RESUMO
Neste artigo, propomos realizar uma análise interpretativa de obras selecionadas do artista norte-americano Bill Viola (n. 1951), visando à caracterização de imagens de tempo que possuam uma dimensão política resistente à rápida obsolescência e ao capitalismo tardio. Especialmente, buscamos mostrar que, por meio de suas obras, Viola evoca a angústia em face da finitude; por isso, suas imagens de tempo nos interpelam diante do nada da existência. Nessa linha interpretativa, sugerimos uma aproximação entre sua poética e aspectos da filosofia de Martin Heidegger, principalmente o conceito de “ser-para-morte”, e do pensamento de Keiji Nishitani, com a noção de “lugar do vazio”, bem como mobilizamos algumas considerações de Gilles Deleuze, Shuichi Kato, John Hanhardt e Elizabeth ten Grotenhuis.
Bill Viola; Martin Heidegger; Keiji Nishitani; finitude; nada
ABSTRACT
In this article, we propose an interpretative analysis of selected works by the American artist Bill Viola (b. 1951), aiming at the characterization of time images that have a political dimension resistant to rapid obsolescence and late capitalism. Especially, we seek to show that, through his works, Viola evokes anguish in the face of finitude; therefore, his time images query us towards the nothingness of existence. Following this interpretative line, we propose an approximation of his poetics to aspects of the philosophy of Martin Heidegger, mainly the concept of “being-toward-death”, and of Keiji Nishitani, with the notion of “field of emptiness”, as well as mobilize some considerations from Gilles Deleuze, Shuichi Kato, John Hanhardt, and Elizabeth ten Grotenhuis.
Bill Viola; Martin Heidegger; Keiji Nishitani; Finitude; Nothingness
RESUMEN
En este artículo, proponemos una analice interpretativa de obras seleccionadas del artista estadounidense Bill Viola (n. 1951), con vistas a caracterizar imágenes del tiempo que presenten una dimensión política resistente a la rápida obsolescencia y al capitalismo tardío. Sobretodo, intentamos señalar que, con sus obras, Viola evoca la angustia frente a la finitud y que, por eso, sus imágenes temporales nos interrogan ante el nada de la existencia. Siguiendo esa línea interpretativa, proponemos una aproximación entre su poética y cuestiones de la filosofía de Martin Heidegger, en especial el concepto de “ser-para-la-muerte”, y de Keiji Nishitani, con la noción de “lugar del vacío”, así como hacemos uso de consideraciones de Gilles Deleuze, Shuichi Kato, John Hanhardt y Elizabeth ten Grotenhuis.
Bill Viola; Martin Heidegger; Keiji Nishitani; finitud; nada
INTRODUÇÃO
Bill Viola (1951) é um artista norte-americano vastamente conhecido no campo da arte contemporânea como um dos maiores representantes da videoarte, tendo elaborado obras que exploram diferentes possibilidades dessa tecnologia, tais como vídeos de um canal, em circuito-fechado e instalações. Iniciou sua carreira nos Estados Unidos nos anos 1970, morou no Japão nos anos 1980 e voltou a seu país de origem, onde permanece até hoje. Essa breve estadia no oriente marcou sua trajetória de tal modo que aspectos da cultura oriental, sobretudo japonesa, persistem em suas obras, tanto na temática – que explora, por exemplo, passagens do tempo e ciclos da vida – quanto na forma – em vídeos feitos com alta tecnologia, capaz de gerar imagens em extrema câmera lenta.
Este artigo não pretende constituir uma biografia do artista, haja vista a existência de publicações recentes, inclusive no Brasil, que desempenham com primazia essa função1 1 . Cf. HANHARDT (2018) . A publicação original foi traduzida para o português por ocasião da mostra “Bill Viola: Visões do tempo”, que ocorreu no Sesc Avenida Paulista de 29 de abril a 09 de setembro de 2018. . Propomos realizar uma análise interpretativa de obras selecionadas, visando à caracterização de imagens de tempo que possuam uma dimensão política resistente à rápida obsolescência e ao capitalismo tardio. Especialmente, buscamos mostrar que, por meio de suas obras, Viola evoca a angústia em face da finitude; por isso, suas imagens de tempo nos interpelam diante do nada da existência. Nessa linha interpretativa, sugerimos uma aproximação entre sua poética e aspectos da filosofia de Martin Heidegger, especialmente o conceito “ser-para-morte”, e do pensamento de Keiji Nishitani, com a noção de “lugar do vazio”, além de mobilizarmos considerações de Gilles Deleuze, Shuichi Kato, John Hanhardt e Elizabeth ten Grotenhuis.
PASSAGENS DO TEMPO
He Weeps for You2 2 . Instalação de vídeo/som. Gota de água do tubo de cobre; câmera colorida ao vivo com lente macro; tambor amplificado; projeção de vídeo no quarto escuro. Tamanho da imagem projetada: 230 x 310 cm. Dimensões da sala: 370 x 610 x 790 cm. ( HANHARDT, 2018 , p. 285) (1976) é a primeira instalação de Bill Viola. A obra é composta por uma torneira, colocada no nível de observação do espectador, que pinga lenta e constantemente. As imagens das gotas d’água que saem dessa torneira são captadas em close por uma câmera com lente macro e exibidas em tempo real e em escala ampliada em uma tela no mesmo espaço da instalação. A proximidade da câmera em relação ao objeto retratado é tamanha que permite capturar a gota d’água e o que seria o reflexo nela projetado do rosto do espectador. Como efeito desse espelhamento, o retrato aparece de cabeça para baixo, deformando-se quando a gota se alonga até cair em uma superfície metálica no chão, que produz o som alto de um gongo. A sonoridade amplificada rompe com o silêncio e constitui uma espécie de marcação do tempo; tempo esse que se esvai, assim como a gota e a imagem do espectador sobre ela.
Essa instalação se conecta diretamente a outros vídeos em um canal que Viola produziu na mesma época. Em Migration, for Jack Nelson 3 3 . Videoteipe, cor, som mono; 7 minutos. Produzido em Synapse; Syracuse University, Syracuse, NY. (Ibidem, p. 284) (1976), por exemplo, uma relação muito próxima com He Weeps for You é estabelecida pela preservação de elementos como o reflexo na água, o cair das gotas e a marcação do tempo pelo som. O vídeo começa com figuras indistintas que preenchem a tela, acompanhadas do som de batidas metálicas regulares. Conforme o tempo passa, percebemos que se trata, na verdade, de uma imagem desfocada, que aos poucos adquire contornos mais precisos. Sua nitidez revela uma mesa e uma cadeira, captadas em plano médio; e um homem que posteriormente se aproxima delas e senta-se na cadeira. Na mesa, há alguns objetos, como uma vasilha arredondada sobre a qual se encontra uma torneira de metal. À medida que as batidas se sucedem, a câmera se aproxima dessa vasilha, e percebemos que ela está preenchida por água, na superfície da qual é possível distinguir o reflexo do rosto do homem sentado, que é o próprio artista. O enquadramento é, então, levemente modificado, deslocando nossa atenção para a torneira, que pinga. Cada vez mais perto dela, acabamos por ver, nas gotas em formação, captadas em close , o retrato do artista de cabeça para baixo, como se fosse seu reflexo n’água, efeito da proximidade com que a cena é retratada.
Ambas as obras exploram a mesma operação poética de marcação do tempo, refletindo contingências que, à primeira vista, parecem se repetir, mas que, no entanto, mudam a todo instante. Nesse sentido, elas remetem às transformações que ocorrem no tempo da própria vida ao longo de sua duração. Como nos diz Gilles Deleuze, “há devir, mudança, passagem. Mas a forma do que muda não muda, não passa. É o tempo, o tempo em pessoa, ‘um pouco de tempo em estado puro’: uma imagem-tempo direta, que dá ao que muda a forma imutável na qual se produz a mudança” (DELEUZE, 2013, p. 27).
