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Toro Candil: tradição de uma fronteira ambivalente

Toro Candil: tradition of an ambivalent border

Toro Candil: la tradition d'une frontière ambivalente

Toro Candil: tradición de una frontera ambivalente

Resumo:

O Toro Candil,objeto deste artigo, é realizado por imigrantes paraguaios e seus descendentes em Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. O objetivo é descrever a função social dessa prática cultural, seus personagens e sua simbologia. Os dados empíricos foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, registros de imagens e observações sistemáticas de campo. Concluindo, o Toro Candil se desenvolveu na fronteira por força da materialidade engendrada pela pecuária.

Palavras-chave:
festa popular; Nossa Senhora de Caacupé; Pelota Tata; Mascaritas

Abstract:

The Toro Candil, object of this article, is carried out by Paraguayan immigrants and their descendants in Porto Murtinho city, Mato Grosso do Sul state. The goal is to describe the social function of this cultural practice, its characters and its symbology. The empirical data were obtained by semi-structured interviews, image records and systematic field observations. In conclusion, the Toro Candil was developed on the border by force of the materiality engendered by the livestock.

Key words:
popular festival; Our Lady of Caacupé; Pelota Tata; Mascaritas

Résumé:

Le Toro Candil, objet de cet article est réalisé par les immigrants paraguayens et leurs descendants à Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. Le but est de décrire la fonction sociale de cette pratique culturelle, ses personnages et son symbolisme. Les données ont été obtenues au moyen d'entretiens semi-structurés, d'images d'archives et par l'observation systématique effectué sur le terrain. En conclusion, le Toro Candil a été développé dans la frontière grâce à la matérialité engendrée par l'élevage.

Mots-clés:
parti populaire; Notre-Dame de Caacupé; Pelota Tata; Mascaritas

Resumen:

El Toro Candil, objeto de este artículo, es realizado por inmigrantes paraguayos y sus descendientes en Porto Murtinho, Mato Grosso del Sur. El objetivo es describir la función social de esa práctica cultural, sus personajes y su simbología. Los datos empíricos (se obtuvieron) por medio de entrevistas semiestructuradas, registros de imágenes y observaciones sistemáticas de campo. Concluyendo, el Toro Candil se desarrolló en la frontera por la materialidad engendrada por la ganadería.

Palabras clave:
fiesta popular; Nuestra Señora de Caacupé; Pelota Tata; Mascaritas

1 INTRODUÇÃO

O objeto desse artigo é o Toro Candil, prática cultural encontrada em Porto Murtinho, cidade localizada a sudoeste de Mato Grosso do Sul. Sua realização e existência estão condicionadas a presença do trabalhador paraguaio na fronteira. No início de dezembro, o Toro de fingimento, surge iluminando as ruas de Porto Murtinho com seus chifres flamejantes. O objetivo desse estudo é descrever o conjunto do ritual, os personagens, a simbologia e as funções sociais dessa prática cultural. Entre outros, alicerçaram a discussão os registros teóricos de Araújo (1973)ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., Queiroz (1976)QUEIROZ, M. I. P. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976. 242p., e Chevalier (2009)CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 996p.. As fontes primárias foram obtidas por meio de observações sistemáticas, entrevistas semiestruturadas e registros de imagens, realizadas a campo, nos anos de 2009 e 2015, na cidade de Porto Murtinho. Fontes secundárias foram buscadas no banco de dados da CAPES e nos livros de Carvalho Neto (1996)CARVALHO NETO, P. Folklore del Paraguay. Asunción: El Lector, 1996. 413p. e Mourão (2002)MOURÃO, R. R. F. O livro de ouro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 509p.. De forma geral esses estudos associam as festas e o uso do fogo a rituais pagãos em honra ao deus sol, a fertilização da terra, dos animais e das mulheres, que ao longo do tempo se transformaram nas festas católicas. A compreensão do Toro Candil, no âmbito do espaço onde é realizada, permite concluir que sua existência está condicionada à fé e a devoção dos murtinhenses a Nossa Senhora de Caacupé. Esses devotos, em sua maioria paraguaios e seus descendentes, se fixaram na região, num período posterior à Guerra do Paraguai (1864-1870), para trabalhar em fazendas de gado, nas charqueadas e nos quebrachais. Fora de sua pátria natal, revivem e recriam ainda hoje, por meio de sua fé, práticas culturais paraguaias, dentre elas, o Toro Candil. Ele é uma forma de expressar como se adaptaram ao novo meio, sublimaram as suas necessidades e se fizeram representar.

Dia 8 de dezembro é o dia dedicado a Nossa Senhora de Caacupé, considerada pelos católicos a Santa Padroeira do Paraguai. Anualmente, essa devoção pode ser observada quando caravanas partem de todas as regiões daquele país em direção à cidade de Caacupé. A data também é festejada no Brasil, em Mato Grosso do Sul, principalmente na fronteira com o Paraguai. Em Porto Murtinho, essa devoção é marcada pela presença do Toro Candil.

A Festa de Nossa Senhora de Caacupé, particularmente, é uma prática cultural secular, ligada à tradição católica. No Brasil, a Santa recebe o nome de Nossa Senhora da Conceição, também denominada Imaculada Conceição. Esse título dado a Nossa Senhora diz respeito a sua própria natureza humana sem pecado desde a concepção, sem macula (do latim, mancha), no ventre materno. Do ponto de vista profano é uma festa associada ao solstício de verão. Em Mato Grosso do Sul é uma devoção ligada ao imigrante paraguaio. A música, a dança, a comida e o próprio linguajar nos remetem aos primórdios da ocupação do estado e, por sua vez, ao colonizador espanhol que explorou essa região fronteiriça.

