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Reclusão territorial de crianças e adolescentes no Reassentamento Urbano Coletivo Jatobá em Altamira Pará: privação da liberdade devido à hidrelétrica Belo Monte

Territorial reclusion of children and teenagers at Jatobá Collective Urban Resettlement in Altamira Pará: deprivation of liberty in relation to the Belo Monte hydroelectric

Reclusión territorial de niños y adolescentes en el Reasentamiento Urbano Colectivo en Altamira Pará: privación de libertad debido a la hidroeléctrica UHE Belo Monte

Resumo:

O artigo apresenta uma discussão sobre a reclusão territorial urbana de crianças e adolescentes residentes no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Jatobá, cidade de Altamira-PA, como consequência da desterritorialização causada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, tendo como escopo a violência e o medo como processos que interferem na relação social do sujeito, intercedendo na construção de laços imateriais e materiais no novo espaço. Assim, objetiva-se problematizar a reclusão territorial vivenciada pelas crianças e adolescentes do RUC Jatobá e discutir a reverberação disso em suas condições de vida. O artigo é oriundo da pesquisa da dissertação de mestrado “Desterritorialização das crianças e dos adolescentes face a UHE Belo Monte: um estudo das territorialidades no RUC Jatobá em Altamira-PA”, realizada com o apoio do Laboratório de Estudo das Dinâmicas Territoriais na Amazônia (Ledtam). Metodologicamente, foram realizadas a aplicação quali-quantitativa de 82 formulários no RUC, sendo 41 entrevistas com crianças de oito a 12 anos e adolescentes de 13 a 18 anos e 41 entrevistas com seus responsáveis legais, Conselho Tutelar e Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB).

Palavras chaves:
Violência; Crianças e Adolescentes; Altamira; Reclusão territorial; Usina Hidrelétrica Belo Monte

Abstract:

The article presents a discussion on the urban territorial seclusion of children and adolescents residing in the Collective Urban Resettlement (CUR) Jatobá, city of Altamira-PA, because of the deterritorialization caused by the Belo Monte Hydroelectric Plant Power with the scope of violence and fear as processes that interfere in the social relationship of the subject, directly interfering in the construction of immaterial and material ties in the new space. Thus, it aims to discuss the territorial seclusion experienced by children and adolescents of the RUC Jatobá and discuss the reverberation of this in their living conditions. The article is derived from the research of the master's dissertation “Deterritorialization of children and adolescents in relation to the UHE Belo Monte: a study of territorialities in the RUC Jatobá in Altamira-PA”, carried out with the support of the Laboratory of Study of Territorial Dynamics in the Amazon. Methodologically, the qualitative-quantitative application of 82 forms was carried out in the RUC, being 41 interviews with children from 8 to 12 years and adolescents between 13 and 18 years, and 41 interviews with their legal guardians, Guardianship Council and Movement of Affected by Dam.

Keywords:
Violence; Children and Teenagers; Altamira; Territorial exclusion; Belo Monte Hydroelectric Plant Power

Resumen:

El artículo presenta una discusión sobre la reclusión territorial urbana de niños y adolescentes residentes en el Reasentamiento Urbano Colectivo (RUC) Jatobá, ciudad de Altamira-PA, como consecuencia de la desterritorialización causada por la represa de Belo Monte, la producción de la violencia y el miedo como procesos que interfieren en la relación social del sujeto, interfiriendo directamente en la construcción de lazos inmateriales y materiales en el nuevo espacio. Así, se pretende problematizar la reclusión territorial vivida por los niños y adolescentes del RUC Jatobá y discutir la reverberación de ésta en sus condiciones de vida. El artículo se deriva de la investigación de la tesis de maestría “Desterritorialización de niños y adolescentes frente a UHE Belo Monte: un estudio de territorialidades en el RUC Jatobá en Altamira-PA”, realizada con el apoyo del Laboratorio de Estudio de Dinámicas Territoriales en la Amazonía (Ledtam). Metodológicamente, se realizó la aplicación cualitativa-cuantitativa de 82 formularios en la RUC, siendo 41 entrevistas con niños de 8 a 12 años y adolescentes de 13 a 18 años y 41 entrevistas con sus tutores legales, Consejo Tutelar y Movimiento de Afectados por Represas (MAB).

Palabras clave:
Violencia; Niñez y Adolescencia; Altamira; Reclusión territorial; Usina Hidroeléctrica Belo Monte

Introdução

A cidade de Altamira, no sudoeste do Pará, desde a sua formação histórica territorial, passa por conflitos e tensões, nas suas mais diferentes formas e funções. Basta mencionar que é uma cidade fundada “por cima” de um aldeamento multiétnico de povos indígenas, conhecido como Tavaquara, administrado pelos jesuítas na época do Brasil Colônia (Souza e Oliveira 2021Souza, Estella L.de, e Assis da C. Oliveira. 2021. Indigenous peoples and Belo Monte Hydroelectric Plant: the mobilization of displaced Indigenous peoples in the urban area of Altamira. In Decolonizing Law. Indigenous, third world and settler perspectives, organizado por Sujith Xavier, Beverley Jacobs, Valarie Waboose, Jeffery G. Hewitt, e Amar Bhatia, 137-57. Abingdon: Routledge.).

