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O território cultural: espaço de saberes e paisagens construídas

A definição de território perpassa por um conceito usual que corresponde a uma área do espaço delimitado por fronteiras, a partir de uma relação que implica posse ou propriedade, ou seja, do território com a sociedade. Fica evidente, então, nesta reflexão inicial, que toda e qualquer ação que a sociedade desenvolve acontece e materializa-se no território, por meio de relações sociais entre os níveis mais diferenciados nas escalas local, nacional e global, interferindo na vida social, política, econômica e cultural das sociedades.

O território resulta, enfim, da ação cultural do grupo, e o apego a determinado espaço se dá não pelo espaço em si, mas por aquilo que os indivíduos constroem naquele lugar. Assim, os valores culturais que ligam de forma identitária os sujeitos no espaço são fundamentais.

De acordo com Santos (2007, p. 61)SANTOS, M. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. São Paulo: Hucitec, 2007., “a cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos”, pois a cultura é resultado do processo de viver, das relações sociais, assim como a territorialidade é resultado do processo de ocupação do espaço, das relações estabelecidas entre o homem e o seu meio. Reforça esta afirmação Haesbaert (2006)HAESBAERT, R. . mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à mutiterritorialidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 2006., para quem os territórios se formam quando há identificação, significação e apropriação de espaços, isto é, ao falarmos em territorialidade, estamos tratando necessariamente da dimensão simbólica ou, mais estritamente, cultural do espaço.

O território cultural é, portanto, um espaço cujas paisagens são construídas e os ambientes transformados em artefatos sociais.

Consequentemente, se determinada área é definida culturalmente, ela deve apresentar a variabilidade cronológica da cultura material, de cenários sociais (caminhos, canais, aterros, áreas de roça, de acampamento, de caça, de captação de recursos etc.) e de espécies culturalmente selecionadas, distribuídas em suas paisagens. Essas variabilidades (materiais, cenográficas e de espécies) poderiam caracterizar um determinado território (MAGALHÃES, 2003, p. 396MAGALHÃES, M. P. Território cultural e a transformação da floresta em artefato social. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 8, n. 2, p. 381–400, maio/ago. 2013).

Apesar de esta perspectiva não ser consensual e poder suscitar infindáveis debates, a ideia da cultura enquanto manifestação natural facilita o reconhecimento de que toda sociedade é capaz de construir nichos culturalmente identificáveis por meio de símbolos, práticas e comportamentos (JABLONKA; LAMB, 2009JABLONKA, E.; LAMB, M. J. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Podemos refletir, então, que a cultura evolui, e sua evolução pode ser definida como a mudança, ao longo do tempo e do espaço, na natureza e na frequência de preferências, padrões e produtos do comportamento socialmente transmitido numa população. Neste sentido, a indissociabilidade entre cultura e território, portanto, deve ser encarada como premissa para a elaboração de políticas culturais, particularmente quando essas políticas se traduzem na criação de espaços culturais (ALBINATI, 2009ALBINATI, M. O território nas políticas culturais para as cidades. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 2, n. 2, p. 72–83, 2009.).

Os territórios, de acordo com Guattari (1985, p. 110)GUATTARI, F. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Espaço e Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos, São Paulo, ano 5, p. 109–20, 1985.:

[...] estariam ligados a uma ordem de subjetivação individual e coletiva e o espaço estando ligado mais às relações funcionais de toda espécie. O espaço funciona como uma referência extrínseca em relação aos objetos que ele contém. Ao passo que o território funciona em uma relação intrínseca com a subjetividade que o delimita.

A partir desta visão, os espaços culturais se interligam com a diversidade cultural, que se refere aos diferentes costumes sociais, incluindo culinária, vestimentas, linguagem, hábitos, tradições e manifestações religiosas que se encontram em diferentes territórios. São nesses territórios que os espaços culturais estão presentes, sejam nos centros culturais, sejam em arquivos históricos, museus, bibliotecas, teatros.

O presente número da Interações – Revista Internacional de Desenvolvimento Local, da Universidade Católica Dom Bosco, traz como abordagens temáticas, em um primeiro momento, os artigos “Memórias ambientais e turismo no sul de Minas Gerais: contribuições para gestão de territórios rurais” e “Sintaxe do espaço de praças como signo para regeneração urbana turística: Praça Mauá e Praça XV, Rio de Janeiro”, nos quais se evidencia a necessidade de agendas de governanças sólidas e concatenadas com o bem público, assim como regeneração urbana e urbanização turística e espaço público.

Outros artigos somam-se a esta discussão ao abordarem assuntos como a distribuição de áreas verdes nos onze bairros da região urbana do Prosa, na cidade de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul; a percepção de professoras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I das escolas municipais rurais de Morrinhos, GO, sobre o meio ambiente e a Educação Ambiental; e as ferramentas tecnológicas que comportam as cidades inteligentes, com vistas à redução dos acidentes de trânsito, nos centros urbanos, intitulados: “Acesso às Áreas Verdes Urbanas e Equidade Verde: Um estudo em Campo Grande, MS”; “A percepção sobre meio ambiente e Educação Ambiental na prática docente das professoras das escolas municipais rurais de Morrinhos, GO”; e “As ferramentas tecnológicas voltadas para o bem-estar coletivo num ambiente urbano inteligente: um ensaio teórico sobre Campo Grande, MS”.

