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O novo espírito do assalariamento e os dispositivos de remuneração do trabalho

The new spirit of salaried work and the mechanisms of work remuneration

BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020

Resumo

Nesta resenha, reconstruo o argumento da autora e teço algumas considerações críticas, com foco especial nas diferenças conceituais entre a obra resenhada e a proposta de Luc Boltanski e Ève Chiapello.1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Palavras-chave
espírito do capitalismo; relações salariais; dispositivos de remuneração; trabalho formal; sociologia do trabalho francesa

Abstract

In this review I reconstruct the author’s argument and make some critical considerations, comparing and contrasting the conceptual differences between the work reviewed and Luc Boltanski and Ève Chiapello’s proposals.

Keywords
the spirit of capitalism; salary relations; remuneration dispositifs; formal work; French sociology of work

O livro de Sophie Bernard condensa a trajetória de pesquisas da autora sob a hipótese do advento de um “novo espírito” do trabalho assalariado, em direta e explícita filiação à tese de Boltanski e Chiapello (2020)7 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020. – citados já na segunda página do livro (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 8). Enquanto aqueles assinalaram a existência de um novo espírito do capitalismo por meio da análise da literatura de gestão empresarial, Bernard aposta na análise da evolução dos sistemas de remuneração salarial com o mesmo objetivo. Pontuando criticamente o foco recente da sociologia do trabalho francesa sobre fenômenos situados nas margens da sociedade salarial daquele país (desemprego, precariedade, trabalho autônomo), a autora diz preferir focar naquilo que estaria ocorrendo no coração da relação salarial, isto é, dentre a massa de assalariados formais, esmagadora maioria dos trabalhadores franceses.2 2 Segundo a autora, cerca de 90% dos trabalhadores franceses são assalariados formais e, dentre esses, a franca maioria seria composta de contratados por tempo indeterminado (“CDI” – contrat à durée indétermiée, em francês) (Bernard, 2020, p. 8). É na flexibilização dos dispositivos de remuneração em geral que a autora nota os indícios de um “novo espírito”, definido como “uma nova forma de mobilização de mão de obra que favorece o surgimento de um trabalhador autônomo e responsável” (p. 9). Enquanto tal, ele seria um difusor de valores individualistas e meritocráticos para o conjunto da sociedade.

A autora se vale de vasto material empírico, coletado e analisado no correr de 20 anos de pesquisa sobre atividades laborais de diferentes setores econômicos, sendo o setor de supermercados um dos seus maiores focos (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 23). A abordagem é fortemente qualitativa, o que se depreende dos dados mobilizados: mais de uma centena de entrevistas realizadas, observações participantes e não participantes em diferentes anos, documentos internos das empresas. Bernard também situa historicamente sua análise, embora de maneira um tanto sumária – o movimento toma apenas algumas páginas da introdução do livro. Nelas, a autora nos apresenta brevemente três formas da organização capitalista do trabalho na França – por empreitada, fordista-taylorista e a organização por projetos – que teriam mais ou menos se sucedido historicamente, e às quais corresponderiam respectivamente três tipos de autonomia dos trabalhadores – autonomia por fora da empresa, autonomia apesar da empresa e autonomia para a empresa. É sobre o pano de fundo da “organização por projetos” que a autora interpreta seus achados empíricos.

Seus dados permitiram a construção de três tipos de padrão de assalariamento, ilustrados respectivamente por três grupos de trabalhadores em ocupações e empresas distintas.