Depois, ciclos de desenvolvimento ligados à extração do látex para produção da borracha, à implantação da rodovia Transamazônica (BR-230) e expansão da pecuária e da extração (i)legal de recursos naturais como madeira e minério, a partir da década de 1970, foram alguns dos eventos político-econômicos que mobilizaram o território em diferentes conflitos pelo seu uso e pelas formas de convivência social, incluindo crianças e adolescentes.

É nesse contexto que a Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHE Belo Monte) passa a atuar como um “evento reestruturador na região da Trans-Xingu” (Miranda Neto 2016), de modo a ocasionar e impulsionar impactos socioespaciais no território, resultando em uma gama de situações complexas e adversas à realidade local, incluindo aos sujeitos que habitam no município de Altamira.

Em função dessa complexidade e da adversidade que envolve a reestruturação da cidade, já desde a emissão da licença de instalação da UHE Belo Monte em 2011, têm surgido implicações socioespaciais na vida dos sujeitos locais, em especial, às crianças e os adolescentes, que compõem o grupo social conhecido como população atingida pela usina hidrelétrica, pois suas moradias foram alagadas, dado o aumento do nível do rio Xingu, graças ao seu barramento.

Com isso, tais sujeitos sofreram o processo de desterritorialização (remoção forçada de seus locais de moradia e perda de vínculos socioafetivos construídos historicamente) e reterritorialização (realocação para novas moradias planejadas e a tentativa de adaptação no novo espaço) em virtude de uma política capitalista, tendo por consequência a ressignificação de suas vidas como reassentados em Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC), nos quais tiveram que restabelecer suas rotinas sociais.

Assim, a percepção vivida e relatada pelas crianças e os adolescentes reassentados, em virtude do processo de des/reterritorialização, é problematizada pela dimensão da reclusão territorial (Haesbaert 2007Haesbaert, Rogério. 2007. Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades). In Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos, organizado por Frederico G. B. de Araújo, e Rogério Haesbaert, 33-56. Rio de Janeiro: Access.). Essa reclusão territorial está correlacionada à lógica de segregação econômica, política, social e geográfica, produzindo o efeito da privação da liberdade, tendo como fatores impulsionadores a violência e o medo, sentimento de topofobia ao lugar (aversão ao ambiente físico), que comprometem o desenvolvimento de sua cidadania e das relações sociais de vizinhança, comunidade e o direito de brincar.

Caminhos teórico-metodológicos da pesquisa

O referencial teórico deste trabalho fundamenta-se na discussão sobre o conceito de território, considerando os processos de dominação hegemônica na materialidade jurídico-política, bem como a relação de subjetividade na produção da identidade individual ou coletiva, envoltos em processos de desterritorialização e reterritorialização (Haesbaert 2004Haesbaert, Rogério 2004. O mito da desterritorialização: “do fim dos territórios” à multiterritorialidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.) para o RUC Jatobá das crianças e os adolescentes que residiam em áreas urbanas de afetação direta na alteração da dinâmica do rio Xingu, em função da criação do reservatório de abastecimento da UHE Belo Monte.

Discutir estas questões, aproximando dos conceitos e categorias das ciências geográficas, é uma proposta epistemológica que apresenta desafios à abordagem que se apresenta, visto que o campo infantojuvenil ainda carece de discussões teóricos-metodológicas para discutir as espacialidades do cotidiano infantojuvenil, como processos-chave para sua constituição enquanto sujeito de direitos e sujeitos ativos em sociedade, rompendo, com isso, a visão adultocêntrica sobre a passividade de tais sujeitos frente ao movimento dialético que o território constantemente o faz.

Para tal, a pesquisa foi desenvolvida com a aplicação e a análise de 82 formulários de entrevistas semiestruturados, esses aplicados com os responsáveis legais do menor de idade, assim como, com as crianças e os adolescentes dos quais os pais concederam autorização para a realização da pesquisa. Frisa-se que os dados foram coletados entre os anos de 2018 e 2019, para a dissertação2 2 Conceição, Ronicleici Santos da. 2017. Desterritorialização e reterritorialização de crianças e adolescentes em Altamira (PA) face ao empreendimento hidrelétrico Belo Monte. Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal do Pará. com o objetivo de analisar as territorialidades das crianças e dos adolescentes do RUC Jatobá devido à hidrelétrica Belo Monte. Este material não será analisado em sua integra neste artigo, e sim alguns trechos de respostas que trazem uma representatividade coletiva ao vivenciado no RUC Jatobá sobre a reclusão socioespacial.

Dessa forma, destaca-se que as referidas entrevistas somente foram realizadas a partir da leitura do termo de consentimento feita pelo pesquisador ou pelo próprio sujeito entrevistado, no qual, a concordância em participar da pesquisa exigia a assinatura do documento referenciado em duas vias, destacando de forma nítida e objetiva que se tratava de uma pesquisa acadêmica e sem fins lucrativos, bem como, os meios e os fins dela.

Os sujeitos entrevistados no RUC Jatobá passaram a ser tratados por codificações, conforme se pode observar nos trechos de entrevistas que compõe a discussão textual. Trata-se de uma metodologia para preservar a identidade do sujeito e não invalida a pesquisa.