Essa marcação do tempo também pode ser observada em trabalhos posteriores, que passam a contemplar referências cada vez mais constantes ao ciclo da vida. A partir dos anos 1990, há uma recorrência desse tema que se mostra, por exemplo, em The Passing 4 4 . Em memória de Wynne Lee Viola. Videoteipe, preto e branco, som mono, 54 minutos. Produzido em associação com Das kleine Fernsehspiel (ZDF), Mainz, Alemanha. (Ibidem, p. 286) (1991). Essa obra, um vídeo em um canal com 54 minutos de duração, reúne imagens retiradas de algum registro familiar, planos abertos em locais desabitados, no deserto e na cidade, e closes do próprio artista. Elas são apresentadas fora de uma sequência lógica de causa e efeito, combinadas com cenas de recém-nascidos, crianças, idosos e do próprio artista que, adulto, encontra-se submerso na água. Outras imagens abrangem percursos, por exemplo a de um carro na estrada e do decolar e pousar de aviões. Os sons do vídeo compreendem a respiração, o tic-tac de relógios e o cricrilar de grilos. Viola concatena esses fragmentos, que juntos remetem ao ciclo da vida, estabelecendo uma relação com o espectador por meio do olhar do espectador e de si mesmo, quando a imagem de seu rosto em close aparece, de repente, observando a câmera, interpelando o espectador sobre a sua existência.
Esse registro em close desempenha o papel central na ligação entre as demais imagens, pois, tal como argumenta Bela Balázs, “diante de um rosto isolado, não percebemos o espaço. Nossa sensação do espaço é abolida. Uma dimensão de outra ordem se abre a nós” (BALÁZS apud DELEUZE, 1985DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento . (1983). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. , p. 124). Além disso, Eisenstein sugere que “o primeiro plano não [é] apenas um tipo de imagem entre as outras, mas [oferece] uma leitura afetiva de todo filme” ( DELEUZE, 1985DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento . (1983). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. , p. 114). Considerando essas observações, Deleuze faz uma contribuição importante ao elaborar o conceito de “rostidade”.
Segundo o filósofo, a rostidade refere-se a certas características do rosto, mas que se manifestam em coisas e objetos mostrados em primeiro plano5 5 . Deleuze considera, indistintamente, o plano americano, o primeiro plano (equivalente ao close ) e o primeiríssimo plano como formas do primeiro plano. Cf. DELEUZE (1985 , p. 125). . Deleuze diferencia dois tipos de rosto, ou rostidade: o intensivo e o reflexivo, ou refletor. O primeiro é dotado de traços que “escapam ao contorno”, “põem-se a trabalhar por sua própria conta e formam uma série autônoma que tende para um limite ou transpõe um limiar”, enquanto o segundo possui traços que permanecem “reunidos sob o domínio de certo pensamento fixo ou terrível, mas imutável e sem devir, de certo modo eterno” (Ibidem, p. 117). O rosto intensivo exprime uma “potência pura”, e o rosto reflexivo, uma “qualidade pura”. A potência reside no devir subjacente à transformação de uma qualidade em outra, ao passo que a qualidade é algo que permeia os objetos. Assim, a potência refere-se ao movimento e à impermanência, enquanto a qualidade, paradoxalmente, baseia-se na imobilidade ou permanência.
Deleuze indica que, apesar de opostos, esses dois polos da rostidade podem se comunicar, ultrapassando ambas as definições para chegar ao que une “diretamente uma reflexão coletiva imensa às emoções particulares de cada indivíduo, exprimindo, enfim, a unidade da potência e da qualidade” ( DELEUZE, 1985DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento . (1983). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. , p. 120). Não se trata, portanto, da anulação das suas características individuais, mas da criação de algo entre ambas, que abstrai o objeto apresentado em primeiro plano “de todas as coordenadas espaço-temporais, isto é, eleva-o ao estado de entidade” (Ibidem, p. 124), em outras palavras, “afeto puro enquanto expresso” (Ibidem, p. 125).
Se a rostidade do primeiro plano é responsável pela emergência do afeto puro, isso ocorre apenas quando as funções do rosto propriamente dito são extintas. O primeiro plano traria à luz, então, outra potência e qualidade aos rostos e demais objetos a partir de uma dupla operação de apagamento do rosto e de surgimento da rostidade , ou, em outros termos, da negação e afirmação da face. Esse movimento constitui a imagem-afecção: “ela tem por limite o afeto simples do medo, e o apagar dos rostos no nada. Mas tem por substância o afeto composto pelo desejo e pelo espanto que lhe dá vida, e o afastar-se dos rostos no aberto, no vivo” (Ibidem, p. 131).
A distinção de Deleuze da imagem-afecção auxilia no entendimento da função do rosto de Viola captado em close na obra The Passing . O artista nos olha e é por nós olhado. Assim como ele, somos entregues à vidência das passagens do tempo. Saber quem são as pessoas retratadas não faz diferença no entendimento dos afetos que essas imagens constituem. Enquanto o rosto de um recém-nascido apresenta a renovação, e a face de uma idosa acamada evoca a finitude, o rosto de Viola designa o medo diante da perspectiva do apagamento da vida conforme o tempo passa, da infância à velhice, do nascimento à morte. Ele também estabelece a ligação entre seu corpo à deriva e espaços vazios, tais como paisagens urbanas ou naturais desertas e cômodos desocupados. Seu olhar, junto ao nosso, observa, ao mesmo tempo, a transitoriedade do corpo e a durabilidade dos espaços, interpelando-nos em face da finitude. Longe de uma abordagem niilista, essa interpelação serve como um chamado para uma possível ressignificação da vida. Tal como considera Deleuze, na imagem-afecção , o limite do medo coexiste com o desejo e o espanto que dá vida. Viola faz uma observação similar acerca de He Weeps for You: “A cada momento, um mundo nasce e morre. E saiba que, para você, a cada momento vem a morte e a renovação” (VIOLA apud HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 58). Ora, assim como em The Passing , também naquela instalação o primeiro plano é enfatizado. Nela, contudo, o próprio espectador se depara com a angústia diante do apagamento, pois é sua a imagem que se esvai com o cair da gota d’água. Ela enfatiza duplamente a rostidade , uma vez que o retrato do espectador em primeiro plano, refletido na gota d’água, é captado também em close pela câmera para ser exibido no telão.
É possível observar, portanto, que não é apenas nos acontecimentos mais marcantes, como o nascimento e a morte, que a interpelação da passagem do tempo se instaura. Assim como indicam as imagens cotidianas em The Passing , a inscrição do tempo está no dia a dia, no instante qualquer da banalidade cotidiana ( DELEUZE, 2013DELEUZE, Gilles. Cinema 2. A imagem-tempo . (1985). São Paulo: Editora Brasiliense, 2013. , pp. 23-28). He Weeps for You também parte de um acontecimento ordinário para interrogar o espectador sobre questões de ordem extraordinária. A projeção do lento cair das gotas d’água torna-se monumental tanto no tempo como no espaço, criando perturbações na imagem de quem a contempla. A conjugação desses elementos extrapola suas significações, tornando algo cotidiano excedente, no sentido de dotado de uma magnitude que supera nossa capacidade de compreensão racional. Em termos deleuzianos, trata-se da qualidade da imagem-tempo em dar a ver e sentir a “impotência do pensar”6 6 . Em seus livros Cinema 1. Imagem-movimento e Cinema 2. Imagem-tempo , Deleuze caracteriza dois regimes da imagem a partir do cinema clássico e moderno, sintetizados, respectivamente, pelos termos “imagem-movimento” e “imagem-tempo”. Resumidamente, a imagem-movimento mostra eventos, objetos e pessoas como uma realidade pré-existente, e a câmera efetua movimentos que priorizam a apresentação dessa realidade em encadeamentos lógicos e causais. A montagem reúne planos distintos para desenvolver a sensação de um tempo cronológico. Por sua vez, a imagem-tempo mostra as mesmas figuras em articulações do tempo não cronológicas, de modo a tornar espectador, juntamente ao personagem, um vidente. A montagem efetua rupturas de continuidade e produz anomalias de movimento, reforçando a intenção de surpreender o vidente por algo intolerável no mundo e confrontá-lo com algo impensável no pensamento. .
