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O cubismo como método

Cubism as method

Resumos

Este artigo busca discutir a relevância do Cubismo para a concepção de Modernismo elaborada pelo crítico de arte norte-americano Clement Greenberg a partir da análise de ensaios e textos críticos publicados por ele ao longo de mais de três décadas, nos quais transparece a identificação da unidade do plano pictórico – entendida pelo crítico como uma das características mais essenciais da pintura moderna, ao lado da planaridade – com o pensamento plástico cubista.

Cubismo; Modernismo; pintura; Expressionismo abstrato; colagem


This paper aims to discuss the relevance of Cubism for Clement Greenberg's vision of Modernism, based on the analysis of essays and critical texts published by him over more than three decades in which the unity of the pictorial surface – understood by the critic as one of the essential features of modern painting, besides its flatness – is identified with the cubist plastic thinking.

Cubism; Modernism; painting; Abstract Expressionism; collage



Eliot Elisofon. Marcel Duchamp descendo uma escada, 1952

"Somente um método científico exige que uma situação seja resolvida exatamente nos mesmos termos nos quais foi proposta. Mas este tipo de consistência não garante nada em termos de qualidade estética... o que esta convergência mostra, contudo, em que profundidade a arte modernista e a ciência moderna pertencem à mesma tendência cultural."1 1 . GREENBERG, Clement. Pintura modernista. In: FERREIRA, Glória & COTRIM, Cecília (orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997, p. 106

1.1. O Cubismo como método

A necessidade de agir guiado por um método foi uma preocupação recorrente para Greenberg. Tal necessidade o perseguia antes mesmo de ter se tornado crítico de arte, quando já ponderava que certos artistas, como Rouault, Kandinsky, Soutine, Van Gogh, e muitos outros não poderiam ser considerados realmente modernos porque não possuíam um método. Em 1950, ao analisar a trajetória de T. S. Eliot, escreveu:

Se a força da crítica aumenta na proporção da sua capacidade para distinguir o fato, então se compreende porque a era do positivismo produziu a melhor crítica literária. O temperamento pragmático, empírico, dos anos entre 1900-1925 – que afetou igualmente epistemólogos e estetas – foi precisamente o que ajudou Eliot a desenvolver um olho apurado para discriminar aquilo que é essencial na experiência literária. O método científico não se aplica à formação do juízo estético, mas pode nos ajudar a eliminar aquilo que é estranho a ele (...) Eliot deve sua grandiosidade como crítico – mesmo que inconscientemente – ao espírito científico de sua época.2 2 . Idem. T. S. Eliot: the criticism, the poetry. In: O’BRIAN, John (ed.). Clement Greenberg – the collected essays and criticism (vol. 3). Chicago: The University of Chicago Press, 1995, p. 66-67, tradução minha.

O próprio Greenberg, quando jovem, se ressentia por não possuir um método que lhe ajudasse a assumir uma posição em relação ao mundo e norteasse suas escolhas, até encontrar este método no Cubismo.

Kandinsky, uma das maiores vítimas de Greenberg, não teria apreendido a lógica que liga Cézanne a Picasso e a Braque (errando, ainda, na tentativa de romper com toda a arte do passado, como se fosse possível para um artista partir do zero): esse seria o motivo pelo qual sua pintura sofreria de falta de estilo, permanecendo um mero agregado de formas que não consegue estabelecer uma relação com o espaço e levando à perda da continuidade da superfície. Miró, em contrapartida, teria tomado a tradição cubista onde Picasso a deixara e acrescentado, não apenas sua personalidade, como uma demonstração mais ampla das possibilidades do uso da cor chapada e da forma fechada. Assim como Picasso, Miró teria aderido a uma concepção quase escultural da pintura envolvendo a definição monolítica das formas, pelo uso de superfícies chapadas, pinceladas uniformes e compactas, da cor pura e uniforme.

O método de Greenberg como crítico de arte foi construído como uma síntese da estética cubista, entendida por ele como uma estética da planaridade, dotada de uma lógica em relação à qual todos os artistas que seguiram precisavam se posicionar. Por liquidar a ilusão da terceira dimensão na pintura, trabalhar com as restrições impostas quando se assume que a pintura é bidimensional, e ter chegado a uma solução definitiva para conferir unidade ao plano pictórico. O Cubismo era, para ele, o paradigma da pintura moderna, ainda que apenas Mondrian tivesse extraído dele todas as consequências.

A rejeição ao efeito ilusionista na pintura, bem como a insistência na natureza física do plano pictórico expressavam, para Greenberg, uma característica marcante da pintura francesa desde meados do XIX, mas Picasso teria sido um artista incomparavelmente sensível para perceber sua época e seu meio e, por isso, teria chegado ao Cubismo, o movimento que efetivamente teria rompido com a aparência da natureza:

A pintura cubista foi a primeira a ilustrar, se não a incorporar, a nova concepção da matéria como algo que deve ser reduzido, para a finalidade das artes plásticas, às duas dimensões; ela nos deu a nossa primeira visão de um objeto aberto, permeado pelo espaço e permeando o espaço.3 3 . Idem. Our period style. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 325, tradução minha.

Segundo Greenberg, inicialmente o Cubismo teria buscado estabelecer, numa superfície plana, a imagem conceitual mais completa possível da estrutura de objetos ou volumes. Se os impressionistas se preocuparam com as sensações puramente visuais, os cubistas estavam preocupados principalmente com as formas generalizadas e as relações entre superfícies dos volumes, descrevendo e analisando-as de um modo simplificado, omitindo a cor e os atributos acidentais dos objetos que serviam de modelos. Partindo de Cézanne, eles teriam buscado a estrutura definidora das coisas que permanecem sob os acidentes da aparência momentânea e, ao fazê-lo, violaram as normas da aparência ao mostrar um mesmo objeto sob mais de um ponto de vista no mesmo plano pictórico. Assim, no lugar de ter descoberto um modo para descrever inteiramente os objetos numa superfície plana, teriam chegado à própria estrutura da pintura.

