Acessibilidade / Reportar erro

Fenomenologia e teoria social

Phenomenology and social theory

Fenomenología y teoría social

Resumo:

O presente artigo discute o conceito de “mundo da vida cotidiana”, uma das mais importantes contribuições da “sociologia fenomenológica” de A. Schutz para a teoria social contemporânea. Argumentamos que a premissa fundamental desse conceito se refere prioritariamente à questão de ação (fluxo de atividades sempre em vias de transformação e de concretização) e não apenas de significação. Partimos do pressuposto que a sua teoria assume um “caráter ontológico”: a existência humana consiste em ser/estar no mundo e é próprio do ser humano atuar. A ação é sempre circunstancial, requer um “ímpeto inicial” (motivo) e se constitui essencialmente como processo em curso (trajeto), o que difere do “ato” (o resultado desse percurso, a ação realizada). As significações, produzidas no fluxo de atividades, são interpretações de experiências passadas. Tal premissa levanta um desafio para a sociologia: como lidar com uma realidade que em si mesma é temporal, plural, incerta?

Palavras-chave:
Mundo da vida cotidiana; Alfred Schutz; Ação

Abstract:

This article discusses the concept of “word of daily life”, one of the most important contributions of A. Schutz's “phenomenological sociology” to contemporary social theory. We argue that the fundamental premise of this concept refers primarily to the question of action (the flow of activities always in the process of transformation and realization) and not only of meaning. We start from the assumption that his theory assumes an “ontological character”: human existence consists in being in the world and it is proper to the human being to act. Action is always circumstantial, requires an “initial impetus” (motive) and is essentially constituted as an ongoing process (path), which differs from the “act” (the result of this path, the action taken). The meanings, produced in the flow of activities, are interpretations of past experiences. This premise raises a challenge for sociology: how to deal with a reality that in itself is temporal, plural, uncertain?

Keywords:
World of daily life; Alfred Schutz; Action

Resumen:

Este artículo discute el concepto de “mundo de la vida cotidiana”, una de las contribuciones más importantes de la “sociología fenomenológica” de A. Schutz a la teoría social contemporánea. Sostenemos que la premisa fundamental de este concepto se refiere principalmente a la cuestión de la acción (el flujo de actividades siempre en proceso de transformación y realización) y no sólo al significado. Partimos del supuesto de que su teoría asume un “carácter ontológico”: la existencia humana consiste en estar/ser en el mundo y es propio del ser humano actuar. La acción es siempre circunstancial, requiere un “impulso inicial” (motivo) y se constituye esencialmente como un proceso continuo (camino), que difiere del “acto” (el resultado de este camino, la acción tomada). Los significados, producidos en el flujo de actividades, son interpretaciones de experiencias pasadas. Esta premisa plantea un desafío a la sociología: ¿cómo tratar una realidad que en sí misma es temporal, plural, incierta?

Palabras clave:
Mundo de la vida diaria; Alfred Schutz; Acción

Introdução

O solo filosófico estabelecido por Husserl, cujas Investigações lógicas (1ᵃ edição em 1900-1901) fizeram nascer a fenomenologia, veio a se constituir como um dos principais processos discursivos da teoria social contemporânea. Vários cientistas sociais (particularmente a partir dos fins do século 20) têm recorrido às questões levantadas pelo “movimento fenomenológico” – termo cunhado por Spiegelberg (1965)Spiegelberg, Herbert. 1965. The phenomenological movement: a historical introduction. The Hague: Martinus Nijhoff. – com o objetivo de fundamentar a problemática das suas investigações e orientar os seus processos de teorização nas pesquisas que desenvolvem. Isso não significa dizer que necessariamente aceitem os pressupostos husserlianos como um todo. Como bem observa Heidegger (2006Heidegger, Martin. 2006. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 78), o que a fenomenologia “possui de essencial não é ser uma ‘corrente’ filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade”. Esse me parece um pressuposto fundamental para a compreensão da “sociologia fenomenológica” e é uma das premissas básicas do presente artigo.

Ao se falar em “movimento fenomenológico” é importante levar em devida consideração os aspectos tanto cognitivos (os pressupostos ontológicos e epistemológicos subjacentes nas suas reflexões) quanto institucionais (como os modos de recepção das obras, a formação de vínculos ou redes que sustentam a produção intelectual, os espaços intelectuais). Nesse sentido, deve-se estar atento às formas pelas quais as diferentes “culturas sociológicas”, institucionalizadas ao longo do século 20, se apropriaram de proposições originadas da fenomenologia. O termo “cultura sociológica” refere-se ao conjunto de práticas e saberes compartilhados por atores (como nos encontros, seminários, cursos, pesquisas) que estão associados a determinadas premissas ontológicas e epistemológicas sobre o conhecimento do mundo social (Wallerstein 2002Wallerstein, Immanuel. 2002. O fim do mundo como o concebemos: ciências sociais para o século XXI. Rio de Janeiro: Revan.). Assim, em certa medida, a “sociologia fenomenológica”, mais do que um corpo teórico sistemático, unificado e coerente, é constituída pelo diálogo mantido entre diferentes perspectivas teórico-metodológicas.