ALARGAMENTO DO INSTANTE
Ocean Without a Shore7 7 . Tríptico de vídeo em cores com alta definição, duas telas de plasma com 65 polegadas e uma com 103 polegadas montadas verticalmente, seis alto-falantes (três pares, som estéreo). Dimensões da sala: 450 x 650 x 1050 cm. ( HANHARDT, 2018 , p. 288) (2007) é uma instalação composta originalmente por três vídeos expostos em altares da igreja de San Gallo, em Veneza, Itália, distribuídos em três paredes de um único ambiente. Cada vídeo mostra inicialmente uma imagem em preto e branco em baixa resolução de indivíduos que andam ao encontro do espectador. Em um dado momento da sua aproximação, as pessoas atravessam um véu d’água e suas imagens tornam-se coloridas e nítidas, em alta resolução. Após alguns instantes, elas retornam para onde estavam no princípio. As passagens entre as duas imagens aludem ao atravessamento da morte à vida, e vice-versa. Já a lenta caminhada envolve a construção de um estado meditativo sobre a duração.
Dois dispositivos foram criados especialmente para a obra, um correspondente ao véu d’água e outro relativo ao alinhamento entre duas câmeras, uma em baixa e outra em alta resolução, que geram as imagens anteriores e posteriores ao atravessamento desse véu8 8 . Cf. o vídeo Ocean Without a Shore - Venice Biennale 2007, em que Bill Viola comenta a obra. Disponível em: https://youtu.be/6-V7in9LObI . Acesso em: 20 mai. 2020. . A própria desaceleração é possibilitada pela câmera digital, que captura imagens em uma alta taxa de quadros por segundo, permitindo, assim, uma maior extensão do tempo. Para o artista, as mudanças tecnológicas na geração de imagens transformam-se em “uma espécie de portal ou entrada para outro mundo”, já que possibilitam outras visualidades anteriormente indisponíveis9 9 . Cf. KIDEL, Mark. Bill Viola: The Eye of the Heart . BBC, 2003, 59’06”. .
As características das tecnologias digitais usadas por Viola, tais como a aparência fotográfica, alta resolução e a possibilidade de operar em diferentes escalas, permitiram novos modos de articulação das imagens10 10 . Ao longo de sua carreira, Viola demonstrou entusiasmo com a incorporação de novas tecnologias a seu processo de criação. Dentre outros exemplos possíveis, ressaltamos uma situação descrita pelo próprio artista: “Nunca vou me esquecer quando, em 1998, um amigo engenheiro [Thomas Piglin, com quem Viola trabalhava desde 1982] trouxe uma dessas primeiras telas planas de LCD de última geração para que avaliássemos. [...] Eu sabia que estava vendo um novo passo na evolução da imagem em movimento. [...] A imagem tinha uma qualidade suave e acetinada, pois não trazia vidro na sua frente. [...] E a fonte da imagem era digital, o que significava alta resolução e baixo ruído. Mas a escala era o mais surpreendente. Eu me vi caindo dentro da imagem, me perdendo em sua aura, e [aquela tela] tinha apenas 16 polegadas de largura” (VIOLA apud HANHARDT, 2018 , pp. 176-180). . Essas inovações tecnológicas têm sido empregadas em processos de expansão do tempo, já presentes em seus vídeos dos anos 1970. Nessa época, eles remetiam especialmente à videoarte emergente e a seu precursor Nam June Paik, para quem “o vídeo não é mais nada do que o tempo, somente o tempo” (PAIK apud DUBOIS, 2004DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard . São Paulo: Cosac Naify, 2004. , p. 64).
Assim como em Paik, o tempo compõe o próprio fundamento das imagens de Viola. Sua proeminência relaciona-se originalmente com o processo formativo do som, pois, como esse artista relembra, a imagem em vídeo era inicialmente constituída por ondas estacionárias de energia elétrica, um sistema vibratório composto por frequências específicas, tal como o som radiofônico. Essa estrutura baseada em ondas implicava afirmar que não poderia existir imagem fixa em vídeo. De acordo com Viola, “a câmera de vídeo, enquanto transdutor eletrônico de energia física em impulsos elétricos, está mais diretamente ligada ao microfone do que à câmera de cinema” (VIOLA, 2003, p. 60). Esse é um dado importante para a análise de sua poética, pois, se as obras atuais de Viola são realizadas com câmeras e dispositivos digitais, na forma de concebê-las ecoa o movimento vibratório da formação das imagens eletrônicas no tubo catódico. Assim, a acústica, enquanto modo originário de concepção do vídeo, está na base de suas imagens desaceleradas.
Muitas vezes, esse retardamento do tempo constitui um mecanismo de alargamento do instante. Essa ideia perpassa a compreensão do curador John Hanhardt, para quem “a arte de Viola não pretende representar o passado; na verdade, suas instalações e vídeos em um canal representam a vida como uma experiência no tempo presente ” ( HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 12, grifo nosso). Nesse contexto, ressaltar o presente não visa a estimular um aproveitamento hedonista do momento, mas a acolher a impermanência na duração. Ocean Without a Shore compreende essa proposta, já que destaca a ocorrência das transformações no tempo. Essa abordagem resulta de uma intensa pesquisa do artista em torno de questões de ordem espiritual, marcada, especialmente, mas não apenas, por sua proximidade com a cultura japonesa desde o período em que morou em Tóquio, nos anos 198011 11 . A conexão com aspectos da cultura japonesa é uma via para acessar a arte de Viola, mas há outras referências relevantes, tais como a arte renascentista e o misticismo cristão e islâmico. .
Para um melhor entendimento dessa questão, recorremos ao historiador da literatura Shuichi Kato. Ele observa que, “em todos os níveis da sociedade japonesa, há uma forte tendência de se viver o presente, deixando o passado ser levado pelas águas e confiando o futuro à direção do vento” (KATO, 2012, p. 16). Sua tese é de que, no Japão, coexistem três figuras de tempo: uma linha reta sem começo e sem fim, correlata ao tempo histórico; um movimento cíclico sem começo e sem fim, presente no tempo cotidiano; e uma reta com começo e fim, relativa ao tempo da vida de cada indivíduo. Todas enfatizariam igualmente o “agora” (Ibidem, p. 53).
A reta sem começo e sem fim implica o fluir infinito do tempo, o qual supera nossa capacidade de compreensão. Devido a essa dificuldade, seria possível apreendermos apenas o “agora”, entendido não como um instante, mas como uma fração do tempo percebida ora como curta, ora como longa (Ibidem, pp. 47-48). Por sua vez, o movimento cíclico sem começo nem fim remete à sucessão das estações do ano. A marcação desses períodos deve sua origem ao trabalho no campo e perpassa a história japonesa. A persistência desse paradigma também pode ser vista em exemplares da literatura. É o caso, por exemplo, do haikai , que traz uma importante referência aos elementos da natureza na cultura japonesa e sintetiza a “expressão da experiência instantânea”, por sua leitura consistir em uma operação não emocional, mas sensitiva, “um tipo de sintonia entre o alvo da percepção (mundo exterior) e o íntimo”, que “surge num instante e se extingue noutro” ( KATO, 2012KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa . (2007). São Paulo: Estação Liberdade, 2012. , p. 101). A última figura de tempo indicada por Kato, a reta com começo e fim, refere-se à finitude humana. Segundo o autor, “a ‘efemeridade de todas as coisas’ não diz respeito a uma sucessão cíclica do tempo histórico, mas à vida com começo e fim de uma pessoa. A vida é curta. Esta é a condição humana, e não difere segundo a cultura” (Ibidem, p. 101). O que as culturas teriam de distinto é o modo de lidar com tal realidade. Em síntese, a cultura japonesa seria marcada pela ênfase no “agora” presente nessas três instâncias.
