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Insights sociológicos

Sociological insights

Resumo:

O texto apresenta uma breve discussão acerca dos insights que as obras de Hannah Arendt e Walter Benjamim oferecem para a tematização do sujeito e dos processos de subjetivação que tem sido marcante nas investigações sociológicas. Orienta a argumentação a hipótese de que, em ambos os casos, as reflexões são pautadas por uma compreensão bastante específica da vida social e do desenrolar histórico, que tem como fulcro o caráter contingente do agir humano. Neste sentido, identificam-se nas categorias “ação” e “experiência” o cerne das proposições dos autores. Conclui-se, ao final, que embora Arendt e Benjamin tenham apontado os imensos desafios que as condições materiais e a mentalidade moderna impõem ao sujeito como possibilidade para o existir humano, ambos indicam que o sujeito livre, como postulado que preserva o homem de ser reduzido a objeto ou recurso de poder ou prazer, subsiste não apenas como valor, mas também como potencialidade.

Palavras-chave:
Sujeito; Subjetivação; Ação; Experiência

Abstract:

The text presents a brief discussion about the insights that the works of Hannah Arendt and Walter Benjamin offer to the approach of the subject and the process of subjectivation that are common in sociological investigations. The argument is guided by the hypothesis that in both cases the reflections are based on a very specific understanding of social life and historical development, which is based on the contingent character of human action. In this sense, the categories “action” and “experience” are the core of the authors’ propositions. In the end, we conclude that although Arendt and Benjamin have pointed out the immense challenges that the material conditions and the modern mentality impose on the subject as a possibility for human existence, both authors indicate that the free subject subsists not only as a value but also as a possible outcome, as the postulate that preserves man from being reduced to an object or a resource of power or pleasure.

Keywords:
Subject; Subjectivation; Action; Experience

Sujeito e subjetivação têm sido temas centrais nas investigações e elaborações sociológicas produzidas desde a virada linguística, especialmente a partir da década de 1980. Frente ao permanente desafio de tematizar as formas estabilizadas e as transformações na relação entre indivíduo e sociedade, ação e estrutura, os sociólogos têm cada vez mais recorrido à noção de sujeito e à problematização dos processos de subjetivação no mundo contemporâneo como mediações entre aquelas categorias conceituais.

Curiosamente, as reflexões de dois filósofos, produzidas entre a primeira metade do século 20 e os anos 1970, tematizaram estas questões antes mesmo que a sociologia o fizesse de forma mais sistemática e consistente. Embora não as tenham enfocado direta e específicamente, as análises de Walter Benjamin e Hannah Arendt apresentam importantes insights para a compreensão sociológica do sujeito e das possibilidades dos processos de subjetivação na modernidade.

O objetivo deste texto é apresentar brevemente o tratamento dado à temática pelos dois autores a partir de textos selecionados. Orienta esta apresentação a hipótese de que, em ambos os casos, as elaborações são pautadas por uma compreensão bastante específica da vida social e do desenrolar histórico, que tem como fulcro o caráter contingente do agir humano.

Ação e experiencia: as condições da subjetivação e da emergencia do sujeito

O sujeito é uma criação histórica recente, produto da modernidade. Segundo Alain Touraine (1994)TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., se é indiscutível que a modernidade diz respeito à racionalização e à secularização da vida, o que melhor a define não é o progresso da técnica ou o individualismo, “mas a exigência de liberdade e a sua defesa contra aquilo que transforma o ser humano em instrumento, em objeto ou em estranho absoluto” (Touraine, 1994TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., p. 275). A esta segunda faceta da modernidade Touraine se refere como subjetivação, ou seja, “a penetração do sujeito no indivíduo e, portanto, a transformação - parcial - do indivíduo em sujeito” (Touraine, 1994TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., p. 249).

Esta formulação deixa evidente a distinção sociológica entre os conceitos de indivíduo e sujeito. Adotando-se a síntese conceitual proposta por Cornelius Castoriadis (2007)CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., tem-se que o indivíduo diz respeito a uma unidade disposicional, à entidade fabricada por toda sociedade, a partir do material bruto da psique e do corpo biológico e mediante a socialização, para ser capaz de funcionar adequadamente, conformando-se no essencial a certas regras e valores, perseguindo fins que são colocados pela sociedade e agindo segundo motivações e modos de fazer relativamente estáveis para que seu comportamento seja suficientemente previsível. O sujeito, por sua vez, remete à condição singular de cada ser humano e a sua capacidade de refletir sobre essa situação e agir deliberadamente conforme essa singularidade: “[…] é ser alguém, alguém definido e, portanto, investir objetos determinados, sua identidade, o que vem com essa identidade: uma forma particular de fazer ser um mundo para si, uma forma particular de interpretar e dar sentido ao que se apresenta” (Castoriadis, 2007CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 237).