Na história da teoria social encontramos várias tentativas de se estabelecer conexões entre as ciências sociais e a fenomenologia. Vale destacar os trabalhos de Max Scheler (1874-1928), Alfred Vierkandt (1867-1953) e Geoges Gurvitch (1894-1965). Contudo, nessa galáxia de esforços, Alfred Schutz (Viena, 1899 – Nova York, 1959) é usualmente considerado como o fundador da “sociologia fenomenológica”. Sem dúvida, um clássico da teoria social. Como todo clássico, Schutz é instaurador de uma linhagem de pensamento, na qual suas formulações teórico-metodológicas são reproduzidas e, principalmente, reformuladas através de laços incertos e mutáveis entre pesquisadores, grupos e instituições. Schutz desenhou um universo conceitual de referência e estabeleceu um novo espaço de questões e problemas sobre o conhecimento de uma realidade sempre fluída e dinâmica – as relações sociais. O seu esforço de realizar uma leitura fenomenológica do mundo social contribuiu para alimentar trocas interdisciplinares e renovar as relações entre sociologia e filosofia, entre sociologia e outras ciências humanas. Contudo, deve-se ressaltar, a teoria schutziana não se constitui como um sistema homogêneo e tampouco seus seguidores formaram uma “nova escola” sociológica. O espaço de problemáticas aberto por esse filósofo social tem sido trabalhado por diversos pesquisadores com diferentes itinerários intelectuais. Poderíamos dizer que a sua fecundidade está justamente na possibilidade que oferece para o desenvolvimento de novas temáticas de pesquisas e ampliação do campo de interesse das ciências sociais. Mas, apesar das diferenças entre esses pesquisadores, pode-se identificar algumas convergências tendenciais, as quais os unificam por um “ar familiar” ao tratar os fenômenos sociais.

Somente a partir das últimas décadas do século 20 a “sociologia fenomenológica” de Schutz se tornou mais universalmente conhecida. Atualmente, o crescente interesse sobre a sua obra pode ser exemplificado pela revista Schutzian Research (criada em 2009), pelas conferências regulares (e outras atividades) do The International Alfred Schutz Circle for Phenomenology and Interpretative Social Science e pela recente publicação, na Alemanha, das suas obras completas em 12 volumes. No Brasil, a teoria schutziana tem sido atualmente mais revisitada, cabendo destacar, entre outros exemplos, as discussões desenvolvidas no grupo de trabalho “Biografia e Sociedade” nos encontros da Sociedade Brasileira de Sociologia e a publicação de um número temático da revista Civitas, organizado por Jochen Dreher e Hermílio Santos (2017Dreher, Jochen e Hermílio Santos, orgs. 2017. Dossier Sociology and Phenomenology. Civitas – Revista de Ciências Sociais 17 (3). https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.29429.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017....
).2 2 Membro do Conselho Executivo Internacional Alfred Schutz Circle, Hermílio Santos (Pucrs) tem se destacado no cenário nacional por divulgar (e explorar) o pensamento schutziano, cabendo mencionar, entre outros trabalhos, o documentário Mundo da vida. A sociologia de Alfred Schutz, realizado em 2018. Vários fatores podem ser arrolados para explicar o seu recente renascimento entre os cientistas sociais, como: o caráter não dogmático, flexível e aberto das suas reflexões sobre o mundo social; a ênfase no princípio de que os processos sociais são inesgotáveis e sempre estão além dos freios teórico-metodológicos impostos pelo conhecimento científico; o pressuposto de que a historicidade é dimensão constituinte da realidade social e, portanto, há sempre um possível componente de imprevisibilidade nas ações humanas. Enfim, uma teoria que levanta desafios metodológicos para a pesquisa social.

A grande maioria da sua produção intelectual foi constituída por ensaios, alguns deles sistemáticos e, às vezes, repetitivos, contendo demonstrações empíricas de determinados conceitos fenomenológicos ou então confrontando e enriquecendo as suas posições no diálogo com certos pensadores (como Leibniz, Max Scheler, Sartre, Whitehead, George Herbert Mead, John Dewey, Parsons). Mas as suas principais fontes de influência foram, em primeiro lugar, Husserl (que chegou a convidá-lo para ser seu assistente na Universidade de Friburgo, oferta que Schutz declinou), seguido por Max Weber, William James (principalmente The principles of Psychology, de 1890) e Henri Bergson (particularmente Ensaios sobre os dons imediatos da consciência, publicado em 1889). É importante enfatizar que, apesar da referência à fenomenologia ser uma constante na obra de Schutz, ela não é uma mera extensão do pensamento husserliano ou uma simples aplicação do método fenomenológico aos problemas das ciências sociais. As diferenças são significativas e não cabe nos limites do presente artigo discuti-las. Apenas chamamos atenção para o fato de que Husserl teve uma preocupação em desenvolver uma “fenomenologia transcendental”, enquanto Schutz voltou-se para uma “fenomenologia social”. Assim, por exemplo, se para o primeiro a fenomenologia deve colocar entre parêntese tanto o mundo exterior quanto a consciência individual e a “atitude natural” com o objetivo de entender a estrutura suprema da consciência (como a de um “Eu transcendental”), para o outro, a fenomenologia tem um “propósito existencial”: compreender as experiências que surgem em um ambiente situacional (carregado com a “presença” de diferentes subjetividades, objetos e eventos), quando indivíduos interagem e se comunicam. Além do mais, os ensaios de Schutz estão cheios de conceitos alheios à fenomenologia, muitos deles capturados das ciências sociais e que recebem novas significações.

Como já observado, a teoria schutziana passou a ser mais amplamente conhecida com as mudanças de pressupostos teórico-metodológicos ocorridas no último quartel do século 20, com o lançamento dos Collected papers iniciados em 1962 e devido à repercussão de dois livros, que deram origem a duas grandes linhagens, entre outras, das sociologias de base fenomenológica. O primeiro, The social construction of reality – publicado em 1966 pelos sociólogos austro-americanos Peter Berger (1929-2017) e Thomas Luckmann (1927-2016) – propõe ser um “tratado teórico sistemático” da sociologia do conhecimento (Berger e Luckmann 1998, 5) e gera uma das galáxias construtivistas em ciências sociais. Geralmente o termo “sociologia fenomenológica” é atribuído para designar a produção teórico-metodológica desenvolvida por Berger e Luckmann. Outro livro foi Studies in Ethnomethodology de Harold Garfinkel (1917-2011), publicado em 1967, reunindo um conjunto de textos que estuda “métodos” utilizados pelas pessoas comuns (na “atitude natural”) para fazer sentido dos contextos específicos de seus mundos e para converter esses sentidos em interações sociais. Garfinkel faz uma apropriação singular de Schutz para analisar “o conhecimento de senso comum praxiologicamente, isto é, do modo pelo qual ele se expressa nas ações ou práticas cotidianas” (Watson e Gastaldo 2015, 14). A sua obra forneceu subsídios teórico-metodológicos para várias orientações sociológicas, tais como a “etnoinvestigação”, a “análise conversacional”, a “sociologia existencial”, entre outras. No Brasil, com pequenas exceções, Schutz tornou-se inicialmente conhecido através do best-seller A construção social da realidade (primeira edição nos EUA em 1966; no Brasil, em 1973) e, em certa medida, pelos textos selecionados de sua obra feito pelo sociólogo Helmut R. Wagner, Fenomenologia e relações sociais, publicados nos EUA em 1970 e no Brasil em 1979 (reeditado em 2012). É interessante observar que o livro de Garfinkel só foi totalmente traduzido para o português em 2018. Assim, embora atualmente tenha existido um maior interesse sobre a sua teoria social, até hoje, de maneira geral, Schutz ainda continua um tanto desconhecido no Brasil e a sua obra, pouco disponível em língua portuguesa.