Fora da sua pátria natal, os devotos recriaram por meio de sua fé a vida no Paraguai. No ambiente festivo e ao mesmo tempo nostálgico, revivem práticas culturais, entre elas o Toro Candil. Estas podem ser vistas como formas de se adaptarem ao meio satisfazendo suas próprias necessidades, emocionais, afetivas e sociais.

Em 2009, foi estabelecido o primeiro contato com Dionízia Arguelho, festeira e guardiã do Toro Candil. Em 2015, foram realizadas três visitas a Porto Murtinho. A viagem pela BR 267 leva em torno de cinco horas, percorrendo 443 km desde Campo Grande até a sede do município. Percurso todo pavimentado, depois da Serra de Maracaju, mergulha-se aos poucos em terras pantaneiras até chegar ao destino final, às margens do rio Paraguai.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Todos os anos, na véspera do dia 8 de dezembro, à noite, acontece em Porto Murtinho o Toro Candil, realizado como promessa durante a festa de Nossa Senhora de Caacupé, padroeira do Paraguai e santa de devoção da maioria dos murtinhenses. A festa anualmente se repete, quem sabe por devoção, saudosismo ou tradição. Ligada à fé católica, a Virgen de los milagros é cultuada pela maior parte da população que vive na fronteira.

A palavra "festa", segundo o Dicionário da Religiosidade Popular, tem origem remota no latim feriae, ferias, dias de paralisação dos trabalhos em honra aos deuses (POEL, 2013POEL, F. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura, 2013. 1125p., p. 414). No contexto da humanidade, acontece desde que o homem passou a plantar seus próprios alimentos. Está associada aos ritos protetivos e de súplica à mãe natureza e às entidades supremas para que livrem as lavouras e as plantações das pragas, danos ou malefícios e produzam abundantemente. "A festa também pode ser relacionada aos meios de trabalho, à exploração e à distribuição, sendo consequência direta das forças produtivas da sociedade" (ARAÚJO, 1973ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., p. 11).

A periodicidade da produção agrícola levou as festas a se perpetuarem até os dias de hoje. Na semeadura ou na colheita, o homem se reunia para comemorar. Agradecimento, pedido de proteção, prazer ou alegria sempre foram motivos para reunir a família, os amigos e os vizinhos. Dessa forma, a regularidade da safra também induziu o homem às festas. Eram repetidas pelo grupo social de acordo com o calendário agrícola. Época de produção ou de consumo. "Essa característica deu às festas uma função comemorativa. É o caso da Festa de São João e do Divino Espírito Santo" (ARAÚJO, 1973ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., p. 11).

Ao longo dos séculos foram associados a elas outros elementos, tais como padroeiros, entidades sobrenaturais e, mais tarde, santos do calendário católico. Além destes, agregaram-se a comilança e a bebedeira, características das festas em homenagem a Baco. Também as máscaras, os disfarces, os enfeites e adornos, a música, o baile, as procissões, as liturgias e outros mais. "As festas tiveram uma origem comum: uma forma de culto externo tributado a uma divindade, realizado em determinados tempos e locais desde a arqueocivilização" (ARAÚJO, 1973ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., p. 11).

Dessa forma, todas as festas podem ser definidas como "manifestações e regozijo do povo para comemorar um evento de origem histórica e/ou mística" e, "além de estarem associadas a uma origem religiosa, exprimem, também, o ritmo das estações, sob a conotação da morte e ressurreição de um deus - a natureza" (MOURÃO, 2002MOURÃO, R. R. F. O livro de ouro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 509p., p. 44).

A descoberta dos solstícios determinou o uso do fogo, oferecido aos deuses pagãos em festas realizadas pelo homem. No Hemisfério Norte, os solstícios de verão 21/22 de junho e de inverno 21/22 de dezembro originaram duas festas coletivas. Nelas, o Sol (divindade pagã) era honrado com o fogo, a luz suprema. As festas dedicadas ao fogo, então, têm como ritual principal acender uma fogueira para dar mais força ao Sol. O culto ao fogo perpetua-se através do tempo. Mesmo quando se trata de um simples lume está profundamente associado ao coração dos humanos. "É a procura do Sol, ente máximo da verdadeira renovação da vida, a que assistimos diária e anualmente" (MOURÃO, 2002MOURÃO, R. R. F. O livro de ouro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 509p., p. 66-7).

As festas ligadas aos solstícios de verão (dia mais longo do ano) ocorrem em junho no Hemisfério Norte (época correspondente ao início do inverno no Hemisfério Sul). A partir dessa data o sol torna-se mais fraco, ficando os dias mais curtos, até o solstício de inverno (dezembro) em que tem lugar a noite mais longa do ano. Nesse período acontece a festa de inverno. Em virtude do rigor climático nos países do Hemisfério Norte, a festa de São João que acontece em junho (verão), por exemplo, passou a ser a mais praticada. Por uma "transposição essencialmente cultural, os povos do Hemisfério Sul passaram a comemorar a festa do Sol em junho", durante o inverno, no dia de São João (MOURÃO, 2002MOURÃO, R. R. F. O livro de ouro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 509p., p. 66).