Enquanto no Renascimento o efeito escultural era buscado pelo desejo de realismo, bem como porque a concepção de espaço em vigor era a de um espaço livre e aberto, povoado por objetos que funcionavam como ilhas nesse espaço, na arte moderna passou a operar a noção oposta, de um espaço que conecta as coisas ao invés de separá-las, o que significa espaço enquanto objeto total. A partir daí, o plano pictórico teria começado a ser percebido como um objeto material, surgindo assim a necessidade de se dar uma forma estética àquela sua planaridade irredutível enquanto objeto. Consequentemente, a planaridade teria se tornado a premissa mais importante da pintura e, em função disso, a experiência da natureza só poderia ser transposta nela por analogia, não por imitação.

Por todos esses motivos, Greenberg via o Cubismo como o único estilo que realmente interessava, um estilo capaz de sustentar uma tradição que sobreviveria e que formaria novos artistas. Picasso e Braque teriam dado a partida no processo que resultou no Cubismo quando, inspirados em Cézanne, começaram a facetar tanto os objetos, como o fundo, em planos que foram se tornando cada vez mais frontais. Como esses planos facetados não se fechavam, os objetos e o fundo passaram a se interpenetrar, instalando uma indistinção entre espaços vazios e espaços ocupados. Por volta de 1912, ou 1913, a síntese teria substituído a análise, os planos facetados deram lugar a formas maiores e, gradualmente, o objeto ou partes dele teriam começado a ressurgir, chapados, na superfície igualmente plana daquilo que poderíamos chamar de fundo. O resultado era uma imagem-objeto compacta, na qual a ilusão de profundidade era dada pela sobreposição, mas nunca pela sombra, ou qualquer outra coisa. A planaridade da superfície passou a ser afirmada de um modo novo e mais radical: o objeto não era mais desintegrado pela pressão de um espaço superficial, mas aberto num espaço chapado.4 4 . Idem. Master Léger. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 171, tradução minha.

A passagem para o Cubismo sintético teria sido fruto de uma necessidade de discriminar mais explicitamente a realidade da resistência da superfície das formas que eram mostradas sobre ela, porque no Cubismo analítico elas já estavam tão unificadas que corriam o risco de se transformar num padrão all over. Greenberg não foi o único a entender desse modo a transição para o Cubismo sintético: em Cubismo e a arte do século XX, Robert Rosenblum apresenta uma explicação bastante parecida com esta, quando comenta que a transição para o Cubismo sintético precisou acontecer porque as obras de Braque e Picasso estavam ficando obstruídas demais. Segundo Rosenblum, Picasso e Braque “parecem ter começado a sentir uma forte necessidade de esclarecer a estrutura pictórica que vinha se tornando cada vez mais difusa e labiríntica e a crescente ilegibilidade de seus constructos da natureza”. E a saída pela via do Cubismo sintético teria sido uma solução dessa crise pela via mais inusitada, ou seja, pela revitalização do contato com o mundo externo de um modo tão inesperado quanto dotado de uma lógica “capaz de desarmar qualquer um”.5 5 . ROSENBLUM, Robert. Cubism and Twentieth Century art. Nova York: Harry N. Abrams Inc. Publishers, 1976, p. 67. Tradução minha

É claro que a abordagem de Rosenblum difere da de Greenberg na medida em que ele vê, no uso das palavras, números e elementos da notação musical não apenas a negação do princípio fundamental da pintura desde o Renascimento, como um retorno ao ponto de vista medieval, para o qual a imagem pictórica era um símbolo e sua relação com a realidade, uma relação conceitual, chegando a dizer que “é tentador afirmar que um manuscrito medieval sugere o paralelo mais próximo da mistura cubista de símbolos convencionais e imagens estilizadas da realidade” enquanto que, na compreensão de Greenberg, a introdução de tais elementos é justamente aquilo que enfatiza a planaridade, sem estabelecer qualquer relação com algo externo à pintura:

Essas intrusões, pela sua autoevidência, pela sua planaridade abrupta e estranha ao assunto, paralisavam o olho na superfície literal, física, da tela, do mesmo modo que a assinatura do artista o fazia, aqui não se tratava mais de interpor uma ilusão vívida de profundidade entre a superfície e o espaço cubista, mas de especificar a planaridade real do plano pictórico de modo que tudo o mais que fosse mostrado nele fosse empurrado para um plano ilusório por contraste. A superfície agora era explicitamente, e não mais implicitamente, indicada como plano tangível mas transparente.6 6 . GREENBERG, Clement. Master Léger, op. cit., p. 171, tradução minha.

Ou seja, para Greenberg, quando em uma colagem como Prato de frutas com copo (1912), de Braque, em que podemos ver o papel de parede com textura de madeira, o que vemos é um espaço mais superficial do que aquele do Cubismo analítico,

(...) as tiras de papel de parede, as letras, as linhas em carvão e o branco do papel começam a mudar de posição em relação uns aos outros e começa a se desencadear um processo no qual cada parte da pintura tem a sua vez de ocupar todos os planos, reais ou imaginários. Os planos imaginários são paralelos uns aos outros... a planaridade da superfície permeia a ilusão e a ilusão reafirma a planaridade.7 7 . Idem. The pasted paper revolution. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 62, tradução minha.

Essa é a conhecida explicação de Greenberg para a colagem: como os pedaços de papel ou de tecido tinham de ser cortados em formas relativamente simples para serem inseridos na pintura, esta começou a adquirir contornos mais definidos e reconhecíveis; o sombreado foi suprimido e, assim, tornou-se ainda mais difícil obter volume e profundidade.