Nesse sentido, procuramos no presente artigo contribuir para ampliar um pouco mais a discussão sobre a obra desse filósofo social. Mais especificamente, procuramos discutir o significado de “mundo da vida cotidiana” (Lebenswelt),3 3 Na sua obra, Schutz utiliza algumas vezes termos correlatos, como “realidade humana” e “realidade eminente da vida do senso comum”. um dos principais conceitos da teoria schutziana e, acredito, uma das suas mais importantes contribuições à teoria social contemporânea. Mesmo partindo do fato de que ser em si mesmo um conceito complexo e quase impossível de ser definido e delimitado, a “vida cotidiana” é, para Schutz, a realidade paramétrica, por excelência, e, portanto, não pode ser ignorada pelos cientistas sociais.

O significado desse conceito tem sido objeto de amplos debates. Em primeiro lugar, como diz Georg Simmel (1939)Simmel, Georg. 1939. Sociología I. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina., a “vida cotidiana” é difícil de ser capturada porque está sempre in statu nascendi, algo constantemente envolvente, emergente e aderente. Por ser tão próximo a nós, o “mundo da vida cotidiana” é usualmente negligenciado, principalmente pelas perspectivas sociológicas que tomam como objeto primário de estudo os grandes sistemas sociais, as instituições, o mercado, as classes. Nesses quadros de referência teórica, as questões levantadas pelo conceito de “mundo da vida” são usualmente vistas como “não institucionais”, “não políticas”, “microssociológicas”, de “senso comum”, “pré-científicas” e, portanto, um tópico de pouca importância para estudo. Por outro lado, esse conceito foi também explorado por pesquisadores com diferentes itinerários intelectuais – a exemplo de Simmel, Lukács, Benjamin, Ernst Bloch, Henri Lefebvre, Habermas, Michel de Certeau – os quais desenvolvem distintas compreensões e dimensões do termo.

O conceito de “vida cotidiana”, explorado pela perspectiva da “sociologia fenomenológica”, tem sido objeto de crítica por parte de filósofos e cientistas sociais, como, por exemplo Derrida (em Positions), Foucault (em As palavras e as coisas), Lyotard (em The differend). De uma maneira geral, acusam a fenomenologia de focalizar demasiadamente na experiência diária de um sujeito integrado, no ator individual, na sua consciência e seus projetos; na temática da presença; na redução de toda experiência à experiência do significado. Até que ponto essas críticas fazem justiça ao conceito fenomenológico de “mundo da vida cotidiana”? Embora não seja nosso objetivo aqui analisar a pertinência dessas críticas, algumas delas despertam perplexidade pelo fato de que o “movimento fenomenológico” teve seu início justamente contrapondo-se ao “psicologismo” que, no dizer de Husserl dos prolegômenos as Investigações lógicas, caracteriza-se por reduzir geneticamente as ideias ao seu contexto experiencial contingente, seja ao nível da psicologia individual (experiências subjetivas) ou dos grupos sociais. Esse argumento é reforçado em A filosofia como ciência estrita (texto publicado em 1911), quando Husserl defende a tese de que os verdadeiros inícios ou origens do conhecimento devem estar situados fora da efemeridade do instante e dos preconceitos do momento (Husserl, 1973Husserl, Edmund. 1973. La filosofía como ciencia estricta. Buenos Aires, Editorial Nova.). Além do mais, afirmar o primado do “mundo da vida” para a compreensão dos fenômenos sociais não significa dizer que o enfoque fenomenológico não se interessa pelas instituições ou pelas estruturas de poder, como se pode ver, por exemplo, nos trabalhos de Jack Douglas (1971Douglas, Jack. 1971. American social order: social rules in a pluralistic society. New York: The Free Press. e 1973Douglas, Jack, org. 1973. Introduction to sociology: situations and structures. New York: The Free Press) ou nos estudos ecofenomenológicos (Brown e Toadvine 2003Brown, Charles e Ted Toadvine, orgs. 2003. Eco-Phenomenology: back to the Earth itself. Albany: State University of New York Press.).

O presente artigo tampouco pretende recapitular as ramificações diferenciadas, polimorfas, assumidas pelo “movimento fenomenológico” ou mesmo analisar as aproximações e contrastes entre diversas interpretações sobre o significado de “mundo da vida” elaboradas pelos teóricos sociais contemporâneos. Desnecessário dizer é por suas diversas leituras que esse conceito tem adquirido maior complexidade e aberto novos campos de análise sociológica. Limitamo-nos apenas a explorar um aspecto do significado de “mundo da vida cotidiana” desenvolvido por Schutz.