No Hemisfério Sul, as festas ligadas ao solstício de inverno também estão relacionadas com a colheita do milho. Por analogia, além da festa de São João, destacam-se as de Santo Antônio, São Pedro e a do Divino. As do solstício de verão têm o Natal como a principal festa do período. Fazem parte dele as Folias de Reis, os Reisados, as Pastoris, os Baianás, os Terno-de-reis, o Bumba meu boi, as Congadas, os Círios e as dedicadas a Nossa Senhora (ARAÚJO, 1973ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., p. 18, 23).

A festa do Sol (e da colheita) "é sobretudo uma festa da semente do fogo" e está associada ao anseio de fecundidade dos animais, dos campos e das mulheres. O fogo, em seu caráter ambivalente, representa o bom e o mau. Pode ser doçura e tortura. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios de explicação universal. "O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo" (BACHELARD, 1999BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos, 176p.)., p. 11-2, 49).

O fogo, assim como o Sol pelos seus raios, "simboliza por suas chamas a ação fecundante, purificadora e iluminadora. Mas ele apresenta também um aspecto negativo: obscurece e sufoca por causa da fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra" - fogo como elemento que queima e consome, mas também como símbolo de purificação e de regeneração (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 996p., p. 443).

No ritual de fogo que acontece em dezembro, na fronteira do Brasil com o Paraguai, durante a aparição do Toro Candil, duas tochas incandescentes presas aos chifres da armação que imitam um touro iluminam como candeeiros o escuro da noite em Porto Murtinho. Respingam fagulhas, torcem-se, retorcem-se e, num bailado sedutor, encantam, mas também atormentam. O odor forte do querosene a incomodar as narinas e a fumaça escura resultante da combustão revivem uma época em que a luz elétrica ali não existia e em que o boi, além de servir de alimento, era utilizado como tração animal, no transporte dos ervais, quebrachais e das charqueadas (TEDESCO, 2011TEDESCO, G. P. A brincadeira do Toro Candil: uma manifestação da memória cultural local. 2011. 115f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagens) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS, 2011., p. 105).

Técnicas rudimentares, como o uso do fogo, eram eficazes para o homem fertilizar a terra, livrando-se das pragas para plantar seu próprio alimento. Sem o recurso de herbicidas ou adubos artificiais para as plantações, contava-se apenas com a ajuda da mãe natureza e, quem sabe, com a de seus deuses pagãos. Nesse sentido, podemos pensar também o Toro Candil como manifestação do inconsciente coletivo, constituindo-se em prolongamento dos rituais agrários que marcavam as estações do ano (TEDESCO, 2011TEDESCO, G. P. A brincadeira do Toro Candil: uma manifestação da memória cultural local. 2011. 115f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagens) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS, 2011., p. 105). Na verdade, as atuais festas católicas têm origem nas festas célticas sazonais, datadas do Neolítico e estão intimamente ligadas ao conhecimento dos solstícios e dos equinócios (MOURÃO, 2002MOURÃO, R. R. F. O livro de ouro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 509p., p. 67).

Dessa forma, o Toro Candil, ao ser realizado em dezembro, em Porto Murtinho, está ligado às festas religioso-profanas que acontecem no solstício de verão, portanto às festas de verão. E, nesse caso específico, em devoção à mãe de Jesus, a Virgencita de Caacupé. No Paraguai o Toro Candil é realizado em junho, durante os festejos de São João.

A Igreja Católica, tendo fixado o ano eclesiástico,determina os dias para o culto do Divino. Os dias de festa passam a ser divididos em festas do Senhor e os dias comemorativos dos santos, que incluem a devoção a Nossa Senhora e aos padroeiros das cidades. Também podem ser divididos de acordo com o movimento do sol em festas do solstício de inverno e solstício de verão.

Tem-se então dois grandes grupos de festas religioso-profanas que "envolvem as calendárias, as de padroeiros e outras, distribuídas em festas do ciclo do verão e ciclo do inverno" (ARAÚJO, 1973ARAÚJO, A. M. Cultura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 198p., p. 12). Associam-se, dessa forma, ao dia e à noite mais longos do ano, em que o Sol conscientemente ou não, é cultuado antes, durante e após os primeiros dias de anúncios solsticiais.

Desde os primórdios do cristianismo, o dogma da concepção sem mácula, da mãe de Jesus, Nossa Senhora, é aceito como verdade absoluta, imutável, definitiva. Foi proclamada oficialmente pelo Papa Pio IX em 8 de dezembro de 1854. "A veneração a Nossa Senhora da Conceição começou no séc. VIII, nas igrejas orientais. No ocidente, surgiu na Irlanda, no séc. IX. A celebração no dia 8 de dezembro foi registrada na Inglaterra no séc. XI" (POEL, 2013POEL, F. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura, 2013. 1125p., p. 701). O dia da Imaculada Conceição antecede aos nove meses do nascimento da mãe de Jesus, Maria.

A imagem da Virgem Mãe de Deus encontrada na cidade de Caacupé tem mais de quatrocentos anos. Estudos realizados no Paraguai apresentam versões divulgadas em diferentes épocas. Uma em 1896, no informativo Granada, e outra em 1907, por Rodríguez Alcalá. "Dice la tradición que allá en los primeros años del Siglo XVII un indio convertido de la reducción de Tobatí, se internó una tarde en los montes en busca de cimientos para construir estatuas. El indio se llamaba José y era un habilísimo escultor". O índio, amedrontado pela presença de tribos selvagens, suplica a proteção da mãe de Deus. Ao ser salvo, esculpe em devoção duas imagens da Santa. Uma se encontra na cidade de Caacupé, e a outra em Tobatí, ambas no Paraguai (CARVALHO NETO, 1996CARVALHO NETO, P. Folklore del Paraguay. Asunción: El Lector, 1996. 413p., p. 126-7).

