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Derrubar para edificar: presenças e ausências raciais e de gênero no Museu de Arte Contemporânea do Ceará

Tearing down to build: Racial and gender presences and absences in the Museu de Arte Contemporânea do Ceará

Resumo

Compreendendo os museus como espaços de preservação, divulgação e construção da memória, o acervo do Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC/CE) foi tomado para análise. O objetivo da pesquisa era entender quem eram os(as/es) artistas cujas produções estéticas compunham o acervo da instituição em termos raciais e de gênero. A pesquisa entrecruzou, então, a sociologia da arte com a sociologia das relações étnico-raciais e a sociologia do gênero, com especial enfoque nas teorias feministas negras, tendo como questão de trabalho, portanto, a pergunta: qual o papel da racialidade e do gênero no processo de legitimação de artistas no campo da arte contemporânea brasileira? Este artigo descreve o processo de pesquisa e seus resultados (que incluem uma exposição realizada no MAC/CE), apresentando as ausências e presenças no acervo em questão. Apesar do senso comum tomar o universo das artes visuais como um espaço de liberdade, cujas regras seriam menos rígidas e discriminatórias, a pesquisa, que contou também com a aplicação de questionário com artistas do acervo, indica que os padrões estabelecidos na sociedade envolvente também se fazem presentes no mundo da arte.

Palavras-chave
arte contemporânea; gênero; racialidade; legitimação; Brasil

Abstract

Understanding museums as spaces for the preservation, dissemination and construction of memory, this study analyzed the collection of the Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC/CE) aiming at understanding who were the artists whose aesthetic productions made up the institution's collection in racial and gender terms. The research then intertwined sociology of art with sociology of ethnic-racial relations and sociology of gender, with a special focus on black feminist theories, for the purpose of answering the question: what is the role of raciality and gender in the process of legitimizing artists in the field of Brazilian contemporary art? This article describes the research process and its results (which include an exhibition held at MAC/CE), presenting the absences and presences in the collection in question. Despite common sense taking the universe of visual arts as a space of freedom, whose rules would be less rigid and discriminatory, the research, which also included the application of a questionnaire with artists that took part in the collection, indicates that the standards established in the surrounding society are also made present in the art world.

Keywords
contemporary art; gender; raciality; legitimation; Brazil

Introdução

A partir de uma pesquisa de pós-doutorado, cujo objetivo era compreender os processos de legitimação de artistas negros(as/es) na arte contemporânea brasileira, foi desenvolvido um subprojeto de iniciação científica iniciado em agosto de 2019. Neste subprojeto, visando o mesmo objetivo – o de entender como a racialidade opera no processo de legitimação de artistas visuais – o acervo do Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE) se tornou foco da investigação.

Figura 1
Derrubar para edificar, 2021. Trabalho do coletivo Terroristas del Amor presente na exposição Quilombo Cearense, realizada no Museu de Arte Contemporânea do Ceará

A presença ou ausência de artistas negros(as/es) no referido acervo foi colocada em foco, pois, se museus são espaços legitimados por excelência, em que são salvaguardados bens artísticos e culturais compreendidos como dignos de reflexão e fruição, cabe saber quais memórias têm sido salvaguardadas e promovidas pela instituição em questão. Ou seja, apesar das narrativas correntes de que o mundo da arte é um espaço de liberdade, no qual o talento ou o dom seriam suficientes para a consagração de artistas, pesquisas sobre o universo da arte a partir da sociologia, ainda que seguindo caminhos teóricos distintos,1 1 Por exemplo, Howard Becker (2008), Nathalie Heinich (2014), Norbert Elias (1995), Pierre Bourdieu (1996) e Vera Zolberg (2006). têm comprovado que há regras regendo as condutas de atores e atrizes sociais da arte, que as fazem e refazem cotidianamente. Nesse sentido, estruturam o universo da arte em si, difundindo saberes e legitimando artistas, linguagens, obras (ou ações no caso das performances, por exemplo) e demais profissionais da arte.

É no rastro da sociologia da arte que a investigação realizada no MAC-CE seguiu, compreendendo, portanto, que as noções de talento e dom, que regeriam a legitimação de artistas, são construções sociais, informadas pela sociedade envolvente, cujas estruturas têm forte presença de um viés racista (Gonzalez, 20209 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.; Nascimento, 197824 NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., 198025 NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.). Sendo assim, buscou-se entender se este mesmo padrão racista que rege as relações na sociedade brasileira figuraria no universo da arte contemporânea. Desse modo, o subprojeto foi conduzido a partir do entrecruzamento da sociologia da arte com a sociologia das relações étnico-raciais e do gênero. No entanto, cabe dizer que, diferindo do projeto principal que tinha por foco artistas negros(as/es), o subprojeto desenvolvido no MAC-CE focalizou pessoas não brancas de uma forma geral, a saber, pessoas indígenas, pardas,2 2 Neste artigo utilizo as categorias negros(as/es) e pardos(as/es). Há, todavia, a necessidade de mencionar que historicamente o movimento negro brasileiro reúne as categorias pretos e pardos sob o termo negro. Porém, aqui, quero demarcar a autoclassificação recebida por meio das respostas dos(as/es) interlocutores(as/us) da pesquisa. Para um debate acerca das classificações raciais no Brasil, ver, por exemplo, Munanga, 2006. asiáticas e todas aquelas que se enquadrariam em racialidades diferentes daquela tomada como a mais culturalmente avançada desde tempos da colonização, a branca.

Destarte, este artigo traz os resultados obtidos na pesquisa conduzida entre 2019 e 2022. Quem são, afinal, os(as/es) artistas presentes no acervo de uma das principais instituições artísticas do estado do Ceará? Para responder a esta pergunta, o caminho metodológico da pesquisa se dividiu em seis etapas em que foram aplicados diferentes métodos, a saber: 1) ao chegar no museu, para entender o perfil da instituição, foi realizado um levantamento acerca da história das exposições ali realizadas desde sua fundação em 1999, o que se deu porque, naquele momento, o acervo se encontrava em fase de reorganização, não podendo ser visitado. O levantamento da história das exposições do museu contribuiu para o mapeamento preliminar do rol de artistas do acervo, por meio de documentos de divulgação das ações do museu guardados no seu acervo documental que, à época, podia ser visitado; 2) já em 2020, com a pandemia de Covid-19 em curso, o acervo seguiu fechado, sendo um período que coincidiu com a mudança de curadoria da instituição, saindo o curador Bitu Cassundé e entrando Cecília Bedê. Após alguns meses da entrada da curadora, logramos obter uma lista completa com os nomes de artistas com trabalhos no acervo em questão, complementando, corrigindo e confirmando o que obtivemos na etapa anterior de levantamento; 3) com a referida lista de artistas, que contava com 269 nomes, iniciamos a obtenção de seus contatos. O museu não tinha os contatos de todas essas pessoas e parte dos que tinha estava desatualizada. Foi preciso, então, que buscássemos online por sites de galerias e de artistas, bem como em redes sociais (especialmente, Facebook e Instagram) esses contatos. O objetivo era contatar cada pessoa da lista com a finalidade de aplicar um questionário que continha um total de 19 perguntas, desde as fechadas, em que cabiam respostas curtas acerca de suas idades, escolaridades, identidades raciais e de gênero, até perguntas abertas em que as pessoas respondentes poderiam se aprofundar no que nos diziam sobre, por exemplo, a importância de seus trabalhos comporem o acervo de um museu; 4) após oito meses de buscas e tentativas de obtermos retornos, não logramos encontrar o contato de 45 artistas, restando-nos 224 artistas; no entanto, 24 já haviam falecido. Sendo assim, buscamos e conseguimos os contatos de 200 artistas, mas obtivemos o retorno de apenas 573 3 Efetivamente, conseguimos o retorno de 58 artistas, porém, uma dessas artistas era homônima de outra que, de fato, tinha trabalhos no acervo e desta não logramos obter o contato. que responderam ao nosso questionário, ou seja, 21,19% do grupo de artistas cujos trabalhos constam no acervo do MAC-CE; 5) através, em especial, da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional4 4 Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 3 mar. 2022. buscamos, em paralelo à aplicação do questionário, informações acerca dos(as/es) artistas que haviam falecido a fim de saber como se definiam em termos raciais e de gênero; e, 6) a partir das respostas recebidas por meio do questionário foi iniciado o processo de análise do material levantado, a qual será aqui explicitada.