Partindo da premissa de que mais promissor do que resumir Schutz é pensar com ele, propomos discutir o conceito de “mundo da vida” como sendo um empreendimento teórico voltado principalmente para apreender os fluxos de experiências (práticas) sempre em vias de transformação e de concretização que se desenvolvem cotidianamente. Ou seja, mais do que voltado para designar os processos pelos quais os sujeitos interpretam a realidade e as suas consequências na configuração do mundo social (uma questão, portanto, de significação), o “mundo da vida cotidiana” se refere, prioritariamente, às “experiências pré-predicativas” (ou seja, aquelas que estabelecem uma relação direta entre objetos, pessoas etc.). Nesse sentido, a ideia de ação se torna central na teoria schutziana. Inseparável do conceito de ação, a “cotidianidade”, como um modo fundamental de coexistência entre os atores humanos e desses com os objetos a sua volta, é um componente existencial do ser humano. Assim, além de levantar uma questão epistemológica para as ciências sociais, a teoria schutziana nos remete ao caráter ontológico do que é “ser social”. Nesse ponto de vista, concordamos com o filósofo Maurice Natanson (aluno de Schutz e um dos principais introdutores de Sartre e Husserl nos EUA) ao afirmar, na introdução ao “Collected papers I ” de Schutz (1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., XLVII), que esse autor estabeleceu as bases conceituais de uma “antropologia filosófica”. Ou seja, mesmo reconhecendo não haver em Schutz uma teoria completa da “natureza humana”, argumentamos que a sua teoria localiza a essência da condição humana nas experiências e práticas que os atores têm ao atuarem e adotarem determinadas atitudes, no “mundo da vida cotidiana”.

O “mundo da vida cotidiana” como um componente existencial do humano

Antes de iniciarmos a nossa discussão sobre o conceito de “mundo da vida cotidiana” é importante observarvamos que a teoria social de Schutz foi edificada, em grande medida, pelas relações dialógicas e críticas que manteve com outros filósofos e cientistas sociais que dominaram o cenário acadêmico entre a Segunda Guerra e os fins do século 20. O período compreendido entre 1940 e 1970 (aproximadamente) foi de grande importância na história da teoria social (Friedrichs 2001Friedrichs, Robert. 2001. Sociología de la sociología. Buenos Aires: Amorrortu.; Platt 1996Platt, Jennifer. 1996. A history of sociological research methods in America 1920-1960. Cambridge: Cambridge University Press.; Hinkle 1994Hinkle, Toscoe. 1994. Developments in American sociological theory, 1915-1950. New York: State University of New York.; Arnove 1982Arnove, Robert. 1982. Philanthropy and cultural imperialism. Bloomington: Indiana University Press.). Picó (2003)Picó, Josep. 2003. Los años dorados de la sociología (1945-1975). Madrid: Alianza Editorial. designa esse momento de “idade de ouro da sociologia”. Após a guerra, a “cultura sociológica” se internacionaliza, proliferam as instituições de ensino e pesquisa, há um crescimento de congressos e publicações acadêmicas voltadas para as ciências sociais. Um período em que parece se dar uma consolidação entre os pesquisadores de princípios teórico-metodológicos que embasam os fundamentos científico (e disciplinares) da teoria social.

Nascido em Viena (1899), Schutz viveu até 1938 na capital de uma nação que tinha perdido o Império com a Primeira Guerra, com grandes restrições materiais, mas com uma forte elite intelectual de língua alemã. Em 1932 publica o seu primeiro grande trabalho e único livro editado em vida – A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva – contendo os temas básicos e problemas que são recolocados nos seus textos posteriores. Interessante observar que esse livro foi traduzido para o inglês na década de 1970 e para o português em 2018. Nele, Schutz desenvolve uma leitura da sociologia weberiana pela perspectiva fenomenológica. Em termos bem sintéticos, a tese central desse estudo é a de que a “ação significativa” deve ser o tópico central da sociologia compreensiva. Argumenta que Weber, por se preocupar fundamentalmente com questões epistemológicas relacionadas a esse conceito, deixou de tematizar explicitamente como os atores atribuem significados às suas ações e assim não examinou a constituição dos significados sociais enquanto tal. Para Schutz, o mundo social não é dado ou predeterminado; está sendo constantemente construído pelas ações dos agentes a partir das suas formas de envolvimento com os outros atores e objetos. Nesse aspecto, a relação entre os conceitos de “vida cotidiana”, “ação” e “significação” já ocupa, desde cedo, uma posição central na sua análise dos fenômenos sociais.

É em Nova York, quando para lá imigra em 1939, que Schutz começa a sua carreira de teórico social propriamente dita, marcada por uma tentativa de estabelecer laços de confluência entre a sua orientação fenomenológica e o pragmatismo norte-americano, mais especificamente com John Dewey, George Hebert Mead e, principalmente, William James, filósofos que tomam a noção de “experiência” como tema central de análise. Alguns estudiosos da sua obra chegam mesmo a se referir a esse período da sua vida como a “virada pragmática” da sociologia schutziana.