Anos mais tarde, conforme versão de Alcalá, em 1603, após uma enchente, foi encontrada bem fechada, dentro de um cofre, flutuando nas águas transbordantes que haviam formado o lago Ypacaraí, a imagem esculpida pelo índio. Logo foi espalhada a fama milagrosa da imagem que "fue conducida a Caacupé", onde se encontra até a atualidade. Informa, ainda: "...esta leyenda fue documentada en un expediente eclesiástico que antiguamente se conservaba en el Archivo Nacional y que, seguramente, se extravió a la par de otros muchos papeles cuando el Archivo fue saqueado durante la guerra" (CARVALHO NETO, 1996CARVALHO NETO, P. Folklore del Paraguay. Asunción: El Lector, 1996. 413p., p. 127).

A presença indígena registrada nessa história reforça também sua presença na cultura sul-mato-grossense, uma vez que as terras fronteiriças, em seus primórdios, eram habitadas pela grande nação Guarani. Essa tradição católica e paraguaia remonta à época da colonização da América. As fronteiras atuais ainda não haviam sido delimitadas. O índio, habitante natural desse espaço geográfico, andava livremente por todo o chaco e os pantanais até a chegada dos jesuitas e dos colonizadores. Várias etnias foram exterminadas pelos conquistadores espanhóis e pelos bandeirantes. Outros foram confinados em reduções próximas a Assunção e acabaram constituindo a base da nação paraguaia.

3 SAGRADO E PROFANO NA DEVOÇÃO À VIRGEM DE CAACUPÉ

A devoção católica do povo paraguaio é alimentada por sua crença em Nossa Senhora de Caacupé. Associado a essa fé incondicional, acontece o Toro Candil. Essa prática cultural se realiza em Porto Murtinho anualmente, no início de dezembro, durante a festa em homenagem e promessa à Santa, também conhecida como "Virgen de los Milagros".

O Toro Candil lembra a tourada e a corrida de touros. Confeccionado a partir de uma base de ferro, busca a forma de um bovino. Essa armação é revestida de tecido, escolhido de acordo com as posses e o gosto da (o) "dona (o) do toro". Na extremidade dianteira do artefato, é colocado o crânio de um animal, a cabeça. No lugar dos chifres, são fixadas tochas de madeira envolvidas em bolsas de estopas, antecipadamente embebidas em óleo queimado. À noite, sob a luz do luar e o brilho das estrelas, desperta o Toro Candil. Com seus chifres flamejantes persegue os valentes Mascaritas. O baile, a oração e a Pelota Tata (bola de fogo) antecedem ao Toro.

O primeiro contato visual com essa prática cultural se deu em 2009. Era festeira Dionizia Arguelho, a Dona Noni, de 69 anos de idade, moradora de Porto Murtinho. Junto com seu irmão Xisto Salvador Antunes mantinha o Toro Candil desde que sua mãe, Dona Natividade Batista Gimenez Izidre, falecera. Já em 1996, Xisto fizera um depoimento sobre o Toro Candil e o descrevera.

Em 2003, o Toro Candil de Xisto foi convidado a se apresentar no IV Festival de Inverno de Bonito. Conforme depoimento realizado pelo Entrevistado I, devoto e morador de Porto Murtinho, seu Xisto foi o responsável por retirar o Toro Candil do âmbito familiar e levá-lo para fora de Porto Murtinho. Comprou roupas novas e vestiu os mascaritas com máscaras de gesso. "Essa apresentação mudou a forma de a população ver o Toro Candil. A partir de então, o Toro passou a ser referência cultural de Porto Murtinho". Após o falecimento do irmão Xisto, Dona Noni continuou realizando o Toro todo dia 7 de dezembro em sua residência, a mesma moradia construída para sua mãe. A família toda, principalmente sua mãe, era devota de Nossa Senhora de Caacupé.

Antes de fixar residência em Porto Murtinho, Dona Natividade fez promessa à Santa, pedindo uma casa para morar que fosse sua, para livrar-se do aluguel. O Entrevistado II, festeiro e devoto de Caacupé, com forte sotaque paraguaio-guarani relatou: "no Paraguai, a mãe falava pra Santa dela: já que a gente vai pro Brasil, eu quero que você põe pra mim uma sombra, pra você ficá também, pra não contá uma tapera alheia, falô pra Santa e ela mostrô o milagre prá ela. Minha irmã ganhô esse lote e meu marido levantô prá ela a casa. Foi assim".

A família de Dona Noni morava em Porto Sastre, no Paraguai. Veio para o Brasil de navio. "Nói tava entre doze, sei muié e sei home, chegamu na ilha (Margarida). Atravessamu de chalana e carregamu todas nossa coisa prá cá. Chegamu aqui e ficamu de alugué" (Entrevistado II). Da Ilha Margarida até Porto Murtinho, a travessia foi feita por chalana. A familia não se fixava, de início, buscando serviços nas fazendas de gado existentes na fronteira.

