacional quanto a abertura cognitiva dos demais subsistemas parciais em proveito de uma saturação econômica de sentido na sociedade.

Para desenvolver e verificar essa hipótese, o texto percorre dois passos. Em primeiro lugar, serão apresentados o conceito de forma-sistema e as figuras da autorreferencialidade, bem como os problemas da desintegração social e da inclusão/exclusão na perspectiva da teoria dos sistemas de Luhmann; a partir dessa moldura conceitual, é possível redescrever o conceito de racionalidade neoliberal proposto por Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010., caracterizando assim a tendência de expansão da forma, da linguagem e do código do sistema econômico para as demais esferas da sociedade. No segundo passo, com base em uma leitura cruzada das teorias, propõe-se uma análise os modos específicos como a racionalidade neoliberal afeta distintos subsistemas sociais, com ênfase na política e no direito.

Alguns conceitos da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Neste tópico apresentamos aspectos do delineamento conceitual básico da teoria dos sistemas de Luhmann, incluindo sua concepção de sistemas autorreferentes, de modalidades de autorreferência (autorreferência basal, reflexividade e reflexão) e heterorreferência (associada à observação de segunda ordem) e da inclusão social como requisito para a desintegração sistêmica e a diferenciação funcional da sociedade.

Forma-sistema e autorreferência

O ponto de partida da teoria luhmanniana é a diferença entre sistema e ambiente (Luhmann, 199622 LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Cidade do México: Anthropos, 1996.). A partir dessa “forma” de dois lados, “o sistema estabelece sua identidade à medida que se diferencia do ambiente” (Minhoto; Gonçalves, 201532 MINHOTO, Laurindo D.; GONÇALVES, Guilherme L. Nova ideologia alemã: a teoria social envenenada de Niklas Luhmann. Tempo Social, v. 27, n. 2, p. 21-43, 2015. https://doi.org/10.1590/0103-2070201522
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, p. 25). A diferenciação entre sistema e ambiente não é construída pelas próprias operações comunicativas: na medida em que a comunicação utilize determinado veículo simbolicamente generalizado – como poder, validade, verdade ou dinheiro –, ela coloca em ação uma distinção (Luhmann, 201218 LUHMANN, Niklas. Theory of society I. Stanford: Stanford University Press, 2012.): entre poder e não poder (ou governo e oposição), entre licitude e ilicitude (ou validade e invalidade jurídica), entre verdade e falsidade (de hipóteses científicas), entre ter ou não ter (propriedade). Essas distinções apenas fazem sentido enquanto códigos (no sentido cibernético) de um sistema. Assim codificadas, as comunicações tornam-se elementos autorreferentes que constituem determinado sistema social. Esses códigos, por sua vez, podem ser programados pelos respectivos sistemas: na forma de leis e medidas administrativas (na política), de contratos e sentenças (no direito), de programas de investimento e mecanismos de dívida (na economia).

Para Luhmann (2013)17 LUHMANN, Niklas. Theory of society II. Stanford: Stanford University Press, 2013., a sociedade moderna é uma sociedade mundial marcada por alto grau de complexidade, de contingência e pela diferenciação funcional. Os subsistemas sociais funcionais – a economia, a política, o direito, a arte, a ciência etc. –, como sistemas de sentido, produzem seus próprios elementos e se reproduzem, continuamente, a partir desses elementos, em um movimento reflexivo. Constituem, dessa forma, sistemas autorreferenciais e autopoiéticos. Os sistemas são autorreferenciais na medida em que se referem a si próprios a cada operação. O conceito de autorreferência (Luhmann, 199523 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995.) dos sistemas sociais permite descrever tais sistemas como simultaneamente fechados, no nível operacional, e abertos, no nível cognitivo, e conceber padrões de interação sistêmica sem perda de autonomia, isto é, com preservação de sua diferença em relação ao ambiente.

Como descreve Luhmann (1995)23 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995., a autorreferência dos sistemas de sentido é composta por três formas principais. A simples produção e reprodução do sistema pelos próprios elementos configura a primeira forma, definida como autorreferência basal. Além desse momento inicial, a figura da autorreferência se desdobra, ainda, nos mecanismos reflexivos e de auto-observação: a reflexividade e a reflexão.

Reflexividade pode ser compreendida como autorreferência processual, uma vez que “implica que o processo referente e o processo referido são estruturados pelo mesmo código binário e que, em conexão com isso, os critérios e programas do primeiro aparecem no segundo” (Neves, 200733 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 132). Reflexividade diz respeito a “comunicação em um processo comunicativo (comunicação sobre comunicação)” (Luhmann, 199523 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995., p. 443): procedimentos e princípios que guiam a produção e interpretação de regras jurídicas; transações nos mercados financeiros lastreadas em ativos e pagamentos da economia real; voto em representantes que votam na definição das políticas públicas (representação política).

Reflexão, por sua vez, pode ser definida como a elaboração conceitual – interna ao sistema e a partir de seus próprios elementos – da sua identidade em contraposição ao ambiente. Nas palavras de Luhmann (1995, p. 444)23 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995., trata-se da operação pela qual o sistema indica a si mesmo em contraste com seu ambiente”. Elaborações teóricas definem a unidade de sentido do sistema.

Esses mecanismos de reflexividade e reflexão são tipos de autorreferência; como mostra Luhmann (1995)23 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995., conferem aos sistemas a capacidade de realizar operações de redução de complexidade desestruturada (em relação ao ambiente) e simultaneamente operações de aumento de complexidade estruturada (interna). Verifica-se, assim, o paradoxo de uma redução de complexidade voltada ao enriquecimento de sentidos específicos (Luhmann, 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004.).