A “cultura sociológica” norte-americana que se internacionalizava no pós-guerra (na qual Parsons era uma das principais fontes de referências) caracterizava-se pelo domínio de “teorias sociais sistêmicas” e de processos discursivos quantitativistas (Alves 2020Alves, Paulo Cesar. 2020. Clássicos contemporâneos. Relações entre a teoria sociológica clássica e a contemporânea. In Campos das ciências sociais, organizado por Rita Fazzi e Jair Lima, 124-142. Petrópolis: Vozes.). Em termos bem gerais, eram teorias “holistas” e “nomotéticas” que buscavam relações causais, regularidades ou ordenamentos objetivos (estruturas, padrões, leis, sistemas, códigos) subjacentes às ações sociais. Teorias que tomavam a cultura ou totalidade social como ponto de partida para analisar como as ações estão subordinadas a estruturas sociais. Nessas teorias, o conceito de ação cede lugar ao de “sistema social”. Conforme observa Bourdieu (1996)Bourdieu, Pierre. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus., como contrapartida a essa ênfase nas estruturas coletivas, desenvolveu-se um enfoque cognitivista na compreensão do agir humano, um tipo de enfoque – usualmente rotulado de “individualismo metodológico” – preocupado em reconstruir as motivações dos indivíduos (tomados como átomos básicos nos processos sociais). Nesse enfoque o coletivo é apreendido como o resultado das agregações de comportamentos individuais. No horizonte intelectual dominante no pós-guerra, as reflexões de Schutz sobre o mundo do fazer cotidiano, em cujos limites se desenvolve nossa existência, soavam altamente abstratas e irrelevantes. Para ele, a tarefa fundamental das ciências sociais é compreender (Verstehen) as “ações humanas”, as experiências, as práticas, através das quais os atores organizam sua vida cotidiana.4 4 Para Schutz, compreensão (Verstehen) é tanto a forma experimental do conhecimento na vida cotidiana, como um problema epistemológico e o método específico das ciências sociais. “[…] não é propriamente um método empregado pelo cientista social, senão a forma particular experiencial em que o pensamento de senso comum toma conhecimento do mundo social cultural” (Schutz 1973, 56). É dentro desse mundo que se originam todos os conceitos científicos. Em síntese, seguindo Dewey e Whitehead, Schutz (1973, 57-58) argumenta que o “conhecimento do senso comum da vida cotidiana é o fundo inquestionado, mas sempre questionável, dentro do qual a investigação deve começar e o único em cujo interior é possível efetuá-la”. Essa mudança de enfoque – tanto de ordem epistemológica (como conhecer a realidade social) quanto ontológica (o que é o social) – vai na contramão dos princípios da “cultura sociológica” predominante entre as décadas de 1940 e 1970. Somente nos fins do século 20, quando as “novas sociologias”5 5 Designado por Corcuff (2001), o termo “novas sociologias” se refere a um conjunto de teorias que floresceram (ou se consolidaram) a partir da década de 1970, como, entre outras, a “praxeologia” ou “construtivismo estruturalista” de Pierre Bourdieu, a “teoria da estruturação”, a “etnometodologia”, o “interacionismo simbólico”, a “sociologia existencial”, a “teoria do ator-rede”. passam a repensar, entre outros aspectos, os pressupostos teórico-metodológicos sobre os quais se assenta o seu entendimento científico do mundo, é que a teoria schutziana se torna mais “aceitável”.

Podemos iniciar a discussão sobre o conceito de “mundo da vida cotidiana” com uma definição bastante ampla: o mundo no qual o “ser humano adulto, dentro da atitude natural, atua nele e sobre ele entre seus semelhantes” (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 208). Embora muito aberta, essa definição aponta para alguns elementos que devem ser devidamente considerados. Em primeiro lugar, trata-se de um mundo vivido na “atitude natural” – postura mental na qual o ator realiza os seus afazeres diários de forma espontânea e rotineira. Nela, o mundo é tomado como pressuposto, real, organizado, familiar. É uma fonte permanente de referência, de significado e evidência para as nossas práticas, conhecimentos, julgamentos. Ou seja, entre as diferentes províncias de significados (como o sonho, as experiências religiosas, a ficção, o fazer artístico ou científico, as brincadeiras de crianças) – as quais têm suas próprias dinâmicas ou modos de ser, suas “lógicas” temporais e espaciais – o mundo da vida cotidiana é paramétrico. Não apenas porque nele permanecemos imersos a maior parte das nossas vidas, como também pelo fato de que é esse mundo que estabelece “limites” em relação às outras províncias de significados. Os atores transitam entre diferentes domínios de significado, mas por períodos limitados, e logo em seguida retornam à realidade cotidiana. Mas, embora paramétrico, o mundo da vida cotidiana não é imune à revisão. É posto em questionamento sempre que algo coloca em suspensão seus pressupostos; quando uma nova experiência não pode ser incorporada ao marco de referência até então não questionado. Como observa Schutz, “o âmbito do mundo pressuposto é o único domínio dentro do qual é possível duvidar e questionar, e nesse sentido, constitui o fundamento de toda dúvida possível” (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 74).

Segundo: é um mundo de atuações, onde os atores exercem ações nele e sobre ele. Mundo no qual um ator não cessa de responder às ações dos outros; que, embora as relações face-a-face tenham uma importância particularmente significativa para os atores, é composto prioritariamente pelas interrelações de diferentes níveis de proximidade e distância, familiaridade e estranhamento entre os agentes, interrelações mantidas, às vezes, de forma incerta, vaga, indireta, problemática. Trata-se de um mundo compartilhado com outros humanos e objetos (muitos deles bem circunscritos e de qualidades definidas) entre os quais se movem os atores. Mundo no qual as coisas são sempre percebidas junto com outros; que é experimentado e interpretado por outros, pelos contemporâneos, conterrâneos, predecessores e, em certo sentido, pelos sucessores. Ou seja, um mundo que é sempre dado dentro de um horizonte de perspectivas. Terceiro, trata-se de um mundo no qual os atores têm um interesse (foco de motivação gerado em uma situação específica) eminentemente prático: contam com ele para que possam realizar seus propósitos. Ou melhor, não apenas contam com o mundo da vida, mas precisam, através dos seus diferentes acervos ou estoques de experiências, lidar, assenhorar-se dele e mesmo modificá-lo. Um mundo, portanto, que é tanto o cenário quanto o objeto ou alvo das ações e interações humanas.

Em síntese, o mundo da vida é a esfera onde são realizadas as experiências de um ator, a qual é delimitada pelos objetos, pessoas e eventos que ele encontra na busca pragmática do viver. Na “atitude natural”, o mundo não é e nunca foi um mero agregado de coisas ou de pessoas isoladas, mas um mundo comum a todos que nele participam (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 208). Schutz designa de “intersubjetividade” essa dimensão comum ou essencialmente compartilhada do mundo. Um termo amplamente utilizado no “movimento fenomenológico” e que tem despertado várias discussões na teoria social.