A Interações publica também “Cordel das Novíssimas Universidades Federais Brasileiras”, criado sob a égide de uma política pública nacional que compreendeu a educação superior como estratégia de desenvolvimento para os territórios do Brasil; “Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE): percepções dos diretores das escolas estaduais do município de Campo Grande, MS”, objetivando analisar as percepções dos diretores das escolas estaduais de Campo Grande, MS, em relação à Lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e aos produtos adquiridos da agricultura familiar; “Internacionalizando a extensão e estendendo a internacionalização: estudo de caso das 3ª e 4ª missões da universidade”, com sugestão de integração das missões de extensão e internacionalização, por meio de projetos para aproximar a universidade da comunidade, fomentando o desenvolvimento humano, social e econômico da sociedade em seus diversos níveis, local, nacional e global.

Traz, ainda, neste volume 1, discussões voltadas ao uso de tecnologias, com o artigo “A difusão de tecnologias no meio agrícola na Caatinga – a região de clima semiárido brasileiro”, enfatizando a gestão do conhecimento e a gestão produtiva; “Nível tecnológico das unidades agrícolas familiares nas microrregiões do Nordeste do Brasil”, em que se apresenta uma mensuração do nível tecnológico das unidades agrícolas familiares (UAF) da região Nordeste do Brasil. Em “Comunidade de Atalaia, Canavieiras, Bahia, Brasil: uma análise sob a ótica da sustentabilidade ambiental”, os autores indicam a necessidade da operacionalização de ações eficazes direcionadas a essas questões, após analisarem a sustentabilidade ambiental da comunidade tradicional.

No artigo “Adoção de embalagens plásticas sustentáveis agroalimentares: um olhar na dinâmica da produção orgânica e sustentável em face da Economia Circular”, os autores analisam o processo de adoção de embalagens plásticas sustentáveis a partir da percepção dos consumidores e gestores do setor agroalimentar em face da Economia Circular. Em “Caminhos plurais de cuidados com a saúde: medicalizações do simbólico”, objetivou-se problematizar a hegemonia da noção de medicalização baseada no arcabouço médico-científico ocidental. O artigo “Indicadores de saneamento básico: uma aplicação da Análise Fatorial para os municípios das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí” busca analisar um conjunto de indicadores de saneamento básico para os municípios abarcados pelas Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, baseando-se no conceito de saneamento básico da Lei n. 14.026/20.

Em “Riscos nas atividades de prevenção, preparação e resposta rápida (P2R2) com o transporte de produtos químicos e perigosos em Foz do Iguaçu, PR”, os autores identificam os produtos químicos e artigos perigosos movimentados por meio deste porto entre 2014 e 2018, assim como os riscos que afetam as organizações locais na prevenção, preparação e resposta a emergências envolvendo estes produtos. Ainda, o artigo “Modelização de agroecossistemas como ferramenta de comunicação em ambientes de montanha no Brasil e Argentina” traz uma análise de sistemas de produção de base agroecológica e convencional desenvolvidos em ambientes de montanha.

Finalmente, no artigo “Ganhos competitivos na constituição de uma cooperativa em uma vila da zona rural do município de Tracuateua, PA”, os autores demonstram a relevância do assunto tratado, ao enfatizarem que o conhecimento acadêmico pode transformar um grupo de pequenos agricultores individuais, fornecendo possíveis alternativas de geração de renda e desenvolvimento social.

O alinhamento da diversidade temática das abordagens nos artigos publicados neste volume 24, n. 1, de 2023, tem uma relação direta com o Desenvolvimento Local e suas interfaces interdisciplinares, assim como com as linhas de pesquisa do nosso Programa de Mestrado e Doutorado. O nosso agradecimento especial para a nossa equipe editorial, que, nestes tempos difíceis de pós-pandemia, não tem medido esforços para a publicação dos números da Interações. O nosso agradecimento também especial aos nossos avaliadores do Comitê Editorial e aos nossos avaliadores ad hoc pelo pronto atendimento e pela qualidade de suas avaliações.

REFERÊNCIAS

  • ALBINATI, M. O território nas políticas culturais para as cidades. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 2, n. 2, p. 72–83, 2009.
  • GEERTZ, C. . interpretação das culturas Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
  • GUATTARI, F. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Espaço e Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos, São Paulo, ano 5, p. 109–20, 1985.
  • HAESBAERT, R. . mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à mutiterritorialidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 2006.
  • JABLONKA, E.; LAMB, M. J. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • MAGALHÃES, M. P. Território cultural e a transformação da floresta em artefato social. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 8, n. 2, p. 381–400, maio/ago. 2013
  • SANTOS, M. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. São Paulo: Hucitec, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023
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