Além desses mecanismos internos, como tipos de autorreferência sistêmica, Luhmann elabora conceitos no nível da interação entre os subsistemas. O primeiro conceito fundamental para a compreensão das relações entre os subsistemas é o de acoplamento estrutural (Luhmann, 201218 LUHMANN, Niklas. Theory of society I. Stanford: Stanford University Press, 2012.). São formas de dois lados que permitem a “irritação” concentrada e seletiva de um sistema por outro. É o caso daqueles acoplamentos estruturais entre direito e política (constituição), entre política e economia (tributação), entre direito e economia (propriedade e contrato), entre economia e educação (diploma), ou entre ciência e educação (universidade). Os acoplamentos estruturais possibilitam que os sistemas permaneçam sensíveis ao seu ambiente, sem que essa heterorreferência elida sua autopoiese (Luhmann, 199622 LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Cidade do México: Anthropos, 1996.).

O segundo conceito pertinente à interação entre sistemas é o de observação de segunda ordem. Como indicado anteriormente, a reflexão, como tipo de autorreferência, envolve uma auto-observação do sistema, ou seja, a elaboração, pelo sistema, de sua distinção com o ambiente, a partir de seus próprios elementos. Como toda observação, apresenta um limite ou ponto cego, uma vez que, por partir de uma distinção, não a pode aplicar a si mesma durante o processo de observação. Luhmann (2004)21 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004. sublinha que essa não é a única forma possível de observação sistêmica, uma vez que os sistemas parciais podem observar, também, uns aos outros. Porém, por estarem no ambiente, os sistemas observadores não têm acesso direto aos sistemas observados; antes, realizam uma “observação de observações” (Luhmann, 199622 LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Cidade do México: Anthropos, 1996., p. 126). Por essa razão, o autor (Luhmann, 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004., p. 59) propõe a possibilidade do que define como “observação de segunda ordem”, ou seja, uma descrição externa, mas que só seria adequada se levasse em consideração as próprias formas pelas quais os sistemas se autodescrevem. Essa descrição, portanto, “não poderia perder de vista seu objeto”, mas teria a vantagem de não estar presa às “normas, convenções e premissas da compreensão do objeto” (p. 60). Em outras palavras, essa observação tem potencial para iluminar pontos cegos e desnaturalizar os critérios que fundamentam as auto-observações (Luhmann, 199622 LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Cidade do México: Anthropos, 1996.). Por exemplo, a filosofia e a sociologia do direito realizam observações de segunda ordem, levando em conta inclusive as observações da dogmática jurídica – aquele discurso de autodescrição do direito, mas que precisa estar orientado pelas normas atualmente vigentes e pela orientação instrumental para decidir segundo tais normas. A filosofia e a ciência política também fazem observação de segunda ordem a partir das autodescrições – como as ideologias – com que o sistema político se autodescreve e usa como semântica de justificativa para suas decisões: as ideologias são, nesse caso, as auto-observações a serem observadas de fora.

Desintegração e inclusão

A formulação de uma perspectiva crítica a partir da teoria dos sistemas esbarra na declaração do próprio Luhmann (2012)18 LUHMANN, Niklas. Theory of society I. Stanford: Stanford University Press, 2012. sobre a pretensão puramente descritiva de sua teoria, ao modelar a sociedade como um sistema, observar suas autodescrições e manter-se cético em relação a julgamentos normativos (como aqueles sugeridos pela visão habermasiana de uma justiça discursiva não distorcida pelos meios sistêmicos poder e dinheiro). No entanto, as análises luhmannianas operam também pela consideração de certas “exigências” ou “necessidades” funcionais (e, nesse sentido mais restrito, “normativas”) da sociedade moderna. Uma dessas exigências consiste justamente em assegurar a desintegração social, isto é, um grau suficiente de autonomia entre os subsistemas funcionais (economia, política, direito, ciência etc.). Assim, Luhmann (2013, p. 25)17 LUHMANN, Niklas. Theory of society II. Stanford: Stanford University Press, 2013. inverte os apelos usuais em favor de mais integração social – entendida como solidariedade, ordem, conformidade a valores etc. – ao frisar que o problema da sociedade moderna está em “assegurar suficiente desintegração”. Por sua vez, a integração é concebida como “restrição dos graus de liberdade dos subsistemas devido às fronteiras externas do sistema societal e ao ambiente interno deste sistema que elas definem” (Luhmann, 201317 LUHMANN, Niklas. Theory of society II. Stanford: Stanford University Press, 2013., p. 25). Integração significa, pois, redução da liberdade de escolha do sistema – menor indeterminação interna. Maior integração entre os sistemas sociais pode ser obtida por cooperação e, mais ainda, por conflito. Maior integração significa maior conversibilidade de “valores” ou códigos que, no limite, pode provocar um efeito dominó na reprodução de inclusões/exclusões.

Obviamente, a continuidade da reprodução do sistema social mais abrangente – a sociedade – depende de alguma integração entre seus subsistemas, como os acoplamentos estruturais (referidos acima), que definem um regime de cooperação, e os acoplamentos operativos episódicos, que ligam eventos temporalmente dispersos: a aprovação de uma lei no parlamento (política) pode ser reportada (meios de comunicação de massa) e gerar uma queda na bolsa de valores (economia). Mas, certamente, a diferenciação funcional proporciona um grau de integração menor que outras formas sociais (como as sociedades de estratos ou castas) – daí a imagem de uma sociedade “sem centro nem ápice”.