O primeiro instrumento da coleta de dados foi realizado através do formulário semiestruturado impresso, formado por três laudas, composto de perguntas abertas e fechadas seguindo de perguntas interligadas, considerando as condições da vida cotidiana do sujeito entrevistado no espaço-tempo da cidade. O objetivo do formulário aplicado com as crianças e os adolescentes em si contemplam fatores sociais, políticos, econômicos e culturais antes e durante o processo de implantação da UHE Belo Monte na região do Xingu. Afinal, para discutir sobre as dinâmicas manifestadas no presente é necessário analisar as dinâmicas espaciais que foram materializadas do passado.

O formulário de pesquisa no seu escopo quali-quantitativo buscou identificar as relações subjetivas, políticas, econômicas e culturais que permeiam a vida desses sujeitos antes e durante o processo da desterritorialização ocorrida no território, elencando com isto campos de análises com dados pessoais, questões socioeconômicas antes da UHE Belo Monte, caracterizando socioeconomicamente estes sujeitos antes e após processo da desterritorialização. Dado isso, o campo posterior do formulário objetivou analisar os processos da reterritorialização no RUC Jatobá, através dos campos de perguntas fechadas e abertas, com questões sobre os fazeres cotidianos rompidos e reestabelecidos no novo território, estes indagados a partir das variáveis do lazer, cultura, economia, saúde, educação e segurança pública.

Como meio de compreender as condições de vida de tais sujeitos reassentados e verificar a reclusão socioespacial sofrida por eles, foi necessário ir para além dos olhares e vivências cotidianas das crianças e dos adolescentes no RUC Jatobá, buscando-se os dados quali-quantitativos junto ao Conselho Tutelar de Altamira (CTA), e averiguando a forma pela qual o órgão têm atuado no município, sobretudo com as crianças e os adolescentes reassentados no referido RUC. Além de identificar quais foram as principais demandas de atendimento a esses sujeitos em decorrência da implantação e operacionalização da UHE Belo Monte, sendo então, concedida uma entrevista semiestruturada com a então coordenadora do CTA.

Analisando as condições de vida das crianças e adolescentes no RUC Jatobá em decorrência do movimento da desterritorialização e reterritorialização, que se tornou um marco histórico no espaço-tempo da cidade e, consequentemente, o desencadeamento da reclusão socioespacial de tais sujeitos no reassentamento, surgiu uma informação que não fazia parte das questões elencadas no formulário de pesquisa. Ao realizar o questionamento sobre a atuação de órgãos públicos, privados e/ou movimentos sociais em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, alguns entrevistados relataram a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB/Altamira) a partir do desenvolvimento de projetos sociais junto às famílias afetadas pela UHE Belo Monte, o que instigou a inseri-los no grupo investigativo para a análise das condições de vida das crianças e dos adolescentes reassentados.

Dado isso, elaborou-se um ofício institucional destacando o objetivo da então pesquisa acadêmica, bem como, a solicitação de uma entrevista semiestruturada, sendo esta realizada com o coordenador local do movimento, levantando questões de ordens políticas, econômicas e sociais a qual o movimento tem desenvolvido na cidade de Altamira-PA com as famílias afetadas, precisamente no perímetro urbano da cidade, e a forma pela qual o movimento tem atuado junto às crianças e aos adolescentes residentes nos reassentamentos urbanos.

É importante frisar que para a realização da pesquisa com tais sujeitos sociais foi necessário delimitar a idade das crianças entre oito e 12 anos de idade incompletos, e dos adolescentes entre 13 e 18 anos de idade conforme estabelece a Lei n.° 8.069/1990,3 3 Brasil. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Acessado em 6 set. 2022. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A escolha na delimitação de idade é em detrimento das experiências vivenciadas em campo, das quais houve muitas dificuldades na coleta de informações com crianças menores de oito de idade, conforme apontam as pesquisas anteriores realizadas por Oliveira e Conceição (2016)Oliveira, Assis da C., e Ronicleici Santos da Conceição. 2016. Impactos sociais das políticas compensatórias da usina de Belo Monte: dinâmicas de afetação às crianças e aos adolescentes. Direito e Práxis 7 (14): 8-34. https://doi.org/10.12957/dep.2016.19146.
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, na qual o tratamento dos dados apresentava lacunas de informação, fator este associado à dificuldade deles em expor suas percepções em relação às dinâmicas do seu cotidiano, sobremaneira, no relatar ao pesquisador os meios e os fins pelo quais eles saíram do seu antigo território, pois eram muito pequenos e a assimilação dos processos junto às lembranças são facilmente perdidas ou fragmentadas em um curto período de tempo.

Contudo, na pesquisa adotou-se o método dialético marxista para balizar a análise das contradições intrínsecas ao território, no pensar das ações e dos objetos interligados em uma totalidade de fatores. Assim, para verificar a reclusão socioespacial das crianças e adolescentes foi necessário compreender que a violência e a topofobia a um determinado lugar são elementos que estão interligados por uma rede de elementos, dos quais a ineficiência e/ou ausência na atuação do empreendedor e do estado, em não propor ações mitigadoras específicas aos grupos afetados pela hidrelétrica, acarreta a intensificação das desigualdades sociais do território.