O primeiro tipo apresentado é o do trabalhador “associado”. Reconstruído pela autora a partir de suas investigações em uma empresa do setor de super e hipermercados, trata-se de um trabalhador envolvido objetiva e subjetivamente na chamada “participação nos lucros”. Bernard nos apresenta caixas, gerentes, trabalhadores de manutenção, repositores e responsáveis de diferentes setores de mercadoria, que se dizem “acionistas” da empresa fictícia “Maximag”, e que agem conforme esta crença. São trabalhadores que, por exemplo, vigiam os clientes procurando prevenir furtos, mesmo não sendo sua função o fazer: para eles, o furto de produtos da loja significa o furto do seu próprio dinheiro. O complexo sistema de remuneração da Maximag é exposto em detalhe (envolvendo diferentes maneiras de investir parte do salário na própria empresa, visando a retirada de dividendos – ver Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 53), seu conjunto caminhando no sentido de tornar os empregados diretamente interessados nos lucros. Embora isso possa significar certo custo para a empresa (os prêmios dos trabalhadores podiam chegar a até seis salários suplementares), o sistema garantiria não apenas a “paz” no chão de loja, mas o efetivo engajamento dos trabalhadores: como “sócios” do empreendimento, eles se sentem responsáveis pela produção de sua remuneração no dia a dia de trabalho.

No entanto, a condição salarial precária instaurada por uma remuneração fortemente variável não tarda a reaparecer: a partir dos anos 2000, o crescimento do comércio varejista diminui de ritmo, e os salários dos trabalhadores, agora despidos dos fortes acréscimos variáveis, mostram-se insuficientes, próximos do salário-mínimo francês (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 67). Bernard nos mostra o impacto disso: os trabalhadores mais antigos, decepcionados, tornam-se nostálgicos; os mais jovens rejeitam a participação na “família Maximag”, lendo os mecanismos de remuneração variável exclusivamente na chave da necessidade (p. 78), uma vez que seu salário base não lhes parece suficiente. Mas o resultado dessa “tomada de consciência” da verdadeira dinâmica de sua remuneração, se produz indignação, não chega a produzir mobilização; antes, a autora sublinha o “fatalismo” dos trabalhadores e a crença persistente nos dispositivos de remuneração variável (p. 76-7), crença esta que se consolida quando os trabalhadores se percebem como privilegiados face a outros assalariados.

É diferente o impacto da crise para os trabalhadores da mesma empresa que se situam hierarquicamente acima do chão de loja, como no caso dos cadres da Maximag.3 3 Há uma peculiaridade especificamente francesa em termos de hierarquia de status profissional. Naquele país há a figura do cadre (“gerente” ou “executivo”, em inexata tradução livre), que representa o conjunto de trabalhadores fortemente distintos dos trabalhadores do chão de loja quanto ao status, geralmente com funções de gerência ou direção. Em todo caso, uma categoria frequentemente diplomada, com perspectiva de ter uma “carreira” e um padrão de consumo mais elevado. Para uma reconstrução histórica dessa categoria, ver Boltanski (1984). Bernard nos mostra como a crise do setor significou, graças à aplicação seletiva dos riscos dos mecanismos de remuneração variável, um crescimento da desigualdade salarial interna à empresa.

No segundo capítulo do livro a autora traz o trabalhador “merecedor”. Bernard constrói esse tipo por meio de uma pesquisa sobre bancários. A principal característica de sua remuneração é o recebimento de premiações por metas atingidas. Mecanismo por excelência da individualização dos salários, a remuneração variável por metas é percebida majoritariamente dentre os bancários (e dentre a população francesa em geral) como legítima, na medida em que ela permitiria não apenas estabelecer desigualdades de remuneração consideradas justas, posto que supostamente baseadas em diferentes merecimentos, como também funcionam como um mecanismo de reconhecimento simbólico do trabalho bem feito e de incentivo a este (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 93-97). No entanto, embora esse grupo de trabalhadores esteja de acordo, em abstrato, com os princípios da remuneração por metas, eles também percebem contradições em sua aplicação prática. A autora destaca duas: a utilização das premiações pela gerência como ferramenta de pacificação dos conflitos no ambiente de trabalho (e não de produção de justiça meritocrática) e a arbitrariedade de sua aplicação tendo em conta a trajetória social e profissional dos chefes responsáveis por aplicá-la (aqueles que já passaram por determinado cargo tendem a remunerá-lo mais, por exemplo – ver p. 138). De modo que, para muitos dos entrevistados, na prática, as premiações não produzem situações justas; estes denunciam que as distribuições são muitas vezes arbitrárias e pouco transparentes (p. 90), sobretudo aquelas que dependem das avaliações subjetivas de seus superiores, isto é, aquelas que não decorrem necessariamente das metas alcançadas (p. 115).