Hannah Arendt, em sua discussão sobre A condição humana, já apontara alguns elementos importantes dessa distinção fundamental nas formas de existência social do homem. Ao diferenciar as três atividades correspondentes às condições básicas da vida humana (labor, trabalho e ação), a autora destaca a ação como única que se exerce exclusivamente entre os homens e que, portanto, define a especificidade da condição humana enquanto tal. A ação a autora associa à condição da pluralidade, “ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 15), numa situação paradoxal de pluralidade de seres singulares, “sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 16).

A compreensão de Arendt sobre a radicalidade da marca que a ação e a pluralidade conferem à condição humana pode ser esclarecida observando-se a tensão latente que a autora percebe entre comportamento e existir autónomo:

[…] ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada. Com Rousseau, encontramos essas imposições nos salões da alta sociedade, cujas convenções sempre equacionam o indivíduo com a sua posição dentro da estrutura social (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 50).

Arendt chama atenção aqui para um aspecto que posteriormente adquirirá centralidade na análise sociológica (em especial entre as diferentes vertentes da sociologia da ação) e que diversos autores enfatizarão em suas análises da modernidade, qual seja, o fato histórico da liberação do comportamento humano de determinismos exteriores à consciência, como os desígnios divinos, por exemplo. Por certo, a fina intuição sociológica de Arendt não lhe permite ignorar o fato de que a vida do homem é condicionada em muitos sentidos; no entanto, não abre mão de defender a possibilidade da liberdade:

Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato toma-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. […] O que quer que toque a vida humana, ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 17).

Por outro lado, as condições da existência humana […]. jamais podem “explicar” o que somos, pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 19).

Esta possibilidade da liberdade se concretiza por meio da ação, que sempre inaugura algo novo: “agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar… imprimir movimento a alguma coisa” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 190). Mas não apenas isso. Para a autora, o caráter sui generis da ação como atividade que distingue a condição humana se evidencia no fato de que ela institui o próprio agente. Neste sentido, a ação “não é o início de uma coisa, mas de alguém que é, ele próprio, um iniciador” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989.). Esta formulação evidencia não apenas a diferenciação fundamental, para Arendt, entre o mero ser do homem e o agente, mas desvenda alguns indícios da concepção de subjetivação latente em suas reflexões.

E Arendt vai além. Ao estabelecer uma relação necessária entre ação e discurso, como ato em palavras, postula que essas atividades têm o condão de revelar a própria “humanidade do homem”: “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 189). É exatamente neste ponto, ao recorrer à imagem de um segundo nascimento por meio da ação e do discurso, que a autora revela de maneira inequívoca sua concepção sobre a emergência do sujeito. Palavras e atos, ao exporem ao mundo o ser que fala e age, revelam não apenas sua identidade, mas o que pensa e o que deseja, ou seja, expressam uma concepção própria de si. Nas palavras de Arendt,

Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano […]. Esta revelação de ‘quem’, em contraposição a ‘o que’ alguém é - os dons, qualidades, talentos e defeitos que alguém pode exibir ou ocultar - está implícita em tudo o que se diz ou se faz (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 192).

É por isso que, na visão da autora, a ação é “uma das mais decisivas experiências humanas”. A ação é não apenas a essência da liberdade, mas é também o que revela (e porque não dizer constitui) o sujeito. A autora é tão contundente a respeito deste vínculo fundamental entre ação e sujeito da ação, que chega a afirmar que “sem a revelação do agente no ato, a ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 193). Fica claro, portanto, que a descaracterização deste aspecto essencial da ação (e do discurso), qual seja, sua vinculação intrínseca a um agente que se projeta como ser autônomo e singular, como sujeito de seus atos, inviabiliza que se fale, nos termos de Arendt, da ação como definidora da condição humana.

A alusão de Arendt à ação e ao discurso como experiência evoca diretamente o pensamento de Walter Benjamin. De maneira interessante, é precisamente este conceito que permite apreender o que o autor vislumbra acerca do sujeito e da subjetivação. Experiência, em Benjamin, remete à apreensão plena do que se passa no tempo e no espaço, de modo que seja possível elaborar um significado particular para o vivido. Para o autor, a experiência, embora enraizada na objetividade, na materialidade objetiva, diz do subjetivo, de quem experiencia o ocorrido, o que remete ao sujeito da experiência (Vaz, 2005VAZ, Alexandre. Subjetividade, memória, experiência: sobre a infância em alguns escritos de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. Educação em Revista, n. 6, 2005, p. 51-66.).