Paradoxalmente, a diferenciação funcional torna todos os indivíduos potencialmente incluídos na sociedade (como pessoas) e leva a inclusão ou exclusão a ser regulada primordialmente pelos subsistemas sociais (referida a papéis sociais); mas a exclusão de um sistema tende a provocar um efeito dominó muito maior do que a inclusão. Todos estão potencialmente incluídos na economia (como produtores ou consumidores, empregadores ou empregados), na política (como eleitores ou candidatos), no direito (como jurisdicionados, sujeitos de direito). Entretanto, a posição precária e a dificuldade de acesso e exercício efetivo de algum desses papéis torna o indivíduo vulnerável a ser excluído do sistema – e, sucessivamente, de outros sistemas.

Daí surge a hipótese luhmanniana (Luhmann, 201317 LUHMANN, Niklas. Theory of society II. Stanford: Stanford University Press, 2013.) de que a exclusão integra mais fortemente do que a inclusão: a restrição dos graus de liberdade dos sistemas para selecionarem comunicação é maior quando pessoas são excluídas do que quando são incluídas. A sociedade moderna é mais integrada nas camadas baixas do que nas altas. Quem tem acesso à educação pode não entrar no mercado de trabalho. Quem é rico pode não ter sucesso na escola. A conversão de um meio em outro – poder em dinheiro, dinheiro em verdade etc. – não é automática, embora exista. Mais forte, porém, é a conversão negativa: exclusão que gera exclusão. Sem educação, sem emprego, sem saúde. Quem é excluído de um sistema muito provavelmente será excluído dos outros – até a exclusão universal, situação na qual, não representando mais nenhum papel social, o indivíduo deixa de ser considerado como pessoa – exceto na afirmação contrafática dos direitos humanos – e passa a valer apenas como corpo.

Em situações de superintegração, que no limite podem ocasionar corrupção sistêmica (Neves, 200733 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.), a sincronia apenas contingente da inclusão ou exclusão em um ou outro sistema (o cenário descrito pela prevalência da diferenciação funcional) é substituída por um mecanismo necessário de feedbacks positivos – mais inclusão gera mais e mais inclusão e, principalmente, segundo a hipótese luhmanniana, exclusão gera mais e mais exclusão. É por isso que, para Luhmann (2013, p. 17)17 LUHMANN, Niklas. Theory of society II. Stanford: Stanford University Press, 2013., é preciso trabalhar o conceito de inclusão lado a lado ao de exclusão, pois o que está em jogo é a “oportunidade para a consideração social das pessoas”.

Nessa medida, a desintegração e a inclusão social apresentam-se como requisitos funcionais para a diferenciação entre sistemas funcionais autorreferentes. Note-se que aqui não se trata apenas da construção de espaços e ações excepcionados ao juízo moral, mas da própria indiferença dos códigos lícito/ilícito, saber/não saber, ter/não ter ao código bem/mal. Na falta de uma moral abrangente a cimentar e unir a sociedade, com validade transcendente aos “valores” operativos dos sistemas (em grande medida indiferentes a uma moralidade substancial), o “mal” passa a ser então a sociedade negar o acesso ao lado positivo dos códigos funcionais e a ética (a reflexão sobre a moral) passa a detectar como falha moral a corrupção dos códigos funcionais: dinheiro na política, medicamentos no esporte, parcialidade nas cortes (Luhmann, 199424 LUHMANN, Niklas. Politicians, honesty and the higher amorality of politics. Theory, Culture & Society, v. 11, p. 25-36, 1994. https://doi.org/10.1177/026327694011002002
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). Daí emerge, com ares normativos, a importância da diferenciação funcional, do fechamento operacional de cada sistema e de acoplamentos estruturais (isto é, vínculos institucionalizados), em detrimento de uma corrupção sistêmica generalizada, em que códigos funcionais e não funcionais (como critérios estratificatórios, culturais, étnicos) bloqueiam a isonomia no acesso e dependência em relação aos sistemas.

Nessa linha é que podem ser interpretadas as críticas de Luhmann (1990b)26 LUHMANN, Niklas. Political theory in the Welfare State. Berlim: De Gruyter, 1990b. ao Estado de bem-estar social, como uma situação de hiperpolitização da sociedade, com pretensões de controle pelo subsistema estatal (centro do sistema político) de todos os demais âmbitos sociais, como a economia, a educação, a saúde ou a ciência. Por meio de políticas públicas, orientadas a promover politicamente a inclusão social abrangente, os códigos e programas do sistema político carregam o potencial de desdiferenciar os critérios internos de inclusão em cada um dos demais sistemas sociais parciais. Assim, a própria inclusão promovida com as ferramentas institucionais e políticas do Welfare State caminha contraditoriamente: se, de um lado, assegura as bases para a diferenciação funcional (promovendo inclusão), de outro, também a constrange, sobrecarregando a burocracia estatal e reproduzindo as distorções e desigualdades no acesso a ela.