Bernard conclui que os mecanismos disponíveis à gerência para regular o acesso às premiações por meio de avaliações de cada trabalhador terminam por renunciar aos objetivos seja de produzir justiça, seja de incentivar os trabalhadores ao engajamento, em nome da produção da “paz social” no ambiente de trabalho. O propósito original dos benefícios de fortalecer o engajamento no trabalho por meio de uma distribuição meritocrática dos benefícios (que a autora assinala como tendo origem nos departamentos de Recursos Humanos, e não nas chefias de setor) é deixado de lado quando confrontado com as necessidades práticas de pacificação dos subordinados por parte de seus chefes diretos. O que resta desse processo no final das contas é o fato da flexibilização das remunerações, que vai ao encontro do interesse das empresas em produzir uma autonomia para a organização, deixando aos gerentes a missão delicada de pulverizar os incentivos, apesar de tudo.

Por fim, trata a autora das diferenças de tratamento entre homens e mulheres nesse grupo. Os dados apresentados comprovam a distância significativa entre as remunerações de homens e mulheres no seio da empresa, mas isso não parece afetar a interpretação das últimas no sentido de um reconhecimento da situação como injusta. O caso mais eloquente é o de uma chefe que afirma que a perda salarial por conta de eventual maternidade seria justa, uma vez ser decorrente de uma escolha da funcionária (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 157-8). Para a autora, essa posição significaria uma interiorização, por parte das trabalhadoras, de normas profissionais elaboradas por e para os homens: a ideologia meritocrática reforçaria as diferenças remuneratórias entre homens e mulheres.

O terceiro grupo analisado é composto de vendedores comissionados “quase-autônomos” (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 163). São trabalhadores cujo vínculo, enquanto empregados de uma empresa fornecedora de produtos, é levado ao limite da autonomia: organizam eles mesmos sua jornada de trabalho, sendo os responsáveis pelo contato com os antigos clientes e a prospecção e negociação com novos. Sua remuneração é completamente “flexível”: composta apenas de comissões, a prática de constituí-la pouco a pouco, a cada venda realizada, de tão rotineira e característica cristalizou-se em uma expressão: o “fazer salário”.4 4 Para uma investigação acerca do mesmo tema, mas no contexto brasileiro, ver Magaldi (2022). Para a autora, trata-se de um caso típico de autonomia para a empresa, mesmo que os vendedores a defendam enfaticamente como elemento definidor de sua identidade profissional, contrapondo a sua própria concepção de autonomia: uma que seja fora da empresa (p. 176-9).

O dia de trabalho desses vendedores envolve percorrer extensas regiões entrando em contato com os clientes, oferecendo produtos e tomando pedidos de encomenda, bem como prospectando novos clientes em potencial nas regiões para as quais foram designados. A relação vendedor-cliente é um dos pontos nodais de tensão entre os vendedores e empresa. Isso porque, sendo a fonte da demanda, e sendo os vendedores praticamente o único canal com os quais os clientes têm contato com os fornecedores, há uma tendência dos primeiros a se sentirem “proprietários” dos clientes (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 167). A forte concorrência interna leva os vendedores a produzir estratégias para “despistar” a gerência e os colegas, como embutir pequenos erros nos relatórios de vendas, de modo a dificultar o contato com o cliente. Mas a principal maneira de levar a cabo a “apropriação” dos clientes ocorre mediante um forte trabalho emocional, visando produzir uma ligação pessoal com o cliente (p. 170).

Dependendo diretamente das comissões sobre as vendas realizadas, a remuneração dos vendedores está umbilicalmente ligada ao desempenho econômico de seus clientes (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 190) e à sazonalidade das vendas em geral, o que tende a produzir forte incerteza quanto ao futuro. Os vendedores desenvolvem então maneiras de lidar com os percalços que surgem: organizam-se de modo a que recebam comissões mensalmente, ainda que a venda pela qual se vai receber em determinado mês tenha sido feita em mês anterior, estão sempre prevendo e antecipando despesas, alocando suas férias em semanas de vendas baixas (p. 194-7) etc.; em suma, estão constantemente procurando transformar a incerteza em risco organizável.