Algumas das formulações mais elucidativas de Benjamin sobre o tema podem ser encontradas nos textos sobre o poeta lírico francês Charles Baudelaire e sua principal obra, As flores do mal, empregada como fio condutor da análise benjaminiana da modernidade. Um episódio do poema de Baudelaire, tomado emprestado por Benjamin, permite compreender a abordagem do autor para o tema do sujeito e da subjetividade. No poema, uma breve troca de olhares com uma dama que passa na rua (a “efêmera beldade cujos olhos me fazem nascer outra vez”) desencadeia no poeta emoções e elaborações relacionadas a si próprio, à percepção de si e de sua circunstância, o que, no sentido aqui referido, é congruente com um genuíno processo de subjetivação:

A aparição que fascina o poeta, longe de lhe ser subtraído pela multidão, só através desta lhe será entregue. O arrebatamento desse habitante da cidade não é tanto um amor à primeira vista quanto à última vista. O nunca da última estrofe [longe daqui! tarde demais! nunca talvez!] é o ápice do encontro, momento em que a paixão, aparentemente frustrada, só então, na verdade, brota do poeta como uma chama (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 43).

Para melhor compreender o alcance do conceito de experiência benjaminiano, bem como as repercussões que tem para uma concepção de sujeito, vale recuperar a discussão que o autor tece sobre a aura. Para Benjamin, a aura é:

[…] uma teia singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho (Benjamin, 2012aBENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012a., p. 184).

Se chamamos de aura às imagens que, sediadas na mémoire involontaire, tendem a se agrupar em torno de um objeto de percepção, então esta aura em torno do objeto corresponde à própria experiência que se cristaliza em um objeto […] (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 137).

Percebe-se, portanto, que a experiência remete, em última instância, à contemplação da aura, à visão de uma aparição única, a qual provoca um impacto tão singular sobre o observador, que este fica sujeito aos seus efeitos. Observa-se alguém ou um objeto, mas é o ser quem observa quem sofre os efeitos dessa experiência, conscientizando-se de si por meio do que Benjamin chama de “revide do olhar”:

É, contudo, inerente ao olhar a expectativa de ser correspondido por quem o recebe. Onde esta expectativa é correspondida (e ela, no pensamento, tanto pode se ater a um olhar deliberado da atenção como a um olhar na simples acepção da palavra), aí cabe ao olhar a experiência da aura, em toda a sua plenitude […] A experiência da aura se baseia na transferência de uma forma de reação comum na sociedade humana à relação do inanimado ou da natureza com o homem. Quem é visto, ou acredita estar sendo visto, revida o olhar. Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 139-140).

A experiência aurática, segundo Benjamin, não é um evento trivial; tratase, ao contrário, de um momento extraordinário. Esta extraordinariedade não é definida pelas coisas do mundo em si, cuja aura independe do sujeito que a contempla. Os fatores que condicionam a experiência aurática dizem respeito, na verdade, às condições de apreensão sensorial e de elaboração intelectual sobre o vivido. A este propósito, Benjamin cita referencialmente o escritor Marcel Proust, segundo quem “fica por conta do acaso se cada indivíduo adquire ou não uma imagem de si mesmo, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência” (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 106). No caso da visão da dama que passa pelo poeta, a experiência aurática parece se concretizar; porém, é fugaz. A dama desaparece na multidão sem que o poeta possa saber qualquer coisa dela. O tom melancólico de Benjamin na sequência do texto remete à constatação da impossibilidade de que este momento se perpetue ou tenha qualquer encadeamento real em sua vida: “O poeta arde nessa chama; dela, contudo, não emerge nenhuma fênix” (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 43).

De maneira bastante sugestiva, Benjamin contrapõe uma existência rica em experiências à situação de pobreza (Benjamin, 2012bBENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012b.). Seu intuito é opor o estado de permanente aspiração a novas experiências significativas, o que “uma existência simples, mas absolutamente grandiosa” pode garantir (Benjamin, 2012bBENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012b., p. 127), à pobreza decorrente seja de não viver qualquer experiência ou, o que é igualmente lamentável, de estar exposto ao excesso de estímulos, o que exaure a capacidade humana de apreender as experiências e elaborar um sentido para elas - o que é o mesmo que dizer, nos termos aqui propostos, que inibe a emergência do sujeito.

As pontes entre Arendt e Benjamin

É notório que Arendt e Benjamin, além de pertencerem à mesma geração de intelectuais alemães e partilharem a condição judaica, conviveram em diferentes círculos de discussões e foram amigos. Fato é que, de modo geral, suas reflexões filosóficas evidenciam vários pontos de intensa proximidade, e mesmo complementaridade, embora Arendt se visse como pensadora da política e Benjamin, como crítico literário. Não é diferente no caso de suas formulações, ainda que indiretas, em torno dos temas sujeito, subjetividade e subjetivação. Destacam-se aqui alguns deles.

Primeiramente, merece ser realçada a questão da ambivalência na concepção sobre o sujeito, referida tanto à dimensão do protagonismo em relação à própria história, quanto ao inegável aspecto de sujeição às condições alheias a si. Embora não seja o caso de fixar rigidamente as elaborações de ambos os autores em cada um desses campos, pois a riqueza e originalidade de suas formulações não autoriza qualquer tipo de esquematismo, para efeitos heurísticos pode-se localizar a vinculação entre ação e emergência do sujeito, dedutível da argumentação de Arendt, do primeiro lado, ao passo que a associação entre experiência e subjetividade, que se pode inferir das análises de Benjamin, do segundo.

