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Padrões espaciais da mortalidade fetal: cenário anterior e posterior à implantação da vigilância

Resumo

Objetivos:

analisar a distribuição espacial dos óbitos fetais, antes e após a implantação da vigilância deste evento, na cidade do Recife, Nordeste do Brasil.

Métodos:

estudo ecológico utilizando os 94 bairros existentes como unidade de análise espacial. Foram calculados os coeficientes de mortalidade fetal brutos e empregado o estimador bayesiano empírico local para a suavização de flutuações aleatórias desses coeficientes. A autocorrelação espacial foi analisada com a utilização do Índice de Moran Global e agregados espaciais foram identificados pelo Moran Local.

Resultados:

foram registrados 1.356 óbitos fetais (coeficiente de mortalidade de 9,9 óbitos por mil nascimentos) e 1.325 óbitos fetais (coeficiente de 9,6 óbitos por mil nascimentos), nos períodos anterior e posterior à implantação da vigilância do óbito, respectivamente. Houve diferença estatisticamente significante (p<0,05) entre os índices de Moran Global (I) dos períodos anterior (I=0,6) e posterior (I=0,4) à implantação da vigilância. Identificaram-se agregados espaciais nos bairros das regiões Norte e Leste da cidade, como maior risco de mortalidade fetal.

Conclusão:

a análise espacial apontou áreas que persistem como prioritárias para o planejamento de ações de vigilância e assistência à saúde para a redução da mortalidade fetal.

Palavras-chave
Mortalidade fetal; Análise espacial; Óbitos fetais; Estatísticas vitais

Abstract

Objectives:

to analyze the spatial distribution of fetal deaths before and after implementation of surveillance for this event in the city of Recife, in the Northeast Region of Brazil.

Methods:

an ecological study whose spatial analysis unit was the 94 neighborhoods. The gross fetal mortality rates were calculated and the local empirical Bayesian estimator was adopted to smooth out random fluctuations of such rates. To analyze the spatial autocorrelation, the Global Moran’s Index was used, and spatial clusters were located by the Local Moran’s Index.

Results:

during the period before implementation of death surveillance, 1,356 fetal deaths were reported, a coefficient of 9.9 deaths per thousand births. During the second period, 1,325 fetal deaths occurred, a coefficient of 9.6 deaths per thousand births. The Global Moran’s Indexes (I) were I=0.6 and I=0.4 for the first and second periods, respectively, with statistical significance (p<0.05). For both periods analyzed, spatial clusters of high-risk neighborhoods were identified in the northern and eastern regions of the city.

Conclusion:

the spatial analysis indicated areas that persist as priorities for planning surveillance and health assistance actions to reduce fetal mortality.

Key words
Fetal mortality; Spatial analysis; Fetal death; Vital statistics

Introdução

A mortalidade fetal é um indicador que reflete a qualidade da assistência à saúde da mulher no prénatal e parto. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), contribuíram para impulsionar a redução da mortalidade materna e de crianças menores de cinco anos, no período de 2003 a 2015, no mundo. As taxas de mortalidade fetal, por sua vez, diminuíram mais lentamente, desde 2000, quando comparadas com a mortalidade materna e dos menores de cinco anos. Em 2015, estimou-se que anualmente ocorram 2,6 milhões de óbitos fetais no mundo, quase a totalidade (98%) em países de baixa e média renda.11 Lawn JE, Blencowe H, Waiswa P, Amouzou A, Mathers C, Hogan D, et al. Stillbirths: rates, risk factors, and acceleration towards 2030. Lancet. 2016; 387 (10018): 587-603.