Não é à toa, portanto, que as obras de Viola se fundamentariam, como afirma Hanhardt, em uma “ experiência no tempo presente ” ( HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 12, grifo nosso). A dilatação do instante promovida por suas imagens desaceleradas corresponderia, em certa medida, às três conotações do “agora” na cultura japonesa, já que destacariam essa fração do tempo, de caráter elástico, em sua relação com a finitude. Além disso, Kato ressalta uma forte influência do Budismo Mahayana na concepção japonesa de tempo. De acordo com essa doutrina, “tudo quanto existe no universo é um, e o um é tudo. Passado, presente e futuro são o agora da eternidade, e o agora da eternidade é passado, presente e futuro” (KATO, 2012, p. 43). O autor esclarece que “esse modo de pensar não é um tipo de concepção de tempo histórico, é a superação do tempo em si ” (Ibidem, p. 43, grifo nosso). Tal compreensão pode ser considerada análoga ao “tempo puro” deleuziano, ou seja, um tempo não cronológico, mas simultâneo e ontológico, cuja vidência é possibilitada pela imagem-tempo, “que dá ao que muda a forma imutável na qual se produz a mudança” ( DELEUZE, 2013DELEUZE, Gilles. Cinema 2. A imagem-tempo . (1985). São Paulo: Editora Brasiliense, 2013. , p. 27). Na poética de Viola essa superação seria evocada por meio do alargamento do instante, promovido de maneiras diversas, tais como a desaceleração em Ocean Without a Shore e o avivamento das passagens do tempo em He Weeps for You e The Passing . Essas obras fundamentam-se no dizer de Paik sobre a essência do vídeo – tempo, nada além do tempo –, também corroborada por Viola desde seus vídeos iniciais.
IMAGENS DE TEMPO DO NADA
The Quintet of the Astonished12 12 . Projeção traseira de vídeo em cores em tela montada na parede em um quarto escuro. Tamanho da imagem projetada: 140 x 240 cm; 15’20’’. Intérpretes: John Malpede, Weba Garretson, Tom Fitzpatrick, John Fleck e Dan Gerrity. (HANHARDT, op. cit., p. 287) (2000) é uma instalação em um canal que mostra cinco indivíduos reagindo lentamente a algo que não vemos. Durante 15 minutos, apenas a parte superior de seus corpos é captada em meio primeiro plano, não havendo nenhuma figura que possa indicar uma localização espaço-temporal. O fundo da imagem é preto, o que reforça a sensação de suspensão ao observarmos o desenrolar das ações em um estado quase onírico, propiciado pela extrema câmera lenta. Viola observa que esta “torna visível o menor dos detalhes e as nuances sutis de expressão, e cria um espaço psicológico, subjetivo, onde o tempo é suspenso tanto para os performers como para os espectadores” (VIOLA apud HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 184). O interesse do artista em ressaltar as nuances de expressão nessa obra condiz com um período de intensa pesquisa sobre as paixões humanas e a pintura renascentista, sintetizado na exposição “The Passions”, realizada no J. Paul Getty Museum, em Los Angeles, com curadoria de John Walsh. O vídeo se inspira na obra Cristo zombado (Coroação de Espinhos) (ca. 1510), de Hieronymus Bosch, reproduzindo, inclusive, detalhes dos retratos clássicos de figuras humanas, como a própria disposição desses elementos na tela de Bosch.
Outras obras do mesmo período, também exibidas em “The Passions”, são Catherine’s Room 13 13 . Políptico de vídeo em cores em cinco telas planas de LCD montadas na parede, 38 x 246 x 5,5 cm, 18’ 39’’ minutos. Intérprete: Weba Garretson. (Ibidem, p. 287) (2001) e Five Angels for the Millennium 14 14 . Cinco canais de projeção de vídeo em cores nas paredes de uma sala grande e escura; som estéreo para cada projeção. Tamanho da imagem projetada: 240 x 320 cm cada. Dimensões da sala: 370 x 1525 x 1830 cm. Intérpretes: Josh Coxx (painéis i-iv), Andrew Tritz (painel v). ( HANHARDT, 2018 , p. 287) (2001). Inspirada na predela St. Catherine of Siena Praying , do pintor italiano Andrea di Bartolo Cini, Catherine’s Room é uma instalação de cinco canais de vídeo, dispostos lado a lado na horizontal. A obra mostra atividades cotidianas de uma personagem, que aparece concomitantemente em cinco cômodos distintos, realizando diferentes tarefas ao longo do dia. Cada painel representa um período do dia (manhã, tarde, pôr do sol, fim de tarde e noite), ao mesmo tempo em que mostra o desenrolar de outra linha temporal por meio dos detalhes revelados pela pequena janela daquele quarto. Para Viola, essas camadas transformam a obra em uma “visão mais ampla de uma vida presa ao ciclo da natureza” (Ibidem, p. 184). Se em The Quintet of the Astonished há um efeito de suspensão espaço-temporal promovido pela câmera lenta, em Catherine’s Room ocorre a sobreposição de diversas camadas do tempo, vinculadas a períodos do dia e estações do ano.
Por sua vez, Five Angels for the Millennium é uma instalação composta por cinco projeções – I. Departing Angel, II. Birth Angel, III. Fire Angel, IV. Ascending Angel e V. Creation Angel – nas quais figuras humanas submergem na água e dela emergem em velocidade desacelerada repetidamente, simbolizando a transição entre algo que “é” e passa a “não ser”, e vice-versa, similar ao que ocorre em Ocean Without a Shore . Cada projeção é acompanhada pelo som de ruídos aquáticos, o qual prossegue em um crescendo que culmina em uma explosão audiovisual quando a figura emerge da água. Para Hanhardt, a obra edifica uma “arquitetura do sentimento”, “que ganha vida quando as formas anônimas que mergulham através da luz e da água se tornam uma presença abrangente” (HANHARDT, 2018, p. 189). Nesse sentido, “cada um dos anjos ocupa um lugar em nossa imaginação e afirma uma paixão pela vida” (Ibidem, p. 189).
As três instalações aqui brevemente descritas adquirem realce no estudo de Hanhardt devido ao protagonismo da figura humana e suas paixões, o que o leva a pensar em uma possível afinidade com o conceito “ser-para-morte”, de Martin Heidegger (1889-1976) (Ibidem, p. 180). É curioso notar que essas obras também são mobilizadas, entre outras, pela historiadora da arte japonesa Elizabeth ten Grotenhuis em sua exploração de algumas das representações do pensamento asiático tradicional feitas por esse artista (GROTENHUIS, 2004, pp. 160-179). Tendo isso em vista, acreditamos que as aproximações sugeridas entre a obra de Viola, por um lado, e a filosofia heideggeriana e o pensamento oriental, por outro, fornecem um caminho para a compreensão de sua trajetória poética, dos anos 1970 aos dias atuais. A partir daqui, destacaremos, portanto, alguns pontos de contato entre eles, visando à constituição de imagens de tempo correspondentes à poética de Viola.
INICIANDO O DIÁLOGO ENTRE A FILOSOFIA HEIDEGGERIANA E O PENSAMENTO ORIENTAL
Em termos gerais, o contato de Heidegger com ideias do pensamento oriental se deu em vida, como é possível perceber através de suas formulações em “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador” (1953-1954) (HEIDEGGER, 2008a, pp. 71-120). Esse texto é um dos exemplos, no campo da filosofia, que mostra a possibilidade de um diálogo entre pensadores do ocidente e do oriente. Dos anos 1950 até hoje, parte do interesse por essa relação se volta às possíveis aproximações entre a filosofia heideggeriana e os estudos desenvolvidos na Escola de Kyoto, no Japão.