A leitura modernista do Cubismo analítico como um jogo entre ilusionismo e anti-ilusionismo já havia sido proposta por Daniel Kahnweiler, assim como por Alfred Barr. Existem pontos em comum entre as interpretações que Greenberg e Barr deram ao Cubismo, e podemos considerá-las uma historiografia formalista, ou modernista do Cubismo, aquela que privilegia a ideia de abandono da profundidade e do modelado por uma composição na qual figura e fundo se fundem. Antes de Greenberg, Barr já havia entendido o Cubismo como um método, um método que teria engendrado um processo na história da arte moderna. E sua interpretação foi aceita rapidamente não apenas nos EUA, como também na Europa, e perdurou por muito tempo.

A história do Cubismo de Barr foi uma ferramenta adequada para compreender o Cubismo de Picasso e de Braque, mas suas limitações aparecem quando se tenta aplicar sua interpretação a outros artistas. O que aconteceu foi que, durante muitos anos, o trabalho de cubistas que não se encaixavam nas ideias de Barr não eram considerados. Apenas depois dos anos 1960, o Cubismo de Picasso e Braque foi confrontado com leituras que divergiam desta historiografia oficial.

Para a interpretação do Cubismo de Greenberg, a colagem é o passo fundamental, a chave para se compreender tanto a pintura, como a escultura modernas:

Uma vez capaz de apreciar a colagem, ou papiers collés, tal como foi praticada pelos mestres cubistas, pode-se entender sobre o que foi a pintura desde que Manet começou a achatar suas formas8 8 . Idem. Review of the exhibition Collage. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 259, tradução nossa. ,

isso porque, à medida que a linguagem da colagem tornou-se uma linguagem de formas maiores e unidas mais estreitamente, teria ficado cada vez mais difícil desfazer a planaridade da superfície através desses meios. O interesse de Greenberg pelo Cubismo é, sobretudo, um interesse pela colagem e pela simplificação das formas por ela engendrada. Não interessa a ele a colagem surrealista, nem a dadaísta, mas unicamente a colagem cubista como um processo de rendição à natureza física do meio:

Colar um pedaço de jornal na tela chamava a atenção para a realidade física desta... a tipografia evitava que o olhar do observador atravessasse a superfície física da pintura na direção de um espaço ilusório. A pintura deixou de ser uma questão de projeção fictícia ou descrição, tornando-se indissoluvelmente unificada ao pigmento, à textura e à superfície plana que constitui seu objeto.9 9 . Ibidem.

O Cubismo e a colagem também foram percebidos por Greenberg como fundamentais não apenas para a pintura, mas para a escultura moderna – Greenberg entendia que a colagem havia sido responsável pelo abandono da tradição da escultura monolítica – tal como vemos na sua análise de Giacometti:

Giacometti partiu do Cubismo e o melhor de sua obra nunca o abandonou totalmente. Sem o Cubismo teria faltado o impulso para romper radicalmente com a escultura monolítica tal como ele o fez. Ele traduziu o Cubismo em escultura mais integralmente, e mesmo mais literalmente, do que qualquer outro escultor de seu tempo (...) foi o espírito do Cubismo, mais do que a letra, o que forçou Giacometti a tornar-se um tal inventor, apresentando a ele a concepção da escultura como algo linear, desprovido de massa, transparente, segregando o espaço e o esvaziando, no lugar de preenchê-lo... é isso o que significa o Cubismo, quando traduzido integralmente em escultura10 10 . Idem. Review of exhibitions of Alberto Giacometti and Kurt Schwitters. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 205, tradução minha. .

Pevsner e Gabo também teriam extraído conclusões radicais do Cubismo, rompendo igualmente com a tradição do monolito, seguindo deduções que teriam extraído unicamente do Cubismo, sem a ajuda da inspiração da arte primitiva, como Brancusi.

Greenberg desenvolveu esta interpretação da colagem como um momento inaugural de uma nova tradição pictórica pensando na Guitarra feita por Picasso em 1912. Greenberg entendeu a Guitarra como uma colagem tridimensional, como algo fixado sobre uma superfície, tal como as outras colagens, sendo que, em seguida, a superfície teria sido eliminada e aquilo que era colagem, se transformado numa espécie de relevo ou, ainda, numa construção. Uma nova tradição de escultura teria sido assim fundada, e o fato de que era uma nova tradição foi demonstrado posteriormente na obra dos construtivistas, em Giacometti, em suma, na ideia de escultura como construção.

Em 1958, Greenberg dirá que a nova escultura aponta, inexoravelmente, para sua origem na pintura cubista, pela sua linearidade, abertura, transparência e leveza.

O espaço está lá para ser modelado, dividido, enclausurado, mas não para ser preenchido. A nova escultura tende a abandonar a pedra, o bronze e a argila por materiais industriais como ferro, aço, alumínio, vidro, plástico, celuloide, etc., que são trabalhados com as ferramentas do ferreiro e até do carpinteiro... a nova escultura não é mais esculpida, ela é construída, montada, arranjada, combinada. Com isso o meio adquiriu uma nova flexibilidade11 11 . Idem. Sculpture in our time. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 58, tradução nossa.

Porém, chegou um momento em que Greenberg precisou romper com o paradigma cubista. Em “American type painting” comentou, por exemplo, que de Kooning permanecia uma cubista tardio. A essa altura, Cubismo era sinônimo, para ele, de tudo que a pintura deveria evitar: o escultural, o claro-escuro... Morris Louis foi considerado por Greenberg um dos artistas mais promissores de sua geração, e ele passou a defender essa posição justamente por acreditar que Louis rompia com o Cubismo para conceber suas pinturas em termos de cor, colocando-se ao lado de Clifford Still, Mark Rothko e Barnet Newman. Nesse momento, Greenberg passou a entender o Cubismo como escultural, acreditando que esses pintores haviam abandonado a concepção escultural da pintura: uma pintura constituída por formas, estruturas e contrastes entre luz e sombra. Os pintores da nova geração eram pintores voltados unicamente para a cor, as quais eram trabalhadas em grandes áreas, ou zonas de cor, e com as relações entre elas12 12 . Idem. Louis and Noland. In: O’BRIAN, J. (ed.) Op. cit., p. 97, tradução minha. .