Para tal, o presente artigo é desenvolvido metodologicamente sob uma teia de fatores, que se interligam na tentativa de verificar e demonstrar os danos causados pela inserção capitalista na Amazônia na estrutura, forma e função materializada na Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Dessa forma, a metodologia quali-quantitativa para a coleta e sistematização dos dados, aponta os danos da desterritorialização dos sujeitos, em específico das crianças e dos adolescentes que vivem os reflexos das desigualdades sociais que estão cada vez mais latentes, sobremaneira, quando esses compõem um grupo familiar afetado diretamente pela ação do capitalismo que é perverso e excludente na sua matriz de reprodução (Herrera e Santana 2016Herrera, José Antônio, e Nelivaldo C. Santana. 2016. Empreendimento hidrelétrico e famílias ribeirinhas na Amazônia: desterritorialização e resistência à construção da hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu. Geousp: espaço e tempo 20 (2): 250-66. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2016.122657.
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) dentre as rupturas sociais, políticas e econômicas, além das relações afetivas, simbólicas e culturais para com o território, conforme se procede a discussão textual.

A imprevisibilidade das condições de vida das crianças e dos adolescentes no RUC Jatobá

A implantação da UHE Belo Monte, na mesorregião de Altamira, sudoeste paraense, ocasionou e intensificou diversas tensões e conflitos no território, com implicações diretas nas condições de vida da população local, sobretudo, no que diz respeito às violações dos direitos de crianças e adolescentes reassentados em áreas urbanas da cidade de Altamira, neste caso, o RUC Jatobá. Este espaço, em seu planejamento e consolidação, desconsiderou as diferentes territorialidades da cidade, fazendo a junção de diferentes bairros periféricos configurados por diferentes relações de poder territorial, o que implicou de forma direta na expansão da violência em suas várias nuances, refletindo negativamente na reterritorialização das crianças e dos adolescentes do RUC Jatobá.

Isto é visivelmente perceptível quando analisados, por georreferenciamento, os locais com suspeita ou ocorrência de exploração sexual de crianças e adolescentes (Oliveira e Pinho 2014Oliveira, Assis da C., e Vilma Aparecida de Pinho. 2014. Relatório final do diagnóstico rápido participativo complementar: enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no município de Altamira, PA. Altamira: Ufpa.) na região que engloba um território pertencente aos bairros do Ambé, Brasília, Invasão dos Padres e Ferro Velho, que detinha a maior quantidade de pontos georreferenciados. A Figura 1 mostra que a totalidade destes locais foi desterritorializada pela localização em uma região que foi alagada com o aumento do nível do rio Xingu.

Figura 1
Regiões de exploração sexual

Os autores expõem que, naquela época, tratava-se da região mais crítica em pontos de exploração sexual e locais utilizados para tráfico de drogas, as popularmente chamadas “bocas de fumo”. Parte desta população foi remanejada para os RUC sem que acontecesse a identificação de conflitos e relações de poder. Assim, a reterritorialização da população fez com que se acirrassem os conflitos pré-existentes e promoveu disputas pelo domínio dos novos territórios, provocando violências sociais sentidas intensamente por crianças e adolescentes.

O descrito ganhou visibilidade nacional com a publicação do Atlas da Violência5 5 Cerqueira, Daniel Ricardo de Castro, Renato Sergio de Lima, Samira Bueno, Luís Iván Valencia, Olaya Hanashiro, Pedro Henrique G. Machado, e Adriana dos Santos Lima. 2017. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Acessado em 6 ago. 2018. http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/7956. de 2017 com base em dados coletados em 2015, indicando Altamira como município com maior taxa de homicídio do Brasil, com 105,2% (114 homicídios para 108.382 pessoas). Entretanto, o Mapa da Violência de 2014 – Os Jovens do Brasil, com dados de 2010 até 2012, já indicava uma taxa de homicídios igual a 44,3 de jovens brancos por 100 mil habitantes e 106,1 para jovens negros (Waiselfisz 2014Waiselfisz, Julio Jacobo. 2014. Mapa da violência 2014: os jovens do Brasil: Brasília: Secretaria Nacional de Juventude.) no município, revelando a tragédia racial.

Para Miranda Neto (2016) a inserção de um grande empreendimento no território ocasiona ou intensifica problemas socioespaciais em diferentes nuances. As territorialidades locais sofrem rupturas drásticas mediante o processo de deslocamento compulsório. Chegando ao ponto de serem até irreversíveis (Zhouri 2003Zhouri, Andréa. 2003. Hidrelétricas e sustentabilidade. Anais Seminário Teuto-Brasileiro de Energias Renováveis.), muitas delas não conseguem ser reestabelecidas nos novos territórios, nas quais, o reinventar-se socialmente torna-se um desafio.