Importa notar, contudo, que as duas abordagens não se excluem, mas são ambas constitutivas de uma concepção sociologicamente orientada de sujeito e subjetividade, que se constrói sobre a dicotomia entre o sujeito fenomênico, submetido a uma rede de determinações, e o sujeito capaz de vontade, que, motivado por uma certa visão da verdade, a verdade de si, é impulsionado a agir (Castoriadis, 2007CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.). Esta dicotomia entre protagonismo e sujeição na abordagem do sujeito encontra uma espécie de solução estabilizadora nas seguintes palavras de Arendt:

Ninguém é autor ou criador da história de sua própria vida. Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 197).

Para ressaltar a relevância sociológica da ambivalência aqui evidenciada, vale lembrar que ela também se faz presente, por exemplo, na obra de Foucault. Em seus estudos sobre a clínica, sobre as instituições penais e, em especial, sobre a arqueologia do saber, o sujeito é descrito sob o enfoque da sujeição às formas de governamentalidade e aos dispositivos disciplinares que fixam identidades e comportamentos conforme as necessidades do poder. Alternativamente, nas análises sobre a história da sexualidade, o sujeito é tematizado como experiência de subjetivação resultante de escolhas de existência e daquilo que o autor denomina como práticas de si. Neste sentido, o sujeito para Foucault seria “a dobra dos processos de subjetivação sobre os procedimentos de sujeição, segundo duplicações, ao sabor da história, que mais ou menos se recobrem” (Gros, 2006GROS, Frédéric. Situação do curso. In: Michael Foucault. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 637).

Em segundo lugar, destaca-se das elaborações de Arendt e Benjamin a discussão sobre a historicidade do sujeito, no sentido mesmo da precariedade desse construto histórico. Ambos os autores coincidem em indicar que a emergência do sujeito não está dada. Para Arendt, por exemplo, quando a ação é instrumentalizada, não inicia algo genuinamente novo, não havendo, portanto, a possibilidade de constituição do sujeito. Benjamin, a seu turno, é claro ao sugerir que a subjetivação decorrente de uma experiência aurática é uma possibilidade sempre presente na vida cotidiana, que pode ou não se realizar, a depender das formas de contato entre as pessoas e as coisas e das formas de percepção sensorial do entorno.

Neste ponto, remete-se mais uma vez às proposições foucaultianas para evidenciar o caráter inovador da antecipação de Arendt e Benjamin quanto à historicidade do sujeito. Para Foucault, o sujeito ético é precário na medida em que “não está vinculado a sua verdade segundo uma necessidade transcendental ou um destino fatídico […]. É na imanência da história que as identidades se constituem. É também ali que elas se desfazem. Pois não há liberação senão na história” (Gros, 2006GROS, Frédéric. Situação do curso. In: Michael Foucault. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 638). Castoriadis, igualmente, ressalta esse caráter indeterminado do sujeito e da subjetividade como “uma possibilidade de qualquer ser humano, mas não uma fatalidade” (Castoriadis, 2007CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 72). Para este autor, a subjetividade, enquanto mundo próprio de representações, afetos e intenções, não pode ser dada de uma vez por todas, mas se constrói por operação seletiva do nosso aparelho representativo em um trabalho de criação perpétua: “nós não temos um mundo imaginado criado de uma vez por todas, mas um surgimento perpétuo de imagens, um trabalho ou uma criação perpétua dessa imaginação radical” (Castoriadis, 2007CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 104). Para o autor, a plasticidade da “função imageante” é uma característica tão marcante da subjetividade humana, unificada como projeto a realizar-se, que ele postula um prato-fechamento do processo de representação de si, em alguma parte, para que não haja progressão ao infinito (Castoriadis, 2007CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 125).

O terceiro ponto a ser enfocado aqui concerne à imbricação das formulações sobre o agir humano nas concepções de história de Arendt e Benjamin. Pertencentes à mesma geração de intelectuais formados, na passagem entre o século 19 e o século 20, na tradição cultural do romantismo alemão, os dois autores coincidem em sua visão crítica sobre a abordagem racionalista do sentido da história, que redunda no determinismo triunfalista da ideologia do progresso. Arendt é taxativa a este respeito. Para ela, o passado e o presente perderam seu antigo estado de potencialidade e é o futuro apenas que está aberto para a ação (Arendt, 1988cARENDT, Hannah. Verdade e política. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988c., p. 319). Dado o caráter intrinsecamente contingente desta, não há que se falar em sentido da história, sendo vedado qualquer determinismo. A história nasce da possibilidade de compreender o passado, onde repousa toda verdade fatual, a partir de eventos do presente, que é resultado do passado. Neste sentido, a autora afirma ainda que “podemos compreender um acontecimento somente como o fim e a culminação de tudo o que ocorreu antes, como uma ‘realização dos tempos’” (Arendt, 2008, p. 342). Quanto ao devir histórico, este é marcado pela novidade e pela imprevisibilidade: “o novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 191).