Esse posicionamento de Greenberg fica bem claro no ensaio “Depois do expressionismo abstrato”, de 1962, no qual ele comenta que, quando começara a escrever sobre arte, a pintura abstrata feita nos Estados Unidos, como a de Stuart Davis, prendia-se demasiadamente ao Cubismo, chegando a reconhecer que a influência do Surrealismo teria sido até benéfica para muitos artistas... Até que uma ruptura definitiva teria acontecido com as primeiras individuais de Pollock e de Hofmann, em outubro de 1943 e março de 1944, respectivamente: “foi aí que eu vi pela primeira vez pinturas abstratas verdadeiramente pictóricas”13 13 . Idem. After Abstract Expressionism. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 122, tradução minha. . Ou seja, nos anos 1960, Greenberg começou a pensar no Expressionismo abstrato como uma reação à rigidez do Cubismo: “se o rótulo Expressionismo abstrato significa alguma coisa, ele significa exatamente isto: pictórico... em suma, uma constelação de qualidades como aquelas definidas por Wölfflin”14 14 . Ibidem, p. 123. .

1. 2. Modernismo e unidade do plano pictórico

A concepção de pintura moderna de Greenberg, que é, basicamente, a essência de sua contribuição para a teoria da arte, depende inteiramente da maneira como ele compreendeu o cubismo. A essência do cubismo repousava, para ele, na ambiguidade entre figura e fundo que acabava por fazer com que, por fim, o plano passasse a coincidir com a superfície física da tela, embora em certas colagens as formas se precipitassem em direção ao espectador com tanta ênfase que apenas um baixo-relevo poderia superá-las. O chiaroscuro, as sombras e o modelado apareciam como decoração, tão descolados da sua função original de representar volume e profundidade que não faria diferença se um objeto reconhecível estivesse ou não envolvido.

O método engendrado pelo Cubismo importava, para Greenberg, por se relacionar diretamente com a unidade do plano pictórico, uma questão fundamental para ele: perceber imediatamente unidade em uma obra era, para ele um valor: a unidade era aquilo que ele primeiramente procurava em um trabalho. Mas a unidade é um objetivo que requer sacrifício, tanto do conteúdo, como do sentimento. Sua ausência costuma degenerar no Expressionismo, ainda que a unidade não seja sinônimo de ausência de conteúdo ou de dramaticidade. A chave da unidade está na tensão que ela carrega. No caso da pintura moderna, a unidade implica uma tensão entre a planaridade construída, criada, e a resistência da matéria a ser unificada. A obtenção da unidade requer muito controle por parte do artista e esse controle está ligado ao esgotamento das possibilidades de cada meio.

A ideia de unidade estaria presente em Mondrian, em Schönberg, em Joyce, em Gertrude Stein: ela consiste em fazer com que cada elemento, cada voz, cada nota em uma composição tenham a mesma importância – eles são diferentes, mas se equivalem. Greenberg – lembrando que em livro sobre Juan Gris, Daniel Kahnweiller já teria estabelecido um paralelo entre o Cubismo e a música – restringiu-se a comentar que, assim como para Schönberg, cada elemento, cada voz e cada nota são igualmente importantes; para pintores como Mondrian, Klee, Pollock ou Mark Tobey – para citar apenas alguns – cada parte da tela é equivalente. Ou seja, em todos esses casos, o que se busca é um princípio de unidade formal, de modo que encontramos a essência do trabalho em cada uma de suas partes.

Sem esse direcionamento para a unidade, todo o real que existe entre o trabalho do artista e sua concretização em um estilo não acontecem. No lugar da elaboração de um estilo o que se tem é a exaltação da personalidade, com em Soutine, ou em Van Gogh. E para Greenberg, a arte deve resistir conscientemente a isso, deve ter controle sobre a erupção desse tipo de conteúdo. Esse é o argumento de seu artigo “O papel da natureza na pintura moderna”, no qual o Expressionismo surge para exemplificar exatamente essa falta de controle e, consequentemente, de estilo. Emoções exaltadas são frequentes na arte e a fonte dessa exaltação seria o próprio temperamento do artista. Temperamento este que, segundo Greenberg, deveria ser respeitado, porém ultrapassado. Hans Hoffman seria o exemplo de artista que, ao invés de dramatizar seu temperamento, estabeleceria uma relação dialética com ele. Ou seja, para Greenberg, não se trata simplesmente de privilegiar o meio mas, igualmente, de superar a necessidade se superar aquilo que é pessoal ou mundano.

Porém, como bem demonstram Kandinsky e Léger, é fácil um pintor abstrato se degenerar em decorador.

Nós, com nossa tradição de pintura de cavalete, não nos satisfazemos com a arte pictórica sob a forma de decoração. Esperamos de uma pintura aquilo que esperamos da literatura e da música: interesse dramático, movimento, algo com que o olho possa se envolver15 15 . Idem. Review of exhibitions of Joan Miró, Fernand Léger, and Wassily Kandinsky. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 65, tradução minha. .

Já Klee teria produzido alguns de seus melhores trabalhos quando incorreu nos perigos da decoração. Mas algumas de suas pinturas, ainda que decorativas, funcionam bem como pintura de cavalete e não possuem a qualidade estática da decoração. Klee isolou e concentrou o problema do conflito entre decoração e pintura de cavalete e foi capaz de resolvê-lo porque estava muito atento para isso. (Nesse sentido, Greenberg estava se referindo a Pastoral.) Klee nunca teria aceito totalmente a planaridade da pintura pós-cubista. Ele mostrou essa insatisfação com a impenetrabilidade do plano pictórico problematizando a superfície da tela, arranhando e remendando, pintando em madeira ou gesso, misturando materiais, voltando para a aquarela – ainda que Greenberg entenda que todas essas são formas de evasão, mecânicas e exteriores. Mas, sobretudo, ele teria tentado resolver o problema por meio da cor.