Nesse sentido, a implantação da UHE Belo Monte, em Altamira Pará, a partir do ano de 2011, acarretou à cidade uma reestruturação urbana e, consigo, novas tensões e conflitos para o território, sobretudo a desterritorialização da população local sob novas formas e funções da cidade (Herrera e Santana 2016Herrera, José Antônio, e Nelivaldo C. Santana. 2016. Empreendimento hidrelétrico e famílias ribeirinhas na Amazônia: desterritorialização e resistência à construção da hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu. Geousp: espaço e tempo 20 (2): 250-66. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2016.122657.
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). Cabe indicar que, conceitualmente, a

Desterritorialização, se é possível utilizar a concepção de uma forma coerente, nunca ‘total’ ou desvinculada dos processos de (re)territorialização, deve ser aplicada a fenômenos de efetiva instabilidade ou fragilização territorial, principalmente entre grupos socialmente mais excluídos e/ou profundamente segregados e, como tal, de fato impossibilitados de construir e exercer efetivo controle sobre seus territórios, seja no sentido de dominação político econômica, seja no sentido de apropriação simbólico-cultural. (Haesbaert 2004Haesbaert, Rogério 2004. O mito da desterritorialização: “do fim dos territórios” à multiterritorialidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 312).

As famílias que viviam em áreas de baixões, em sua grande parte formadas por palafitas, consideradas como áreas impróprias para moradia nas lindeiras dos igarapés Altamira, Ambé e Panelas, como denomina o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tiveram que ser retiradas de forma compulsória e reassentadas em novos espaços urbanos, adquiridos e planejados pela empresa Norte Energia S.A (Nesa), a saber: Água Azul, Casa Nova, Jatobá, Laranjeiras, Pedral e São Joaquim – destacados na Figura 2.

Figura 2
Mapa de localização dos reassentamentos urbanos

A reestruturação da cidade e a criação de reassentamentos, que não deixa de ser uma expansão do tecido urbano, ocasionou diversos conflitos devido ao rearranjo urbano insatisfatório para a população reassentada e à junção de territórios distintos em um mesmo espaço de socialização e habitação no RUC Jatobá. Essa junção inapropriada e desconsiderada pela empresa Norte Energia, impulsionou a disputa por territórios no RUC Jatobá pelo tráfico de drogas entre facções rivais (Oliveira 2017Oliveira, Assis da C. 2017. Exploração sexual de crianças e adolescentes antes, durante e depois dos grandes empreendimentos. In Violência sexual contra crianças e adolescentes: cenários amazônicos, rede de proteção e responsabilidade empresarial, organizado por Assis da Costa Oliveira, 157-182. Rio de Janeiro: Lumen Juris.), implicando, assim, no agravamento da violência social e na reprodução da vida cotidiana dos sujeitos reassentados.

Segundo os moradores do reassentamento, a Nesa, empresa responsável pela UHE Belo Monte, orquestrou um “descaso planejado”, violando os direitos de escolherem o reassentamento que gostariam de morar, bem como a permanência da vizinhança, como forma de manutenção dos laços afetivos e comunitários ao antigo território.

Nesse contexto, evidenciam-se diversas violações aos direitos humanos, em específico às crianças e os adolescentes, moradores do RUC Jatobá que estão em situações de reclusão territorial, pois estão “presos” em suas próprias residências devido ao grande índice de violência no município de Altamira, e das constantes ocorrências de violência no RUC Jatobá, como se extrai do trecho da entrevista a seguir:

[…] a gente não brinca aqui, só fica dentro de casa o dia todo. Porque minha mãe não deixa a gente sair, porque aqui é muito violento. Teve um dia mesmo, que a gente viu um homem correndo aí quando fumo ver, ele estava esfaqueado. Aí nós chamou a ambulância e ela nem veio, só vem aqui quando morre alguém. (Entrevistada A28, com. pess., 23 ago. 2018).

O trecho da entrevista acima remete a um conjunto de situações de negligência e descaso por parte dos governos federais, estaduais e municipais, e da própria empresa Norte Energia, uma vez que atuam como produtores e reguladores do território. Nesse sentido, a adolescente de 13 anos, como sujeito ativo e perceptivo na sociedade (Lopes 2017Lopes, Jader Janer Moreira, e Bernd Fichtner. 2017. O espaço de vida da criança: contribuições dos estudos de Marta Muchow às Crianças e suas espacialidades. Revista De Educação Pública 26 (63): 755-74. https://doi.org/10.29286/rep.v26i63.5564.
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) é enfática em apontar os prejuízos no seu cotidiano, sobretudo na questão do brincar, que é um direito violado no novo espaço pela sensação de medo e insegurança provocados pelo alto índice de violência no local, oriundo da junção dos diferentes bairros que formavam as áreas diretamente impactadas pela UHE Belo Monte. Isso se assemelha às informações obtidas na entrevista da criança de 11 anos, moradora do RUC Jatobá, a qual afirma que:

Um dia desses aí, faz um pouquinho de dias eu tava andando de bicicleta aqui na rua, na frente de casa e de repente apareceu um homem e falou “perdeu, perdeu” e quase fui roubada. Por isso eu quase não brinco aqui, fiquei com muito medo. (Entrevistada C20, com. pess., maio 2018).