Benjamin é igualmente contumaz na crítica do determinismo histórico. A peculiaridade de suas elaborações sobre o tema (tal como Arendt fundadas em suas concepções sobre as condições do existir humano) é amplamente influenciada tanto pelo materialismo histórico quanto pelo messianismo judaico (Löwy, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.). Neste sentido, o olhar nostálgico crítico do progresso, a perspectiva de redenção a partir do passado e a defesa apaixonada da descontinuidade histórica são traços marcantes de sua compreensão sobre a história (Löwy, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.). Assim, afirma contra os progressistas das mais variadas vertentes que:

A ideia de um progresso do gênero humano na história não se pode separar da ideia de sua progressão ao longo de um tempo homogêneo e vazio. A crítica da ideia dessa progressão tem de ser a base da crítica da própria ideia de progresso (Benjamin, 2013BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Hannah Arendt. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 17).

Segue o autor:

A história é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogêneo, mas por um tempo preenchido pelo agora. Assim, para Robespeirre, a Roma antiga era um passado carregado de agora, que ele arrancou ao contínuo da história. E a Revolução Francesa foi entendida como uma Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a moda cita um traje antigo. A moda fareja o atual onde quer que se mova na selva do outrora (Benjamin, 2013BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Hannah Arendt. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 18).

No lugar da concepção de tempo homogêneo e vazio que Benjamin identifica na ideologia do progresso, que é também a ideologia dos opressores, propõe um conceito de temporalidade pleno de presente, que rompe com o contínuo. É como se a história pudesse ser suspensa no momento mesmo em que é escrita, porque este é o momento da ação e da possibilidade de “fazer história”:

O materialista histórico não pode prescindir de um conceito de presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou. Porque esse conceito é precisamente aquele que define o presente no qual ele escreve história para si. O historicismo propõe a imagem “eterna” do passado; o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Deixa aos outros o papel de se entregar, no bordel do historicismo, à prostituta chamada “Era uma vez”. Ele permanece senhor das suas forças, suficientemente forte para destruir o contínuo da história (Benjamin, 2013BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Hannah Arendt. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 19).

Finalmente, o quarto ponto a ressaltar na aproximação entre os dois autores refere-se ao vínculo que estabelecem entre ação e experiência, de um lado, e narração, de outro, em ambos os casos sob mediação de alguma forma de convivência ou referência comum. Nas proposições de Arendt, ao agir ou dizer o que é, o sujeito narra uma estória, “e nesta estória os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem algum sentido humanamente compreensível” (Arendt, 1988cARENDT, Hannah. Verdade e política. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988c., p. 323). A qualidade reveladora do discurso e da ação só se realiza quando as pessoas estão umas com as outras, em convivência comum, pois é para os outros que o sujeito se deixa revelar. Afinal,

Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem que veem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de maneira real e fidedigna (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 67).

Paralelamente ao ato de se revelar, o sujeito ancora a estória que narra em público em uma tradição, cuja força viva remete à memória de seu início (Arendt, 1988aARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988a.). A tradição é o elemento que transpõe a lacuna entre o passado e o futuro, contribuindo, por meio da rememoração coletiva, para a compreensão das coisas e do sentido da história. Neste sentido, tradição e história fazem parte do mundo público, ao qual acendem por meio da narração:

A revelação da identidade através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos, iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do recém-chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles com quem ele entre em contato (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 196-197).

Benjamin, por sua vez, afirma que, enquanto tal, a experiência se vitaliza apenas ao ser trazida para o plano da consciência e narrada. Em outras palavras, a experiência vivida só é efetivamente assimilada por meio da reconstrução do seu sentido, por meio da narração, da palavra. Aqui assume relevância fundamental na formulação do autor a associação da experiência com os temas da narração e da memória. Se é por meio da narração que as experiências significativas dos sujeitos são transmitidas a seus interlocutores, esta comunicação só acontece, tal como sugere Arendt, porque o narrado se conecta com a experiência coletiva e as práticas comuns, por meio da rememoração. Segundo Benjamin, “onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 107). Fundamental, aqui, é a ideia de que a rememoração tece a rede que todas as histórias constituem entre si, fundando uma tradição que se transmite de geração em geração (Benjamin, 2012cBENJAMIN, Walter. O narrador. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012c., p. 228). O autor chama atenção para o fato de que os dados rememorados não correspondem a dados históricos, mas à memória dos acontecimentos, sendo que “[…] as imagens emergentes da mémoire involontaire se distinguem pela aura que possuem […]” (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 139).