O conceito de “mundo da vida cotidiana”, construção feita pelo pesquisador para tratar o modo como os sujeitos vivem junto a seus semelhantes, tem sido usualmente interpretado a partir da ideia de significação. É fato que Schutz está constantemente atribuindo à “sociologia fenomenológica” a tarefa de compreender os modos pelos quais os indivíduos atribuem significado a suas experiências. A ênfase às questões de significação é uma característica de algumas análises “construtivistas”. Por exemplo, Berger e Luckmann (1998Berger, Peter e Thomas Luckmann. 1998. A construção social da realidade. 16ᵃ ed. Petrópolis: Vozes.) iniciam a discussão sobre vida cotidiana – “a matéria da ciência empírica da sociologia” – afirmando que esse mundo, “tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade”, é originado “no pensamento e na ação dos homens comuns”. E, em seguida, observam que a sociologia deve

[…] tentar esclarecer os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana, a saber, as objetivações dos processos (e significações) subjetivas graças às quais é construído o mundo intersubjetivo do senso comum (Berger e Luckmann, 1998Berger, Peter e Thomas Luckmann. 1998. A construção social da realidade. 16ᵃ ed. Petrópolis: Vozes., 36).

Ou seja, embora reconheçam que o mundo da vida seja resultado de “pensamento e ação”, Berger e Luckmann prendem-se a uma análise mais voltada para questões de “conhecimento”, a “interpretação”, as “simbolizações” (termos amplamente utilizados por Schutz), não levando em devida consideração as questões relativas à ação.

Não se pode negar a importância da significação (cognição) para a constituição do “mundo da vida cotidiana”. Mas é importante chamar atenção que, para Schutz, o significado de uma experiência é estabelecido, em retrospectiva, através da interpretação. Significado

[…] não é uma qualidade inerente a certas experiências que surgem dentro de nosso fluxo de consciência, senão o resultado de uma interpretação de uma experiência passada ” – denominado por ele de “ato” – “contemplada desde o agora com uma atitude reflexiva. (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 211, grifo nosso).

Em outras palavras, significados são interpretações (atitude reflexiva, portanto) que os atores atribuem as suas “experiências passadas” (ato) e que são gestadas no fluxo de atividades (interações, associações entre agentes), no “ser movido” sempre em vias de transformação e de concretização.

A distinção entre “ação” e “ato” é, portanto, importante.

Com o termo ‘ação’ designaremos a conduta humana como processo em curso que é ideado de antemão pelo ator, ou seja, que se baseia em um projeto preconcebido. Com o termo ‘ato’ designaremos o resultado desse processo em curso, ou seja, a ação realizada. (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 67).

Para Schutz, é propriedade humana a faculdade de agir, de iniciar processos novos e sem precedentes (embora necessariamente assentados em “contextos” pré-existentes), cujos resultados podem ser incertos e imprevisíveis. Nesse sentido, o conceito de “ação” aproxima-se o de vita activa, de Hannah Arendt (2010)Arendt, Hannah. 2010. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitário..

A ação requer um ímpeto inicial e indica um percurso (trajeto), uma temporalidade, portanto. Tem um caráter eminentemente dinâmico, sequencial e circunstancial. A ação desencadeada por um ator tem o poder de atingir ou afetar os outros, cuja reação (resposta) gera uma nova ação. Assim, o ator nunca é simples “agente”, mas também “paciente”. Um componente essencial da ação é a de estar sempre orientada para um futuro. É sempre possível haver incertezas e indeterminações entre a ação assumida e a sua conclusão. Nesse aspecto, a ação é, em princípio, ilimitada. E, observa Arendt (2010)Arendt, Hannah. 2010. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitário., devido a sua produtividade específica de estabelecer relações entre os atores, ela pode violar limites e transpor fronteiras. Portanto, além de ter um componente de criatividade, há uma inerente imprevisibilidade do resultado da ação (ver Aquino, 2017Aquino, Luseni. 2017. Insights sociológicos. Civitas – Revista de Ciências Sociais 17 (3): 483-503. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26632.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017....
).

Schutz, em consonância com James, Bergson, Dewey, Husserl e Whitehead, afirma que a ação social,

no plano do senso comum, é sempre ação dentro de um marco inquestionável e indeterminado de construções tipificadas do enquadre, dos motivos, meios e fins, os cursos de ação e personalidades envolvidas e pressupostas. Pressupostas não apenas pelo ator, mas também pelo que fazem seus semelhantes. Desse marco de construções, que formam seus horizontes indeterminados, se destacam conjuntos meramente particulares de elementos que são clara e nitidamente determináveis. (Schutz 1073, 33).

Antes de prosseguirmos a discussão sobre o caráter temporal da ação, é importante levantar um pequeno parêntese sobre o significado de “conduta” e dois aspectos a ela relacionados: significado e tipificação. Schutz denomina de “conduta” as formas pelas quais os atos realizados pelos agentes são acessíveis, de forma direta ou não, aos demais. Ou seja, a conduta nos “informa” sobre o modo de fazer (ou negligenciar) dos atores no processo da ação. Portanto, ação é conduta na medida em que o agente atribui um significado ao que faz e lhe dá uma direção que, por sua vez, pode ser compreendida como significante. “Ação significativa” é menos um ato de subjetividade do que um resultado de esquemas interpretativos – “apercepção”6 6 Apercepção significa a “interpretação da percepção sensorial em termos de experiências passadas e conhecimento anteriormente adquirido do objeto percebido”. (Wagner 1979, 310). – construídos nos processos interativos entre os atores para dar sentido aos atos (ações realizadas). Ou seja, para a “sociologia fenomenológica” de Schutz, “ação significativa” é tanto um modo de ser quanto de conhecer.

As experiências sociais se dão principalmente mediante processos de tipificação (um conjunto de repertórios e receitas para compreender e lidar com o mundo e com os outros). É através de tipificações que nos relacionamos com os outros atores, com objetos, eventos, predecessores e possíveis sucessores. Os atores dispõem de um amplo estoque de tipificações e, de acordo com seus objetivos e interesses, “escolhem” aquelas que, nas situações em que se encontram, lhes são relevantes. Para Schutz, “relevância” diz respeito a importância atribuída pelo ator a aspectos selecionados em situações específicas. O sistema de relevância de um ator é um conjunto de componentes do seu mundo da vida (os outros, as coisas, as instituições) que são observados por ele como motivos e condições para a concretização e desenvolvimento de ações. Planos e projetos estão sempre situados dentro de um sistema hierárquico de interesses. Os “domínios de relevância” dependem dos diversos interesses e envolvimentos do ator. Nesse aspecto, nenhuma série accional é eticamente neutra. E, desnecessário dizer, as prioridades e preferências existentes em um sistema de relevância nem sempre são claramente distintas e estáveis por períodos mais longos.