A formação social através do brincar da criança desenvolve relações de personalidade, identidade e imaginação com o espaço que a rodeia, dessa forma, o medo ocasionado pela violência no RUC, impede que a criança entrevistada brinque com sua bicicleta na rua ou na calçada de casa, caracterizando assim a topofobia do reassentamento Jatobá.

Essa situação vivenciada pelas crianças e os adolescentes do reassentamento é um processo de risco e vulnerabilidade social imanente à reprodução capitalista, que só pode ser compreendida dentro de uma análise mais ampla do “descaso planejado” da população realocada, em que as condições de vida dos novos territórios são, de partida, precarizados, dados os conflitos e as violências instauradas em decorrência do planejamento empresarial de distribuição das famílias atingidas.

A perda da possibilidade de brincar no espaço de habitação e/ou no seu bairro e, com isso, permanecer recluso dentro de casa, implica, também, em uma construção simbólica do território marcado pela valoração negativa e de exclusão do exercício de territorialização da infância e da adolescência.

Nesse contexto, é possível observar e correlacionar a partir das leituras bibliográficas sobre os efeitos das hidrelétricas em diferentes contextos do país, sobremaneira, a UHE Belo Monte, que se trata, também, de uma violação do direito fundamental ao brincar, definido no art. 16, inc. IV, ECA7 7 Brasil. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 16 jul. 1990. Acessado em 6 set 2022. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. , garantia relacionada à saudável formação e desenvolvimento humano, o qual é sistematicamente afetado pelos empreendimentos hidrelétricos e por suas políticas compensatórias ao território e as famílias diretamente afetadas.

Também fica evidenciado, nos trechos das entrevistas, a outra forma de segregação socioespacial sofrida pelas crianças e adolescentes, que não mais é a habitação em áreas de risco e/ou de aglomerados subnormais, como classifica o IBGE ao retratar as palafitas, mas sim, a segregação socioespacial “vestida” por uma nova forma, processo e função, como é o caso do RUC Jatobá. Com isso, além de apresentar a distância em relação ao centro da cidade, apresenta ausência e ineficiência dos serviços básicos à população no tratamento e abastecimento de água, captação e tratamento de esgoto e lixo, assistência médica e hospitalar, estimula que os mesmos se sintam excluídos e discriminados no seu dia a dia por morarem em um bairro e/ou reassentamento caracterizado por ser violento, além de rotulado como um local de criminosos, como fica expresso na fala de um dos entrevistados, de apenas 10 anos: “é o lugar que só tem malandro, gente ruim” (Entrevistado A22, com. pess., ago. 2018).

Assim, a violência, em suas diferentes esferas, afeta de forma direta as condições de vida das crianças e dos adolescentes, articulada ao agravamento da desterritorialização devido à UHE Belo Monte, que já é um fator de extrema violação, caracterizada pela ruptura de laços afetivos e simbólicos para/com o antigo território das famílias (Herrera e Santana 2016Herrera, José Antônio, e Nelivaldo C. Santana. 2016. Empreendimento hidrelétrico e famílias ribeirinhas na Amazônia: desterritorialização e resistência à construção da hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu. Geousp: espaço e tempo 20 (2): 250-66. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2016.122657.
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) e das crianças e adolescentes, que na sensibilidade dos seus fazeres cotidianos percebem e sentem falta das territorialidades rompidas, conforme pode ser notado na Tabela 1, na qual a consolidação dos dados dos formulários apontam os elementos da desterritorialização através da interpretação das crianças e dos adolescentes.

Tabela 1
Os elementos da desterritorialização interpretados pelas crianças e adolescentes

Os elementos pontuados na Tabela 1 são os elementos da desterritorialização interpretados e vivenciados pelas crianças e adolescentes, assim como, suas famílias, que não conhecem a terminologia geográfica, – desterritorialização – porém conseguem identificar ao pesquisador os afazeres cotidianos e as relações sociais, econômicas, políticas e culturais que foram rompidas a partir do processo de cadastramento e deslocamento compulsório dos seus respectivos bairros para o RUC Jatobá. Esses elementos assemelham-se à “desterritorialização como perda de referenciais espaciais e concretos, sob o domínio das relações imateriais” (Haesbaert 2004Haesbaert, Rogério 2004. O mito da desterritorialização: “do fim dos territórios” à multiterritorialidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.).

Cada categoria investigada releva os elementos territoriais rompidos com a desterritorialização. A afetividade remete às relações que as crianças e os adolescentes tinham estabelecidas com seus familiares que, muitas vezes, moravam com duas ou mais famílias na mesma residência ou em casas construídas lado a lado, na forma de palafitas, sob os igarapés da cidade.

O aspecto cultural é associado ao afetivo, pois essas famílias tinham o hábito de ir às praias e à orla do cais de Altamira aos finais de semana, como forma de manter a relação afetiva e identitária com o rio e com a própria cidade, haja visto que a orla é o principal ponto turístico e de lazer da cidade.