Artistas como Naum Gabo e Joseph Albers, por sua vez, seriam exemplos de artistas que teriam cometido o erro de ter simplificado demais seus estilos, recaindo no exagero do decorativo que, segundo Greenberg, frequentemente acompanha o excesso de bom gosto. Esse mal teria afetado não apenas Albers, que não teria conseguido jamais superar a doutrina da Bauhaus, como também Calder – um artista que nunca agradou a Greenberg –, e mesmo artistas considerados brilhantes por ele, como Picasso, Miró ou Arp.

Por outro lado, a unidade pode fazer com que a pintura se torne mera decoração e vencer este desafio – estabelecer unidade sem se transformar em mera decoração –, criando uma espécie de tensão, é o que caracteriza a boa pintura moderna. Para Greenberg o “decorativo” era um espectro que rondava a pintura modernista e esta precisaria enfrentar, segundo ele, o perigo do meramente decorativo através do próprio decorativo. Muitas vezes (mas nem sempre!) Greenberg usou o termo “decorativo” num sentido pejorativo, como um risco que a pintura moderna corre de se tornar estática, inerte, porque a partir de um certo ponto o decorativo degenera em má arte, em design, em repetição. A repetição transforma o estilo em design, faz com que a busca do estilo se torne uma necessidade externa e não interna. O estilo se torna acessível e, com isso, aceitável. Socialmente legítimo e, ao mesmo tempo, esteticamente insignificante. No processo de estilização perde-se o risco, o frescor, a incerteza, a possibilidade do erro que faz parte do processo artístico; a experiência estética é empobrecida, reduzida a um tipo de sentimento já conhecido.

Mondrian teria mostrado que ainda era possível realizar pinturas de cavalete autênticas sem recair no decorativo. Mas, toda pintura que se identifica exclusivamente com sua superfície correria o risco de tender para a decoração, bem como o de sofrer uma certa restrição em termos de expressividade. Partindo do ponto que Picasso e Braque haviam atingido com o Cubismo analítico em 1912 – quando as formas se planificavam em pequenas áreas que se misturavam mais e mais com o fundo e a pintura era feita com pequenos toques de cores neutras, enfatizando a superfície –, Mondrian teria percebido o quanto o Cubismo dependia das linhas horizontais e verticais e teria incorporado essa percepção em sua pintura.

Em 1944, ao escrever um “Óbituário de Mondrian”, Greenberg concluiu: Mondrian foi o único artista a levar as conclusões inevitáveis da pintura ocidental recente, definidas e isoladas pelo cubismo, às últimas consequências. Sua arte influenciou o design e a arquitetura mais diretamente do que a pintura, mas continuou sendo pintura de cavalete, com toda a concentração de drama e de força que esta forma requer. Ao mesmo tempo, ele apontou para o limite mais distante que a pintura de cavalete poderia atingir. Aqueles que seguissem a partir do ponto em que ele parou não seriam mais pintores de cavalete.

Desde o século XIX, quando a pintura se dirigiu para uma ênfase cada vez maior das qualidades decorativas e abstratas, levando ao abandono da representação do espaço tridimensional, o plano pictórico se aproximou cada vez mais da superfície chegando a pinturas abstratas tão bidimensionais que se reduzem ao fato físico efetivo da superfície plana. Assim, a dificuldade que encarcera o pintor abstrato quando ele quer criar mais do que decoração é a de que superar a inércia na qual sua pintura corre o risco de cair é um esforço que sempre corre o risco de fracassar, por causa da planaridade. A pintura de cavalete – e Klee foi um pintor de cavalete – repousa na ilusão da profundidade: para atingir um efeito de interesse dramático, ela precisa ultrapassar sua escala e seu isolamento.

Uma estratégia eficiente de ultrapassagem do decorativo, usada exemplarmente por Monet e Matisse, teria sido o uso da escala “monumental”, que é capaz de levar o decorativo até seu limite, planificando e generalizando os motivos a favor de um efeito inteiramente abstrato. A pintura de Clifford Still, Barnett Newman e Mark Rothko também é discutida por Greenberg dentro dessa abordagem, ou seja, como um tipo de pintura que, pela escala, deixa de ser pintura de cavalete para tornar-se ambiente, estabelecendo, assim, uma tensão entre o pictórico e o decorativo16 16 . Idem. American type painting. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 232, tradução minha. . Mas, quando bem sucedido, o decorativo confere unidade à pintura, como na pintura all over. A pintura all over seria uma contraposição à pintura de cavalete, que subordina o decorativo ao efeito dramático; e é por isto que ela é relevante: por reverter as prioridades usuais da pintura, eliminando o objetivo da verossimilhança, a comparação entre arte e natureza, ou qualquer propósito representativo. Para Greenberg, a pintura mais autônoma, abstrata e modernista é a pintura decorativa, tal como esta foi realizada no Expressionismo abstrato, quando todas as áreas da pintura são equivalentes, sem a necessidade de um centro; ou seja, quando a pintura é superfície pura. Porém, a falta de dramaticidade frustra a experiência estética e assim surge um impasse – é quando o decorativo precisa ultrapassar a si mesmo.