A “congruência de sistemas de relevância” diz respeito à intercambialidade de pontos de vistas dos atores ou de sistemas de significações que constituem o que Schutz entende como “reciprocidade de perspectivas”. “Assim, a tese geral da reciprocidade de perspectiva”, argumenta Schutz (1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 12), “conduz a apreensão de objetos e seus aspectos realmente conhecidos por mim e potencialmente conhecidos pelo outro como conhecimento de todos. Tal conhecimento é concebido como objetivo e anônimo, ou seja, separado e independente de minha definição da situação e de meu semelhante, de nossas circunstâncias biográficas exclusivas e dos propósitos reais ou potenciais imediatos que elas involucram”.

O significado de “conduta” nos remete a um aspecto fundamental do caráter temporal da ação – o de “conduta motivada”. De uma maneira geral, os teóricos da ação social entendem “motivo” como um contexto de sentido pelo qual uma ação adquire significação. Mas, conforme argumenta Schutz, essa concepção de motivo requer maiores esclarecimentos, pois é necessário estabelecer uma distinção, usualmente não levada em devida consideração, entre “linhas de conduta” e “ato motivado”.

O ator, para lidar com as restrições existentes no mundo, deve traçar linhas de conduta que podem ser ou não levadas a cabo. Para estabelecer uma linha de conduta é necessário que o ator atribua importância a aspectos selecionados da sua vida cotidiana (sistemas de relevância). Eleger um determinado fluxo de conduta depende também do campo de possibilidades presentes no horizonte do ator. Cada possibilidade de ação leva consigo horizontes específicos de expectativas intencionais, de antecipações. Nesse sentido, todo “motivo” pressupõe um projeto (estado de coisas imaginado, que poderá ser levado a cabo por ações a serem realizadas). Afirmar que toda a ação está orientada para um objetivo final não significa dizer que os passos que conduzem a ele sejam plenamente claros ao ator, concretos e distintos. No curso da ação – no seu trajeto – o projeto inicial pode ser reavaliado e um outro vir a tomar o seu lugar, seja porque as expectativas intencionais desapareceram do campo de percepção, seja porque foram encobertas por outros objetivos, ou ainda porque as previsões não se realizaram. Assim, no processo de executar a ação o ator lida com um conjunto de arranjos, de seleções de elementos significativos que a ele estejam disponíveis, para que possa alcançar um determinado fim. Em outras palavras, o estabelecimento de uma linha de conduta requer uma performance, uma atenção aos eventos e situações nos quais os atores estão envolvidos. A essa concepção de motivo, Schutz denomina de “motivo para” ou “a fim de”. Em síntese, a direção prática que se orienta para o futuro e as expectativas do “mundo da vida cotidiana” se expressam no que Schutz chama de o “motivo para”.

No entanto, cabe perguntar, o que é motivado por esse tipo de “motivo para”? Certamente não é o projeto em si, pois é possível projetar sem que haja nenhuma intenção de realizar tal projeto. Para que o “motivo para” seja realizável é necessária uma decisão: a razão para o fazer, para transformar o projeto em desempenho. A essa classe de motivo, Schutz denomina de “motivo por que”. Do ponto de vista do ator, os “motivos por que” remetem a experiências passadas; alguns aspectos da situação tal e como era antes da ação são selecionados e, em seguida, considerados como as razões – no sentido de causa – da ação. Trata-se, portanto, de explicar a ação recorrendo-se ao passado. Mas, enquanto age, o ator não tem necessariamente em vista os seus “motivos por que”. “Motivo para” refere-se à ação em curso (que ainda está se fazendo e que aparece na perspectiva de tempo futuro); tem um componente de liberdade e criatividade. Só quando olhada retrospectivamente, sob a perspectiva do “motivo por que” é que a conduta aparece como determinada.

Em síntese, a ação está fundamentada em três importantes aspectos: a) recuperação de construções passadas (as ações são realizadas a partir de condições diretamente dadas e herdadas do passado); b) estas construções são atualizadas nas práticas e nas interações da vida cotidiana dos atores; c) e abrem de campos de possibilidades de atuação no futuro. Nesse aspecto, há sempre um componente de liberdade (que não é a mesma coisa de “livre-arbítrio”) nas ações humanas.

Conclusão

É importante salientar que Schutz foi, antes de tudo, um filósofo. E, como observam Deleuze e Guattari (1992Deleuze, Gilles e Félix Guattari. 1992. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34., 11), a filosofia “é disciplina que consiste em criar conceitos” (no sentido estrito do termo) e “o filósofo é amigo do conceito, ele é conceito em potência”.

No presente artigo procuramos explorar o conceito fenomenológico de Lebenswelt, o qual é usualmente discutido por uma ótica epistemológica. Nessa perspectiva, a “sociologia fenomenológica” tem, por princípio, um caráter hermenêutico e o empreendimento sociológico é o de analisar os processos interpretativos pelos quais os atores atribuem sentido às suas experiências. Contudo, pode-se observar que as suas reflexões a respeito da cotidianidade como um modo fundamental dos atores e objetos coexistirem, nos remetem também a uma questão de ordem ontológica. O ponto de partida da filosofia schutziana é o de que a existência humana consiste prioritariamente em ser/estar no “mundo da vida”, o qual é construído por ações interindividuais, a maioria delas impessoais. Nessa perspectiva, a ideia de ação é central para se compreender a constituição da cotidianidade. Sendo composto por múltiplas e diferentes atuações, esse mundo não é algo que é simplesmente dado, mas um “poder-ser”. Remete a um futuro. A ação é sempre circunstancial, requer um ímpeto inicial (a noção de projeto, orientado para o futuro – o “motivo para que”) e se constitui essencialmente como processo em curso (trajeto), o que difere do “ato” (o resultado desse percurso, a ação realizada). O significado de uma experiência é a interpretação de uma ação realizada contemplada desde o agora com uma atitude reflexiva. Em outras palavras, por se remeter ao futuro (a uma experiência que se espera que suceda após a experiência presente), o resultado da ação guarda, em si mesmo, um componente de indeterminação e imprevisibilidade, embora sempre existam certas proteções para conter a tendência inerente da ação em violar os limites. O pleno significado da ação somente se revela quando ela termina.