Além dessas etapas, cabe dizer que, com esses levantamentos, a convite da curadora do museu, realizamos a exposição Quilombo Cearense, em cartaz no MAC-CE entre dezembro de 2021 e abril de 2022, servindo como experiência de divulgação científica de uma pesquisa realizada e financiada no âmbito de uma universidade pública.5 5 Disponível em: https://www.secult.ce.gov.br/2021/12/21/museu-de-arte-contemporanea-do-ceara-abre-duas-mostras-gratuitas-nesta-quarta-feira-22/. Acesso em 10 mar. 2023. Este fato merece destaque, creio, já que nos anos de governo de Jair Bolsonaro vimos o aumento dos ataques às universidades incluindo cortes de bolsas e redução do financiamento.6 6 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/04/22/bolsas-de-pesquisa-educacao-cnpq-capes-governo-bolsonaro-dilma-temer.htm. Acesso em 14 mar. 2023.

Voltando aos objetivos deste artigo, é importante dizer que, de acordo com as hipóteses da pesquisa, a racialidade e, também, o gênero têm um papel no processo de legitimação de artistas no campo da arte contemporânea brasileira. Sendo assim, Derrubar para edificar, que é o título de um dos trabalhos do coletivo Terroristas del Amor, presente na exposição Quilombo Cearense, parece apropriado para nomear também este texto. Esta frase, pintada na parede do museu por um coletivo formado por duas mulheres negras, resume, como se tornará mais nítido nas páginas a seguir, as demandas feitas por artistas negros(as/es) no campo da arte contemporânea brasileira. Isto porque tais artistas têm buscado alterar as regras de legitimação e circulação do universo da arte nacional, partindo justamente do entendimento de que, na construção do país como nação, não apenas houve roubo, sequestro e assassínio, mas também um prolongado processo de apagamento e desvalorização do trabalho de pessoas negras e não brancas, em geral. Um processo que Abdias Nascimento (1980)25 NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. denominou de menticídio, conceito que diz respeito ao assassínio dos aspectos culturais das pessoas negras (e aqui amplio o entendimento a outras racialidades não brancas). Este assassinato, de acordo com os argumentos de Nascimento, foi conduzido por meio da desvalorização, criminalização, apagamento e exotização de tudo aquilo que era produzido por pessoas negras e, creio, não brancas em geral. Comumente fora dos livros oficiais ou de maior circulação de história da arte, os trabalhos estéticos produzidos por pessoas negras, indígenas e pardas passou a ocupar outro lugar, por vezes esteticamente valorizado, mas não no mesmo patamar daqueles de artistas brancos(as/ques), cuja valorização garantiu suas legitimações em maior número. Legitimação esta que garante a sua entrada em coleções públicas e privadas, além de livros, bem como que seus trabalhos sejam objeto de estudo em cursos livres e acadêmicos.

É fundamental aqui o entendimento de que os museus foram constituídos, em seu sentido moderno, em acordo com as regras que incluíam o modelo branco europeu de sociedade como o padrão a ser seguido. No caso brasileiro, por exemplo, sua implementação se dá a partir de museus etnográficos (Schwarcz, 199328 SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças – Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.) que, na virada do século XIX para o XX, contribuíram para criar a escala racial a partir de teorias evolucionistas que tinham nas pessoas negras e indígenas a representação de povos que seriam menos civilizados. Museus, nesse sentido, não apenas preservam, como escolhem quais memórias devem ser preservadas, bem como quais memórias devem ser construídas. E, no histórico de constituições dos museus, como mencionado, vemos sua atuação constituindo como válidas as memórias branco-europeias e, por seu turno, como exóticas e menos válidas, as memórias das populações negras e indígenas, exotizadas naqueles primeiros museus etnográficos construídos no país. Esta compreensão do papel dos museus de outrora precisa ser levada em consideração a fim de entendermos os padrões que regiam e, talvez, ainda sigam em curso nas instituições museológicas, mesmo museus sem caráter etnográfico. Será que, com base na racialidade, os museus de arte contemporânea mantêm padrões desiguais para a legitimação de artistas?

Para trazer, então, as metodologias, os desdobramentos e resultados da pesquisa, este artigo se divide em quatro partes além desta introdução. Na primeira parte, serão apresentadas as regras do universo da arte contemporânea no que diz respeito ao processo de legitimação de artistas, entrecruzadas com a história do apagamento e da desvalorização da produção de artistas não brancos, no Brasil. Dessa forma, são apresentados os caminhos metodológicos da pesquisa, que coloca em foco a questão racial no campo da arte. Na sequência, o perfil de parte do grupo de artistas com trabalhos no MAC-CE será esmiuçado para que seja possível analisá-lo de acordo com o que será explicitado no primeiro item. Já na terceira parte, serão apresentados alguns retornos recebidos às perguntas abertas do formulário, permitindo a compreensão do que pensa parte dos(as/es) artistas com trabalhos no museu sobre a questão racial, o universo da arte e seus processos de legitimação. Por fim, na quarta parte serão reunidos os debates estabelecidos à guisa de conclusão e reflexão acerca dos caminhos para a sociologia da arte que vem sendo desenvolvida no país e, também, para as políticas públicas da arte no que diz respeito a artistas negros(as/es), indígenas, pardos(as/es) e não brancos(as/ques) de forma geral.

Arte contemporânea, legitimação e colonialidade

Há quem acredite que a Arte existe por pura expressão do ser individual que, sendo criativo em essência, teria um dom especial capaz de traduzir as belezas e as mazelas do mundo. No entanto, a sociologia da arte feita no Brasil e ao redor do globo tem comprovado que são as ações entre indivíduos que formam os diferentes universos da arte; ações em interação que formam e mantêm a arte, os(as/es) artistas e todo o universo de sustentação das diferentes linguagens artísticas. Ser artista de destaque, como comprovou Norbert Elias (1995)7 ELIAS, Norbert. Mozart – Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. em seu trabalho postumamente publicado sobre Wolfgang Amadeus Mozart, nada tem a ver com dom inato, mas sim com processos que se relacionam com configurações sociais que contam com indivíduos e instituições conectados e em interação. Pode-se, também, rememorar o trabalho de Pierre Bourdieu (1996)4 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., quando, pensando acerca do campo da arte, observa que apesar de ser um campo antieconômico, no sentido das regras que regem o campo puramente econômico, possui uma economia própria, com indivíduos e instituições conectados, em interação e lutando para a construção de suas carreiras.

Agora, se pensarmos no legado teórico de Howard Becker (2008)1BECKER, Howard S. Art worlds. Berkeley: University of California Press, 2008 [1982]., também teremos uma reflexão que demonstra as conexões entre indivíduos e destes com as instituições, o que contribui para a formação dos chamados mundos da arte, capazes de estabelecer redes de cooperação e fomentar convenções capazes de construir e manter o funcionamento da arte. Estes são apenas três dos principais autores frequentemente mobilizados quando o assunto é o universo da Arte, autores que, mesmo com suas distinções teóricas (que não serão aqui pormenorizadas para não fugirmos ao foco do texto), demonstram que a Arte se faz e é feita por indivíduos conectados, fomentando regras para a compreensão do que seja a Arte e para a conduta de seus profissionais. O legado desses autores impulsiona a sociologia da arte que, afastando-se do senso comum que difunde o entendimento de que a Arte se faz por meio de um dom divino ou uma genialidade inata, investiga justamente as interações entre indivíduos que formam os diferentes universos artísticos, com suas demandas profissionais e instituições, explicitando as conexões entre indivíduos e entre indivíduos e instituições, além de desvelar os regramentos que conduzem as condutas que cotidianamente constroem os universos artísticos.