Se esse é um argumento crítico à forma de interação entre sistema político e os demais sistemas funcionais (no caso, à forma das políticas públicas), não se trata, é certo, de uma apologia da autorregulação. Assim como criticou o planejamento central (Luhmann, 196629 LUHMANN, Niklas. Politische planung. Jahrbuch für Sozialwissenschaft, v. 17, n. 3, p. 271-296, 1966.), Luhmann (1973)28 LUHMANN, Niklas. Politische Verfassungen im kontext des Gesellschaftssystems (1. Teil). Der Staat, v. 12, n. 1, p. 1-22, 1973. avalia que a realidade sempre vai além da confiança dos conceitos econômicos no equilíbrio de quaisquer distorções por meio do sistema de preços. Em princípio, a complexidade da sociedade moderna tende a ser desestruturada – e, portanto, submetida a uma simplificação potencialmente liberticida – se a diferenciação funcional for substituída por uma organização burocrática centralizada (como pretendeu a antiga União Soviética) ou por apenas um dos âmbitos parciais dessa sociedade, como o mercado – uma esfera de reflexão interna do sistema econômico (Luhmann, 201715 LUHMANN, Niklas. La economía de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2017., cap. 3). Na síntese de Campilongo (2011, p. 180)7 CAMPILONGO, Celso. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011., de um lado, quis-se “formatar politicamente o direito e a economia, com a sobreposição de lógicas”; de outro, incide-se “em equívoco análogo: atribuir ao mercado o papel determinante nas operações dos sistemas político e jurídico”.

A “racionalidade neoliberal” como expansão do subsistema econômico

Em seu esforço para caracterizar o neoliberalismo, Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010. dá um passo decisivo ao concebê-lo não como um conjunto de políticas econômicas, mas como uma racionalidade de governo (ou condução) das condutas. Essa razão normativa, ancorada no modelo da empresa e da concorrência, visa à economização de todas as esferas da vida social e da própria constituição da subjetividade (Foucault, 201010 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010.), indicando uma nova prevalência do homo oeconomicus sobre o homo juridicus e o homo politicus. Segundo Brown (2015)6 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., o triunfo do homo oeconomicus – ou seja, da figura humana que se orienta pelo cálculo racional e pelas regras de mercado para obter melhores posições em uma constante competição (Foucault, 201010 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010.) – se dá não apenas sobre o sujeito de direitos e de interesses representados pelo já citado homo juridicus, mas também, sobre o homo politicus, a figura voltada à “realização da soberania popular, assim como de sua própria soberania” (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., p. 86). Nesses termos, “toda conduta é conduta econômica, todas as esferas de existência são moldadas e medidas por métricas e termos econômicos, mesmo quando essas esferas não são diretamente monetizadas” (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., p. 10).

Pensando especificamente as novas relações entre estado e mercado, Foucault indica com clareza o que está em jogo na governamentalidade neoliberal, trata-se

da aplicação da grelha econômica a um campo que [...] fora definido em oposição à economia ou, em todo o caso em complemento da economia, como sendo aquilo que em si, pelas suas próprias estruturas e pelos seus próprios processos, não tem a ver com a economia

(Foucault, 201010 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010., p. 307).

Trata-se, portanto, de um processo que vai além da mercantilização propriamente dita, na medida em que a racionalidade neoliberal “dissemina o modelo do mercado para todos os domínios e atividades”, engendrando “um processo de reconstrução do conhecimento, da forma, do conteúdo e da conduta adequada a todas essas esferas” (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., p. 31). Nessa medida, processos de neoliberalização transformam radicalmente “não a mera organização, mas os propósitos e características de cada esfera, bem como as relações entre elas”, assim como abrem caminho para a transposição de “princípios políticos democráticos de justiça no idioma econômico” (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., p. 35).

É precisamente nessa chave de interpretação que Foucault apresenta a racionalidade neoliberal em dois de seus aspectos constitutivos, isto é, tanto como uma grade de inteligibilidade (ou princípio de análise) pela qual esferas sociais e modos de ação não econômicos podem ser investigados a partir de categorias econômicas, quanto como um programa para a avaliação econômica das políticas governamentais, configurando uma espécie de “tribunal econômico permanente” (Lemke, 201214 LEMKE, Thomas. Foucault, governamentality and critique. Boulder: Paradigm, 2012., p. 16).

Desse ponto de vista, na medida em que a racionalidade neoliberal supõe essa guinada epistemológica voltada à totalização econômica dos mais diferentes objetos e esferas sociais, é que se argumenta que a mobilização da conceitualidade luhmanniana (voltada a compreender a própria diferenciação daquelas esferas) tem potencial para iluminar tanto o caráter eminentemente econômico dessa racionalidade quanto a erosão do funcionamento dos sistemas sociais, incluindo-se o direito e a política.

Em termos luhmannianos, a racionalidade neoliberal não definiria condições sociais minimamente adequadas para o desenvolvimento de acoplamentos estruturais em seu sentido próprio, que, como visto, supõem padrões de interação intersistêmica com manutenção de autonomia operacional; antes, e fundamentalmente, ela engendra condições sociais para a captura de procedimentos autorreferenciais e capacidades reflexivas de distintos sistemas sociais, minando, por dentro, seu modo de funcionamento.

Dessa perspectiva, se mecanismos jurídicos e políticos são centrais à imposição da norma da concorrência e do modelo da empresa, isso não autorizaria sem mais a afirmação do caráter político da racionalidade neoliberal. Antes, direito e política constituiriam formas esvaziadas de sentido, nomes crescentemente desvinculados dos objetos a que se reportam, objetos pré-constituídos pela guinada epistemológica que totaliza e satura o econômico na sociedade. É justamente porque insiste na descrição do funcionamento interno das esferas e nos conteúdos semânticos mínimos que nelas se sedimentam, e a partir dos quais elas se organizam, que a teoria dos sistemas poderia nos fazer avançar na compreensão dos paradoxos pelos quais, na esteira do neoliberalismo, a expansão da política se dá pelo comprometimento da democracia, e a expansão do direito pelo comprometimento da juridicidade (racionalidade jurídica). É o que pretendemos desenvolver na próxima seção.