É importante considerar ainda que, para Benjamin, a experiência se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações: “ela supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho” (Gagnebin, 1994GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994., p. 66). A narração é, assim, a forma da comunicabilidade das experiências; é o meio pelo qual se transmite “um saber que vem de longe” e, ao mesmo tempo, se inscrevem as novas experiências na tradição, nesse saber coletivo construído por meio da “lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas” (Benjamin, 2012cBENJAMIN, Walter. O narrador. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012c., p. 223).

Limites para a emergência do sujeito: a crítica da modernidade em Arendt e Benjamin

Se ação e experiência são as categorias centrais da tematização do sujeito em Arendt e Benjamin, respectivamente, é precisamente nos óbices ou dificuldades que os autores identificam para sua concretização que se pode vislumbrar limites aos processos de subjetivação. Em ambos os casos, esses elementos são encontrados nas análises críticas que elaboram sobre a modernidade.

O aspecto central da crítica de Arendt é a instrumentalização da ação e a degradação da política como meio de atingir coisas objetivas (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989.). Para Arendt, o caráter sui generis da ação como definidora da condição humana remete ao seu caráter não instrumental: a ação, diferentemente da fabricação, não possui um fim previsível ou apreensível como seu produto final. É essencialmente fútil, nos termos da autora. Como se afirmou anteriormente, tem a ver com a realização da pluralidade, com a revelação do sujeito, com a inauguração do novo. Assim, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 191).

Deste modo, as repercussões da ação, tal como concebida por Arendt, são sempre acontecimentos contingentes. Dela o que resulta é “uma nova e interminável cadeia de acontecimentos cujo resultado final o ator é incapaz de conhecer ou controlar de antemão” (Arendt, 1988bARENDT, Hannah. O conceito de história: antigo e moderno. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988b., p. 91). Ou seja, a ação, como gesto de liberdade, que remete à subjetividade do agente, não dá origem a coisas, mas funda sentidos, histórias, a história. Sendo assim, não pode der reduzida à lógica instrumental.

O que Arendt percebe no mundo moderno é exatamente a equiparação entre sentido e fim, entre ação e intencionalidade, o que acaba por resultar em uma situação social descrita como de “ausência de sentido”:

O sentido, que não pode ser nunca o desígnio da ação e que, no entanto, surgirá inevitavelmente das realizações humanas após a própria ação ter chegado a um fim, era agora perseguido com o mesmo mecanismo de intenções e meios organizados empregado para atingir os desígnios particulares diretos da ação concreta (Arendt, 1988bARENDT, Hannah. O conceito de história: antigo e moderno. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988b., p. 113).

Esta ausência de sentido no mundo moderno significa que tudo é percebido como possível, “não somente no âmbito das ideias, mas no campo da própria realidade” (Arendt, 1988ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988a., p. 123), o que muitas vezes deixa a verdade dos fatos em segundo plano. Este é um componente crítico da modernidade que Arendt identifica particularmente nos regimes totalitários que marcaram a primeira metade do século 20. Segundo a autora, estes regimes operam no nível ideológico buscando demonstrar que a ação pode ser baseada sobre qualquer hipótese, definida seja em termos fatuais ou morais. Assim, qualquer ação coerentemente guiada sempre produzirá fatos objetivamente verdadeiros, segundo a hipótese original tomada como verdadeira. Com isso, “o processo da ação, se for coerente, passará a criar um mundo no qual as hipóteses se tornam axiomáticas e auto-evidentes” (Arendt, 1988ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988a., p. 124). Isso significa, em última instância, que a ação passa a prescindir de consciência, descaracterizando-se completamente o suposto teórico arendtiano que a vincula à realização da condição humana.

É neste diapasão que se deve compreender as ponderações de Arendt sobre a banalidade do mal exercido pelos regimes totalitários contra seus alvos e opositores. O que saltou aos olhos da autora ao fazer a cobertura do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém, em 1961, foi exatamente a eficácia das instituições do poder totalitário em anular a subjetividade de quem executa as ações do terror. Ao testemunhar o depoimento do ex-oficial acerca dos crimes por ele cometidos, manifestando reiteradas vezes em sua defesa que “apenas cumpria ordens superiores”, Arendt conclui que o regime conseguiu retirar daquele agente o que, em princípio, define o sujeito enquanto tal: a capacidade de elaboração própria, subjetiva, ainda que precária, sobre o sentido de sua ação (Arendt, 2013ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Esta tendência moderna de “apagar” o sujeito da ação contamina a própria compreensão da história, que passa a ser concebida como determinada, manifestando um sentido apriorístico aos próprios acontecimentos:

O historiador, contemplando retrospectivamente o processo histórico, habituou-se tanto a descobrir um significado ‘objetivo’, independente dos alvos e da consciência dos atores, que ele é propenso a menosprezar o que efetivamente aconteceu em sua busca por discernir alguma tendência objetiva (Arendt, 1988bARENDT, Hannah. O conceito de história: antigo e moderno. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988b., p. 124).

