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A relação existente entre cultura, identidade e patrimônio cultural

Podemos vislumbrar a cultura como resultante não só de uma história particular como também de outras culturas que se relacionaram, ainda que com características diferentes. Sejam elas partilhadas ou compartilhadas por pessoas que se inserem em outros grupos a que pertencem, para Benedict (1972, p. 23)BENEDICT, R. Padrões de cultura. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1972.: “As culturas são lentes pelas quais as pessoas podem ver o mundo, são uma marca da ação do ser humano no meio ambiente e nas estruturas sociais na qual se encontra inserido”.

Franz Boas (2004)BOAS, F. Antropologia cultural. [Org. Celso Castro]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109 p. estabeleceu a necessidade do estudo singular de cada cultura em seus próprios termos – evitando o etnocentrismo –, não só contestando, assim, as teorias evolucionistas em voga, a visão da história cultural como um processo universal e linear, como também em franca oposição às ideologias racistas que consideravam a etnia branca como superior e desvinculando os fenômenos culturais do determinismo biológico e ambiental.

Ruth Benedict (1972)BENEDICT, R. Padrões de cultura. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1972., aluna de Boas, ampliou em seus estudos o aspecto da cultura como regulamentadora da personalidade, descrevendo detalhadamente os rituais, crenças e peculiaridades de diversas culturas, a fim de evidenciar sua “personalidade”. Para a autora, “Os dogmas religiosos, as práticas econômicas e a política não se mantêm represados em pequenos reservatórios estanques, porém transbordam sobre suas supostas fronteiras” (BENEDICT, 1972, p. 18BENEDICT, R. Padrões de cultura. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1972.).

Nesta concepção, corrobora Bonnemaison e Cambrèzy (1996, p. 10)BONNEMAISON J.; CAMBRÈZY, L. Le lien territorial: entre frontières et identités. Géographies et Cultures, Paris, n. 20, 1996. quando estes afirmam que “O domínio do espaço territorial revela que esse espaço é cercado de valores não somente materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede ao território político e ao espaço econômico”.

Podemos então refletir que todos os ritos, gestos, canções, vivências nos trazem diferentes ângulos e matizes de uma cultura permeada de simbolismos e podem ser vistos como um construtor de identidades e de simbologias. Concepção esta seguida por Ortiz (2006, p. 79)ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed., 9. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006., ao conceituar a identidade cultural como “[...] uma construção simbólica que se faz em função de referentes que podem variar em natureza, pois eles são múltiplos: uma cultura, a nação, uma etnia, a cor ou gênero”.

Ao trazermos um conceito mais abrangente, é importante clarear a partir da Constituição Federal de 1988, quando esta conceitua o patrimônio, em seu Art. 216, como: as formas de expressão; os modos de criar; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; além de conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.).

Atualmente, incluímos na concepção de patrimônio cultural o entorno ambiental e as práticas socioculturais com expressivo valor para uma comunidade. Dessa forma, não podemos estudar o patrimônio sem relacioná-lo à cultura, ainda que seja uma tarefa difícil por se tratar de um tema bastante complexo. A cultura, em suas diversas manifestações, atua sobre o homem, e este sobre ela, em processos de construção de identidades; sendo assim, o patrimônio cultural deve ser preservado ao longo das gerações como forma de conservação da memória de um povo, de sua história e tradição.