A tradição filosófica ocidental teve um papel importante no desenvolvimento do pensamento japonês contemporâneo da Escola de Kyoto. De acordo com Antonio Florentino Neto, seu fundador, Kitaro Nishida (1870-1945) trabalha com os problemas tradicionais da história da filosofia, mas é com Hajime Tanabe (1885-1962) que o contato com as ideias de Heidegger se torna mais constante15 15 . Cf. FLORENTINO NETO (2008) . . Apesar disso, segundo autores como Fred Dallmayr (1992)DALLMAYR, Fred. Nothingness and Sunyata: A Comparison of Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 42, University of Hawai’i Press, 1992, pp. 37-48. , Steven Heine (1990)HEINE, Steven. Philosophy for an ‘Age of Death’: The Critique of Science and Technology in Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 40, University of Hawai’i Press, 1990, pp. 175-191. e José Carlos Michelazzo (2008)MICHELAZZO, José Carlos. Ser e Sunyata: os caminhos ocidental e oriental para a ultrapassagem do caráter objetificante do pensamento. In: LOPARIC, Zeljko. (Org.) A Escola de Kyoto e o perigo da técnica . Campinas: DWW Editorial, 2008, pp. 75-96. , Kenji Nishitani (1900-1990) seria um dos pensadores japoneses com maior proximidade com a filosofia de Heidegger, já que se relaciona intimamente com temas e noções heideggerianas como, por exemplo, o ser em sua relação com o nada.
Heidegger e Nishitani compartilham o diagnóstico em relação ao encobrimento do ser autêntico no mundo moderno. Tal como nota Heine (1990HEINE, Steven. Philosophy for an ‘Age of Death’: The Critique of Science and Technology in Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 40, University of Hawai’i Press, 1990, pp. 175-191. , p. 176), ambos consideram que a tecnologia resultante da aplicação do pensamento científico estaria necessariamente ligada aos problemas relativos à inautenticidade do ser. Essas convicções já apareciam nos estudos de Tanabe, dado que este articulava a prática científica às relações do corpo social. Heine explica que, para Tanabe, a sociedade vive em uma “era da morte”, resultado dos efeitos devastadores dos avanços tecnológicos (HEINE, 1990, p. 176). Tais efeitos, como a ameaça da bomba atômica, implicariam a iminência da destruição em todas as instâncias. Nesse sentido, a morte se configuraria como “uma invenção humana desregulada que pode exaurir ou destruir as formas de vida” (Ibidem, p. 177).
A saída desse estado fundamental da “era da morte”, como pura destruição, estaria no pensamento meditativo, caracterizado de forma distinta para cada autor. Segundo Heidegger, é na própria tecnologia que residiria a possibilidade de desvelamento do ser em sua autenticidade (HEIDEGGER, 2008b). Por sua vez, de acordo com Nishitani, o conflito entre as abordagens religiosa e científica apontaria para a necessidade da experiência Zen do nada absoluto, que constitui a superação dessa oposição (NISHITANI, 1983). Como é possível notar, cada autor desenvolve uma abordagem particular para essa preocupação compartilhada. Enquanto para Heidegger a questão do ser e seu desvelamento por meio da fenomenologia hermenêutica ocupam espaço central, para Nishitani, o que está em jogo é o caráter existencial humano em meio às tradições religiosas e à visão mecanicista da realidade propiciada pela ciência.
Viola parece participar dessa preocupação dos autores, dado que reconhece o impacto das tecnologias em nosso modo de ver e busca, por meio do seu emprego poético, produzir imagens que sensibilizem e interpelem o espectador. Por exemplo, o resgate da nossa conexão com os ciclos naturais ensejado pelas telas simultâneas de Catherine’s Room poderia ser compreendido como uma tentativa de abrir uma “clareira”, em termos heideggerianos, no sentido de possibilitar o desvelamento do ser.
O NADA EM MARTIN HEIDEGGER
Heine esclarece que, para Heidegger, conforme expresso em Ser e Tempo (1927), “o mundo não é um objeto para ser encontrado e usado, mas a condição transcendental não-diferenciável e não-objetificável para a interação de homens e coisas” ( HEINE, 1990HEINE, Steven. Philosophy for an ‘Age of Death’: The Critique of Science and Technology in Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 40, University of Hawai’i Press, 1990, pp. 175-191. , p. 179). Nesse sentido, o ser-no-mundo sintetizaria um estado fundamentalmente indivisível que, no entanto, é quebrado no manipular das coisas pelo Dasein (ser-aí).
Em suma, no pensamento heideggeriano, o afastamento do ser, levado às últimas consequências com a técnica moderna, teria sua origem na divisão entre sujeito e objeto realizada pela tradição filosófica ocidental (desde Platão até Nietzsche), pois, nesse modo de entendimento, a natureza seria reduzida a uma força calculável a ser explorada e armazenada por nós ( HEINE, 1990HEINE, Steven. Philosophy for an ‘Age of Death’: The Critique of Science and Technology in Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 40, University of Hawai’i Press, 1990, pp. 175-191. , p. 179)16 16 . Para Heidegger, a tradição filosófica ocidental perpetuou um equívoco na compreensão do que existe simplesmente enquanto coisa (ente) e do que é enquanto ser. Cf. WERLE (2003) e HEIDEGGER (1999) . . Contrariamente, a restauração da unidade do ser-no-mundo poderia ocorrer por meio da liberação poética ou do pensamento meditativo.
Em seus textos tardios, tais como “A questão da técnica” (1949), Heidegger destaca a poética como abertura para o ser. Inicialmente, porém, em Ser e tempo , o filósofo ressalta o nada e considera a angústia o estado privilegiado de desvelamento do Dasein . A angústia não seria um fenômeno psicológico, mas uma dimensão ontológica que remeteria à totalidade da existência do ser-no-mundo. Ela colocaria a existência diante de si mesma e revelaria a autenticidade e a inautenticidade como possibilidades de seu ser, abrindo o Dasein para a singularização. De acordo com Michelazzo, isso ocorre porque é na disposição da angústia que “o sentido do ser das coisas, com os quais nos sentimos vinculados em nosso cotidiano, recua em bloco e o que resta em nós é ‘nada’, ou seja, a experiência de sermos tão-somente essa ‘abertura temporal nadificadora’” (MICHELAZZO, 2008, p. 77).
Para Heidegger, o surgimento da angústia se dá no dia a dia, com o tédio gerado enquanto estamos envolvidos com a manipulação das coisas que nos cercam (entes). A tentativa de sanar a indiferença originada por ela levaria muitas vezes a uma imersão ainda maior na ocupação com as coisas do mundo, que teria o efeito de apenas reforçá-la. Seria necessário aceitar o apelo que ela oferece, pois é por meio dela que o nada se manifesta.