O foco da pesquisa aqui apresentada, incide sobre o universo das artes visuais, artistas e instituições. É importante frisar, antes de seguir, que de um universo das artes ao outro as regras podem diferir, afinal, a realidade no mundo da música não é exatamente a mesma do mundo das artes visuais, por exemplo. Nesse sentido, os debates aqui estabelecidos focalizam os processos de legitimação nas artes visuais com foco na arte contemporânea brasileira. A questão da legitimação no universo da arte vem sendo foco de minhas investigações desde a graduação (Marcondes, 201119 MARCONDES, Guilherme. Autoridade e discurso: uma análise da trajetória de Mário Pedrosa. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, v. 9, n. 1, p. 62-79, 2011.), passando pelo mestrado (Marcondes, 201418 MARCONDES, Guilherme. Arte, Crítica e Curadoria: Diálogos sobre Autoridade e Legitimidade. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.) e o doutorado (Marcondes, 201816 MARCONDES, Guilherme. Arte e consagração: os jovens artistas da arte contemporânea. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018., 202115 MARCONDES, Guilherme. Procuram-se artistas: aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.), cabendo aqui definir, portanto, o que compreendo como processos de legitimação próprios da arte contemporânea brasileira, para após isso refletirmos sobre a colonialidade e seus efeitos.

Legitimação é um tema caro à sociologia, sendo referência central os escritos de Max Weber35 WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1999. (Vol. 1). sobre o tema no livro Economia e Sociedade (1999), que permitem compreender que a legitimação social tem conexões importantes com as questões da autoridade e da dominação. Por conseguinte, a legitimação é relativa à autorização social que possibilita a um indivíduo, no caso do universo das artes visuais, ser compreendido como artista cuja produção passará a ser entendida como artisticamente válida, podendo ingressar em coleções públicas e privadas, ser exibida em exposições individuais ou coletivas, integrar livros de arte, didáticos, de crítica ou mesmo relativos a pesquisas acadêmicas dos mais diferentes níveis. Há, destarte, nesse processo de legitimação, a concessão de um poder social que é compartilhado pelos indivíduos e instituições que conformam o universo da arte. Alguém é legitimado porque outros agentes legitimadores, indivíduos e instituições, autorizaram essa pessoa ao exercício da Arte e, desse modo, tal indivíduo passa a circular na esfera da arte, a falar pela Arte e, com suas ações, definir o que será a Arte que deve ser objeto de reflexão e fruição. Ocorre, assim, uma partilha de saberes, práticas, regras e obrigatoriedades, além de um conjunto de regras que deverão ser seguidas para que sua produção seja compreendida como artisticamente válida, com valorização de seu nome no mercado de arte, garantindo a sua circulação, sustento e, eventual, consagração.

Venho, então, investigando quais são essas regras de legitimação do universo da arte e, em pesquisa anterior (Marcondes, 201816 MARCONDES, Guilherme. Arte e consagração: os jovens artistas da arte contemporânea. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018., 2021) com foco nos processos de legitimação de jovens artistas foi interessante perceber como tais artistas eram essenciais para a estruturação da esfera da arte contemporânea, por haver o que denominei de interesse institucional pela novidade. Ou seja, a constante necessidade de renovação no universo da arte, seja de artistas, obras, proposições e linguagens. Além disso, pude constatar que a formação de tais artistas em muito dependia da universidade, bem como foi possível notar as regras de comportamento que incluíam não falar sobre valores econômicos, performando as ideias de desinteresse por bens econômicos e de amor pela arte, e a necessidade de circularem em editais e serem aprovados(as/es) por júris de seleção, que validavam suas produções como artisticamente relevantes. Nesse sentido, compreendo que existem regras, por vezes implícitas, que regem as condutas na esfera da arte, as quais, sendo seguidas, podem garantir a pavimentação de uma carreira artística com destaque.

Com a pesquisa anterior (Marcondes, 201816 MARCONDES, Guilherme. Arte e consagração: os jovens artistas da arte contemporânea. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018., 202115 MARCONDES, Guilherme. Procuram-se artistas: aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.), pude constatar, ainda, que o gênero tem um papel no processo de legitimação na esfera das artes visuais, e não são poucas as autoras que vêm desvelando como as regras da sociedade envolvente, estruturadas em fortes bases machistas, retiraram as mulheres dos espaços de poder da arte, bem como colaboram com a elaboração de construções pejorativas e violentas contra mulheres (Nochlin, 197326 NOCHLIN, Linda. Why there have been no great women artists? Art and sexual politics. Nova York: Macmilan Publishing Co, 1973.; Simioni, 200231 SIMIONI, Ana Paula C. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 50, p.143-159, 2002.; Mayayo, 200320 MAYAYO, Patricia. En busca de la Mujer Artista. In: MAYAYO, P. Historias de mujeres, historias del arte. Madri: Cátedra, 2003.; Sofio, 201832 SOFIO, Séverine. Como ter sucesso nas artes sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 71, p. 28-50, 2018.; Gomes, 20198 GOMES, Mariana S. Dos museus dos descobrimentos às exposições do Império: o corpo colonial em Portugal. Revista Estudos Feministas, v. 27, n. 3, 2019.). Uma situação que parece vir sendo alterada ao longo das décadas (Marcondes, 202017 MARCONDES, Guilherme. Arte contemporânea e legitimação: o caso das jovens artistas. Cadernos Pagu, n. 60, e206012, 2020.), muito em virtude, creio, das ações feministas que têm questionado as regras da arte, chamando atenção para a desigualdade na legitimação de artistas homens e mulheres, como, por exemplo, as ações do coletivo Guerrilla Girls. Partindo desses entendimentos, passei a questionar se a racialidade, como o gênero, num país como o Brasil, teria um papel no processo de legitimação de artistas no universo da arte contemporânea.

Sendo construídas a partir do processo de colonização do século XVI, as regras que regem a sociedade brasileira seguem parecendo embebidas em um viés racista que valoriza uma única racialidade, a branca, como argumentado por Abdias Nascimento (1980)25 NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. através de seu conceito de menticídio, acima referido. O que se torna presente também quando, quatro décadas depois do lançamento do livro de Nascimento, vemos que, por exemplo, 705 mil homens brancos têm renda maior que todas as mulheres negras no país,7 7 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/12/705-mil-homens-brancos-tem-renda-maior-que-a-de-todas-as-mulheres-negras.shtml. Acesso em 10 mar. 2023. ou ainda quando vemos que os movimentos negros brasileiros, cuja luta logrou a criação da Fundação Palmares para valorização da cultura negra, chegaram a ser tratados, em anos recentes, por seu antigo dirigente como “escória maldita”.8 8 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/06/03/sergio-camargo-chama-movimento-negro-de-escoria-maldita.htm. Acesso em 10 mar. 2023. Assim, analisando o universo da arte contemporânea e seus processos de legitimação, cabe a pergunta: seria o racismo também uma das regras que estruturam as ações legitimadoras do universo das artes visuais?