Historicamente, as mortes fetais não têm sido incorporadas às estimativas globais de mortalidade e, mesmo com os esforços recentes para incluí-los, o coeficiente de mortalidade fetal ainda é subestimado.22 McClure EM. Enhancing routine surveillance to improve stillbirth data. Lancet Glob Health. 2020; 8 (4): e464-5. O estigma social e a classificação incorreta, como aborto espontâneo ou mortes neonatais precoces, são fatores que contribuem para esse fato.22 McClure EM. Enhancing routine surveillance to improve stillbirth data. Lancet Glob Health. 2020; 8 (4): e464-5. Atualmente, a redução dos óbitos fetais está estabelecida no The Every Newborn Action Plan, da Organização Mundial da Saúde, que objetiva alcançar uma cobertura equânime de qualidade nos cuidados para todas as mulheres e recém-nascidos e tem como meta ≤12 natimortos por mil nascimentos até 2030.33 WHO (World Health Organization). Every newborn: An action plan to end Preventable deaths: Executive summary. Geneva; 2014 [cited 2020 Aug 10]. Available from: https://www.who.int/maternal_child_adolescent/newborns/every-newborn/en/
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Para o monitoramento dos progressos do plano, são necessários dados precisos, que podem auxiliar a formulação de políticas e o monitoramento da mortalidade fetal.22 McClure EM. Enhancing routine surveillance to improve stillbirth data. Lancet Glob Health. 2020; 8 (4): e464-5. O plano sugere a implantação de sistemas nacionais de vigilância de mortalidade perinatal, que registrem todos os óbitos e as suas causas, além da identificação dos fatores contextuais e maternos que podem contribuir para a redução dos óbitos evitáveis.44 Po’ G, Monari F, Zanni F, Grandi G, Lupi C, Facchinetti F, Stillbirth Emilia-Romagna Audit Group. A regional audit system for stillbirth: a way to better understand the phenomenon. BMC Pregnancy Child. 2019; 19 (1): 276. Países (Reino Unido, Nova Zelândia e Holanda) que implantaram essa vigilância evidenciaram uma redução na taxa de mortalidade de natimortos.55 Norris T, Manktelow BN, Smith LK, Draper ES. Causes and temporal changes in nationally collected stillbirth audit data in high-resource settings. Semin Fetal Neonatal Med. 2017; 22 (3): 118-28.

A vigilância do óbito fetal e infantil é uma estratégia que permite analisar as causas e as circunstâncias envolvidas na ocorrência desses eventos, a qualidade da assistência, além de contribuir para o aprimoramento das estatísticas vitais.66 Helps A, Leitao S, Greene R, O'Donoghue K. Perinatal mortality audits and reviews: Past, present and the way forward. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2020 July, 250: 24-30. No Brasil, no ano de 2010, foi instituída a obrigatoriedade da vigilância do óbito infantil e fetal nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS).77 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 72, de 11 de janeiro de 2010. Estabelece que a vigilância do óbito infantil e fetal é obrigatória nos serviços de saúde (públicos e privados) que integram o Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF; 2010 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt0072_11_01_2010.html
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A cidade do Recife foi um dos primeiros locais do país a implantar a vigilância do óbito infantil/fetal, antes mesmo de o Ministério da Saúde tornar obrigatória a sua realização, e continua mantendo o seu funcionamento de forma contínua. Essa vigilância tem, como propósito, a identificação de falhas na assistência de forma a subsidiar as ações estratégicas de prevenção, as mudanças nos processos de trabalho e a organização da linha de cuidado da saúde materna e infantil.88 Oliveira CM, Bonfim CV, Guimarães MJB, Frias PG, Antonino VCS, Medeiros ZM. Infant mortality surveillance in Recife, Pernambuco, Brazil: operationalization, strengths and limitations. Epidemiol Serv Saúde. 2017; 26 (2): 413-9. Dessa forma, evidencia-se o impacto que o sistema de vigilância do óbito tem na redução dos óbitos fetais. Este estudo teve como objetivo analisar a distribuição espacial dos óbitos fetais antes e depois da implantação da vigilância deste evento no Recife, Pernambuco.

Métodos

Trata-se de um estudo ecológico realizado na cidade do Recife, Pernambuco. Em 2010, o município contava com 1.537.704 habitantes e, destes, 19.142 eram menores de um ano. O Recife é totalmente urbano, com padrão heterogêneo de ocupação, com áreas altamente valorizadas e outras com problemas estruturais. A composição territorial é diversificada (morros - 67,43%, planícies - 23,26% e áreas aquáticas - 9,31%). Conta com 94 bairros agrupados em oito distritos sanitários (DS) e seis Regiões Político-Administrativas (RPA) (Figura 1). O DS VI concentra 29,1% da população. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal foi de 0,772, que representa o segundo melhor do Estado. Aproximadamente 33% da população não possui rendimentos ou recebe até um salário-mínimo. Quase 40% da população não tem instrução ou Ensino Fundamental incompleto.99 Prefeitura Municipal de Recife. Plano Municipal de Saúde 2014-2017 [Internet]. Recife: Prefeitura Municipal; 2014 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://www2.recife.pe.gov.br/servico/plano-municipal-desaude-pms-2014-2017
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No Recife, a operacionalização da vigilância do óbito fetal é realizada a partir da identificação dos óbitos, seguida da investigação epidemiológica (domiciliar, ambulatorial e hospitalar), discussão dos óbitos (com profissionais da assistência, vigilância e gestão) e, por fim, o encaminhamento das propostas de promoção, atenção à saúde e correção das estatísticas vitais.88 Oliveira CM, Bonfim CV, Guimarães MJB, Frias PG, Antonino VCS, Medeiros ZM. Infant mortality surveillance in Recife, Pernambuco, Brazil: operationalization, strengths and limitations. Epidemiol Serv Saúde. 2017; 26 (2): 413-9. São priorizados, para investigação e discussão, os óbitos fetais com peso >2.000g ou que tenham as seguintes afecções maternas como causas: sífilis, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), diabetes, hipertensão e infecção do trato urinário. A proporção de óbitos fetais investigados e discutidos no município variou entre 12,5% (2011) e 68,5% (2016).