Segundo Marco Aurélio Werle, “o nada se coloca por si mesmo na angústia, não precisa ser criado, mas se revela na angústia e ao mesmo tempo a provoca, ele é a causa e o efeito ao mesmo tempo” (WERLE, 2003, p. 108). A expressão heideggeriana “o nada nadifica” adviria daí, “para dizer que o modo de o nada se manifestar somente ocorre por meio do nada mesmo” (Ibidem, p. 108). O processo de desvelamento do ser, continua Werle, iniciaria no momento em que somos “tocados” pela angústia. Nas suas palavras,
pressupondo que o homem seja tocado pela angústia, já que ela é rara, pode-se dizer que ele faz de uma só vez uma recapitulação de todo o seu existir e toma consciência [ Gewisen ] do caráter essencialmente finito de sua existência , toma consciência do caráter essencialmente temporal do ser e de que está entregue somente a ele mesmo e à manifestação do ser. Assim, a angústia desperta para a morte, enquanto dado temporal mais significativo da existência, e revela a finitude da existência humana , o fato de que o homem tem um fim, que ele morre e que sua existência acaba, ou seja, remete a um outro conceito fundamental de Heidegger, que é o ser-para-morte [ Sein-zum-Tode ]. ( WERLE, 2003WERLE, Marco Aurélio. A angústia, a morte e o nada em Heidegger. Trans/Form/Ação , n. 26, 2003, pp. 97-113. , p. 110, grifo nosso)
O ser-para-morte implicaria compreender que apenas ao aceitar a solicitação da angústia e do nada, reconhecendo a morte como fenômeno da existência e a finitude como seu dado temporal mais relevante, seria possível desvelar a existência autêntica. Michelazzo faz uma leitura similar:
essa experiência nadificadora de nós mesmos é o que constituiria para Heidegger o caráter privilegiado da angústia, à medida que nos damos conta de que deixamos de interpretar-nos como entes dotados de egos substanciais, encapsulados, compactos, que se relacionam com coisas também substanciais. Com isso, perdemos aquele traço de objetificação – como instrumentos da representação a serviço de nossa existência prática ou teórica –, para nos tornarmos mais livres em nosso ser, no sentido de maior transparência ou complexidade, mais renovados ou mais misteriosos. ( MICHELAZZO, 2008MICHELAZZO, José Carlos. Ser e Sunyata: os caminhos ocidental e oriental para a ultrapassagem do caráter objetificante do pensamento. In: LOPARIC, Zeljko. (Org.) A Escola de Kyoto e o perigo da técnica . Campinas: DWW Editorial, 2008, pp. 75-96. , p. 77)
Em síntese, a consciência da morte colocaria o humano diante de sua existência, propiciando sua singularização. Mais especificamente, o reconhecimento do ser-para-morte, a partir da angústia e do nada, tornaria possível a retomada da unidade indivisível do ser-no-mundo e, com ela, o desvelamento do ser.
O NADA EM KEIJI NISHITANI
Essa foi sem dúvida uma reconstrução simplificada de alguns temas da filosofia heideggeriana. No entanto, ela é suficiente para realizarmos uma aproximação com o pensamento de Nishitani, já que, especialmente em seu livro Religion and Nothingness (1961), há uma clara afinidade com questões e noções expostas acima17 17 . O título original em japonês, Shukyo to wa nani ka , significa O que é religião? . Heine esclarece que “o tradutor Jan Van Bragt mudou o título aparentemente para ressaltar a filosofia do nada absoluto no pensamento de Nishitani, consistente com outros expoentes da Escola de Kyoto da filosofia japonesa moderna” (HEINE, 1990, p. 191). .
De acordo com Hisao Matsumaru, o pano de fundo de Nishitani é constituído pela ideia de que a emergência e a consolidação do pensamento científico na modernidade teriam sido responsáveis pela negação da religião e da metafísica, fundamentada em uma teleologia (MATSUMARU, 2014). Em seu lugar, foi estabelecido um modo de pensar baseado no racionalismo científico, no materialismo e no ateísmo que teria nos colocado na posição atribuída originalmente a seres transcendentes. Esse paradigma teria gerado um efeito reverso, com a perda do si mesmo e a propagação do niilismo. Este levaria a efeitos como a confiança em impulsos momentâneos que evitariam o olhar para a falta de sentido da existência. Apesar dessa tendência, seria possível uma reviravolta, “quando o ser humano confronta e experimenta o desespero de sua própria nulidade” ( MATSUMARU, 2014MATSUMARU, Hisao. O pensamento de Nishitani e o Budismo. In NETO, Antonio Florentino; JR. Oswaldo Giacoia. Budismo e filosofia em diálogo . Campinas, SP: Editora Phi, 2014, pp. 11-37. , p. 18). De acordo com Dallmayr, Nishitani estabelece que
o nada ou o niilismo vem à tona sempre que o curso rotineiro da nossa vida é perturbado por calamidades ou dúvidas internas. “Quando nos tornamos uma questão para nós mesmos e quando o problema do por que existimos é colocado”, ele diz, “isso significa que o niilismo emergiu da base da existência e que nossa própria existência se tornou uma questão”. ( DALLMAYR, 1992DALLMAYR, Fred. Nothingness and Sunyata: A Comparison of Heidegger and Nishitani. Philosophy East and West , n. 42, University of Hawai’i Press, 1992, pp. 37-48. , p. 38)
O nada emergiria da sensação da falta de sentido das atividades diárias, resultando em uma experiência de disrupção, como um “passo para trás para ver o que está subjacente”, que poderia ser descrito como uma volta ou conversão. Essa volta para conferir o que permeia as dúvidas internas geradas na rotina implicaria uma mudança de paradigma do modo de ser autocentrado. De acordo com Dallmayr, nesse modo sempre nos perguntamos que uso as coisas têm para nós. No novo paradigma, a questão seria por qual propósito existimos.
Mais detalhadamente, Matsumaru explica que essa mudança é expressa como a “grande reviravolta”, isto é, quando “a totalidade das existências – incluindo aí a humanidade, Deus e Buda – é negada em seu próprio fundamento, mas ao mesmo tempo essa negação é negada, transformando-se na afirmação” (MATSUMARU, 2014, p. 18). A autoconsciência existencial daquele que se lançou em meio ao “lugar do nada”, chamado por Nishitani de “lugar do vazio”, realizar-se-ia nesse momento e possibilitaria o renascimento do “si mesmo originário, anterior ao si mesmo nominal, que consistia no apego à substância” (Ibidem, p. 20).
Essa reviravolta propiciada pelo “lugar do vazio” em Nishitani parece se aproximar da descrição que Michelazzo faz da “experiência nadificadora” em Heidegger, “quando nos damos conta de que deixamos de interpretar-nos como entes dotados de egos substanciais, encapsulados, compactos, que se relacionam com coisas também substanciais” (MICHELAZZO, 2008, p. 77). Em ambos os casos, o encontro com o nada possibilitaria o resgate da existência autêntica, que romperia o niilismo dos tempos modernos.
A principal diferença entre esses pensadores residiria na relação fundamental observada entre o “vazio” em Nishitani e a “natureza do vazio”, ou Sunyata , do Budismo tradicional. Segundo Matsumaru, o “lugar do vazio” em Nishitani seria um conceito filosoficamente reconstruído a partir do Budismo Zen e, tal como nessa tradição, consistiria no delineamento conceitual visando a uma prática que se refere especialmente à “interpenetração recíproca”.
De acordo com essa noção, haveria em cada um de nós um “eu” que, quando compartilhado com outros “eus”, constituiria o “nós”. Cada “eu” possuiria um aspecto que o diferenciaria dos demais e o tornaria “senhor” deles – e estes, seus “servos”. Dessa forma, todos seriam, ao mesmo tempo, senhores e servos. Essa reciprocidade seria ocasionada somente pelo “lugar do vazio”, isto é, um espaço de interpenetração recíproca que tornaria possível a constituição das existências em comunidade no mundo.