Aqui é fundamental, então, fazer referência ao conceito de colonialidade. Conforme Aníbal Quijano (2009)27 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. o processo de classificação racial/étnica na construção do mundo por meio da colonização resultou na colonialidade que, embora vinculada ao colonialismo, não tem igual significado, já que o colonialismo não teria necessariamente como resultado uma estruturação racista das relações. A colonialidade diz respeito à imposição de padrões coloniais na intersubjetividade de indivíduos a longo prazo, que estrutura relações desiguais por meio de princípios étnico/raciais, determinando formas hierárquicas de divisão do poder, do trabalho, do acesso ao sexo, seus recursos e produtos, além da produção de saber em sociedade (Quijano, 200927 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.). Tais classificações e hierarquizações baseadas na racialidade são responsáveis por tratamentos desiguais a indivíduos tomados como diferentes do padrão estabelecido como o topo da hierarquia. Sendo as pessoas brancas responsáveis pela colonização das terras hoje chamadas de Brasil, os padrões que classificam o que deveria ser esta sociedade foram fundados com base nos princípios que regiam a cultura branco europeia. Todos aqueles afastados do padrão branco europeu sofreram séculos de deslegitimação enquanto indivíduos, bem como seus modelos de vida, religiosidade, estética e política.

Em acréscimo a este debate sobre a colonialidade, é fundamental o entendimento acerca do papel do gênero nesse processo. Conforme Joan Scott (1988)29 SCOTT, Joan. Genre : une categorie utile d’analyse historique. Cahiers du GRIF, n. 37-38, p. 125-153, 1988., o conceito de gênero – categoria social imposta aos corpos sexuados – permite o entendimento de que a noção sexo não determina a sexualidade e que gênero dá conta de um sistema de relações que também pode incluir o sexo. Desse modo, é preciso adicionar ao debate aqui proposto as colocações de Maria Lugones (2020)14 LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: BUARQUE DE HOLLANDA, H. (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. sobre sistema colonial/moderno de gênero. A autora argentina investiga a intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade, questionando o modelo proposto por Quijano, acima apresentado, por compreender que seu modelo possuiria limitações no que diz respeito ao entendimento da categoria gênero por ser pautada ainda em um aspecto biológico; além disso, percebe limitações nos modelos propostos por feministas brancas, que pautariam uma categoria “mulher” padronizada na experiência de mulheres brancas burguesas ocidentais. Assim, para Lugones (2020)14 LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: BUARQUE DE HOLLANDA, H. (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020., o sistema colonial/moderno de gênero permite a compreensão dos efeitos da articulação entre sexo, gênero, raça e trabalho. O que permite, então, o entendimento de que estas construções sociais se dão em acordo com padrões coloniais que favorecem um único modelo de indivíduo, a saber: homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais.

Cabe, portanto, voltar ao conceito cunhado por Nascimento, que definiu o menticídio como um emaranhado de mecanismos que causam o linchamento social de afro-brasileiros (Nascimento, 198025 NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980., p. 25). O autor trata das violências de caráter racista vivenciadas pela população negra no país. Todavia, creio que seu conceito pode ser ampliado para a percepção de que tais ataques também foram vivenciados pelos povos indígenas e pessoas não brancas em geral, bem como por diferentes gêneros e sexualidades, como propuseram Scott (1988)29 SCOTT, Joan. Genre : une categorie utile d’analyse historique. Cahiers du GRIF, n. 37-38, p. 125-153, 1988. e Lugones (2020)14 LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: BUARQUE DE HOLLANDA, H. (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.. Se ser homem, branco, cisgênero e heterossexual seria o padrão, em termos físicos e simbólicos, tudo e todos aqueles que se distanciam deste modelo sofrem, de diferentes formas, as consequências da colonização e, por conseguinte, da colonialidade, a qual ainda segue em curso.

A partir das desigualdades que incidem sobre as populações negras, indígenas e pardas no país, nos últimos anos o universo das artes visuais tem presenciado o que podemos chamar de uma insurreição. Isto porque, entendendo que pessoas não brancas seguiam fora (em termos quantitativos) dos espaços legitimados de arte, seja como artistas, curadoras, arte educadoras e demais funções das artes, pessoas negras, indígenas e pardas vêm atuando para derrubar os padrões estabelecidos como artisticamente relevantes para artistas e demais profissionais das artes visuais. O que se dá, justamente, após a criação de lei que busca alterar o conteúdo ensinado em escolas e, consequentemente, em universidades,9 9 Com a implementação da lei 10.639 de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm bem como em virtude do maior ingresso de pessoas negras, indígenas e pardas nas universidades brasileiras,10 10 Disponível em: https://gife.org.br/apesar-do-aumento-de-pessoas-negras-nas-universidades-cenario-ainda-e-de-desigualdade/ já que em 2012, após anos de luta dos movimentos sociais, as cotas raciais11 11 Em virtude da lei 12.711 de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em 10 mar. 2023. se tornaram uma realidade que tem transformado a cara das universidades, mas também os diferentes mercados profissionais.

Pessoas negras, indígenas e pardas agora com alto grau de formação vêm, desse modo, mais massivamente atuando para alterar as regras que regem a estrutura da sociedade brasileira. Todavia, cabe demarcar que esta luta por transformação não é nova, basta que lembremos dos quilombos, por exemplo (Moura, 201422 MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014 [1959].). No entanto, presentemente, com maior número de pessoas negras, indígenas e pardas ocupando os bancos das universidades e obtendo diplomas pelas melhores instituições de ensino do país, o clamor por mudanças parece ter ganhado outros níveis. Um clamor que extrapola as redes sociais, espaço fundamental de sociabilidade contemporaneamente, atingindo diversas esferas do saber e de trabalho em múltiplas áreas. E com o universo da arte não é diferente, cada vez mais temos exposições que reúnem as produções de artistas negros(as/es), indígenas e pardos(as/es), a exemplo de Histórias Afro-Atlânticas, ocorrida em São Paulo, em 2018, ou Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea, também realizada em São Paulo, no ano de 2021.

Se nos séculos passados a presença não branca se deu nos museus apenas com fins etnográficos, como bem nos relata Lilia Schwarcz em O Espetáculo das Raças (1993), quando tais indivíduos eram tomados para fins de análise de suas diferenças sendo, assim, exotizados e, por conseguinte, diminuídos frente aos indivíduos brancos, detentores do poder em diversos níveis, atualmente, de forma insurgente, artistas, arte educadores(as/us), curadores(as/us) e demais profissionais da arte que são pessoas negras, indígenas, pardas e não brancas têm atuado para alterar esta realidade. O status de sujeito legítimo e autorizado a falar tem sido contestado, como nos ensina Grada Kilomba (2019)13 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. ao argumentar que este poder, em virtude da colonização, foi condensado em mãos brancas. Contudo, indivíduos de outras racialidades, até então tratados como objetos sem agência, vêm cada vez mais amplificando a contestação desse status passivo, buscando seu reconhecimento como sujeitos, com histórias, padrões culturais, religiosos, políticos, éticos e estéticos que merecem atenção e legitimação.

Com essas questões em mente, agora é possível seguir com os interesses deste artigo. No item a seguir serão apresentados os dados da pesquisa desenvolvida no Museu de Arte Contemporânea do Ceará.

Artistas do acervo do Museu de Arte Contemporânea do Ceará

Neste item são apresentadas, por meio de nove gráficos a seguir, as informações coletadas, em especial, a partir de um questionário respondido por 21,19% do conjunto de artistas com trabalhos no acervo do MAC-CE. Além desse levantamento, logramos também obter informações junto a dois artistas que, embora não tenham respondido ao questionário, forneceram informações sobre suas identidades raciais e de gênero por meio de conversa via Whatsapp. Nesta mesma sequência serão somadas informações acerca de 24 artistas falecidos(as/es), coletadas através de pesquisas em sites de busca e, especialmente, pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Os dados sobre artistas falecidos(as/es) e aqueles(as/us) que retornaram via aplicativo de mensagens se restringem ao gênero e à racialidade, por isso não estão somados nos primeiros gráficos, pois em muito se distinguem do que foi conseguido pelas respostas ao questionário da pesquisa. O levantamento geral, acerca das identidades raciais e de gênero de 30,86% do grupo de artistas com trabalhos no acervo em questão aparecem, portanto, nos gráficos 10 e 11.