Monet e Pissarro, por exemplo, embora pouco revolucionários em outros aspectos, são tomados por Greenberg como exemplos da antecipação da pintura all over – a multiplicação de elementos idênticos, repetidos sem variações. Ainda que continue sendo pintura de cavalete, é um tipo de pintura que se aproxima da decoração, como um papel de parede que se estendesse indefinidamente. Esses artistas teriam atacado a essência da pintura de cavalete graças à consistência com a qual aplicaram o método da cor dividida, fazendo com que todas as partes da tela fossem tratadas com a mesma ênfase. O resultado foi o de retângulos homogêneos, densamente texturizados, com uma superfície relativamente indiferenciada. Cézanne, Van Gogh, Gauguin, os fauves, todos contribuíam para a redução da profundidade fictícia da pintura.

O pintor impressionista não estabelece diferentes pontos de interesse no interior do quadro, em suas pinturas não existe um centro dramático: as bordas da pintura têm a mesma clareza que o centro; o campo da visão que se projeta horizontal ou verticalmente não vai ficando mais borrado e, contrariando os princípios do Naturalismo, o Impressionismo introduziu, mesmo antes do Cubismo, o ponto de vista múltiplo. Assim, trouxe para a pintura uma planaridade (flatness) que não era vista desde os italianos primitivos. O estilo tardio de Monet mostra tanta consistência e continuidade porque ele se manteve na planaridade17 17 . Idem. Review of an exhibition of Claude Monet. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 22, tradução minha. .

Cézanne, por sua vez, teria se contraposto ao “material cromático puro fornecido pelo registro impressionista da experiência visual” buscando um princípio de unidade nos mestres do alto Renascimento, porque buscava “uma unidade diferente, mais enfática, e supostamente mais permanente, mais tangível em sua articulação”18 18 . Idem. Cézanne and the unity of modern art. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 84, tradução minha. . Sua obsessão pelo ajuste de sua própria percepção à superfície bidimensional provocava uma tal ambiguidade que, segundo Greenberg, o teria levado a um tipo de tensão pictórica inédita, devido à ambiguidade entre o plano e a profundidade.

Apenas a fotografia, uma linguagem artística em relação à qual Greenberg nunca se sentiu à vontade, poderia se permitir ser realista, literal, e ignorar a unidade decorativa porque, se o fizesse, estaria negando sua própria essência. Greenberg não imaginava que a fotografia pudesse ser uma investigação acerca de seus próprios meios, como a pintura e a escultura, sem tornar-se artificial e forçada, uma vez que, segundo ele, seu meio pertence a uma categoria automática de experiência estética.

A insistência no Cubismo como fundamento de todo Modernismo e sua identificação com a unidade do plano pictórico se destacam, sobretudo, nas análises que Greenberg faz da pintura de Jackson Pollock, considerado por ele o pintor que melhor havia absorvido o Cubismo. Ao longo de todos os anos durante os quais escreveu sobre Pollock, Greenberg insistiu em sua raiz cubista, devido à maneira como o artista conseguia conferir unidade ao plano pictórico, a despeito de todas as outras interpretações que suas pinturas suscitaram. E por perceber em Pollock uma continuidade do Cubismo, Greenberg discordava de interpretações que enfatizavam o aspecto demasiadamente intuitivo do artista.

Greenberg interpretou os expressionistas abstratos estritamente nos termos da articulação da superfície do plano pictórico. O fato de Harold Rosenberg ter difundido que na pintura expressionista abstrata o que interessava era o processo e não o resultado desagradava profundamente a Greenberg, assim como a denominação action painting, devido a sua associação fácil com algo divertido e popular: pintura de ação poderia ser entendido como filme de ação, e assim por diante. Aliás, a disputa entre Greenberg e Rosenberg acerca de quem teria interpretado melhor o Expressionismo abstrato já se evidencia no debate em torno de quem teria nomeado melhor o movimento e, sem dúvida, action painting foi uma maneira bem mais atraente para se referir aos trabalhos em questão do que o desajeitado “pintura de tipo americano”, empregado por Greenberg.

No artigo “American type painting”, Greenberg diz acreditar que o termo “expressionismo abstrato” tenha sido cunhado por Robert Coates, crítico da New Yorker, provavelmente o primeiro a usar esta denominação para se referir a Pollock, De Kooning e Gottlieb em 1946. Porém, Greenberg não considerava esta denominação totalmente apropriada. Rosenberg teria criado a denominação “action painting” em um artigo publicado na Art News, mas esta denominação restringia-se, segundo Greenberg, apenas a três ou quatro artistas. Na versão revisada desse artigo, publicado na Arte e Cultura, a discussão foi ampliada e Greenberg alegou então ter tomado o termo American type painting de Patrick Heron – pintor e escritor britânico –, atacando Rosenberg publicamente pela primeira vez. Para Greenberg, o termo “expressionismo abstrato” se justificava na medida em que muitos dos artistas desse grupo se inspiraram na ruptura com o Cubismo empreendida pelos expressionistas europeus. É importante observar que, para Greenberg, o termo “expressionismo abstrato” não designava um movimento que defendesse algum programa mas, simplesmente, apontava para um certo modo de lidar com problemas pictóricos que começou a aparecer de maneira mais ou menos simultânea nos trabalhos de vários dos artistas que realizaram suas primeiras individuais na galeria Art of this Century, de Peggy Guggenheim.

Assim como Greenberg, Harold Rosenberg não tinha formação universitária em Artes – Rosenberg graduara-se em Direito – e nem pertencia ao meio acadêmico, mas, como ele, combinou a convivência com artistas relevantes a um referencial teórico que foi se refinando ao longo do tempo. Começou a atuar como crítico de arte no final da década de 1940, inspirando-se na literatura romântica do século XIX: identificava-se particularmente com Baudelaire e Valéry. Seu artigo mais celebrado é, inegavelmente, “The American action painters” que, além de ter lançado a denominação para este tipo de pintura que foi adotada mundialmente, disseminou a comparação da tela com uma arena, ideia esta que se difundiu rapidamente:

Em determinado instante, para um pintor norte-americano depois do outro, a tela começou a afigurar-se como uma arena na qual se age – mais do que real ou imaginado. O que se destinava às telas não era um quadro, mas um acontecimento19 19 . ROSENBERG, Harold. Os action painters norte-americanos. In: ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 13. .