Embora suas ponderações sobre a modernidade levem Arendt a caracterizá-la sugestivamente como “tempos sombrios”, não se pode afirmar que a autora seja pessimista em relação à humanidade. Para ela, mesmo nos piores momentos, “jamais chegaram a suprimir a ação, a evitar que ela continuasse a ser uma das mais decisivas experiências humanas, nem a destruir por completo a esfera dos negócios humanos” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 242). Assim, ainda que a modernidade apresente desafios gigantescos em termos das perspectivas de realização da condição humana, Arendt aposta sempre no poder intrínseco da ação de iniciar o novo, a qualquer momento, imprevisível e surpreendentemente.

Benjamin não é menos crítico que Arendt, e certamente é menos otimista. A crítica que formula à modernidade atravessa sua obra de maneira cortante, estendendo-se aos mais variados âmbitos da vida social moderna. Recorre-se aqui ao binômio multidão/flâneur (Benjamin, 1994aBENJAMIN, Walter. O flâneur. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994a., 1994bBENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b., 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c.), composto por elementos extraídos dos poemas de Baudelaire, como sintetizador de alguns dos aspectos centrais da crítica benjaminiana deste contexto sócio-histórico. De um lado, o autor situa a multidão como fenômeno característico das metrópoles, que representa as novas formas de contato e de possibilidade de percepção sensorial do ambiente objetivo. A multidão é ao mesmo tempo aterrorizante e fascinante. Aterrorizante porque engole voluptuosamente os indivíduos, sem deixar quaisquer vestígios de sua presença singular; e fascinante porque, como um entorpecente, é envolvente, atrai irresistivelmente os transeuntes e a atenção dos que lhe estão próximos.

Porém, a multidão é, acima de tudo, “uma massa amorfa de passantes, de simples pessoas nas ruas” (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 113), que se move freneticamente sem sentido. Sua grandiosidade e seu ritmo frenético expõem os indivíduos ao que Benjamin denomina “vivência do choque”: à percepção saturada pelo excesso de pessoas e estímulos sensoriais, bem como à iminência do choque físico com terceiros, os indivíduos na multidão se encontram em estado de alerta permanente (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c.). Este estado de alerta impossibilita a elaboração de experiências significativas, a despeito de a aura seguir presente no mundo objetivo. Na violência e fugacidade com que as vivências transcorrem na agitação da multidão, a inflação de possibilidade de significados impede que eles sejam reconhecidos (Matos, 2010MATOS, Olgária. Mal-estar na temporalidade: o ser sem o tempo. In: Olgária Matos. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2010.), o que toma raras as experiências de singularização da subjetividade.

À multidão, Benjamin contrapõe, do outro lado, o flâneur, apresentado como personagem emblemático da grande metrópole. O flâneur é aquele que passeia ociosamente pelas ruas da grande cidade, sem a intenção objetiva de chegar a lugar algum. Ao circular a esmo, pode testemunhar o que se passa a seu redor, convertendo-se em “um observador desconhecido”, em um anônimo “cronista da vida moderna”.

Chama atenção, contudo, o fato de que o flâneur observa “de fora” o frenesi da multidão, sem tomar parte de sua dinâmica. Ao contrário, resiste a ela, pois “precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade” (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 50). Esta postura, se lhe garante as condições para permanecer como observador dos fatos, relacionando-se como exterioridade com as pessoas e os eventos que observa, também o caracteriza como um personagem que, embora faça parte do enredo, permanece desencaixado do contexto. Neste sentido, o flâneur, personagem da modernidade, nela não se realiza como sujeito.

Há dois outros elementos relevantes da crítica benjaminiana da modernidade que são atinentes à temática do sujeito e da subjetivação, quais sejam, a percepção alterada da temporalidade e a privatização da vida. No que se refere ao primeiro aspecto, ganha destaque a discussão sobre o spleen baudelairiano, sobre o tédio e “o gosto do nada” na vida social, que expõem a vivência em sua nudez (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c.). Para Benjamin, a esquematização da vida social moderna, por meio da contagem do tempo, produz uma espécie de uniformização da consciência do fluxo temporal, marcado pela monotonia e pelo tédio, que “não constituem apenas um fenômeno subjetivo e individual, mas da história social moderna e da cultura” (Matos, 2010MATOS, Olgária. Mal-estar na temporalidade: o ser sem o tempo. In: Olgária Matos. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 171). No spleen, o tempo é sempre presente: “no spleen a percepção do tempo está sobrenaturalmente aguçada; cada segundo encontra o consciente pronto para amortecer o seu choque” (Benjamin, 1994cBENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c., p. 136). Essa alteração na percepção social do tempo faz desaparecer a diferença entre o presente e o futuro, trazendo a perda do sentido da vida em comum, essencial para a orientação subjetiva: “a ‘escalada da insignificância’ resulta em uma lógica do desengajamento em relação a um mundo compartilhado e também a si mesmo” (Matos, 2010MATOS, Olgária. Mal-estar na temporalidade: o ser sem o tempo. In: Olgária Matos. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 185).