O Entrevistado I contou, ainda, que seus avós viviam migrando de fazenda em fazenda. Seu avô trabalhava como marceneiro e abandonou a avó grávida com todos os filhos. "Então minha vó veio embora prá cá (Porto Murtinho), só ela com os filhos. Começou a fazer chipa, bolos e botou os filhos pra ajudar, até o dia em que minha mãe casou com meu pai. Meu pai era militar".

Construída a residência, foi preparado um lugar especial para colocar a imagem da Santa. Um lugar de orações, pedidos de proteção, súplicas e agradecimentos. No início de dezembro, o altar é enfeitado. "Todos os anos, em seu dia, faz-se uma festa onde se monta o altar da Santa (para ser exposto, pois, como oratório, está montado o ano todo dentro da casa)" (ANTUNES, 2008ANTUNES, A. S. B. Nostalgia do todo. 2008. 14f. Monografia (Especialização em Linguagem das Artes) - Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008., p. 3).

A casinha simples retrata todo esmero, dedicação e devoção à Nossa Senhora. O altar enfeitado com as cores do Brasil e do Paraguai, além da devoção, deixa transparecer o amor e a gratidão pela pátria de origem e pelo país que os acolheu. Ali, fé e solidariedade se misturam ao receber "outros promesseiros e fiéis que vêm rezar e acender velas, cortar os cabelos de crianças que por sete longos anos os deixaram crescer em promessa por graça alcançada e que, após cortados, passarão a compor a imagem da Santa exposta no altar (ANTUNES, 2008ANTUNES, A. S. B. Nostalgia do todo. 2008. 14f. Monografia (Especialização em Linguagem das Artes) - Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008., p. 3).

Após o falecimento de Dona Natividade, Dona Noni continuou a promessa. Todo mês de dezembro, à noite, na rua, do lado de fora da casa, entra em cena o Toro Candil. Desde a madrugadinha, no "Dia da Santa" (8 de dezembro), é preparado o alimento que será servido aos devotos. Primeiro servem as crianças e depois os adultos. Todos que quiserem podem participar, promesseiros ou não.

No cardápio não podem faltar a macarronada com frango, a chipa, a sopa paraguaia, o carreteiro e muita mandioca. Os pratos são deliciosamente preparados à moda paraguaia. As doações sempre são bem-vindas. Desde a época de Dona Natividade, eram livres e variavam de acordo com as posses e com as promessas feitas pelo devotos. Podiam ser em dinheiro ou em forma de alimentos ou mantimentos. No passado, era costume abater um porco recebido em doação de algum devoto ou especialmente criado o ano todo para ser servido no dia. "O animal é intocado para outros fins durante o ano, deve ser bem tratado, pois 'é da Santa', como se ouve." (ANTUNES, 2008ANTUNES, A. S. B. Nostalgia do todo. 2008. 14f. Monografia (Especialização em Linguagem das Artes) - Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008., p. 3).

Na festa, é comum a presença das galopeiras. Essas promesseiras, vestem-se com suas saias rodadas e blusas de renda, nas cores nacionais do Paraguai: azul, branco e vermelho. Descalças, ao som da polca paraguaia, dançam em sinal de gratidão pelas graças alcançadas. Antigamente, sua vestimenta era composta por imensas saias azuis, calças para homens e faixas com as cores da bandeira do Paraguai que atravessavam o corpo diagonalmente. As mulheres equilibravam vasos de barro ou garrafas na cabeça, enquanto entregavam-se à galopeira, "dança variante da polca, mas que aqui se dança em grupo e não em par, onde os que dançam, na maioria mulheres, vestem-se com trajes típicos sobre os quais se aplicam dinheiro de papel franzindo-os lembrando uma gravata borboleta". Esse costume está cada vez mais em extinção (ANTUNES, 2008ANTUNES, A. S. B. Nostalgia do todo. 2008. 14f. Monografia (Especialização em Linguagem das Artes) - Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008., p. 3).

Em Porto Murtinho, não foi registrada a dança com a garrafa ou vasos de barro na cabeça, a "dança da botelha", tampouco foi constatada a presença de homens na dança ou o uso da faixa paraguaia transversal, nem mesmo o dinheiro preso às vestes. Verificou-se o uso da faixa paraguaia pelas mulheres como cinto sobre a saia. Também como promessa, entraram em cena a Pelota Tata, o Toro Candil e os Mascaritas.

A festa, que se inicia no dia sete, à noite, é realizada em dois momentos na parte interna e externa da casa. Dentro da casa, na varanda de Dona Noni, em 2009, foi realizado um baile entre os Mascaritas. Esses personagens falavam em tom agudo, misturando o português com o espanhol e o guarani, com a intenção de não serem identificados. Ao som da polca paraguaia, dançavam entre si, bebiam, riam, macaqueavam uns aos outros. Também proferiam palavras indecentes e faziam gestos obscenos (Figura 1).

Figura 1
Devotos, em promessa à Nossa Senhora de Caacupé, fantasiam-se de Mascaritas e participam do baile durante a festa

Naquela noite, a bebida, armazenada em uma garrafa pet, ia passando de boca em boca. Após o baile, que durou não mais do que meia hora, os Mascaritas se postaram diante do altar da Santa e, num gesto de devoção, ajoelharam-se para fazer suas orações (Figura 2). O momento era de agradecimento e entrega. Em silêncio, quem sabe relembravam as horas difíceis de suas vidas, os fracassos e as dores. Mas, sem dúvida, esse era um momento de exaltação, de alegria e de veneração. Momento de reconhecer as graças alcançadas, de se fortalecer pedindo a benção e a proteção da Mãe Celestial.