Autorreferência e tendências de colonização sistêmica

Importante compreender como a distinção entre sistemas funcionais vem a ser construída na teoria dos sistemas. Há diferenças de código, função e meio de comunicação simbolicamente generalizado que distinguem as operações econômicas da comunicação política ou jurídica. A economia (Luhmann, 201715 LUHMANN, Niklas. La economía de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2017.) trata de operacionalizar a garantia da disponibilidade futura de recursos, dada uma ligação estável com sua distribuição atual. Essa função é cumprida por meio do dinheiro, de modo que a moeda operacionaliza a diferença-diretriz do sistema: ter/ não ter. A organização típica da economia é a empresa (Baecker, 20065 BAECKER, Dirk. The form of the firm. Organization, v. 13, p. 109-142, 2006. https://doi.org/10.1177/1350508406059644
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) e seu centro são os bancos. A reflexividade econômica opera sobretudo pelos mercados financeiros, no qual preços são formados em observância às transações da economia real (produção, comércio e consumo).

Já a política (Luhmann, 200920 LUHMANN, Niklas. La política como sistema. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2009.) serve para a tomada de decisões coletivamente vinculantes, operacionalizando o medium do poder para distinguir entre poder e não poder – ou melhor, dentro do Estado (sua organização central), entre governo e oposição. Uma periferia de partidos políticos, movimentos sociais e grupos de interesse circundam o Estado e legitimam que ele seja a única organização a tomar decisões imponíveis a todos. A reflexividade política é construída pela representação: em eleições, decide-se sobre quem vai tomar aquelas decisões estatais.

Finalmente, o direito (Luhmann, 201416 LUHMANN, Niklas. A sociological theory of law. 2. ed. Londres: Routledge, 2014., 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004.) funciona enquanto generalização congruente das expectativas normativas: expectativas são reforçadas contra desilusão, ao serem garantidas por sanções, formalizadas em regras e reafirmadas em procedimentos de solução de conflitos. O direito válido é o meio de comunicação em curso, e, por meio de normas constitucionais e processuais e de princípios substantivos, o direito constrói sua reflexividade, direcionando a aplicação das normas válidas.

Reformuladas nos termos dessa diferenciação, nossas questões são: em que medida, ao observar as observações de outro sistema, a economia, ao desconstruí-las e reconstruí-las em termos estritamente econômicos, acaba furtivamente moldando a própria autoimagem da política e do direito? Ou seja, em que medida as operações dos sistemas são guiadas não por sua própria reflexividade, mas por critérios econômicos? De que forma a teoria econômica acaba por afirmar-se como instância de controle científico (plataforma privilegiada da observação de segunda ordem) também para os sistemas político e jurídico? O que se propôs como hipótese é que as tendências de “economização” podem ser percebidas, nos níveis da reflexão e da reflexividade, como “formas da autorreferência”, e no nível das hetero-observações, como observações de segunda ordem.

Para caracterizar os desdobramentos possíveis da hipótese teórica sugerida, são mencionadas situações que indicam a tomada de controle, pelo sistema econômico, desses níveis de autorreferência dos sistemas político e jurídico. É evidente que essas indicações não esgotam o potencial de investigações a partir da hipótese sugerida, abrindo caminho para que esta seja testada e tensionada por outras considerações empíricas.

Racionalidade neoliberal e reflexividade

O primeiro passo é compreender como a racionalidade neoliberal afeta o plano da reflexividade. Retomamos, assim, a definição segundo a qual a reflexividade seria o mecanismo processual de aplicação das operações de um sistema sobre si mesmas – por exemplo, a regulação jurídica da própria criação/ aplicação do direito. Não se trata, como observa Neves (2007)33 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. de mera normatização da normatização – mas sim de normatização jurídica (não religiosa, moral ou discricionariamente política) dos critérios de uso dos programas decisórios jurídicos (normas).

Prosseguindo na esfera do direito, assinale-se que o espraiamento da racionalidade neoliberal coloniza o sistema jurídico, em parte, por atingir os mecanismos de regulação/ normatização das próprias normas e programas de aplicação dessas normas jurídicas. Ou seja, esses mecanismos de regulação não seguem mais critérios jurídicos, e sim critérios provenientes da economia, como eficiência, gestão, produtividade e maximização de lucros.

Em um nível basal, a autorreferência do sistema jurídico pode ser manipulada pela ingerência de critérios econômicos. Reconhece-se, por exemplo, no direito internacional, que direitos civis, tratados de livre-comércio, acordos de propriedade intelectual e garantias de proteção a investimentos contra expropriação indireta constituem normas autoaplicáveis, com mecanismos claros de responsabilização e diretamente acionáveis perante cortes internacionais ou arbitrais. Enquanto isso, normas que não incorporam direitos privados – como tratados de direitos sociais – carecem de mecanismos de enforcement e aproximam-se à categoria de soft law (Amato, 20161 AMATO, Lucas F. Economia e política dos direitos culturais na ordem internacional. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 61, n. 1, p. 165-192, 2016. http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v61i1.39558
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). Outro exemplo é a intervenção externa na remodelagem da ordem jurídica de países invadidos ou perdedores em conflitos geopolíticos e militares: aqui as potências invasoras direcionam a construção de uma ordem jurídica que seja market-friendly, ou seja, adira às “melhores práticas” de “governança”, garantindo o “império do direito” sobretudo na proteção a patrimônios, investimentos e contratos (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015., p. 142-150; Granter, 201711 GRANTER, Edward. Strictly business: critical theory and the society of rackets. Competition & Change, v. 21, n. 2, p. 94-113, 2017. https://doi.org/10.1177/1024529417690716
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, p. 104-106).