Foram analisados todos os óbitos fetais (peso ≥500g e/ou idade gestacional ≥22 semanas) com registro do bairro de residência no Recife. Os dados foram obtidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), disponibilizados pela Secretaria de Saúde do Recife, para o cálculo do coeficiente de mortalidade fetal. No Recife, a cobertura e a qualidade do Sinasc e SIM são adequadas, possibilitando o cálculo direto dos coeficientes.1010 Rodrigues M, Bonfim C, Portugal JL, Frias PG, Gurgel IGD, Costa TR, et al. Spatial analysis of infant mortality and the adequacy of vital information: a proposal for defining priority areas. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 19 (7): 2047-54.

Figura 1
Distribuição dos bairros segundo os Distritos Sanitários da cidade do Recife. Recife, PE, Brasil.

Foram considerados dois períodos de estudo: o anterior à implantação da vigilância do óbito fetal (2004-2009) e o posterior a sua implantação (20112016). O ano de 2010, quando se estabeleceu a obrigatoriedade da vigilância do óbito infantil e fetal, foi excluído da análise. O bairro foi adotado como unidade de análise devido à facilidade de operacionalização pela gerência e gestão do sistema de saúde municipal.

Os coeficientes de mortalidade fetal bruta foram calculados para ambos os períodos. Para os bairros, considerando que as pequenas populações e/ou subnotificações podem provocar uma variabilidade das taxas brutas, foi utilizado o alisamento bayesiano empírico local, que permitiu suavizar as estimativas dos coeficientes calculados para pequenas áreas geográficas, eliminando as flutuações aleatórias não associadas à mortalidade.1111 Assunção RM, Barreto SM, Guerra HL, Sakurai E. Maps of epidemiological rates: a Bayesian approach. Cad Saúde Pública. 1998; 14 (4): 713-23. A presença de autocorrelação espacial dos coeficientes suavizados foi investigada por meio do cálculo do Índice de Moran Global (IMG). Este índice varia de menos um a um, sendo os valores próximos a zero indicativos da ausência de correlação espacial. O IMG foi classificado como fraco (<0,3), moderado (0,3-0,7) ou forte (>0,7), como utilizado na avaliação da correlação de Pearson.1212 Vale D, Morais CMM, Pedrosa LFD, Ferreira MÂF, Oliveira ÂGRC, Lyra CO. Spatial correlation between excess weight, purchase of ultra-processed foods, and human development in Brazil. Ciênc Saúde Coletiva. 2019; 24 (3): 983-96.

Para identificar os agregados espaciais, foi realizada a análise de Moran Local. Aplicou-se o diagrama de espalhamento de Moran, representado no BoxMAP, sendo os quadrantes gerados nessa técnica interpretados da seguinte forma: Q1 (região formada por bairros com elevados coeficientes de mortalidade, circundada por bairros com elevados coeficientes); Q2 (região formada por bairros com baixos coeficientes de mortalidade, circundada por bairros com baixos coeficientes); Q3 (região formada por bairros com elevados coeficientes de mortalidade, circundada por bairros com baixos coeficientes) e Q4 (região formada por bairros com baixos coeficientes de mortalidade, circundada por bairros com elevados coeficientes).1313 Monteiro AMV, Câmara G, Carvalho MS, Druck S. Análise espacial de dados geográficos. Brasília, DF: EMBRAPA; 2004. Por fim, foi construído o MoranMap, que representa os aglomerados espaciais com significância estatística igual ou inferior a 5%.1313 Monteiro AMV, Câmara G, Carvalho MS, Druck S. Análise espacial de dados geográficos. Brasília, DF: EMBRAPA; 2004. As áreas classificadas como Q1 foram consideradas como prioritárias para a vigilância do óbito fetal.

A análise espacial foi realizada por meio do programa TerraView, versão 4.2.0. A base cartográfica de bairros do Recife foi construída a partir da base de setores censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).1414 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (BR), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cartas e mapas [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2014 [cited 2020 Sep 21] Available from: https://portaldemapas.ibge.gov.br/portal.php#homepage
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O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (CAEE 82816018.1.0000.5201).