Gráfico 1
Como se definiam em termos raciais os(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráfico 2
Como se definiam em termos de gênero os(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráfico 3
Faixa etária dos(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráfico 4
Escolaridade dos(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráficos 5 e 6
Regiões do mundo e países em que vivem os(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráficos 7 e 8
Região do Brasil e estado brasileiro em que vivem os(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráfico 9
Representação por galeria dos(as/es) artistas respondentes ao questionário da pesquisa
Gráfico 10
Identidade racial de 30,86% dos(as/es) artistas com trabalhos no acervo do MAC-CE
Gráfico 11
Identidade de gênero de 30,86% dos(as/es) artistas com trabalhos no acervo do MAC-CE

Para guiar a leitura desses dados é fundamental ter em mente as perguntas: de quem são as memórias salvaguardadas e tomadas como legítimas pelos museus em geral? Quem tem, então, o atributo de sujeito e o direito à memória na sociedade brasileira? Por conseguinte, quais memórias e produções estéticas são tidas como válidas e quem são seus produtores? Compreendendo as contestações de artistas e demais profissionais da arte, mencionadas acima, bem como tendo em mente as inúmeras exposições que vêm chamando atenção para a falta de artistas negros(as/es), indígenas e pardos(as/es) em acervos de museus, creio que a pesquisa aqui apresentada, apesar de ser específica sobre o acervo de uma instituição entre tantas no país, traz dados que podem inspirar investigações a serem conduzidas em outras instituições. Sendo assim, é possível que a realidade encontrada no acervo do MAC cearense seja a mesma de outros museus brasileiros. Afinal, o contexto de contestações mencionado acima tem indicado que historicamente pessoas negras, indígenas e pardas são, em geral, minoria nos acervos de instituições artísticas, visto que a própria história da arte nacional que circula em livros e manuais tem sucessivamente contribuído para a deslegitimação da produção negra, indígena e parda.12 12 No projeto A História da _rte foi feito um levantamento que comprova a quase ausência de referências a artistas negros e, especialmente, artistas negras nos livros mais utilizados em cursos de arte nas universidades brasileiras. Disponível em: https://files.cargocollective.com/c26505/AHistoriada_rte-finalPortugues.pdf. Acesso em 10 mar. 2023. Vejamos, agora, o que nos trazem os gráficos produzidos a partir dos questionários aplicados na pesquisa.

A partir das informações obtidas com o questionário aplicado na pesquisa, foi possível constatar o seguinte perfil de artistas: homens, brancos, entre os 40 e os 59 anos, com ensino superior completo, residentes na América do Sul, em especial, no Brasil, na região sudeste, no estado de São Paulo e com representação de seu trabalho por ao menos uma galeria. Estes dados não são distintos do que se esperava, sobretudo em virtude de pesquisa anterior em que pude constatar perfil similar de jovens artistas em busca de legitimação (Marcondes, 202115 MARCONDES, Guilherme. Procuram-se artistas: aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.).13 13 Excetuando a questão racial que não foi objeto de pesquisa em minha tese de doutorado, mas que vem sendo trabalhada presentemente em meu pós-doutoramento. Ademais, no caso de jovens artistas havia menos representação de seus trabalhos por galerias, afinal, suas carreiras ainda estavam sendo pavimentadas. Ser homem e branco, ao que indicam as pesquisas que venho realizando, parece ter importância quando o assunto é a legitimação no universo da arte contemporânea brasileira. Mas olhando os dados apresentados é interessante também perceber que, apesar de termos mais homens, o número de mulheres não é pequeno, mas quando cruzamos os dados entre a racialidade e o gênero contamos com três mulheres que se autodeclararam como negras, pardas ou, ainda, não brancas. Menor ainda é o recorte quando vemos que somente uma artista é uma pessoa trans.

Neste ponto é importante reunir a esses dados obtidos com o questionário, as informações sobre os(as/es) 24 artistas que já haviam falecido e os dois que retornaram por Whatsapp. Como dito, as informações sobre tais artistas são distintas daquelas conseguidas pelo questionário, visto que alguns artistas haviam falecido e outros dois somente responderam acerca de suas identidades raciais e de gênero. Um dos artistas que retornou por mensagem se definiu como um homem afrodescendente de ascendência também indígena e o outro como um homem pardo. Ademais, acerca daquelas pessoas falecidas, logramos, verificando a utilização dos pronomes para apresentar tais artistas em matérias de jornais, descobrir que 17 eram homens cisgênero e seis eram mulheres cisgênero, enquanto sobre uma das pessoas não encontramos notícias que nos permitissem compreender sua identidade de gênero. Sobre suas identidades raciais, por meio de fotografias e também notícias em jornais, especialmente textos de crítica de arte em que a racialidade e/ou nacionalidade das pessoas era mencionada, descobrimos que quinze eram pessoas brancas, uma era negra, uma era parda, uma era oriental e sobre seis não inferimos suas identidades raciais. Nesse sentido, agregando a esses dados aqueles obtidos por meio do questionário da pesquisa, conseguimos informações sobre as identidades raciais e de gênero de 83 pessoas, ou seja, 30,86% dos(as/es) artistas cujos trabalhos compõem o acervo do MAC-CE. É possível notar, assim, que apesar dessas informações, o perfil de artistas permanece o mesmo em termos raciais e de gênero, com uma maioria masculina, cisgênero e branca, como é possível ver nos gráficos 10 e 11.

Os gráficos 10 e 11 nos ajudam a perceber como se identificam/identificavam os(as/es) artistas com produções no acervo do MAC-CE e, assim, nos demonstram as discrepâncias em termos de gênero e racialidade. É possível dizer que mulheres artistas que são cisgênero (29 no total) são menos representadas no acervo em questão, porém mais destoante ainda é a representação de pessoas trans no acervo, que conta com uma mulher trans. Além disso, em termos raciais, se juntarmos todas as pessoas não brancas, somando, portanto, as autodeclaradas não brancas e inferidas/autodeclaradas como negras (8), pardas (7), não brancas (2) e asiática (1), vemos que o contingente de pessoas inferidas/autodeclaradas como brancas (54 no total) é quase o dobro que todas as demais. Além disso, em termos interseccionais, a questão dos apagamentos e silenciamentos se torna ainda mais evidente, visto que entre as aristas apenas uma se declarava como mulher negra, mais três como pardas e uma como asiática. Nesse sentido, vemos como as mulheres racializadas fora do espectro da brancura tinham ainda menos representação no acervo em questão. Destarte, retornando às perguntas realizadas no início deste item, fica nítido que há certa diversidade no acervo – afinal, encontramos pessoas de diferentes racialidades e identidades de gênero. Todavia, quantitativamente, olhando cada dado em relação, vemos que as memórias que vêm sendo salvaguardadas pertencem, em especial, àquelas produzidas por pessoas brancas e homens cisgênero.

O que pensam os(as/es) artistas sobre os processos de legitimação e a questão racial na arte nacional

Como mencionado anteriormente, o questionário aplicado na pesquisa ora apresentada contou com 19 perguntas, entre abertas e fechadas, sendo interessante trazer aqui uma compilação de respostas recebidas a uma das questões abertas que questionava: Refletindo acerca das questões étnico-raciais que contribuem para a formação do Brasil, gostaríamos de saber se você acredita que a atuação de um/a/e artista negro/a/e no circuito da arte contemporânea brasileira se distingue da atuação de artistas brancos/as/ques? Independentemente da afirmação, se positiva ou negativa, por favor, defina como se distinguem ou não essas atuações? Cabe, desse modo, vermos alguns dos retornos, os quais resumem as tensões presentes no universo da arte contemporânea brasileira quando o assunto é a questão racial.

Respondente 1 [autodeclarado como homem cisgênero e pardo, habitante da região nordeste do Brasil]:14 14 O questionário contava com uma pergunta sobre a divulgação do nome dos(as/es) respondentes, grande parte solicitou o sigilou ou utilização de pseudônimo, nesse sentido, manteremos aqui todos os nomes em segredo. Acho que a raça ou cor não mudam nada, o que vale é o trabalho.