O “lugar do vazio” também propiciaria o esvaziamento do ser, ou seja, seria onde o “si mesmo” tornar-se-ia sem fronteiras. Segundo Matsumaru, trata-se de um despertar fundamental, que se relaciona inerentemente com a “autoidentidade” ( Sokuhi ) budista. Esta seria “o percurso do caminho que conduz da negação absoluta à afirmação absoluta”, cuja estrutura lógica – “é em função do si mesmo não ser o si mesmo, que ele é o si mesmo” ( MATSUMARU, 2014MATSUMARU, Hisao. O pensamento de Nishitani e o Budismo. In NETO, Antonio Florentino; JR. Oswaldo Giacoia. Budismo e filosofia em diálogo . Campinas, SP: Editora Phi, 2014, pp. 11-37. , p. 31) – poderia ser compreendida como o princípio do vazio. Em suma, o Budismo teria abordado o vazio por meio da autoidentidade, e a principal contribuição de Nishitani seria caracterizá-lo como lugar ( MATSUMARU, 2014MATSUMARU, Hisao. O pensamento de Nishitani e o Budismo. In NETO, Antonio Florentino; JR. Oswaldo Giacoia. Budismo e filosofia em diálogo . Campinas, SP: Editora Phi, 2014, pp. 11-37. , p. 35).
CONSIDERAÇÕES ESTÉTICAS SOBRE O NADA EM NISHITANI E HEIDEGGER
A figura do nada ( nothingness ) ou do vazio ( emptiness ) também é importante para ambos os pensadores no campo da estética. De acordo com Nishitani, a linguagem poética japonesa é responsável pela mediação entre a compreensão da mente (o infinito) e a compreensão do olho (o fenômeno) por meio do seu “poder metafórico” de “dizer o indizível”. Nesse sentido, a poesia dá forma à disformidade do infinito. Segundo Michael Marra, ela “reduz ao imediato uma conexão entre a mortalidade e o infinito – a ligação que a lógica de uma linguagem alegadamente racional, a linguagem da filosofia ocidental, é forçada a descrever em termos análogos” (MARRA, 1999, p. 177). Como abordado anteriormente, esse caráter de imediaticidade também é ressaltado por Shuichi Kato em sua análise das manifestações poéticas do “agora” na cultura japonesa. Especialmente quando se refere ao haikai , “expressão da experiência instantânea”, essa ênfase se torna mais clara. Tomemos, portanto, um deles como exemplo.
O fundo da solidão
Escorrega:
Ah, o granizo que cai18 18 . MARRA (1999 , p. 177). Tradução nossa da versão inglesa: The bottom of loneliness / Falls off: / Oh, the falling sleet! .
De acordo com a análise de Marra, “ao invés de abordar o problema da solidão [ loneliness ] e da tristeza a partir de uma perspectiva epistemológica, como um filósofo faria, o poeta evita ficar preso à esfera do conhecimento e escolhe capturar a imediatez da experiência” ( MARRA, 1999MARRA, Michael. Modern Japanese Aesthetics: A Reader. Honolulu: University of Hawai’i Press, 1999. , p. 177). Isso é possível porque, ao invés de seguir a “lógica da gramática” ( bunpo ), o haikai fundamenta-se na poética grams ( aya ), “que não se conforma com uma organização da realidade baseada em sujeitos e objetos” (Ibidem, p. 177).
O vazio desempenha papel definidor na constituição dos espaços entre as palavras que reforçam a sensação de imediaticidade. Marra observa que
ao tomar o espaço do nada como local de articulação da poesia, o poeta é confrontado com um espaço e apenas um espaço, tanto se ocupado pelo granizo ou pela tristeza. A revelação desse espaço não ocorre no nível das palavras ou dos verbos, mas ao nível das partículas ( teniwoha ) que precede o desenrolar da ação e opera a priori da composição poética. ( MARRA, 1999MARRA, Michael. Modern Japanese Aesthetics: A Reader. Honolulu: University of Hawai’i Press, 1999. , p. 178)
O nada como lugar de articulação poética também é examinado por Heidegger em “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador”. O essencial da poética de seu país, segundo aquele que dialoga com esse filósofo, seria encontrado no teatro Nô19 19 . Cf. SAKAI (1970) , no qual o contraste entre o palco vazio e os pequenos gestos do ator faria surgir, de uma estranha tranquilidade, algo vigoroso. O exemplo dado é o da paisagem de uma montanha delineada pelo lento percurso de uma mão aberta que se eleva e repousa acima dos olhos, na altura das sobrancelhas (HEIDEGGER, 2008a, p. 86). Para Heidegger, o gesto do ator não constitui uma representação da montanha, mas possibilita trazer sua força, seu si mesmo, até nós. Esse trazer se dá no encontro do que se traz conosco. O filósofo especifica que “o gesto é o recolhimento de um trazer” (Ibidem, p. 37). Em outras palavras, o “próprio” do gesto evocado no exemplo estaria, de acordo com o japonês, “numa visão invisível que se traz de maneira tão recolhida para o vazio, que nele e por ele a montanha aparece em toda a sua presença” (HEIDEGGER, 2008a, p. 87, grifo nosso). Tanto o japonês quanto o pensador concordam que esse “vazio” é o mesmo que o “nada”, isto é, “o vigor que procuramos pensar como o outro de toda vigência e de toda ausência” (Ibidem, p. 87). Heidegger parece se aproximar de Nishitani em sua elaboração da identidade entre negação e afirmação absolutas presente na interpenetração recíproca (também possibilitada pelo vazio ou nada).
O NADA EM BILL VIOLA: ARTICULAÇÕES POÉTICAS ENTRE FILOSOFIA OCIDENTAL E ORIENTAL
Com essa breve reconstituição, já temos elementos suficientes para fazer a aproximação previamente indicada entre a filosofia de Heidegger e o pensamento oriental, especialmente tal como se dá em Nishitani, visando a uma investigação da poética de Viola. A “experiência nadificadora” do ser-para-morte parece análoga à “grande reviravolta” do “lugar do vazio”, pois ambas indicam alguns pontos em comum, tais como: a insuficiência do paradigma de separação entre sujeito e objeto, que subjaz ao encobrimento do ser no mundo moderno, e a incapacidade da articulação racional alcançar áreas do conhecimento acessíveis por meio da poética e de sua imediatez. Esses aspectos podem auxiliar na interpretação da obra de Viola, uma vez que seus vídeos e instalações não abordam, mas evocam o nada existencial.
Alguns dos aspectos mencionados acerca da estética japonesa, nos termos concebidos por Nishitani e Heidegger, podem ser observados em suas obras. Elas ultrapassam os limites do pensamento racional, dada sua potência de dizer o indizível. Seu poder metafórico faz com que, por exemplo, pequenos gestos faciais (em The Quintet of the Astonished ), cotidianos (em Catherine’s Room ) ou corporais (em Five Angels for the Millennium ) façam surgir algo vigoroso mediante o estado meditativo que evocam. Tal como nos haikais ou nas peças de teatro Nô, o lugar do vazio é essencial na articulação desse estado. Desse modo, somos colocados em uma disposição de escuta a partir do silêncio do vazio, o qual nos interpela diretamente acerca da duração.