Entretanto, mais além da autorreferência basal, interessa o caso da normatização da normatização jurídica com base em critérios não jurídicos, mas econômicos: aqui a economicização atinge a reflexividade do sistema jurídico. Uma ilustração advém da argumentação consequencialista – quando a aplicação de uma norma jurídica não é autorreferida a outra norma, mas a uma consideração de eficiência econômica e cálculos de custo-benefício quanto a consequências (Luhmann, 198327 LUHMANN, Niklas. Sistema jurídico y dogmática jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983., cap. 4). Nesse caso, a orientação do direito, predominantemente, ao passado (assegurar expectativas já garantidas como direito) é transformada em um juízo utilitário sobre as repercussões econômicas de uma decisão. Além de internalizar critérios técnico-econômicos na tomada de decisão judicial, esse tipo de orientação acaba por determinar até mesmo a definição do que e quando serão julgados casos específicos – interferindo no atributo crucial dos tribunais como centro do sistema jurídico, que é a proibição da denegação de justiça. Essa proibição é relativizada na medida em que as pautas de julgamento são adiantadas ou procrastinadas conforme as consequências econômicas previsíveis da decisão a ser tomada. A permanente violência jurídica cometida pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao abster-se de decisões sobre os planos de estabilização econômica implementados no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, é, por exemplo, justificada pelos impactos desestruturantes que os ressarcimentos devidos aos credores teriam sobre o sistema bancário brasileiro (Villard Duran, 201040 VILLARD DURAN, Camila. Direito e moeda: o controle dos planos de estabilização monetária pelo STF. São Paulo: Saraiva, 2010.). A higidez sistêmica das instituições financeiras se sobrepõe, nesse exemplo ilustrativo, aos direitos individuais.

Racionalidade neoliberal e reflexão

O mecanismo da reflexão como forma de autorreferência, por sua vez, pode ser compreendido como a elaboração conceitual – interna ao sistema e a partir de seus próprios elementos – da sua identidade em contraposição ao ambiente (Luhmann, 199523 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995.). Nesse sentido, também a partir de uma leitura sistêmica de Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010., Minhoto e Gonçalves (2015, p. 28)32 MINHOTO, Laurindo D.; GONÇALVES, Guilherme L. Nova ideologia alemã: a teoria social envenenada de Niklas Luhmann. Tempo Social, v. 27, n. 2, p. 21-43, 2015. https://doi.org/10.1590/0103-2070201522
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indicam o neoliberalismo como o “negativo da ênfase luhmanniana no primado da diferenciação funcional e na autonomia dos diferentes sistemas parciais da sociedade”; um dos focos dessa perspectiva negativa parece estar, exatamente, na forma como o neoliberalismo limita os mecanismos de reconstrução interna da diferenciação, em especial o mecanismo da reflexão.

O espraiamento da racionalidade neoliberal, com a generalização da linguagem, dos critérios, mecanismos e programas do sistema econômico para as demais esferas da vida limita a possibilidade que os sistemas teriam de conceber, internamente, sua própria identidade, isto é, limita sua capacidade de construção e desenvolvimento de teorias reflexivas. Tal limitação pode ser percebida na atual prevalência de autodescrições pretensamente internas a um sistema (no caso do direto, a dogmática jurídica), mas que, em realidade, apoiam-se em elementos extrínsecos a ele; ou seja, são realizadas a partir de uma linguagem, de códigos e de programas próprios da economia.

Luhmann (2004)21 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004. enfatiza essas teorias sobre os sistemas elaboradas internamente aos próprios sistemas. Nas palavras do autor, no caso das teorias do direito, estas comporiam a forma pela qual o direito se apresenta como resultado de sua autointerpretação” e seriam “produtos do sistema jurídico se auto-observando” (Luhmann, 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004., p. 54). As teorias jurídicas aparecem como material privilegiado para a compreensão da prevalência de descrições internas que se utilizam de elementos externos. Aqui se poderia entender a “teoria mesma como uma forma de acoplamento estrutural do sistema científico com as teorias reflexivas dos [outros] sistemas funcionais”; assim, poderíamos “perceber o mecanismo do acoplamento estrutural como uma forma, isto é, canalização de irritações pela exclusão/inclusão de possibilidades, nessa interface” (Luhmann, 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004., p. 459, grifos no original). Na medida em que teorias do direito proponham a prevalência de critérios econômicos enquanto determinantes para a construção de doutrinas jurídicas, o acoplamento estrutural deixa de existir como garantia da diferenciação funcional e se degenera em uma simples correia de transmissão da racionalidade econômica para a interpretação do direito.

Um caso célebre de colonização econômica de teoria reflexiva no direito aparece na corrente teórica do law and economics. Essa teoria jurídica parte de critérios, elementos e pressupostos da microeconomia, como a eficiência e a maximização de riqueza, indicando-os como os parâmetros mais precisos para orientar a tomada de decisões pelos tribunais em diversos campos do direito (Scheuerman, 199935 SCHEUERMAN, William. Free Market anti-formalism: the case of Richard Posner. Ratio Juris, v. 12, p. 80-95, 1999. http://dx.doi.org/10.1111/1467-9337.00109
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).