A última dimensão do trabalho dos vendedores analisada por Bernard é a do impacto diferencial, quanto ao gênero, da forma de remuneração e das condições de trabalho dos vendedores. As vendedoras mulheres não fazem uso de sua autonomia como o fazem os homens. De sua parte, elas organizam seu tempo profissional como algo complementar aos seus outros afazeres domésticos, com destaque para o tempo dedicado aos filhos. Mas não é desde sempre que as mulheres se dedicam à vida doméstica: Bernard nos traz casos de jovens vendedoras solteiras que possuem a perspectiva de fazer carreira no comércio, como seus homólogos masculinos; no entanto, a chegada do primeiro filho impõe um corte na caminhada profissional (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 216), e é geralmente a partir da primeira gravidez que as vendedoras passam a trabalhar nas “brechas” da maternidade, reorganizando seu tempo de trabalho de modo a se dedicar prioritariamente aos afazeres domésticos. Em sua maioria, as vendedoras saúdam a oportunidade de trabalhar em um emprego no qual é possível a “conciliação” entre afazeres domésticos e profissionais, não parecendo as incomodar o fato de ganharem menos que seus cônjuges. Para Bernard, a melhor interpretação desse fato é geracional: tendo suas mães, em regra, sido mulheres do lar, as vendedoras hoje veem a sua própria situação como um avanço, no sentido de que lhes permite o reconhecimento enquanto mulheres do lar e enquanto profissionais, mesmo que este último reconhecimento seja em magnitude inferior ao dos homens. Sua remuneração, assim, toma um caráter quase simbólico, que lhes parece satisfatório (p. 224).

Esses os três grupos de trabalhadores apresentados por Bernard. O ponto de partida da análise foram os dispositivos remuneratórios (participação nos lucros, gratificação por metas e o salário por comissão) que, a despeito das especificidades das diferentes ocupações descritas, caminhariam no mesmo sentido: o de produzir um trabalhador que assuma os riscos inerentes à atividade empresarial propriamente dita como sua responsabilidade, que não só utilize a autonomia que possui no ambiente de trabalho a favor da empresa como também internalize o controle de sua atividade, que vigie a si mesmo e aos colegas; em suma, que passe de uma situação de exploração passiva à autoexploração (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 229). É nesse sentido que a autora afirma estarmos diante de um “novo espírito do assalariamento”: cada vez mais, os trabalhadores formais assumiriam como sua responsabilidade os riscos da atividade econômica, aceitando em larga medida a ideologia meritocrática que o sustenta, e que eufemiza a relação de subordinação entre a empresa e o trabalhador, tornando o vínculo de trabalho cada vez mais mercantil e individualizado. Este é um ponto crucial: mesmo em momentos de crise, os trabalhadores analisados pela autora seguem acreditando como legítima a proposta “meritocrática” individualizante, o que indica que essa interpretação mercadológica da relação de trabalho se naturalizou entre os trabalhadores.