Ao analisar os elementos da desterritorialização e os efeitos nas relações sociais dos sujeitos, as categorias de análise econômica e afetivo-cultural não poderiam ficar de fora, afinal, o espaço é dinâmico e as relações territoriais se conectam em redes de funcionalidades. Dessa forma, referir-se sobre as relações econômicas afetadas pela UHE Belo Monte, é dizer sobre a perda do meio de sobrevivência das famílias reassentadas, pois ao passarem pelo processo de cadastramento socioeconômico e, subsequente a isso, o remanejamento para o RUC Jatobá, tem-se como principal impacto social, a perda da principal fonte de renda, antes mantida através da pesca para comercialização no mercado local, que é alterada em detrimento do novo uso dado ao rio Xingu pela UHE Belo Monte.

Com isso, destaca-se que, a principal fonte de renda das famílias reassentadas no RUC Jatobá, era mantida através da variedade de peixes que podiam pescar e vender no mercado local, como também, era a subsistência daqueles em situação de vulnerabilidade social. No entanto, ao serem reassentados, esse elemento social, econômico e cultural passar a ser privado e, assim, o ganho mensal passa a ser algo incerto no reassentamento, considerando que o bairro não fica as margens do rio Xingu, como eram os antigos territórios, dificultando assim, o acesso ao rio e a manutenção dos equipamentos de pesca (redes, canoas, dentre outros).

Somam-se a isso as violações aos direitos humanos em suas mais variadas nuances e a desconsideração aos planos intersetoriais pela rede de proteção do município e do próprio Estudo de Impacto Ambiental e seu Relatório de Impacto no Meio Ambiente (EIA-Rima) em não analisar as violências preexistentes no território, desconsiderando os impactos nos direitos das crianças e dos adolescentes reassentados. De certo, o “descaso” do empreendedor dificulta a ação dos órgãos e instituições públicas, como o CTA e a da Polícia Militar (PM), como bem demonstra o trecho da entrevista realizada com a conselheira do CTA:

[…] aqui ninguém pode mandar a criança comprar o pão, não pode fazer nada disso, porque tá correndo risco de vida, então a criança tá com seu direito violado e continuam presas e não tem nenhum projeto voltado para isso, então eu tenho muita tristeza em relação a isso. Em nós não ter os nossos filhos livres e sim presos e com um agravante né, porque além deles estarem presos eles estão sendo violados através de tudo isso que eu coloquei antes né. (Entrevistada A30, com. pess., abr. 2018).

Ela ainda enfatiza:

[…] e na sala de aula continua do mesmo jeito né, porque lá na sala de aula é um desconfiando do outro por conta da droga, ele não faz amizade com o coleguinha da escola porque aquele coleguinha pode ta passando droga (Entrevistada A30, com. pess., abr. 2018).

Em tal contexto, o território fica à mercê do estado e da empresa, em uma gestão falha, a qual impulsiona a disputa pelo território, violando o direito de ir e vir, o direito de uma vida comunitária, bem como, o “direito à cidade” (Lefebvre 2008Lefebvre, Henri. 2008. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo. Centauro.), resultando na reclusão social dos sujeitos dentro de suas residências ou até mesmo no abandono delas, como foi possível presenciar no decorrer da pesquisa, em que um grande número de casas estão à venda ou simplesmente abandonadas, consequência da violência e aumento do custo de vida aos reassentados, conforme foi relatado pelos entrevistados, pelos vizinhos ou conhecidos.

Figura 3
Residências nos reassentamentos urbanos

Nota-se que, quando os sujeitos sociais, crianças e adolescentes, são deslocados compulsoriamente e reassentados, há implicações diversas ao novo espaço, com as relações de coexistência. Assim, os territórios não são apenas elementos físicos, são também processos de construção e reconstrução de relações espaciais, que se manifestam através dos modos de vida, das relações com a sociedade, e das relações culturais, simbólicas, afetivas e de poder.

Em decorrência desses fatores, a categoria de análise de território tem papel fundamental para compreender e descortinar os processos que fragmentam as relações estabelecidas. Ela vai para além de uma análise economicista na gestão do território, considerando-se as relações sociais, culturais e simbólicas que formam o território.

O território apresenta relações culturais que foram consolidadas e vivenciadas por diversas gerações e que são desconstruídas em um curto período, em uma inserção rápida do capital, podendo significar perdas irreparáveis do ponto de vista sociocultural das populações locais. Santos (2006Santos, Milton. 2006. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. Vol. 1. 4. ed. São Paulo: Edusp., 13) define o território como sendo “o lugar que se manifesta em todas as ações, afetivas, simbólicas, econômicas e históricas do homem com o meio geográfico a partir da sua manifestação de existência”.

Assim, é importante compreender as implicações das políticas de desenvolvimento para as dinâmicas de vidas das crianças e adolescentes, sobretudo, no contexto de grandes obras na Amazônia concomitante a processos de deslocamentos compulsórios. Seja porque, desde o advento da Doutrina da Proteção Integral no Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), tal segmento foi reconhecido como possuindo prioridade absoluta de atendimento socioestatal (artigo 227 da CF/88 e artigo 4° do Estatuto da Criança do Adolescente – ECA/Lei n°. 8.069/1990).