Tal forma de análise econômica do direito, calcada nos preceitos do neoliberalismo da Escola de Chicago, baseia-se na teoria utilitarista das escolhas racionais e busca fornecer critérios econômicos e modelizações matemáticas para decisões jurídicas, notadamente as judiciais: tudo pode ser reduzido a custos e todos os custos, “inclusive os não pecuniários”, podem ser matematizados (Posner, 201034 POSNER, Richard. A economia da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. xiv). Do ponto de vista da diferenciação/desdiferenciação funcional, uma decisão judicial que adote como critério de solução do caso concreto o princípio (econômico) da “maximização de riqueza” (Posner, 201034 POSNER, Richard. A economia da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. xiii-xiv) é tão inadequada quanto se decidisse com base em qualquer outro critério não jurídico: religioso (vontade divina), político (reforço do poder estatal) ou científico (cumprimento das condições de possibilidade para o conhecimento legal).

No sentido da análise econômica do direito, em suas versões mais normativas, baseadas na absolutização do ideal da eficiência, a economização do direito toma a forma de um impacto desdiferenciante com penetração principalmente no plano de autorreflexão do sistema jurídico (teoria do direito e dogmática jurídica), mas com pretensões de chegar à esfera jurisdicional. Esse impacto é mais sensível no plano dos direitos fundamentais, de modo especial, e no direito público, de modo geral, já que na esfera privada é corrente a prática de pecuniarização dos danos de diversas naturezas e a sanção de indenização pecuniária (também presente no âmbito penal). O entendimento autodeclarado da vertente da análise econômica do direito desconsidera limitações entre política, direito, economia, educação, ciência. No limite, chega a propor a moralização da sociedade, com o apagamento das diferenças sistêmicas, já que a sociedade resumir-se-ia à economia (“sociedade comercial”, diz Posner, 2010, p. xvi-xvii) e a “maximização de riqueza” seria um princípio moral. Quanto aos direitos humanos e fundamentais, o cenário agrava-se, por constituírem-se como garantia básica às dimensões mais essenciais da própria diferenciação social (Luhmann, 201019 LUHMANN, Niklas. Los derechos fundamentales como institución: aportación a la sociología política. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2010.). Como se sabe, essas dimensões não estão totalmente disponíveis para um cálculo de otimização, nem sua proteção pode estar totalmente submetida a critérios de eficiência econômica: por exemplo, seria a norma da igualdade compatível com o “princípio de maximização da riqueza”, na versão da law and economics, segundo a qual este “determina que os direitos devem ser inicialmente conferidos àqueles que provavelmente os valorizarão mais, de modo a minimizar os custos de transação” (Posner, 201034 POSNER, Richard. A economia da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 186)? Poder-se-ia deduzir os direitos fundamentais conforme fossem ou não economicamente funcionais? Poderíamos simplesmente calcular o preço que algumas pessoas pagariam para “não se relacionar com integrantes de grupos raciais, religiosos ou étnicos diferentes do delas”, exercendo esse “‘gosto pela discriminação’” (Posner, 201034 POSNER, Richard. A economia da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 415-416)?

Nessa linha de alienação econômica da reflexão jurídica, há quem proponha um cálculo utilitarista tecnocrático de sanções e recompensas como método para se definir desde sistemas de governo (Vermeule, 200739 VERMEULE, Adrian. Mechanisms of democracy: institutional design writ small. Oxford: Oxford University Press, 2007.) até incentivos comportamentais voltados para a regulação econômica/ ambiental (Thaler; Sunstein, 200837 THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge: improving decisions about health, wealth, and happiness. New Haven: Yale University Press, 2008.). Unger (2017, p. 62-63)38 UNGER, Roberto M. O movimento de estudos críticos do Direito: outro tempo, tarefa maior. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017. chama essas correntes de benthamismo encolhido, por conceberem o direito como mera caixa de ferramentas para direcionar tecnicamente os comportamentos dos cidadãos a partir de prazeres e sofrimentos – sem uma concepção maior – que Bentham teve – de reforma política radical das instituições e estruturas sociais. Há, ainda, quem (Koskenniemi, 201113 KOSKENNIEMI, Martti. The politics of international law. Oxford: Hart, 2011.) criticamente registre a transição – especialmente no direito constitucional e no direito internacional – de teorias baseadas em uma cosmovisão (mindset) liberal kantiana, deontológica, para teorias que justificam suas análises por apelo a um “gerencialismo” (managerialism), isto é, por critérios empresariais de estratégia, planejamento, metas e controles.

Racionalidade neoliberal e observação de segunda ordem

Há ainda outro nível no qual parece frutífera a análise sistêmica dos efeitos da generalização da forma empresa na sociedade contemporânea: o das observações externas e de segunda ordem. Como indicado, os subsistemas sociais têm mecanismos que permitem que eles realizem, a partir de seus elementos, a leitura de seu ambiente, dentro do qual se encontram os outros subsistemas. As observações de segunda ordem levam em conta os critérios internos do sistema observado, mas também colocam no campo de visão os pontos cegos que as elaborações internas aos sistemas não podem captar (Luhmann, 200421 LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004., 199622 LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Cidade do México: Anthropos, 1996.).

Nesse contexto, as proposições de Foucault (2010)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010. sobre a generalização da forma empresa e da grelha econômica no capitalismo neoliberal podem ser compreendidas, em termos sistêmicos, não apenas como algo que afeta o funcionamento interno e a autorreferência de cada um dos sistemas, mas também como tendência pela qual a observação externa de segunda ordem realizada pela economia apareça com única leitura possível – ou, ao menos, como leitura preponderante – para todos os sistemas sociais.