Em primeiro lugar, devemos considerar que o livro é uma obra em tudo e por tudo francesa; seu enquadramento empírico são as grandes cidades da França e as referências teóricas mobilizadas são, com raras exceções, esmagadoramente francesas. Portanto, o leitor brasileiro deve ter em conta a distância que nos separa, empírica e teoricamente, do contexto francês. Quando Bernard afirma o surgimento de um “novo espírito do assalariamento” no interior do modo de produção capitalista, devemos entender que ela o faz tendo por referência um território de capitalismo desenvolvido, com um arcabouço institucional e jurídico relativamente estável quanto à regulação e proteção do trabalho – muito embora, como a autora indica, isto esteja se fragmentando nas últimas décadas –, referência normativa e gerencial para o capitalismo mundial. Sua própria justificativa para o estudo é ilustrativa dessa posição, quando confrontada à realidade brasileira: criticando o foco dos estudos franceses do trabalho nas margens do assalariamento, a autora ressalta a importância de se pesquisar as mudanças no interior do assalariamento formal, grupo no qual estão a grande maioria dos trabalhadores franceses. Ora, não é esse absolutamente o caso brasileiro, no qual o trabalho “nas margens do assalariamento” sempre ocupou um contingente enorme da nossa força de trabalho.5 5 A taxa de formalização dos empregos no Brasil, grosso modo, passou por dois picos desde o surgimento da CLT: atingiu cerca de 60% em meados dos anos 1970 – taxa esta que, desde então, “se mostrou um teto para as relações de trabalho reguladas pelo Estado” (Cardoso, 2013, p. 75) – e chegou a 67,5% em 2012 (Barbosa Filho; Moura, 2015). Atualmente a taxa de informalidade está em 41,1% da população ocupada, cerca de 37 milhões de trabalhadores (IBGE, 2021). Para pesquisas recentíssimas sobre o tema do trabalho informal, ver Rangel (2019) e Araújo Filho (2021). Uma investigação que procurasse descrever e explicar o “espírito” que animaria o engajamento dos trabalhadores brasileiros em suas atividades não poderia renunciar a uma análise das “margens” do assalariamento, pelo simples motivo de que, aqui, tais “margens” configuram o “normal” para enorme contingente de brasileiros desde o surgimento da regulação do trabalho no país, sendo inclusive comum o trânsito entre uma e outra modalidade de trabalho, formal e informal, pelos mesmos indivíduos (Cardoso, 201910 CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2019., p. 376).

Tratemos agora um ponto teórico. Bernard apresenta seu livro como um esforço no sentido de desenvolver a proposta de Boltanski e Chiapello (2020)7 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020.. Tal afirmação, no entanto, nos parece peculiar, na medida em que não há indícios de adesão da autora à sociologia pragmatista, da qual Boltanski é um dos fundadores.6 6 Para um tratamento brasileiro cristalino sobre a sociologia pragmatista francesa, ver Correa e Dias (2016); para uma apreciação francesa panorâmica da mesma corrente, ver Barthe et al. (2016). Ilustrando: em Bernard, o “novo espírito” não é a expressão hegemônica de um tipo de cité7 7 Conceito longamente desenvolvido por Boltanski e Thévénot (2006) e que pode ser definido, grosso modo, como uma ordem normativa que enquadra a maneira como os indivíduos percebem e avaliam os seres e as situações do mundo em que vivem, sendo a referência dos acordos e desacordos existentes acerca de determinada distribuição de pessoas e bens; nesse sentido, em cada cité está embutido um padrão de justiça. dentre outras, mas uma ideologia forjada para mobilizar a mão de obra de todo o trabalho assalariado. O sentido dado ao “novo espírito” é tipicamente marxista, isto é, o de expressão pretensamente universal de interesses particulares (no caso, do empregador capitalista), que possui a função de mascarar a exacerbação da exploração sob a forma de “meritocracia”. Ele ilude os trabalhadores, convencendo-os da justiça de princípios derivados do interesse empresarial. A escolha é curiosa porque, ao mesmo tempo que diz trilhar o caminho aberto por Boltanski e Chiapello (2020)7 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020., produz uma análise que é, de fio a pavio, uma denúncia da falsidade do “novo espírito”, em um movimento que o próprio Boltanski criticaria como reducionista.8 8 O autor propõe sacrificar o poder autoconferido pelos sociólogos de apontar a realidade do mundo e as ilusões dos atores (neste caso, os trabalhadores) para levar a sério suas interpretações e juízos de valor, realizando antes uma sociologia da crítica do que uma sociologia crítica. Para um desenvolvimento deste tema, ver Boltanski (2012, particularmente caps. 3 e 4). Na verdade, a posição de Bernard nos parece mais próxima à de Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 330)12 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016., que sublinham o “aspecto propriamente disciplinar do discurso gerencial” no mesmo movimento em que realizam dura crítica a Boltanski e Chiapello (2020)7 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020., por supostamente terem ressaltado “apenas a face sedutora e estritamente retórica dos novos modos de poder” (p. 330). No entanto, e curiosamente, Bernard cita os segundos como referência central de seu livro, e ignora os primeiros.