Respondente 2 [autodeclarado como homem cisgênero e branco, habitante da região sudeste do Brasil]: A princípio não, arte é arte, não tem cor!

Respondente 3 [autodeclarada como mulher cisgênero e parda, habitante da região sul do país]: Sim, acho que as atuações se distinguem, assim como todas as profissões/atividades no Brasil são marcadas pelo racismo. As oportunidades não são as mesmas, ainda que sinta que no meio artístico exista menos preconceito, é clara a presença minoritária de artistas em eventos artísticos num país com uma população negra majoritária.

Respondente 4 [autodeclarado como homem cisgênero e não branco, habitante da região nordeste do Brasil]: Sim. Tudo começa como uma estrutura que promove acesso a pessoas brancas e dificulta o mesmo para pessoas negras. Quando comecei a trabalhar com arte, lá em 2004, houve uma movimentação no cenário das artes visuais em Fortaleza em razão da curta existência de uma faculdade de arte privada, de onde saíram artistas brancos da classe média fortalezense que se tornaram referência do que se produzia aqui. E a partir daquilo que eles acessavam a nível nacional, como exposições e residências, era nítida a participação quase que por completo de outros artistas brancos e de classe média. E, dessa forma, a estrutura se mantém, por isso a grande maioria dos artistas presentes em exposições, em acervos institucionais, representados por galerias, portanto, vivendo dignamente do seu trabalho, ainda é branca! Atualmente é possível perceber a inclusão de artistas negros no circuito, mas estes percorrem um caminho bem mais longo e árduo.

Respondente 5 [autodeclarada como travestigênere e parda, habitante da região nordeste do país]: Há sempre de se pensar nos diagramas de poder de forma interseccional que nossos contextos são atravessados. Falar de Brasil é evidenciar uma construção colonial de expropriação (em termos econômicos, jurídicos, políticos, epistêmicos) de pessoas racializadas (pretas, pardas, indígenas). Minha avaliação é que o campo de atuação entre pessoas brancas e racializadas é completamente assimétrico. O circuito da arte brasileira de difusão, produção e venda de arte é pautado a partir de práticas brancas, hétero e cisgêneros em que persiste um pensamento que hierarquiza, segrega e reduz a colaboração e participação de pessoas racializadas e pessoas gênero-sexo dissidentes em diversos debates. A distinção negativa que pontuo se dá no acesso a recursos financeiros para produzir, pesquisar e circular um trabalho de arte, pois é preciso ter condições e acessos e a racialidade atravessa diretamente um parâmetro de classe. Em termos de qualidade, argumento e uso dos saberes, a distinção do trabalho é, geralmente, positiva, assertiva e urgente. São muitos trabalhos de pessoas racializadas onde há uma importante revisão de pontos históricos, antropológicos, filosóficos, as contribuições se situam em diversas áreas do conhecimento. Acredito que para haver mudanças quantitativas e qualitativas desse contexto é preciso contratação de pessoas negras e indígenas em situações de decisão e com poderes orçamentários, ampliar bolsas e investimentos em formação e circulação, e promover nas esferas institucionais e culturais uma escuta participativa e uma atuação urgente a partir das necessidades de cada contexto que se inserem.

Respondente 6 [autodeclarada como mulher cisgênero e branca, habitante da região sudeste do Brasil]: No Brasil somos um povo miscigenado e é muito difícil fazer uma distinção racial nas artes pois acredito que o fazer artístico é livre. Temos, todos, origens diversas.

Ao ser formulado, o subprojeto de pesquisa focalizava somente a produção e processos de legitimação de artistas negros(as/es) com trabalhos no acervo do MAC-CE, mas no desenvolver da pesquisa foi nevrálgico reformular a investigação e abarcar outras racialidades que, sendo não brancas, mesmo que de distintos modos, sofrem com os processos de discriminação racial assentados em bases coloniais. Então, mesmo que a pergunta formulada no questionário gire em torno das pessoas negras, é possível perceber, especialmente a partir do retorno da respondente 5, que as diferenças incidem sobre todas aquelas pessoas racializadas fora do espectro da branquitude,15 15 O termo branquitude diz respeito ao lugar de poder identificado com o conjunto de valores, crenças e privilégios atribuídos às pessoas brancas que são identificadas com os colonizadores do globo. E, de acordo com Aparecida Bento, trata-se, portanto de “um conjunto de práticas culturais que são não nomeadas e não marcadas [...], um ponto de vista, um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e à sociedade” (Bento, 2022, p. 62). Além de Bento, cabe mencionar os trabalhos de Liv Sovik (2009) e bell hooks (2019) para o entendimento do que sejam a branquitude e a supremacia branca. como argumentei também no primeiro item deste texto. Dito isso, por meio dos seis retornos aqui trazidos, é possível perceber as tensões raciais no universo da arte e notar que elas não se diferem tanto daquelas que estão presentes no cotidiano da sociedade brasileira em diferentes searas, indo da negação dos efeitos do racismo à demarcação de sua existência e seus problemas causados a quem é racializado(a/e) fora da matriz branca.

De algumas das respostas acima, em especial a 6, é fundamental perceber o sucesso do mito da democracia racial brasileira. Entendido como um país cuja população é bastante miscigenada, vigora ainda hoje a ideia de que o Brasil seria uma espécie de paraíso racial, em virtude de tal miscigenação e da falta de movimentos de separação racial explícitos como o Apartheid ou as leis de Jim Crown. No entanto, autores como Abdias Nascimento (1978; 1980), Lélia Gonzalez (2020)9 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. e Virgínia Leone Bicudo (2010 [1945])3 BICUDO, Virgínia. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Organizado por Marcos Chor Maio. São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010 [1945]. há décadas demonstraram que as diferenças raciais no país têm uma articulação com as questões de classe, que geram desigualdades raciais, demarcando como ter a pele escura no Brasil significa ser alvo de violências de teor racial. Fato que implica na ocupação dos piores postos de emprego, na habitação de espaços precários, em ser vítima de mortes violentas, em sofrer com caracterizações pejorativas de si e mesmo ser apagado da história quando tratamos dos espaços legitimados de poder, como a esfera da arte.

Há, ainda, aquelas respostas, como a 1 e a 2, que não tratam de uma suposta democracia racial, mas que se voltam ao universo da arte onde reinariam outras regras, as quais diriam respeito ao amor pela arte, ao talento, à criatividade e ao dom. Nesta trilha, os conceitos cunhados na arte para legitimar artistas e suas produções, assentados em juízos de gosto de especialistas em arte, com seus critérios sobre beleza, profundidade, geometria e cores, fariam com que este universo quase sagrado da arte não fosse afetado por outras questões. Todavia, lembremos que juízos de gosto são profundamente subjetivos e dizem respeito também à posição ocupada no mundo social por seus criadores e divulgadores. Encarando, de fato, esta construção subjetiva, que se torna norma social a partir das interações no universo da arte, podemos perceber que, se grande parte daqueles profissionais legitimados e legitimadores da arte são pessoas brancas, cuja construção enquanto indivíduos no mundo passa pela ocupação de um lugar privilegiado em termos de poder, que as construções de gosto feitas por estes indivíduos nada terão de isenção. Reunido, formulando as regras da arte, este conjunto massivamente branco de pessoas pauta suas construções subjetivas em padrões a partir de si e da branquitude que lhes abarca.