Em tal contexto, as grandes obras, sobretudo em uma realidade amazônica, provocam a intensificação das mazelas sociais, atingindo de maneira mais incisiva determinados grupos em vulnerabilidade social, como as crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Dessa forma, como consequência, resultam diretamente na interação das pessoas com suas redes de sociabilidade familiar, escolar, comunitária e, também, na percepção do que lhes afeta em sua subjetividade/identidade, tendo especial atenção à multidimensionalidade das afetações, no sentido de violências, nos seus aspectos psicológicos, físicos, sexuais, culturais, afetivos, sociais, econômicos e ambientais.

Assim, tem-se que devido à falta de políticas públicas ou à má gestão delas no reassentamento Jatobá, tornou-se difícil o processo de adaptação ao novo território. haja visto que estes sujeitos (crianças e adolescentes) historicamente têm passado por um processo de privação de bens e serviços públicos antes mesmo de serem realocados de seus antigos bairros/territórios. Ao serem realocados dentro de uma perspectiva de desenvolvimento, criaram-se expectativas e fantasias de uma realidade que não condiz com as políticas do Plano Básico Ambiental (PBA) de Belo Monte, um conjunto de documentos que apresenta as políticas compensatórias. Não que o desenvolvimento em si seja apenas fomentar fatores estruturantes e econômicos do lugar, mas é, também, proporcionar formas e ações para que os sujeitos reassentados se desenvolvam, de acordo com suas necessidades e suas percepções de desenvolvimento, haja visto que estes sujeitos tenham suas liberdades civis e sociais em prática.

Considerações finais

A construção e a operacionalização da UHE Belo Monte mobilizaram uma série de ações, desencadeadas, em sua maioria, por uma perversidade sistêmica que desconsiderou e continua a desconsiderar o espaço vivido, percebido e concebido pelas populações locais, em especial, por crianças e adolescentes.

Em tal perspectiva, a cidade de Altamira encontra-se em processos de descaso e ausência por parte do empreendedor Nesa e do Estado, haja vista que a UHE Belo Monte já concluiu sua construção, sendo assim, os investimentos públicos e financeiros não regem mais o território de forma prioritária, o que tem se tornando uma preocupação quanto às condicionantes que não foram ou foram mal cumpridas, tendo em vista a calamidade da segurança pública no município e o alto índice de violência social.

Tal assertiva decorre da constatação das violações aos direitos humanos de crianças e adolescentes em decorrência do processo de reclusão e privação social como reação ao aumento exponencial da violência no RUC Jatobá. Este cenário está atrelado a disputas territoriais anteriores à implantação da UHE Belo Monte, que se intensificaram com o processo de remanejamento das famílias diretamente atingidas para o RUC Jatobá, e por extensão aos demais reassentamentos, haja visto que todos eles passaram pela junção de bairros/territórios com circuitos de poder e conflitos sociais pré-definidos e que no processo de des/re-territorialização foram também reconfigurados às custas do sofrimento da população local.

No entanto, as violências, em suas mais diferentes esferas, escamoteiam um jogo de interesses que perpassa a perversidade do empreendedor, enquanto regulador e produtor de espaços geográficos, reordenando suas formas e funções, como dos grupos territorialistas de facções criminosas, na oportunidade de gerar e expandir suas redes de atuação, em diferentes escalas. Para tal, nota-se que, não apenas o evento Belo Monte é articulado em rede ou relacional, como também a criminalidade, que passa a ser descortinada ou a ter maior visibilidade quando um agente/evento começa a desestruturar suas bases e redes de atuação.

As crianças e os adolescentes estão imersos nestes jogos de interesses conscientes e ativos na produção de seus mundos, inclusive quando isto significa restringi-los ao ambiente doméstico para garantir suas proteções. As territorialidades das crianças e adolescentes, no município de Altamira, moradoras do RUC Jatobá, estão em constantes mudanças e condicionadas por ações do meio, em um paradigma de instabilidade e vulnerabilidade social.

  • 2
    Conceição, Ronicleici Santos da. 2017. Desterritorialização e reterritorialização de crianças e adolescentes em Altamira (PA) face ao empreendimento hidrelétrico Belo Monte. Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal do Pará.
  • 3
    Brasil. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Acessado em 6 set. 2022. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm.
  • 4
    Dados coletados na plataforma Complemento Openlayer do QGIS Google Earth, e organizados em forma cartográfica pelo técnico em geoprocessamento, Igor Renan A. Oliveira, em 2014.
  • 5
    Cerqueira, Daniel Ricardo de Castro, Renato Sergio de Lima, Samira Bueno, Luís Iván Valencia, Olaya Hanashiro, Pedro Henrique G. Machado, e Adriana dos Santos Lima. 2017. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Acessado em 6 ago. 2018. http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/7956.
  • 6
    Seplan: Secretaria Municipal de Planejamento de Altamira. Observação dos autores: a cidade de Altamira tem passado por transformações na malha urbana da cidade, devido aos rearranjos ocasionados pela UHE Belo Monte. Para tal, há uma dificuldade em encontrar os dados de bairros novos, muito embora alguns estejam disponíveis na internet, há uma defasagem, dessa forma utilizamos dados solicitados via ofício à Seplan que somente nos forneceu dados de 2013.
  • 7
    Brasil. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 16 jul. 1990. Acessado em 6 set 2022. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    04 Jul 2022
  • Publicado
    21 Jul 2023
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