Figura 2
Em frente ao altar, os Mascaritas em momento de oração

Enfim, os Mascaritas estavam preparados para deixar a casa e, na rua, enfrentar o touro e o fogo. Dessa forma, iriam tornar-se mais fortes e dispostos a recomeçar tudo de novo, em um novo ano. Embalados ao som da polca paraguaia, iniciaram o jogo com a Pelota Tata (Figura 3).

Figura 3
O futebol de rua com a Pelota Tata precede o Toro Candil

A bola (pelota em espanhol) de fogo (tata em guarani) sempre antecede o Toro Candil. É feita de estopa. Depois de mergulhada em óleo queimado, o fogo é ateado, e os Mascaritas desenvolvem uma espécie de futebol de rua. O jogo normalmente tem a durabilidade do fogo, ou seja, até que a pelota se desmanche em cinzas. Na sequência, os Mascaritas se revezam no interior da armação que simula o bovino, dando vida e movimento ao Toro Candil que, com os chifres em chamas, ilumina a rua com intensidade.

Fingindo fúria, a imitação de touro bravio avança sobre os participantes mascarados que o perseguem e provocam, em divertida algazarra coletiva. Essa prática lembra as corridas de touros ou ainda as touradas, que aconteciam nos países ibéricos e também no Brasil, porém contendo viés cômico.

O Entrevistado II contou que "esse Toro é brincadeira do Santo Rei. Já que o Santo Rei também é do Paraguai, se uniu com Nossa Senhora de Caacupé. Antigamente não tem assim esse ferro aí. Essa armação aí é ferro. Eu ia no mato, cortava cipó, ia de bicicleta, eu e minha cunhada". No tempo de sua mãe, também faziam o avestruz e o burro, grande como o Toro. Hoje já não existem mais, pois "eu sozinha nunca posso fazê" (Entrevistado II).

No tempo em que não havia luz elétrica, "do gogó" (garganta do boi, que era limpa e inflada como uma bexiga) faziam o candil (candeeiro). Depois de seca, inseriam um pavio de cerca de 2 cm de espessura, preenchiam com graxa, com banha "bem socado como linguiça para ficar bem duro, esse aí nem vento apaga" (Entrevistado II). Depois de aceso, o Candil queimava dia e noite sem apagar. Por causa do lume produzido pelo fogo dos chifres simbólicos que a figura do boi passou a ser chamada, segundo o Entrevistado II, de Toro Candil. Afinal, seus chifres iluminavam como os candeeiros (Figura 4).

Figura 4
Toro Candil confeccionado por "Beto e Lore", devotos de Nossa Senhora de Caacupé, em Porto Murtinho, no ano de 2015.

Em 2015, o Entrevistado III, de 68 anos de idade, morador de Porto Murtinho, ex-funcionário da Prefeitura Municipal, deu importante depoimento. Nascido e criado em Porto Murtinho, seu pai trabalhara na Florestal Brasileira, fábrica de tanino, e era "paraguaio puro", como o definiu. Viu o Toro Candil pela primeira vez na casa da sua avó Marcelina, que morava em Porto Guarani, no Paraguai. Brincava no meio dos "Cambarangás" "o mascarado que vai torear o Toro" (Mascaritas). Antigamente ninguém podia participar sem as máscaras. Segundo relatou, "a ordem da justiça, ninguém podia conhecer a pessoa que tá toreando o Toro". A mulher se vestia de homem e o homem de mulher, "e tinha que largá aquela voz fina prá ninguém conhecê. Essa era a promessa do católico" (Entrevistado III).

Essa narrativa evidencia resquícios dos velhos preceitos proibitórios da coroa portuguesa, excluindo a mulher do palco ou festas públicas. No passado, era considerado indecente a participação feminina em eventos públicos e em comédias. Quando necessário, a figura da mulher era substituída pelos travestis (QUEIROZ, 1976QUEIROZ, M. I. P. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976. 242p., p. 183; GOULART, 1965GOULART, J. A. O Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. 264p., p. 210 ).

Aos 11 anos de idade, no Brasil, em Porto Murtinho, ainda guri, participava todo mês de dezembro do Toro Candil. "Eu era convidado pelo Seu Papito Sanches, já falecido. Ele fazia o Toro na própria casa. Trabalhava na Florestal Brasileira, aqui na tanineira, né!? Ele entrava as duas horas da tarde. Às vezes entrava de manhã e saía só à noite, e assim por diante. O finado Papito Sanches me convidava: meu filho, eu quero você prá me ajudá! Eu era curioso, gostava de aprender. Era espiculento" (Entrevistado III).

Ao comando do "Seu Papito", iam buscar no mato a madeira para fazer o Toro Candil. Um mês antes começavam a preparar, "porque às vezes vem o tempo ruim, temporal e assim dá tempo prá ele secá, fica mais leve", explicou o Entrevistado III. Buscavam madeira na mata de quebracho. "Antigamente aqui no campo do quebracho, tinha um cipó, aquele lá nóis tirava, cortava, arqueava e amarrava no costado. A base era feita de madeira bem firme, quebracho branco era muito bom" (Entrevistado III). Amarravam tudo com arame e cobriam com o couro que ganhavam. Passavam sal, depois soro e deixavam secar no cavalete por uns quinze dias. Só depois colocavam o couro sobre a armação, onde era costurado e finalizado. Quanto à cabeça, segundo relatou, usavam uma ossada de chifre bem grande.