Nesse sentido é que argumento que, embora um trabalho de arte seja arte, como dizem os respondentes 1 e 2, os critérios de gosto construídos para legitimar tais trabalhos passam por uma constituição coletiva que é pautada, em grande medida, pelos critérios de mundo de pessoas brancas, o que favorece outras pessoas brancas que atendem a estes critérios tomados como sagrados e isentos. Olhando para a história do Brasil, vemos que tais critérios apagaram e até mesmo sequestraram, assassinaram e depauperaram populações negras e indígenas, apagando sua importância na constituição do país enquanto nação ou colocando sua importância em um lugar secundário. Então, mesmo que arte seja arte, quem diz o que é arte segue sendo, em sua maioria, pessoas brancas que ocupam lugares de poder e definem os critérios do que deva ser entendido como arte, criando e difundindo juízos de gosto que não necessariamente são abertos a construções de mundo que não sejam pautadas nos pilares ontológicos e epistemológicos do mundo moderno ocidental, constituídos em favor da branquitude, como argumenta Denise Ferreira da Silva30 SILVA, Denise F. da. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2019. ao longo de seu livro A Dívida Impagável (2019).

Compreendendo, assim, que são as pessoas brancas que massivamente construíram e difundiram os critérios de gosto da arte, é interessante olhar mais de perto o retorno da respondente 3 que, embora demarque as desigualdades e diferenças no país quando o assunto é a questão racial, diz perceber que o universo da arte seria menos preconceituoso. Ora, preconceito é preconceito e possui efeitos. Não existe, creio, um preconceito que seja positivo. Sendo assim, seus efeitos são puramente negativos em prejuízo de quem os sofre. Se as pessoas brancas constituem a maioria daquelas que ocupam os espaços de poder no universo da arte e a respondente nota que há preconceitos na arte, os quais conferem oportunidades distintas para artistas racializados como brancos e para artistas racializados como negros (e aqui podemos incluir indígenas e pardos), é possível argumentar acerca de um favorecimento a pessoas brancas e suas narrativas quando o assunto é a legitimação de artistas na esfera da arte contemporânea.

Este mesmo entendimento aparece nas respostas conferidas pelo respondente 4 e a respondente 5, que trazem as desigualdades produzidas a partir do racismo no Brasil em sua compreensão de que no universo da arte, como na sociedade envolvente, a questão racial importa e não apenas pelo racismo simples e puramente, aquele desferido por meio de injúrias, mas também pelo acesso desigual a uma educação de qualidade e a renda que permita uma vida digna. Fatos estes que dificultam a circulação de pessoas racializadas em espaços de poder, como é o caso da esfera legitimada da arte contemporânea nacional. As respostas 5 e 6 advém de pessoas autodeclaradas como não branca e como parda e demarcam o desconforto e os problemas de circulação pelos espaços de arte em busca de suas legitimações, refletindo acerca das intersecções entre raça, classe e gênero, como o fazem inúmeras teóricas feministas negras e não brancas ao redor do mundo, como Angela Davis (2016)6 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., bell hooks (2019)12 HOOKS, bell. Olhares negros – raça e representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019., Françoise Vergès (2020)34 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., Lélia Gonzalez (2020)9 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., Patricia Hill Collins (2019)11 HILL COLLINS, Patricia. Pensamento feminista negro. Trad. Jamille Dias. São Paulo: Boitempo, 2019. e o coletivo Combahee River que, em 19775 COLETIVO COMBAHEE RIVER. Manifesto do Coletivo Combahee River. Tradução: Stefania Pereira e Letícia Simões Gomes. PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, v. 26, n. 1, p. 197-207, 2019 [1977]., dizia que as opressões multifacetadas e simultâneas com bases raciais, de gênero, classe e sexualidade (entre outros marcadores sociais de diferença) conferem posições desiguais aos indivíduos na sociedade. Tomando este entendimento, é possível retornar as respostas 5 e 6 e compreender que, no universo da arte, como na sociedade em geral, pertencer a grupos minoritários em termos de acesso ao poder confere lugares distintos também para artistas cuja racialidade, gênero e classe se distanciam daquelas marcas de quem detém o poder. Sendo os donos do poder, neste caso, aqueles que se aproximam do perfil que, como acima explicitado, é mais comum entre artistas legitimados com trabalhos no acervo do MAC-CE, ao menos entre o grupo de 30,86% de artistas que esta pesquisa conseguiu alcançar.

Cabe, assim, trazer o que dirá Achile Mbembe em Políticas da Inimizade (2020) ao se referir aos museus, construídos no processo de constituição da modernidade ocidental. Para o autor, os museus nem sempre foram espaços de acolhimento das muitas faces da humanidade, sendo também dispositivo de segregação (Mbembe, 202021 MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. São Paulo: N-1 Edições, 2020., p. 186). Destarte, em muito parece explicitar a compreensão de artistas que, sendo pessoas racializadas, vêm buscando desmantelar padrões considerados coloniais nos processos de circulação e legitimação no universo da arte brasileira. Efetivamente, ao que parece, em virtude de sua racialidade, os trabalhos produzidos por artistas que não sejam brancos(as/ques) ocupam lugares diferentes. Afinal, se os critérios de gosto que formulam as regras de legitimação da arte são pautados em padrões brancos e ocidentais de existência, como em tempos coloniais, o que se distancia de tais padrões parece ser lido e alocado abaixo em uma escala evolutivo-qualitativa. Com isto, os códigos de conduta e os mecanismos de legitimação na arte parecem diferenciar também racialmente seus(suas/sues) artistas, conferindo menos espaço para a arte produzida por pessoas racializadas fora da branquitude em espaços legitimados de arte como os museus que não sejam etnográficos, caso daqueles investigados por Schwarcz (1993)28 SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças – Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993..

Considerações finais

Resposta 7 [autodeclarada como travestigênere e parda, habitante da região nordeste do país]: Acredito que fazer parte de um acervo é produzir memória de uma arte cearense e averiguar através dos trabalhos um contexto de produção em um recorte de espaço tempo específico. Muitas pesquisas podem ser geradas a partir da lida com esses trabalhos. Fazer parte de um acervo é incentivar artistas a continuarem produzindo e fortalecer seus trabalhos dentro de um mercado de arte através da chancela institucional que um museu traz consigo.

Resposta 8 [autodeclarado como homem cisgênero e não branco, habitante da região sudeste do Brasil]: Estar num acervo público me faz pensar que minha obra vai de alguma forma dialogar com educação e cultura e atingir outras pessoas num sentido político, criativo e social. A esfera pública da arte pode e deve ser uma experiência transformadora e, portanto, volto para a palavra educação. Para um país que pariu um Paulo Freire, Arte e Educação são fundamentais para dar conta de um Brasil tão complexo, tão diverso e tão pouco representado. Desconstruir esses contos de fadas sociológicos de democracia racial e do Brasil ser esse paraíso de gentileza, é um começo.

Entre as perguntas realizadas no questionário da pesquisa aqui apresentada, uma questionava: Como você enxerga a importância para a sua carreira do fato de seu trabalho fazer parte de uma das coleções salvaguardadas pelo Museu de Arte Contemporânea do Ceará? Sendo as respostas 7 e 8, acima, conferidas por artistas que se autodeclaram como parda e não branco. Seus retornos voltam ao final deste artigo porque tratam da importância dos museus para a preservação da memória, a produção de debates e circulação de ideias não apenas circunscritas à arte, mas à sociedade de forma geral. Museus são espaços por excelência de exibição e circulação de saberes, de promoção de linguagens estéticas e legitimação de artistas. Nesse sentido, é fundamental questionar quais e de quem são as memórias que têm sido salvaguardadas, difundidas, legitimadas e, por conseguinte, construídas por estes que são considerados templos para a Arte.