Foi Rosenberg quem apresentou Greenberg ao grupo de editores da Partisan Review, periódico no qual Greenberg teve a oportunidade de publicar alguns de seus ensaios mais influentes, como “Vanguarda e Kitsch” e “Rumo a um novo Laocoonte”. Mas, ao longo do tempo, suas posições passaram a divergir, na medida em que Rosenberg valorizava mais a autenticidade do fazer, como um índice de um compromisso com a própria existência, do que as qualidades formais das obras. O grau de rivalidade entre ambos pode ser medido a partir da reação ao artigo sobre os action painters americanos exposta por Greenberg em “How art writing earns its bad name”. Idiossincrasias à parte, compartilhavam certas preferências: ambos se dedicaram mais a refletir sobre a pintura do que sobre a escultura e defenderam teses que não poderiam ser aplicadas facilmente à arte contemporânea.

Quando Rosenberg publicou “The American action painters” Greenberg sentiu-se pessoalmente atacado pois todo seu discurso acerca da pintura abstrata norte-americana insistia na questão da discriminação e da qualidade. Além disso, Greenberg considerava a interpretação do Expressionismo abstrato dada por Rosenberg insuficiente, na medida em que ela não daria conta de explicar porque a pintura resultante desse processo, por meio do qual o artista estaria buscando sua essência, poderia ser considerada arte.

Mas o que mais desagradava a Greenberg era a associação da pintura desses artistas com o Existencialismo e outros conteúdos dramáticos e obscuros, embora estranhamente ele mesmo tenha se referido a certas pinturas de Pollock como “góticas”. Também lhe desagradava o fato de o artigo de Rosenberg ter sido muito bem recebido na Europa, contribuindo para formar uma concepção acerca da pintura norte-americana e notadamente acerca de Pollock com a qual ele, Greenberg, discordava. Greenberg acreditava que o sucesso da pintura abstrata norte-americana estaria incomodando os europeus e, nessa medida, toda a ideia de arbitrariedade envolvida na denominação action painting teria sido oportuna, por ser capaz de restaurar a confiança dos europeus em sua arte, pelo menos momentaneamente.

Para Greenberg, a arte de Pollock repousava muito menos no acidental do que se pensava, tendo uma base cubista e sendo o fruto de muito estudo e disciplina. E o mesmo valeria para de Kooning. Aquilo que muitos interpretaram como falta de controle, automatismo ou espontaneidade, foi compreendido por Greenberg como resultado do esforço empreendido por Pollock para tornar a execução de suas pinturas mais impessoal: ele teria começado as drip paintings, usando bastões e a tinta muito liquefeita, “simplesmente porque queria se livrar dos hábitos ou maneirismos dos dedos, do pulso, do cotovelo, e até do ombro, que são mobilizados quando se usa um pincel, ou qualquer outro instrumento que toque a superfície da tela”20 20 . GREENBERG, Clement. Jackson Pollock: inspiration, vision, intuitive decision. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 246, tradução minha. . Por eliminar o fator “habilidade manual”, para muitos as drip paintings pareciam eliminar também a questão do controle sobre a obra – com o que Greenberg discordava. A questão da habilidade já havia sido questionada muito antes, por Mondrian por exemplo. Mas Pollock o fez de um modo mais radical e perturbador. Embora tenha traçado muitas relações entre a pintura de Pollock e o Cubismo, a partir de um certo momento Greenberg começou a considerar que as pinturas de Pollock estavam evoluindo para algo que ia além da pintura de cavalete. A partir de 1948, Greenberg deixou de ver Pollock como um desenhista habilidoso e começou a se referir ao seu trabalho como “pictórico”, no sentido empregado por Heinrich Wölfflin.

É evidente que, para Greenberg, Pollock seria o artista de sua geração que teria unificado o plano pictórico da maneira mais interessante. Greenberg comenta, acerca da originalidade de Pollock, que os franceses acreditavam que Mark Tobey teria sido o primeiro artista a chegar ao design all over, “cobrindo a superfície da tela com um sistema de motivos uniformes homogêneo e indiferenciado, tendo como resultado a aparência de que poderia continuar indefinidamente, para além do chassis, como um papel de parede”21 21 . Ibidem. , porque Tobey apresentara pinturas all over predominantemente brancas numa exposição em 1944. Contudo, antes de ter realizado suas primeiras pinturas all over por volta de 1946, Pollock não as conhecia e pouco tempo depois, Pollock começou a trabalhar com teias de esmalte e manchas que se abriam e se entrelaçavam, com uma densidade e uma força muito distantes das pinturas razoavelmente limitadas – em termos de escala – realizadas por Tobey.

A relação entre Greenberg e Pollock é interessante justamente porque não era claramente uma relação fácil em termos de preferências estéticas e compromissos. Greenberg julgava que Pollock fazia a melhor pintura da América, mas a maior parte do tempo ele não entendia como. Todas as qualidades que ele percebia nas pinturas de Pollock realizadas entre 1946 e 1947, “the Gothic-ness, paranoia and resentment” – a atmosfera mórbida, o desejo de ser selvagem e extravagante, a pretensiosa exasperação e estridência americanas –, tudo isso era oposto daquilo que Greenberg considerava a real força da tradição moderna. “Gótico” era um termo usado por Greenberg para referir-se ao Surrealismo de modo pejorativo mas, foi o título dado por Pollock a uma pintura de 1944 que foi incluída na primeira exposição na qual o pintor mostrou as drip paintings. T. J. Clark não sabe dizer se Pollock teria dado este nome à pintura para “provocar seu novo aliado”, ou para deixar claro que não iria se submeter a ele22 22 . CLARK, Thimothy James. The unhappy consciousness. In: CLARK, Thimothy James. Farewell to an idea. New Have: Yale University Press, 2001, p. 317, tradução minha. .