Quanto ao ponto da privatização ou interiorização da vida, Benjamin trata a questão tomando por referência a crescente transferência de vivências sociais para os espaços privados, o que converte o espaço interior em um tipo de recinto protegido da subjetividade. Neste sentido, o autor chama atenção para o investimento que se passa a fazer na organização e decoração das residências:

[…] a burguesia se empenha em buscar uma compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande […]. Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojos para chinelos e relógios de bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres e guarda-chuvas. Dá preferência a coberturas de veludo e de pelúcia, que guardam a impressão de todo contato (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 43).

Igualmente as galerias comerciais (e, posteriormente, as lojas de departamentos) se tornam, em oposição à rua, espaços privilegiados da vida social nas grandes cidades: caminhos estruturados com ferro, cobertos de vidro e revestidos de mármore que representam “o meio-termo entre a rua e o interior da casa”, e onde o flâneur se sente acolhido.

O investimento na vida entre quatro paredes (ou nas galerias, seus correlatos quase públicos) se dá na medida contrária da valorização dos espaços veramente públicos como lócus de convivência. Se é nesses novos espaços que a modernidade e os sujeitos que a constituem “ganham substância e identidade” (Gagnebin, 1994GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.), algo evidentemente se perde em termos da vida coletiva.

O tema da interiorização da vida privada na modernidade é uma questão comum entre Benjamin e Arendt. Esta autora se refere ao problema da perda do senso comum por meio da introspecção, pelo que entende “não a reflexão da mente do homem quanto ao estado de sua alma ou do seu corpo, mas o mero interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo” (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 293). Para Arendt, a modernidade ergueu “o jogo da mente consigo mesma” sobre o senso comum, que deixou de ser uma referência à qual todos se ajustavam e passou a ser entendido meramente como uma faculdade interior comum a todos, sem qualquer relação com o mundo (Arendt, 1989ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989., p. 196). Com isso, o que os homens passam a ter em comum não é mais o mundo, mas a faculdade de raciocínio, o que torna virtualmente impossível passar da “mera consciência das sensações”, intrinsecamente pessoal, para uma compreensão partilhada da realidade, substrato essencial ao processo de constituição do sujeito.

Últimas considerações

As noções de sujeito, subjetividade e subjetivação não ocuparam lugar de destaque nas reflexões de Hannah Arendt ou Walter Benjamin. Nem por isso estiveram ausentes delas. Como pensadores críticos da sociedade moderna, Arendt e Benjamin estiveram atentos para a questão da emergência do sujeito em uma configuração social que se pretende fundada no projeto de emancipação homem. E foi como pensadores críticos que identificaram as potencialidades e apontaram alguns limites para os processos de subjetivação.

A leitura aqui apresentada não esgota suas formulações sobre o tema, até porque não se debruçou sobre toda a obra dos dois autores, mas apenas sobre alguns textos. De todo modo, é razoável afirmar que, embora cientes dos imensos desafios que as condições materiais e a mentalidade moderna impõem ao sujeito como possibilidade para o existir humano, tanto Arendt quanto Benjamin indicam, talvez com algumas pequenas nuances, que o sujeito livre, como postulado que preserva o homem de ser reduzido a objeto ou recurso de poder ou prazer, subsiste não apenas como valor, mas também como potencialidade.

Em certo sentido, pode-se dizer que as formulações de Arendt e Benjamin quanto ao caráter sui generis da ação e da experiência na vida dos homens buscam o “reencantamento” do agir humano (Löwy, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.), contra o esvaziamento de sentido que o racionalismo e a secularização imputaram à existência. Seguindo Touraine na assertiva de que “o sujeito não é a alma oposta ao corpo, mas o sentido dado pela alma ao corpo, em oposição com as representações e as normas impostas pela ordem social e cultural” (Touraine, 1994TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., p. 249), não seria impróprio dizer que é uma perspectiva bem próxima a esta que conduz Arendt e Benjamin a tangenciarem, nos termos aqui referidos, o tema do sujeito e da subjetivação em suas reflexões.

Referências

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  • ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989.
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  • BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Hannah Arendt. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012a.
  • BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012b.
  • BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2012c.
  • BENJAMIN, Walter. O flâneur. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994a.
  • BENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994b.
  • BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994c.
  • CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
  • FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.
  • GROS, Frédéric. Situação do curso. In: Michael Foucault. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • LÖWY, Michael. Judeus heterodoxos. São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • MATOS, Olgária. Mal-estar na temporalidade: o ser sem o tempo. In: Olgária Matos. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
  • TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
  • VAZ, Alexandre. Subjetividade, memória, experiência: sobre a infância em alguns escritos de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. Educação em Revista, n. 6, 2005, p. 51-66.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2017
  • Aceito
    26 Set 2017
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