Ao objetivar contribuir com o desenvolvimento científico e com a visibilidade dos artigos publicados ao longo de 22 anos de existência, a revista Interações tem procurado refletir sobre o Desenvolvimento Local em diferentes interfaces temáticas. O artigo que abre esta edição n. 1/2022, “Nossa Senhora do Pantanal: da oração à canção”, busca ecoar a partir da região pantaneira a história de Nossa Senhora do Pantanal, sua gente e sua cultura, na visão da composição de Alzira Espíndola e Orlando Antunes. O artigo intitulado “O aprendizado da História por meio do patrimônio cultural” apresenta uma discussão da possibilidade do aprendizado da História por intermédio do uso do patrimônio cultural, assim como indica uma série de ganhos para a relação ensino-aprendizagem a partir dessa utilização. Neste prisma de discussão, em “Patrimônio cultural como identidade coletiva: o saber-fazer do doce pé de moleque em Piranguinho, MG”, os autores objetivam compreender as formas do saber-fazer no processo de organização da identidade no âmbito histórico, para, a posteriori, apreender as contradições presentes, as influências no desenvolvimento local e as composições que suportam a ideia de cidade dentro da microrregião de Itajubá, MG. Trazendo como título “‘Povos indígenas no Piauí: se escondeu para resistir e apareceu para existir!’: trajetória dos grupos indígenas da etnia Tabajara no Piauí”, este artigo busca conhecer as condições sócio-históricas que contribuíram para o processo de indianização dos grupos indígenas da etnia Tabajara, no Piauí. Envolvendo a questão da educação, o artigo “Retornos para educação no Brasil: enfoque nas regiões Sul e Nordeste para o ano de 2017” analisa os efeitos da educação nos rendimentos dos indivíduos residentes no Brasil e, de forma específica, das regiões Sul e Nordeste, indicando que, em todas as regiões analisadas, o capital humano apresenta retornos crescentes, sendo estes cada vez maiores, à medida que o indivíduo alcança graus mais elevados de educação. Em “As relações de dádiva no processo de vinculação a trajetórias culturais em criadores de instituições culturais em uma cidade do interior de Minas Gerais”, pretende-se identificar o processo de “escolha do legado”, compreendido a partir do momento de “receber” do ciclo da dádiva na teoria de Mauss, em pessoas que se dedicam à criação e manutenção de instituições culturais em uma cidade do interior de Minas Gerais. Ao propor uma reflexão sobre os direitos sociais e o Estado, o artigo intitulado “A proteção dos direitos sociais na perspectiva do desenvolvimento e das políticas públicas igualitárias e não discriminatórias” demonstra a necessidade de se exigirem adaptações nas políticas públicas, a fim de atender às especificidades dos migrantes, de forma que sejam capazes de estabelecer o diálogo, o respeito e o reconhecimento, bem como a inclusão desses novos atores na sociedade de acolhida, afastando, por consequência, a desigualdade e a discriminação. Ainda envolvendo a questão indígena, o artigo “Impactos e as medidas compensatórias: projeto de infraestrutura de transporte da BR-429/RO para a comunidade Tupari da TI Rio Branco, Amazônia brasileira” apresenta uma reflexão sobre as relações socioambientais de obras de engenharia em terras indígenas, evidenciando que o instrumento de compensação ambiental do projeto de infraestrutura de transporte da BR-429/RO não supre os reais impactos gerados na dimensão ambiental. O artigo “O plano de revitalização urbana da área central de Camp Grande, MS” permite verificar que, embora as estratégias para a requalificação do local do Plano de Revitalização do Centro abranjam diferentes dimensões do sistema urbano e abordem pontos importantes tratados no urbanismo na dimensão humana em suas estratégias, o destaque maior é na frente econômica do que em sua frente social. O artigo “Entre o divino e o dinheiro: análise de serviços magísticos em um terreiro de Candomblé” analisa as principais trocas materiais em um terreiro de Candomblé em Bocaiuva, MG, na perspectiva do clientelismo, ou seja, situações que envolvem a cobrança em dinheiro pelos serviços ofertados: trabalhos de “amarração de amor” e jogo de búzios. No caso estudado, dinheiro e serviços magísticos não são “esferas separadas” ou “mundos hostis”, mas estruturas em que os agentes realizam “boas combinações”. Em “‘A cavalo dado não se olha os dente’: quando a política pública habitacional violenta o modo de morar camponês”, os autores analisam a política habitacional estadual do Maranhão e como ela, criada a partir de um programa nacional eficaz em outras regiões do país, pode violentar o modo de morar e viver de povos tradicionais rurais, pois o produto entregue pelo programa é incompatível com a realidade rural de Pequizeiro. No artigo “Relações entre as políticas públicas de turismo e as ações dos serviços turísticos no município de Bonito, polo de ecoturismo nacional”, objetiva-se compreender as relações entre as políticas públicas de turismo e as ações dos serviços turísticos em Bonito, na perspectiva do ambiente natural, inferindose que tanto as políticas públicas quanto as ações desenvolvidas pelos serviços turísticos são ainda insuficientes para garantir a conservação do ambiente. Em “A Análise Crítica do Discurso no contexto econômico e social decorrente da covid-19 no Brasil”, as autoras proporcionam uma reflexão explorada no presente estudo pelo viés da Análise Crítica do Discurso (ACD), por meio das representações sociais que influenciam a interpretação e construção dos sentidos, escancarando a visão crítica dos problemas sociais, por meio da produção do discurso de poder, dominação e desigualdade social. O artigo “Princípios do cooperativismo e a cultura do garimpo: uma análise nas cooperativas minerais de Minas Gerais” aponta que a indução da atividade garimpeira em organizações cooperativas não significa a promoção da cooperação e nem a aplicação dos princípios do cooperativismo à atividade garimpeira. A principal conclusão é de que cooperativas minerais evidenciam significativas diferenças dos outros ramos do cooperativismo. Em “Infância e cidade: os processos de socialização das crianças”, apresentam-se os resultados parciais de uma pesquisa desenvolvida objetivando-se o conhecimento de como é a compreensão das crianças sobre a cidade em que vivem. Por fim, “Atividade comunitária, estima de lugar e conscientização: uma análise da participação social do movimento Resistência Vila Vicentina” analisa a relação entre a participação em atividades comunitárias, o índice de estima de lugar e o processo de conscientização de moradores de uma comunidade ameaçada de desapropriação em Fortaleza, Ceará.

O alinhamento da diversidade temática das abordagens nos artigos publicados neste volume 23, edição n. 1, de 2022, tem uma relação direta com o Desenvolvimento Local e com as Linhas de Pesquisa do nosso Programa de Mestrado e Doutorado. O nosso agradecimento especial para a nossa equipe editorial, que, nestes tempos de pandemia, de perdas irreparáveis, de trabalho remoto, não tem medido esforços para a publicação dos números da Interações. O nosso agradecimento especial, também, aos nossos avaliadores do Comitê Editorial e aos nossos avaliadores ad hoc, pelo pronto atendimento e pela qualidade de suas avaliações.

REFERÊNCIAS

  • BENEDICT, R. Padrões de cultura. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1972.
  • BOAS, F. Antropologia cultural. [Org. Celso Castro]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109 p.
  • BONNEMAISON J.; CAMBRÈZY, L. Le lien territorial: entre frontières et identités. Géographies et Cultures, Paris, n. 20, 1996.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
  • ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed., 9. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022
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