Resultados

Entre 2004 e 2009, período anterior à implantação da vigilância do óbito, foram registrados 1.356 óbitos fetais (excluídos 52 óbitos, 3,7%, sem registro de bairro de residência), o que configura um CMF de 9,9 óbitos por mil nascimentos no Recife (Tabela 1). Dos 94 bairros, 73 (77,6%) apresentaram CMF superiores à média municipal, sendo as taxas mais elevadas, superiores a 11,3 óbitos por mil nascimentos, identificadas ao Norte, Oeste e Leste (Figura 2A). A autocorrelação espacial global do tipo moderada foi confirmada (IMG=0,6; p=0,001), enquanto a autocorrelação espacial local ratificou, por meio do Q1, aquelas regiões já indicadas na suavização bayesiana (Figura 2B e 2C).

No segundo período (2011-2016), posterior à implantação da vigilância, ocorreram 1.325 óbitos fetais (excluído 37 óbitos, 2,7%, sem registro de bairro de residência), perfazendo um CMF de 9,6 óbitos por mil nascimentos (Tabela 1). Em 55 (58,5%) dos 94 bairros, o CMF foi superior à média municipal (Figura 2D). Foi observada a manutenção da autocorrelação espacial do tipo moderada (I=0,4; p=0,001) e, no nível local, continuaram sendo observados clusters estatisticamente significantes do tipo Q1 no extremo Norte e Leste do município (Figura 2E e 2F).

Discussão

Observou-se uma redução no coeficiente de mortalidade fetal de 9,9 para 9,6 óbitos por mil nascimentos, seguindo a tendência nacional,1515 Vieira MSM, Vieira FM, Fröde TS, d'Orsi E. Fetal Deaths in Brazil: Historical Series Descriptive Analysis 1996-2012. Matern Child Health J. 2016; 20 (8): 1634-50. comportamento diferente do observado no coeficiente de mortalidade infantil, que apresentou uma diminuição significativa, fortemente influenciada por avanços nas políticas de saúde, ações intersetoriais e implantação de estratégias como a vigilância do óbito.1616 Oliveira CM, Bonfim CV, Guimarães MJB, Frias PG, Medeiros ZM. Infant mortality: temporal trend and contribution of death surveillance. Acta Paul Enferm. 2016; 29 (3): 282-90. Esse comportamento pode ser reflexo da baixa visibilidade dos óbitos fetais, os quais não foram contemplados nos acordos internacionais, além de não serem foco de atenção especial nas políticas públicas.11 Lawn JE, Blencowe H, Waiswa P, Amouzou A, Mathers C, Hogan D, et al. Stillbirths: rates, risk factors, and acceleration towards 2030. Lancet. 2016; 387 (10018): 587-603.,66 Helps A, Leitao S, Greene R, O'Donoghue K. Perinatal mortality audits and reviews: Past, present and the way forward. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2020 July, 250: 24-30.

Em todo o período de estudo foram identificadas regiões do tipo Q1, caracterizadas por elevados coeficientes de mortalidade fetal, prioritárias para a vigilância. Entretanto, comparando o segundo período de estudo em relação ao primeiro, foi percebida a redução do número de bairros Q1, com destaque para o desaparecimento do agregado (cluster) localizado ao Oeste do município. Esse comportamento pode ser reflexo da implantação da vigilância do óbito fetal, uma vez que suas ações incluem a identificação de situações de vulnerabilidade social e de falhas na rede de serviços e atenção à saúde que influenciam fortemente a ocorrência das mortes.66 Helps A, Leitao S, Greene R, O'Donoghue K. Perinatal mortality audits and reviews: Past, present and the way forward. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2020 July, 250: 24-30.,88 Oliveira CM, Bonfim CV, Guimarães MJB, Frias PG, Antonino VCS, Medeiros ZM. Infant mortality surveillance in Recife, Pernambuco, Brazil: operationalization, strengths and limitations. Epidemiol Serv Saúde. 2017; 26 (2): 413-9.

Tabela 1
Distribuição dos óbitos fetais de mães residentes no Recife. Recife, PE, Brasil, 2004-2009 e 2011-2016.