É nesse sentido que Foucault (2010, p. 303-304)10 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010. observa o “modo como os neoliberais americanos tentam utilizar a economia de mercado e as análises características da economia de mercado para explicarem as relações não mercantis”. Indo mais a fundo, o autor apresenta a generalização da forma econômica como uma espécie de princípio de inteligibilidade, pelo qual toda e qualquer esfera social pode ser explicada. Nas palavras do autor, isso “significa que a análise em termos de economia de mercado, em termos de oferta e procura, vai servir de esquema que se pode aplicar a domínios não econômicos” (Foucault, 201010 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010., p. 307).

É nesses termos que os economistas se tornam especialistas em tudo e as análises econômicas e econométricas aparecem como a forma preponderante de compreensão para todos os sistemas parciais da sociedade – o direito, a política, a educação, a arte etc. Retomando os termos luhmannianos, a observação externa realizada pela economia se sobrepõe às demais, dificultando a elaboração e o alcance de outras observações de segunda ordem.

Exemplar aqui é a alienação da semântica jurídica pela economia advinda das teorizações focadas em registros como os de “governança” e de “regulação” (Amato, 2014a2 AMATO, Lucas F. Governança e regulação: legitimidade e novas formas de programação do direito. Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico, v. 3, n. 4, p. 139-158, 2014a., 2014b3 AMATO, Lucas F. Constitucionalização corporativa: direitos humanos fundamentais, economia e empresa. Curitiba: Juruá, 2014b.), que pretendem substituir as sanções oficiais por sanções reputacionais, localizar o arbitramento do conflito em ambientes autorregulados por corporações e especialistas e implantar regras técnicas de autorregulação (expectativas mais cognitivizadas, orientadas pela tecnologia, pela economia e pela ciência) que substituam a normatividade moralmente carregada das decisões jurídicas estatais. É uma observação econômica, no fundo, que substitui os procedimentos, programas e sanções pelos quais o direito observa e distingue o lícito e o ilícito. Nessa linha, Kennedy (2016)12 KENNEDY, David. A world of struggle: how power, law, and expertise shape global political economy. Princeton: Princeton University Press, 2016. nota a presença crescente de concepções teóricas que remetem a fundamentação epistêmica do direito – o nível da observação de segunda ordem, em termos sistêmicos – ao conhecimento especializado (expertise) de uma comunidade de juristas, técnicos, políticos e homens de negócios.

No direito estatal, por outro lado, órgãos de controle do Judiciário e do Ministério Público implantam critérios, métricas e monitoramento de eficiência e celeridade nos julgamentos dos tribunais, fazendo as promoções de carreira e a distribuição de processos dependerem da observação econômica das operações jurídicas – institucionaliza-se, portanto, uma observação de segunda ordem, e critérios de eficiência são internalizados, de modo a repercutir na forma e ritmo dos processos judiciais.

Considerações finais

Este artigo procurou caracterizar a forma pela qual a racionalidade neoliberal tende a limitar o funcionamento e a autonomia dos subsistemas parciais da sociedade. Sugere-se que, no plano interno aos sistemas, a racionalidade neoliberal ataca os mecanismos sistêmicos da reflexão e da reflexividade; no plano externo, da hetero-observação, torna possível que a observação de segundo grau realizada sob o prisma do subsistema econômico se sobreponha às demais.

A racionalidade neoliberal tende a fazer com que subsistemas como o direito e a política elaborem tanto seus programas e autodescrições quanto sua própria distinção “sistema/ ambiente” a partir de elementos econômicos – eficiência, organização empresarial, maximização de lucros, modelos concorrenciais. Do mesmo modo, a observação externa que se torna preponderante na sociedade é a observação realizada pelo subsistema econômico e, portanto, segundo esses mesmos critérios.

Ou seja, ao colonizar mecanismos de observação interna e externa por uma mesma razão, o neoliberalismo engendra um acentuado processo de ocultação de pontos cegos no funcionamento dos subsistemas sociais, em especial, dos pontos cegos da própria racionalidade econômica, que passa a ser vista como incontestável, como a única alternativa possível à sociedade contemporânea.

Essas proposições parecem convergir com as leituras do neoliberalismo que não apenas enfocam o espraiamento da forma-empresa e da racionalidade econômica para todas as esferas da vida social (Foucault, 201010 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2010.), mas também apontam o quanto essa razão se impõe como uma espécie de consenso (Brown, 20156 BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015.). A racionalidade neoliberal tende a adquirir essa aparência de incontestável exatamente porque vêm sendo minadas as possibilidades de observação de seus pontos cegos.

Do ponto de vista da teoria dos sistemas, o diagnóstico luhmanniano da diferenciação funcional vê-se confrontado por tendências internas à sociedade funcionalmente diferenciada, que paradoxalmente mantêm distintos mecanismos de reflexão e reflexividade e distintas teorias (responsáveis pela observação de segunda ordem de um sistema por outro, i.e. pela ciência), mas os colonizam, tornando-os miméticos a um determinado sistema parcial da sociedade: a economia, em sua configuração neoliberal.

Assim, o neoliberalismo reformata e desdiferencia âmbitos autorreferenciais como a política e o direito: não simplesmente quebrando sua autopoiese, mas incorporando o primado econômico como regra interna de sua operacionalização. Ao elidir a própria complexidade advinda da desintegração entre os sistemas funcionais (base de sua liberdade operacional), a racionalidade neoliberal suscita efeitos excludentes que se tornam opacos aos sistemas sociais operantes sob os critérios e formas dessa configuração econômica.

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    Todas as traduções de textos publicados em outras línguas foram realizadas pelos autores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2021
  • Aceito
    03 Set 2021
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