A despeito das ressalvas críticas, a obra de Bernard, além de apresentar farto e interessante material empírico, oferece ângulos de análise fecundos. Investigar as modificações internas à organização do trabalho formal, e não apenas os resultados mais visíveis do trabalho sob o capitalismo (deterioração das condições de vida, redução de rendimentos, problemas de saúde física e mental, desemprego, informalidade etc.), é focar no processo de exploração mais que em seu resultado; é privilegiar uma explicação causal antes que uma denúncia moral da piora das condições de vida dos trabalhadores, esta última muito comum – e por boas razões – na sociologia do trabalho brasileira. Trata-se, certamente, de duas perspectivas críticas, mas o intuito de Bernard é ir além de uma denúncia dos resultados, é investigar os meios dos quais a gerência empresarial se vale para aumentar o engajamento, a produtividade e o consentimento dos trabalhadores. A autora consegue mostrar como as “margens” desreguladas da relação entre capital e trabalho estão presentes no interior de vínculos de trabalho que poderiam ser considerados “privilegiados” (como o dos bancários e dos vendedores), reforçando o seu argumento de que haveria um mesmo “espírito” atomizador e meritocrático informando a organização da remuneração nos grupos mais diferentes entre si: o capitalismo contemporâneo seria, na sua própria dinâmica essencial, precarizador do trabalho e das condições de vida dos trabalhadores.

Por isso, a escolha dos dispositivos de remuneração de cada grupo de trabalhador se revela uma entrada promissora, curiosamente pouco pesquisada em sociologia, talvez por soar “gerencial” demais. A premissa de que os diferentes modos de remuneração possuem impacto diferencial na maneira como os trabalhadores agem e interpretam o seu cotidiano de trabalho nos parece fundamentalmente correta, e passível de ser explorada com proveito por futuros trabalhos.