Contudo, os bairros do extremo Norte e Leste perpetuaram a sua classificação em Q1. Trata-se de regiões caracterizadas por condições de vida e de infraestrutura precárias, que concentram os grupos populacionais mais carentes e expressivas desigualdades sociais.99 Prefeitura Municipal de Recife. Plano Municipal de Saúde 2014-2017 [Internet]. Recife: Prefeitura Municipal; 2014 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://www2.recife.pe.gov.br/servico/plano-municipal-desaude-pms-2014-2017
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Os bairros da zona Norte caracterizam-se pela intensa verticalização da área de planície e por uma área elevada (morros), ocupada pela população de maior vulnerabilidade social. Uma recente análise espacial da mortalidade infantil e fetal no Recife e sua relação com a privação social identificou agregados (cluster) de áreas com precárias condições de vida nas zonas Norte e Oeste.1717 Bonfim CV, Silva APSC, Oliveira CM, Vilela MBR, Freire NCF. Spatial analysis of inequalities in fetal and infant mortality due to avoidable causes. Rev Bras Enferm. 2020; 73 (Suppl. 4): e20190088. Em outro estudo, as mesmas áreas apresentaram os piores indicadores de realização de prénatal.1818 Holanda ER, Galvão MTG, Pedrosa NL, Paiva SS, Almeida RLF. Spatial analysis of infection by the human immunodeficiency virus among pregnant women. Rev Latino-Am Enferm. 2015; 23 (3): 441-9.

A análise da mortalidade fetal e dos determinantes sociais da saúde mostrou padrões espaciais associados às desigualdades entre as regiões, posições econômicas, gênero e acessibilidade ao prénatal. Em outras palavras, a mortalidade fetal associou-se à circunstância social desigual em que as pessoas vivem.1919 Adeyinka DA, Olakunde BO, Muhajarine N. Evidence of health inequity in child survival: spatial and Bayesian network analyses of stillbirth rates in 194 countries. Sci Rep. 2019; 9 (1): 19755.

A adequada atenção ao pré-natal favorece o diagnóstico precoce e o tratamento de inúmeras complicações e possibilita a educação em saúde para minimizar comportamentos de risco, contribuindo para a redução da mortalidade fetal, infantil e materna. A melhoria da qualidade pré-natal é importante para maximizar a saúde materna e o bem-estar fetal, estando fortemente associada com menores índices de óbitos fetais.11 Lawn JE, Blencowe H, Waiswa P, Amouzou A, Mathers C, Hogan D, et al. Stillbirths: rates, risk factors, and acceleration towards 2030. Lancet. 2016; 387 (10018): 587-603.

A análise espacial, por meio da estimativa bayesiana e posterior análise de autocorrelação espacial global e local, permitiu identificar as áreas prioritárias para as ações da vigilância. Além do uso exploratório, pode, por meio de outras técnicas, identificar os fatores associados e apoiar no direcionamento de estratégias no território para o controle do agravo.

A disponibilidade gratuita de programas computacionais, a exemplo do TerraView e QGis, e de bases cartográficas disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) viabilizam a incorporação dos sistemas de informações geográficas na rotina dos serviços de saúde, em especial nas ações de vigilância em saúde.

Este estudo apresenta algumas limitações: 1) em relação ao desenho de estudo, a falácia ecológica é aparentemente inerente; 2) a utilização de dados secundários, que podem conter falhas de preenchimento e subnotificação; 3) o bairro como unidade de análise espacial pode ocultar as desigualdades internas, que poderiam ser mais evidenciadas em unidades menores, por exemplo: o setor censitário. Considerando, o bairro como unidade de análise não é possível inferir que os coeficientes de mortalidade fetal se distribuem de forma homogênea; 4) não foram analisadas as variáveis sobre os óbitos fetais, disponíveis no SIM, que poderiam auxiliar na redução da mortalidade fetal. Em que pesem, essas limitações, as diferenças espaciais evidenciadas nos coeficientes de mortalidade fetal nos resultados do estudo, podem contribuir com as ações da vigilância do óbito no Recife.

Figura 2
Distribuição espacial da mortalidade fetal. Recife, PE, Brasil. (A) Coeficiente de mortalidade fetal estimado pelo método bayesiano (por mil nascimentos), (B) BoxMAP e (C) MoranMAP, 2004 a 2009; (D) Coeficiente de mortalidade fetal pelo método bayesiano (por mil nascimentos), (E) BoxMAP e (F) MoranMAP, 2011 a 2016.

As mudanças observadas nos padrões espaciais dos óbitos fetais após a implantação da vigilância, pode ser reflexo das intervenções produzidas pela estratégia. O uso do geoprocessamento permitiu a identificação das diferenças territoriais e sinalizou as áreas prioritárias no planejamento de ações para o aprimoramento da vigilância e assistência à saúde visando à redução da mortalidade fetal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2020
  • Revisado
    21 Jun 2021
  • Aceito
    19 Jul 2021
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