As reflexões que Schutz desenvolve sobre “ação social” e cotidianidade como componentes existenciais do ser humano levantam um conjunto de questões delicadas às ciências sociais: como lidar sociologicamente com uma realidade que em si mesma é temporal, plural, incerta? Parece-me que essa é uma das questões centrais da teoria social contemporânea. Mais do que construir um quadro de referência, um corpus teórico-metodológico unificado, um sistema discursivo homogêneo, a importância da “sociologia fenomenológica” foi a de estabelecer um campo de possibilidades para a apreensão do desdobrar-se das ações humanas.

  • 2
    Membro do Conselho Executivo Internacional Alfred Schutz Circle, Hermílio Santos (Pucrs) tem se destacado no cenário nacional por divulgar (e explorar) o pensamento schutziano, cabendo mencionar, entre outros trabalhos, o documentário Mundo da vida. A sociologia de Alfred Schutz, realizado em 2018.
  • 3
    Na sua obra, Schutz utiliza algumas vezes termos correlatos, como “realidade humana” e “realidade eminente da vida do senso comum”.
  • 4
    Para Schutz, compreensão (Verstehen) é tanto a forma experimental do conhecimento na vida cotidiana, como um problema epistemológico e o método específico das ciências sociais. “[…] não é propriamente um método empregado pelo cientista social, senão a forma particular experiencial em que o pensamento de senso comum toma conhecimento do mundo social cultural” (Schutz 1973Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff., 56).
  • 5
    Designado por Corcuff (2001)Corcuff, Philippe. 2001. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: Edusc., o termo “novas sociologias” se refere a um conjunto de teorias que floresceram (ou se consolidaram) a partir da década de 1970, como, entre outras, a “praxeologia” ou “construtivismo estruturalista” de Pierre Bourdieu, a “teoria da estruturação”, a “etnometodologia”, o “interacionismo simbólico”, a “sociologia existencial”, a “teoria do ator-rede”.
  • 6
    Apercepção significa a “interpretação da percepção sensorial em termos de experiências passadas e conhecimento anteriormente adquirido do objeto percebido”. (Wagner 1979Wagner, Helmut, org. 1979. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar., 310).

Referências

  • Alves, Paulo Cesar. 2020. Clássicos contemporâneos. Relações entre a teoria sociológica clássica e a contemporânea. In Campos das ciências sociais, organizado por Rita Fazzi e Jair Lima, 124-142. Petrópolis: Vozes.
  • Aquino, Luseni. 2017. Insights sociológicos. Civitas – Revista de Ciências Sociais 17 (3): 483-503. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26632
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26632
  • Arendt, Hannah. 2010. A condição humana Rio de Janeiro: Forense Universitário.
  • Arnove, Robert. 1982. Philanthropy and cultural imperialism Bloomington: Indiana University Press.
  • Berger, Peter e Thomas Luckmann. 1998. A construção social da realidade 16ᵃ ed. Petrópolis: Vozes.
  • Bourdieu, Pierre. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação Campinas: Papirus.
  • Brown, Charles e Ted Toadvine, orgs. 2003. Eco-Phenomenology: back to the Earth itself Albany: State University of New York Press.
  • Corcuff, Philippe. 2001. As novas sociologias: construções da realidade social Bauru: Edusc.
  • Deleuze, Gilles e Félix Guattari. 1992. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34.
  • Douglas, Jack. 1971. American social order: social rules in a pluralistic society New York: The Free Press.
  • Douglas, Jack, org. 1973. Introduction to sociology: situations and structures New York: The Free Press
  • Dreher, Jochen e Hermílio Santos, orgs. 2017. Dossier Sociology and Phenomenology. Civitas – Revista de Ciências Sociais 17 (3). https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.29429
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.29429
  • Friedrichs, Robert. 2001. Sociología de la sociología Buenos Aires: Amorrortu.
  • Heidegger, Martin. 2006. Ser e tempo Petrópolis: Vozes
  • Hinkle, Toscoe. 1994. Developments in American sociological theory, 1915-1950 New York: State University of New York.
  • Husserl, Edmund. 1973. La filosofía como ciencia estricta Buenos Aires, Editorial Nova.
  • Picó, Josep. 2003. Los años dorados de la sociología (1945-1975) Madrid: Alianza Editorial.
  • Platt, Jennifer. 1996. A history of sociological research methods in America 1920-1960 Cambridge: Cambridge University Press.
  • Schutz, Alfred. 2018. A construção significativa do mundo social Petrópolis: Vozes.
  • Schutz, Alfred. 1973. Collected papers I. The problem of social reality The Hague: Martinus Nijhoff.
  • Simmel, Georg. 1939. Sociología I Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina.
  • Spiegelberg, Herbert. 1965. The phenomenological movement: a historical introduction The Hague: Martinus Nijhoff.
  • Wagner, Helmut, org. 1979. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz Rio de Janeiro: Zahar.
  • Wallerstein, Immanuel. 2002. O fim do mundo como o concebemos: ciências sociais para o século XXI Rio de Janeiro: Revan.
  • Watson, Rod e Édison Gastaldo. 2015. Etnometodologia e análise da conversa Petrópolis: Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    05 Nov 2020
  • Publicado
    07 Maio 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br