O uso indiscriminado de madeiras nativas, sem manejo adequado, gerou a ameaça de extinção para várias espécies arbóreas. Esse foi o caso do quebracho. Também foi o do cipó, referido pelo Entrevistado III, matéria-prima importante para construir o Toro Candil. Segundo seu relato, "antigamente tinha muito cipó. Hoje é raro, já derrubaram tudo. Aqui no campo do quebracho tinha esse cipó, muito bunito, a turma ia cortá tudo prá lenha".

No Toro Candil realizado por Dona Natividade, relatou o Entrevistado III: "eu era Mascarita, toreava junto com Felix Arguelho, marido de Dona Noni, o pai do Marcelinho. Dias 7 e 8 de dezembro, nóis saía com o pai dele, ia até perto do trilho, toreá de meio dia. Levava violão, cantava a galopera, cantava pra Nossa Senhora Caacupé". Ajoelhavam-se aos pés da santa pedindo sua proteção. Quando criança, "eu era muito doente, sofria de bronquite e tinha um problema na bacia. Mamãe se comprometeu e me entregou pra Santa, prá ela me curá" (Entrevistado III). Em devoção, ele fazia o Toro e também toreava. Fazia o Toro para pagar a promessa feita pela mãe. Até hoje é devoto de Nossa Senhora.

O acesso a médicos, devido às distâncias enormes, era muito difícil. As crianças e mesmo os adultos eram tratados com chás, ervas e curandeiros. "Quando o filho adoecia, as mães desesperadas entregavam o filho para a Santa e prometiam manter o cabelo longo por sete anos seguidos. No último ano, cortavam o cabelo e doavam a Ela, tanto é que a Santa de Caacupé tem o cabelo real" (Entrevistado I). Muitos devotos acreditam que os cabelos continuam a crescer na cabeça da imagem sagrada.

Evidencia-se, dessa forma, o importante papel desempenhado pelas mães paraguaias que, por meio da fé, em seus lares, perpetuaram tradições e práticas culturais da nação. O guarani sempre foi visto como língua inferior pelo colonizador, que impôs o espanhol como língua oficial do Paraguai. As mulheres paraguaias dominavam o guarani e gostavam de falar essa língua. Em seus lares, na educação e no diálogo com os filhos e também com os maridos, a língua guarani era repassada natural e costumeiramente. Dessa forma, contribuíram para que seu uso fosse preservado até os dias atuais. "A mulher paraguaia sempre foi depositária privilegiada da tradição cultural e do guarani, principalmente" (SILVA, 1998SILVA, A. M. R. A noite das Kygua Vera: a mulher e a reconstrução da identidade nacional paraguaia após a Guerra da Tríplice Aliança (1867-1904). 1998. 207f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, 1998., p. 114-9 ).

Em pleno século XXI, ainda é recorrente a discriminação e, muitas vezes, a intolerância às formas de expressão e representação do trabalhador paraguaio. Não só em relação à língua falada. Fato mais evidente aconteceu em 2005, quando foi criado, o Festival Internacional de Porto Murtinho. Em clara interferência do poder público, dois "touros", BandidoeEncantado, vestiam as cores nacionais do Brasil, verde o primeiro e amarelo o segundo, cópias dos bois de Parintins que disputavam a filiação do abrasileirado "Touro Candil". De forma preconceituosa, o "pobrinho e sujinho" Toro Candil, assim qualificado pelo prefeito à época, foi substituído por uma versão institucionalizada, feita de plumas e paetês. Esse fato explicita, também, o que pensa a elite ruralista instalada no poder em Mato Grosso do Sul. Costumeiramente, ela exclui das ruas, de forma categórica, não só a língua guarani, mas também práticas culturais consideradas menores.

Apesar de tudo, graças à devoção, à coragem, à força e à determinação de mulheres paraguaias, a exemplo da matriarca da família Arguelho, Dona Natividade, e posteriormente sua filha Dionízia (Dona Noni), o Toro Candil continua a existir. O Entrevistado IV, proprietário do "Hotel Saladero Cuê", em Porto Murtinho reconheceu essas qualidades. Segundo seu relato, em agosto de 2015, a "Florestal empregou muita gente de fora. No mato trabalhava o homem. A mulher fazia tudo: plantava, remava a chalana, cuidava da casa, capinava e tudo mais. Até bem pouco tempo atrás, somente mulheres remavam as canoas na travessia do rio". Na praça do pescador, em Porto Murtinho, há uma escultura representando a mulher paraguaia (murtinhense). Grávida, rema o barco transportando passageiros na travessia do rio.

Os relatos e os fatos contados ilustram a importância cultural da festa dedicada à Nossa Senhora de Caacupé. Durante a festa, realizam-se práticas culturais decorrentes da devoção. Como exemplos, podem ser citadas o Toro Candil, a dança da galopeira, a culinária, a música e o próprio linguajar, entre outras. Tais práticas se mantêm até a atualidade devido a uma grande rede de relações de parentesco, compadrio, amizade e vizinhança que integram, no caso de Porto Murtinho, brasileiros e paraguaios. À mulher é dado papel de destaque, pois é peça fundamental na manutenção e na existência até a atualidade dessas práticas culturais.