Segundo Greenberg, ao se dedicar tão intensamente à pintura “all over”, Pollock teria sido movido pelo desejo de produzir um impacto mais imediato, denso, e decorativo do que aquele o Cubismo permitia:

(...) ao mesmo tempo, contudo, ele queria controlar a oscilação entre a superfície enfaticamente física e a sugestão de uma profundidade por trás dessa superfície, de uma maneira tão lúcida e tensa como Picasso e Braque haviam controlado um movimento similar com suas facetas abertas e inflexões pontilhistas de cor nas pinturas cubistas entre 1909 e 1913.23 23 . GREENBERG, Clement. American type painting, op. cit., p. 226. Para Greenberg, as pinturas all over realizadas por Pollock entre 1947 e 1950 dão continuidade ao Cubismo monocromático de Braque e Picasso entre 1910-1912 (analítico): “Os interstícios e áreas criados pelas redes de tinta de Pollock ecoam os planos facetados originais, de Picasso e de Braque e criam, analogamente, uma ilusão ambígua de profundidade rasa” (GREENBERG, Clement. The Jackson Pollock market soars. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 110).

As obras expostas por Pollock na Galeria Betty Parsons em 1952, como Fourteen e Twenty-Five, poderiam ser consideradas clássicas, “não apenas pela identificação entre forma e sentimento, como pela adequação e exploração das próprias circunstâncias do medium da pintura que limitam essa identificação”24 24 . Idem. Feeling is all. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 105, tradução minha. . Nessas obras o princípio de equivalência gera, segundo Greenberg, uma espécie de uniformidade alucinante, graças à reverberação da monotonia. Greenberg percebia ainda que, naquelas telas, reverberava monotonamente uma uniformidade que torna a unidade evidente e a pintura densa, como nas pinturas tardias de Monet, em que elementos discordantes se tornam visualmente equivalentes. Aliás, a monotonia é vista como uma qualidade, algo que torna essas pinturas mais densas e intensas.

Percebe-se, portanto, que ao longo da trajetória de Greenberg, a decoração ora é vista como algo positivo, obtido graças à unidade da superfície pictórica, ora como uma espécie de arte comercial, meramente agradável e vazia. Greenberg lembra que Mondrian teria sido o primeiro artista a usar o termo “equivalente” para falar da pintura moderna e que sua arte deveria ser entendida como uma antecipação daquilo que o próprio Greenberg entendia como sendo a arte mais coerente com os problemas colocados pela sociedade urbana contemporânea.

Fig. 1

Fig. 2

Fig. 3


Ao lado, Chronofotografia de Étienne-Jules Marey, 1885-1890.

  • 1
    . GREENBERG, Clement. Pintura modernista. In: FERREIRA, Glória & COTRIM, Cecília (orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997, p. 106
  • 2
    . Idem. T. S. Eliot: the criticism, the poetry. In: O’BRIAN, John (ed.). Clement Greenberg – the collected essays and criticism (vol. 3). Chicago: The University of Chicago Press, 1995, p. 66-67, tradução minha.
  • 3
    . Idem. Our period style. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 325, tradução minha.
  • 4
    . Idem. Master Léger. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 171, tradução minha.
  • 5
    . ROSENBLUM, Robert. Cubism and Twentieth Century art. Nova York: Harry N. Abrams Inc. Publishers, 1976, p. 67. Tradução minha
  • 6
    . GREENBERG, Clement. Master Léger, op. cit., p. 171, tradução minha.
  • 7
    . Idem. The pasted paper revolution. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 62, tradução minha.
  • 8
    . Idem. Review of the exhibition Collage. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 259, tradução nossa.
  • 9
    . Ibidem.
  • 10
    . Idem. Review of exhibitions of Alberto Giacometti and Kurt Schwitters. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 205, tradução minha.
  • 11
    . Idem. Sculpture in our time. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 58, tradução nossa.
  • 12
    . Idem. Louis and Noland. In: O’BRIAN, J. (ed.) Op. cit., p. 97, tradução minha.
  • 13
    . Idem. After Abstract Expressionism. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 122, tradução minha.
  • 14
    . Ibidem, p. 123.
  • 15
    . Idem. Review of exhibitions of Joan Miró, Fernand Léger, and Wassily Kandinsky. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 65, tradução minha.
  • 16
    . Idem. American type painting. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 232, tradução minha.
  • 17
    . Idem. Review of an exhibition of Claude Monet. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 22, tradução minha.
  • 18
    . Idem. Cézanne and the unity of modern art. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 84, tradução minha.
  • 19
    . ROSENBERG, Harold. Os action painters norte-americanos. In: ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 13.
  • 20
    . GREENBERG, Clement. Jackson Pollock: inspiration, vision, intuitive decision. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 246, tradução minha.
  • 21
    . Ibidem.
  • 22
    . CLARK, Thimothy James. The unhappy consciousness. In: CLARK, Thimothy James. Farewell to an idea. New Have: Yale University Press, 2001, p. 317, tradução minha.
  • 23
    . GREENBERG, Clement. American type painting, op. cit., p. 226. Para Greenberg, as pinturas all over realizadas por Pollock entre 1947 e 1950 dão continuidade ao Cubismo monocromático de Braque e Picasso entre 1910-1912 (analítico): “Os interstícios e áreas criados pelas redes de tinta de Pollock ecoam os planos facetados originais, de Picasso e de Braque e criam, analogamente, uma ilusão ambígua de profundidade rasa” (GREENBERG, Clement. The Jackson Pollock market soars. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 110).
  • 24
    . Idem. Feeling is all. In: O’BRIAN, J. (ed.). Op. cit., p. 105, tradução minha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2016
  • Aceito
    18 Fev 2017
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