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    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 2
    Segundo a autora, cerca de 90% dos trabalhadores franceses são assalariados formais e, dentre esses, a franca maioria seria composta de contratados por tempo indeterminado (“CDI” – contrat à durée indétermiée, em francês) (Bernard, 20204 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris: Presses Universitaires de France, 2020., p. 8).
  • 3
    Há uma peculiaridade especificamente francesa em termos de hierarquia de status profissional. Naquele país há a figura do cadre (“gerente” ou “executivo”, em inexata tradução livre), que representa o conjunto de trabalhadores fortemente distintos dos trabalhadores do chão de loja quanto ao status, geralmente com funções de gerência ou direção. Em todo caso, uma categoria frequentemente diplomada, com perspectiva de ter uma “carreira” e um padrão de consumo mais elevado. Para uma reconstrução histórica dessa categoria, ver Boltanski (1984)5 BOLTANSKI, Luc. How a social group objectified itself: “Cadres” in France 1936-45. Social Science Information, v. 23, n. 3, p.469-491, 1984..
  • 4
    Para uma investigação acerca do mesmo tema, mas no contexto brasileiro, ver Magaldi (2022)14 MAGALDI, Tiago. Remuneração variável e racionalidade neoliberal no chão-de-loja: o “fazer salário” dos vendedores comissionistas. In: TRÓPIA, Patrícia V.; MAGALDI, Tiago (org.). Sociologia do trabalho no comércio. 1ª ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022, v. 1, p. 33-50..
  • 5
    A taxa de formalização dos empregos no Brasil, grosso modo, passou por dois picos desde o surgimento da CLT: atingiu cerca de 60% em meados dos anos 1970 – taxa esta que, desde então, “se mostrou um teto para as relações de trabalho reguladas pelo Estado” (Cardoso, 20139 CARDOSO, Adalberto. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013., p. 75) – e chegou a 67,5% em 2012 (Barbosa Filho; Moura, 20152 BARBOSA FILHO, Fernando de H.; MOURA, Rodrigo Leandro de. Evolução recente da informalidade do emprego no Brasil: uma análise segundo as características da oferta de trabalho e o setor. Pesquisa e planejamento econômico, v. 45, n.1, p. 101-123, 2015.). Atualmente a taxa de informalidade está em 41,1% da população ocupada, cerca de 37 milhões de trabalhadores (IBGE, 202113 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 13,2% e taxa de subutilização é de 27,4% no trimestre encerrado em agosto. Agência de Notícias, 2021. Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/31990-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-13-2-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-27-4-no-trimestre-encerrado-em-agosto>. Acesso em 23 de novembro de 2021.
    https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ag...
    ). Para pesquisas recentíssimas sobre o tema do trabalho informal, ver Rangel (2019)15 RANGEL, Felipe Martins. A empresarização do comércio popular em São Paulo: trabalho, empreendedorismo e formalização excludente. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2019. e Araújo Filho (2021)1ARAÚJO FILHO, Tarcísio Perdigão. Viver na tora: trabalho ambulante e estratégias de vida nas encruzilhadas da gestão contemporânea do comércio popular. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021..
  • 6
    Para um tratamento brasileiro cristalino sobre a sociologia pragmatista francesa, ver Correa e Dias (2016)11 CORREA, Diogo S.; DIAS, Rodrigo de C. Crítica e os momentos críticos: “De la justification” e a guinada pragmática na sociologia francesa. Mana, v. 22, n. 1, p. 67-99, 2016.; para uma apreciação francesa panorâmica da mesma corrente, ver Barthe et al. (2016)3 BARTHE, Yannick et al. Sociologia pragmática: guia do usuário. Sociologias, v. 18, nº 41, p. 84-129, 2016. https://doi.org/10.1590/15174522-018004104
    https://doi.org/10.1590/15174522-0180041...
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  • 7
    Conceito longamente desenvolvido por Boltanski e Thévénot (2006)8 BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. On justification: economies of worth. New Jersey: Princeton University Press, 2006. e que pode ser definido, grosso modo, como uma ordem normativa que enquadra a maneira como os indivíduos percebem e avaliam os seres e as situações do mundo em que vivem, sendo a referência dos acordos e desacordos existentes acerca de determinada distribuição de pessoas e bens; nesse sentido, em cada cité está embutido um padrão de justiça.
  • 8
    O autor propõe sacrificar o poder autoconferido pelos sociólogos de apontar a realidade do mundo e as ilusões dos atores (neste caso, os trabalhadores) para levar a sério suas interpretações e juízos de valor, realizando antes uma sociologia da crítica do que uma sociologia crítica. Para um desenvolvimento deste tema, ver Boltanski (2012, particularmente caps. 3 e 4)6 BOLTANSKI, Luc. Love and justice as competences: three essays on the sociology of action. Cambridge: Polity Press, 2012..

Referencias

  • 1
    ARAÚJO FILHO, Tarcísio Perdigão. Viver na tora: trabalho ambulante e estratégias de vida nas encruzilhadas da gestão contemporânea do comércio popular. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021.
  • 2
    BARBOSA FILHO, Fernando de H.; MOURA, Rodrigo Leandro de. Evolução recente da informalidade do emprego no Brasil: uma análise segundo as características da oferta de trabalho e o setor. Pesquisa e planejamento econômico, v. 45, n.1, p. 101-123, 2015.
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    BARTHE, Yannick et al Sociologia pragmática: guia do usuário. Sociologias, v. 18, nº 41, p. 84-129, 2016. https://doi.org/10.1590/15174522-018004104
    » https://doi.org/10.1590/15174522-018004104
  • 4
    BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat Paris: Presses Universitaires de France, 2020.
  • 5
    BOLTANSKI, Luc. How a social group objectified itself: “Cadres” in France 1936-45. Social Science Information, v. 23, n. 3, p.469-491, 1984.
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    BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. On justification: economies of worth. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
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    CARDOSO, Adalberto. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
  • 10
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  • 11
    CORREA, Diogo S.; DIAS, Rodrigo de C. Crítica e os momentos críticos: “De la justification” e a guinada pragmática na sociologia francesa. Mana, v. 22, n. 1, p. 67-99, 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2021
  • Aceito
    29 Mar 2022
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