A imagem do Toro colocado em cena no ano de 2009 por Dionízia Arguelho (Figura 5) ajuda a compreender a importância dessa e de outras práticas culturais fronteiriças. Nela, o Toro traz estampado do lado esquerdo do corpo a bandeira do Brasil. A bandeira, enquanto símbolo nacional que é, coloca em relação o Toro Candil e o Estado-Nação. Por mediação, coloca em relação, também, o trabalhador paraguaio (homens e mulheres) da fronteira e o poder subordinador do capital, que, não por acaso, em Mato Grosso do Sul e Porto Murtinho, associa-se aos grandes proprietários de terras. De fato, a bandeira, enquanto signo nacional, trabalha no sentido de uma assinatura de propriedade cultural brasileira. Nessa direção, o Toro é brasileiro e representa uma singularidade cultural em Mato Grosso do Sul.

Figura 5
Em Porto Murtinho, o Toro Candil é registro da presença paraguaia em Mato Grosso do Sul.

Essa prática cultural, ao ser realizada em ambos os países, Brasil e Paraguai, e principalmente por ser encenado na fronteira, reforça a assinatura de prática cultural pertinente a Porto Murtinho. Por outro lado, a bandeira paraguaia, que o Toro traz do lado direito de seu corpo, legitima sua origem. Logo, aquela assinatura sul-mato-grossense começa a se desfazer. Como acontece com a própria fala dos Mascaritas, a confecção do Toro Candil com a bandeira dos dois países expressa a mescla transnacional de que o Toro Candil é formado. Espanhol, paraguaio, guarani, português e, finalmente, brasileiro. Revelam-se, assim, suas raízes ibéricas e o pertencimento a ambas as nações, Brasil e Paraguai.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Toro Candil é prática cultural singular em Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. Constitui-se paródia das corridas de toros ou das toradas espanholas. A chegada do Toro é anunciada pela Pelota Tata. Ao Toro, seguem-se os Mascaritas, os toureiros. É realizado como promessa a Nossa Senhora de Caacupé. É mantido por paraguaios e seus descendentes por motivo de fé e devoção. Acontece mais comumente na fronteira, região permeada por práticas culturais de origem espanhola e guarani que se misturaram, desenvolveram-se e transformaram-se. Em sua singularidade, está associada, também, à materialidade engendrada pela pecuária.

Essa prática cultural expressa uma sobrevivência secular, preservada no âmago das relações sociais. Compartilhada pelos residentes em Porto Murtinho, marca a presença do trabalhador paraguaio no sudoeste de Mato Grosso do Sul, desde a sua designação em língua espanhola. Das várias práticas culturais conhecidas no Brasil e que envolvem a pecuária bovina, nenhuma se assemelha ao Toro Candil.

Tanto o touro como o fogo podem representar simbolicamente as diferenças sociais. Retratam a realidade obscura, sufocante e de subordinação ao poder vigente, ditada pelo capital em contraposição aos anseios da maioria. Mas também podem representar a crença em um protagonismo cultural, cuja luz reflete a esperança de um futuro com mais equidade social.

Os devotos, promesseiros de Caacupé, consciente ou inconscientemente, na festa reiteram práticas culturais originárias do Paraguai. A música, a dança, a comida típica, as rezas e a língua guarani instauram um ambiente nostálgico. Na rua, nas casas ou no pátio da igreja, as trocas são fortalecidas, os espaços reduzidos, os encontros mais frequentes e os laços se mantêm intensificados. Reforçam e recriam, dessa forma, práticas culturais que compõem a sua devoção e também a de seus antepassados. Naquele "espaço", entre a varanda e a rua ou no pátio da igreja, buscam manter viva a ligação com a vida pregressa dos antepassados. Por meio da festa, do Toro Candil, da Pelota Tata e dos Mascaritas, renovam práticas culturais que fizeram parte de sua infância, se reencontram com suas origens e se fazem representar. No solo de Porto Murtinho esses fragmentos culturais trazidos do Paraguai ganharam funções compatíveis com a nova forma de existência dos imigrantes no Brasil. Absorvidos como força de trabalho, eles adaptaram essas manifestações e lhes garantiram vida. Asseguraram, assim, que o Toro Candil se incorporasse às práticas dos fronteiriços e conquistasse o caráter de sensível singularidade cultural no sudoeste de Mato Grosso do Sul.

No entanto, essa prática, intrínseca à fronteira e condicionada à fé de imigrantes paraguaios, corre o risco de se perder e se extinguir. Ela está assentada na memória dos mais antigos e, ao mesmo tempo, tem como limitação o fato de ser prática cultural vivida por pessoas simples e sem recursos. Referendada como expressão da cultura paraguaia em Mato Grosso do Sul, nunca foi pleiteada pelo capital.

REFERÊNCIAS

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  • CARVALHO NETO, P. Folklore del Paraguay Asunción: El Lector, 1996. 413p.
  • CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 996p.
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  • SILVA, A. M. R. A noite das Kygua Vera: a mulher e a reconstrução da identidade nacional paraguaia após a Guerra da Tríplice Aliança (1867-1904). 1998. 207f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, 1998.
  • TEDESCO, G. P. A brincadeira do Toro Candil: uma manifestação da memória cultural local. 2011. 115f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagens) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2017
  • Revisado
    18 Jul 2017
  • Aceito
    25 Jul 2017
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