Por carência de informações e falta de retorno, não foi possível abarcar, nesta pesquisa, todo o conjunto de 269 artistas cujos trabalhos compõem o acervo do Museu de Arte Contemporânea do Ceará. Entretanto, obtivemos informações acerca de 30,86% desse total de artistas presentes no acervo em questão, uma parcela que tem sua importância e contribui para o entendimento dos questionamentos levantados na pesquisa. Conforme explicitado, o perfil dos(as/es) 30,86% artistas diz respeito, em sua maioria, a homens, brancos, cisgênero e com altos graus de formação. Em termos de formação, foi possível notar que não há diferença entre homens e mulheres, nem entre pessoas brancas e não brancas, a maioria das pessoas em todos os espectros de gênero e racialidade possuía uma equivalência em termos formativos. Afinal, as universidades são um dos espaços de sustentação dos profissionais das artes visuais (Marcondes, 202115 MARCONDES, Guilherme. Procuram-se artistas: aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.). A diferença, de fato, também não diz respeito ao lugar em que habitavam tais artistas, a maioria residia na região sudeste do Brasil, especialmente em São Paulo. O que distingue efetivamente essas pessoas são as questões racial e de gênero, com mais pessoas brancas, masculinas e cisgênero tendo suas memórias e narrativas difundidas pela instituição, bem como tendo seus nomes inscritos na história da arte, se não nacional, ao menos cearense. Ademais, e este é o foco da pesquisa, os dados indicam que, da mesma forma que se dá com o gênero, a questão racial se mostra como um fator importante no processo de legitimação de artistas na seara da arte contemporânea.

Destarte, como o gênero, a racialidade importa no universo da arte quando o assunto é a legitimação de artistas. Logo, em uma sociedade como a brasileira, em que, teoricamente, reinaria uma democracia racial, especialmente quando se trata de um universo como o da Arte, que é compreendido como uma esfera de liberdade e isento de ou com pouco preconceito, é nevrálgico o entendimento de que tais argumentos são, igualmente, falaciosos. As falácias sobre a inexistência do racismo no Brasil e a de que o universo da arte é uma esfera da liberdade servem apenas ao encobrimento de violências sofridas por pessoas tratadas de modos desiguais e discriminatórios em virtude de sua racialidade, gênero, classe e outros marcadores sociais de diferença.

Mais pesquisas ainda precisam ser fomentadas e realizadas no campo da sociologia da arte entrecruzando a questão racial. Ao mesmo tempo, no campo da arte em si, apesar de cada vez mais haver artistas que são negros(as/es), pardos(as/es) e indígenas demarcando as desigualdades raciais na arte, é ainda necessário acompanhar o movimento nos próximos anos. Será que, de fato, as instituições de arte, como os museus, irão incorporar às suas coleções os trabalhos produzidos por pessoas fora do espectro branco da racialidade? Esta incorporação se dará por meio de aquisições, sendo compradas pelas instituições, ou entrarão nos acervos por meio de doações? Gerar vida digna a artistas não racializados como brancos será uma efetiva preocupação do universo da arte? O movimento observado nos últimos anos permanecerá em curso? Muitas são as perguntas e as respostas ainda precisam ser investigadas, mas, a julgar pelos movimentos que vêm sendo promovidos por artistas e demais profissionais das artes que são racializados como negros(as/es), pardos(as/es) e indígenas, as mudanças ainda estão no começo, sendo fundamental acompanhá-las a partir dos estudos sociológicos.

  • 1
    Por exemplo, Howard Becker (2008)1BECKER, Howard S. Art worlds. Berkeley: University of California Press, 2008 [1982]., Nathalie Heinich (2014)10 HEINICH, Nathalie. Práticas da arte contemporânea: uma abordagem pragmática a um novo paradigma artístico. Revista Sociologia & Antropologia, v. 4, n. 2, p. 373-390, 2014., Norbert Elias (1995)7 ELIAS, Norbert. Mozart – Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995., Pierre Bourdieu (1996)4 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. e Vera Zolberg (2006)36 ZOLBERG, Vera. Para uma Sociologia das Artes. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006..
  • 2
    Neste artigo utilizo as categorias negros(as/es) e pardos(as/es). Há, todavia, a necessidade de mencionar que historicamente o movimento negro brasileiro reúne as categorias pretos e pardos sob o termo negro. Porém, aqui, quero demarcar a autoclassificação recebida por meio das respostas dos(as/es) interlocutores(as/us) da pesquisa. Para um debate acerca das classificações raciais no Brasil, ver, por exemplo, Munanga, 200623 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006..
  • 3
    Efetivamente, conseguimos o retorno de 58 artistas, porém, uma dessas artistas era homônima de outra que, de fato, tinha trabalhos no acervo e desta não logramos obter o contato.
  • 4
    Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 3 mar. 2022.
  • 5
  • 6
  • 7
  • 8
  • 9
    Com a implementação da lei 10.639 de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
  • 10
  • 11
    Em virtude da lei 12.711 de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em 10 mar. 2023.
  • 12
    No projeto A História da _rte foi feito um levantamento que comprova a quase ausência de referências a artistas negros e, especialmente, artistas negras nos livros mais utilizados em cursos de arte nas universidades brasileiras. Disponível em: https://files.cargocollective.com/c26505/AHistoriada_rte-finalPortugues.pdf. Acesso em 10 mar. 2023.
  • 13
    Excetuando a questão racial que não foi objeto de pesquisa em minha tese de doutorado, mas que vem sendo trabalhada presentemente em meu pós-doutoramento. Ademais, no caso de jovens artistas havia menos representação de seus trabalhos por galerias, afinal, suas carreiras ainda estavam sendo pavimentadas.
  • 14
    O questionário contava com uma pergunta sobre a divulgação do nome dos(as/es) respondentes, grande parte solicitou o sigilou ou utilização de pseudônimo, nesse sentido, manteremos aqui todos os nomes em segredo.
  • 15
    O termo branquitude diz respeito ao lugar de poder identificado com o conjunto de valores, crenças e privilégios atribuídos às pessoas brancas que são identificadas com os colonizadores do globo. E, de acordo com Aparecida Bento, trata-se, portanto de “um conjunto de práticas culturais que são não nomeadas e não marcadas [...], um ponto de vista, um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e à sociedade” (Bento, 20222 BENTO, Aparecida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 62). Além de Bento, cabe mencionar os trabalhos de Liv Sovik (2009)33 SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. e bell hooks (2019)12 HOOKS, bell. Olhares negros – raça e representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019. para o entendimento do que sejam a branquitude e a supremacia branca.

Referências

  • 1
    BECKER, Howard S. Art worlds Berkeley: University of California Press, 2008 [1982].
  • 2
    BENTO, Aparecida. O pacto da branquitude São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • 3
    BICUDO, Virgínia. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo Organizado por Marcos Chor Maio. São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010 [1945].
  • 4
    BOURDIEU, Pierre. As regras da arte São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • 5
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  • 6
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  • 7
    ELIAS, Norbert. Mozart – Sociologia de um gênio Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
  • 8
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  • 9
    GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
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    HEINICH, Nathalie. Práticas da arte contemporânea: uma abordagem pragmática a um novo paradigma artístico. Revista Sociologia & Antropologia, v. 4, n. 2, p. 373-390, 2014.
  • 11
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  • 12
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  • 13
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  • 15
    MARCONDES, Guilherme. Procuram-se artistas: aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.
  • 16
    MARCONDES, Guilherme. Arte e consagração: os jovens artistas da arte contemporânea. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
  • 17
    MARCONDES, Guilherme. Arte contemporânea e legitimação: o caso das jovens artistas. Cadernos Pagu, n. 60, e206012, 2020.
  • 18
    MARCONDES, Guilherme. Arte, Crítica e Curadoria: Diálogos sobre Autoridade e Legitimidade Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
  • 19
    MARCONDES, Guilherme. Autoridade e discurso: uma análise da trajetória de Mário Pedrosa. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, v. 9, n. 1, p. 62-79, 2011.
  • 20
    MAYAYO, Patricia. En busca de la Mujer Artista. In: MAYAYO, P. Historias de mujeres, historias del arte Madri: Cátedra, 2003.
  • 21
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  • 30
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  • 32
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  • 36
    ZOLBERG, Vera. Para uma Sociologia das Artes São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jun 2023
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