Comentários do artista e algumas passagens de Hanhardt ratificam nossa leitura. Segundo esse autor, “o que vem claramente através de todas as conversas com Viola é sua crença na chama da consciência humana, que ele sente ter sido perdida no mundo virtual e mecanizado de hoje” (HANHARDT, 2018, p. 163). Nesse sentido, também afirma que
focalizando cada instante, Viola articula uma estética cujo objetivo é elevar “o indivíduo de uma condição de vida inautêntica, obscurecida pela inconsciência e atormentada pela preocupação, para um estado de vida autêntico, no qual ele atinge a autoconsciência, uma visão exata do mundo, paz interior e liberdade”. (Ibidem, p. 20)
E, ainda mais, acrescenta que
a imagem em movimento do vídeo que chamou a atenção dele desde o início não “está a ‘serviço’ de outra coisa”, para usar o argumento conservador de Heidegger sobre “dominação” e “conquista” da vida por parte da tecnologia. Na verdade, ela expande os meios para a autorreflexão e a composição de uma poética que se define não em termos de mídia tradicional, mas por suas próprias características controladas, ou postas em movimento, pelo artista. (Ibidem, p. 150)
Em síntese, Viola utiliza o vídeo, ou, de modo mais ampliado, a imagem em movimento, para desvelar o que não é visto, ou seja, para evocar algo, um sentimento, uma sensação. Geralmente, o estado meditativo que suscita advém da passagem do tempo e do modo como ela é articulada em obras como The Passing, Ocean Without a Shore e Five Angels for the Millennium . Ele opera de modo semelhante à “expressão da experiência instantânea” na poética japonesa em obras de haikai ou teatro Nô. Nas palavras do artista,
este sentido de ver – ou ver o sentido de um objeto – é o que eu tenho procurado. Tenho sentido... que a visão intensa e implacável da câmera pode ser comparada a uma visão concentrada, que anuncia uma mudança na consciência... O objeto não muda, você muda. Isso é o que está por trás do budismo trazido da Índia para a China para o Japão – isso é exatamente o que os pintores de suiboku-ga (sumi-ê) faziam. Eles pintavam pedras, relvas, uma garça – mas essas coisas projetavam uma luz que penetrava muito mais profundo que sua forma pictórica ou mesmo seus conceitos transmitidos pelas palavras dos espectadores. Isso é pura visão . (VIOLA apud GROTENHUIS, 2014, p. 166, grifo nosso)
A ideia de “pura visão” articulada por Viola é aproximada por Elizabeth ten Grotenhuis ao conceito de “experiência pura”, elaborado por Nishida (2016)NISHIDA, Kitaro. Ensaio sobre o bem . (1911). Campinas: Editora Phi, 2016. . Essa noção é introduza por ele em seu livro O ensaio sobre o bem , originalmente publicado em 1911, e significa uma experiência não mediada e não dualista. Ela acena, portanto, para um estágio anterior à compreensão racional dos fatos, que acaba por fundar a divisão cartesiana entre sujeito e objeto. Nessa etapa, a experiência seria prévia a qualquer tentativa de assimilação racional, aproximando-se do “nada nadificador” ou do “lugar do vazio”, tal como assinalados por Heidegger e Nishitani, respectivamente. A poética de Viola poderia ser compreendida como uma tentativa de provocar tal experiência no espectador.
É importante notar que essas aproximações teóricas podem ser realizadas devido a algumas fontes em comum que fundamentam a filosofia de Heidegger, o pensamento de Nishitani e as elaborações artísticas de Viola. Hanhardt e Grotenhuis auxiliam no esclarecimento dessas fontes. De acordo com o primeiro, Viola vê, na imaginação medieval e renascentista, artistas criarem novas formas de representar o mundo espiritual, seja ele islâmico, budista ou cristão. Resgatar as formas de representação dessa esfera seria, para ele, uma forma de despertar a “chama da consciência humana” (HANHARDT, 2018, p. 163). Por sua vez, Grotenhuis concebe as obras de Viola como o resultado de uma apropriação peculiar de representações do pensamento asiático e conceitos elaborados por pensadores como D. T. Suzuki, do Japão, e Ananda Coomaraswamy, do Sri Lanka (GROTENHUIS, 2014, p. 161). Essa particularidade se deve ao fato de Viola não constituir suas obras como ilustrações fiéis das teorias desses autores, mas atualizações nas quais desempenha seu papel criativo.
Além disso, a autora esclarece que, por meio de Suzuki e Coomaraswamy, Viola teve contato com a obra de outros pensadores, tais como Mestre Eckhart, São João da Cruz, Hildegarda von Bingen, Plotino, Platão e Aristóteles. Acerca dessas conexões, o artista relata que “eles reconheceram essas pessoas [...] como parte de outro lado da tradição ocidental, uma tradição que foi continuada no oriente e desenvolvida muito além do advento do pensamento racional positivista (que dominou o ocidente) até o século XX” (VIOLA apud GROTENHUIS, 2014, p. 162).
É indicativo que Mestre Eckhart também tenha tido um papel importante para a filosofia de Heidegger e sua elaboração sobre o nada. Michelazzo destaca a presença do pensamento místico de Eckhart especialmente no que se refere à concepção de Dasein , à superação do dualismo clássico e do antropocentrismo, ambas noções importantes do pensamento metafísico ( MICHELAZZO, 2008MICHELAZZO, José Carlos. Ser e Sunyata: os caminhos ocidental e oriental para a ultrapassagem do caráter objetificante do pensamento. In: LOPARIC, Zeljko. (Org.) A Escola de Kyoto e o perigo da técnica . Campinas: DWW Editorial, 2008, pp. 75-96. , p. 77).
Por sua vez, Nishitani, assim como Suzuki, desenvolve seu pensamento em contato com ideias do próprio Heidegger e de Nishida. De acordo com Grotenhuis, Suzuki compreende a “experiência pura” elaborada por esse pensador como a característica mais importante das religiões asiáticas, especialmente o Budismo Zen. Os ensinamentos do Zen não seriam transmitidos por meio de escrituras, mas por uma experiência que antecede e extrapola o entendimento racional, dirigindo-se à “iluminação” ( Buddhahood ).
Há, portanto, pontos em comum entre a experiência mística, a fenomenologia e o Zen Budismo. Alguns deles podem ser encontrados na obra de Viola, tal como tentamos mostrar. Assim como a “experiência nadificadora” e o “lugar do vazio”, seus vídeos e instalações nos colocam diante do nada, por isso suas imagens de tempo consistem em interpelações existenciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dos anos 1970 até hoje, algumas temáticas têm sido constantes na poética de Viola, tais como a relação entre visível e invisível, a passagem do tempo e os ciclos vitais, as quais são articuladas de modos distintos. O primeiro plano, por exemplo, realiza uma dupla operação de apagamento do rosto e surgimento da rostidade em He Weeps for You e The Passing . Essas obras evocam a angústia diante da finitude, ao mesmo tempo que mostram o desejo e espanto relacionados à vida. Um paradoxo similar marca o alargamento do instante em Ocean Without a Shore . Por meio da extrema câmera lenta, empregada em ações como uma caminhada que simboliza as passagens entre algo que não é e passa a ser, e vice-versa, a instalação produz a sensação de congelamento do instante e a vidência do transcorrer do tempo.
Esses processos poéticos da imagem em movimento baseados em modulações temporais, como extensões de ondas sonoras ou eletrônicas, rompem com o tempo cotidiano marcado pela lógica da rápida obsolescência vinculada ao capitalismo tardio. A câmera lenta utilizada por Viola em grande parte de suas obras, tais como The Quintet of the Astonished e Five Angels for the Millennium , lança um apelo ao espectador para que este se recolha diante da imagem apresentada e, ao contemplá-la, responda à sua interpelação em face do nada da existência. Muitas vezes, essa contemplação não requer apenas o olhar do espectador, mas seu corpo inteiro, já que grande parte de seus ambientes meditativos são também imersivos. O embate com a “experiência nadificadora” ou o “lugar do vazio” evocados em suas obras abre a percepção para outros tempos possíveis, ainda não submetidos inteiramente à lógica da hiperprodutividade (ou da exploração da técnica, em termos heideggerianos). Tal como indicado em Catherine’s Room , a natureza resgata o tempo do cultivo no campo, que deve respeitar a alternância entre momentos de produção e restauração, isto é, tempos de encobrimento e desencobrimento.
No que diz respeito à constituição e recepção das obras, é importante notar que as instalações mais recentes de Viola são construídas como espaços teatrais, nutridas por referências diversas, tais como aspectos da estética oriental e pinturas renascentistas, mas produzidas com ferramentas cinematográficas e altas tecnologias que promovem o ilusionismo imersivo. Elas se diferenciam dos vídeos em um canal dos anos 1970 que utilizavam uma câmera e objetos cotidianos, como no caso de Migration . Naquela época, a videoarte se distanciava do cinema e da televisão, apresentando-se como alternativa crítica às suas produções, consideradas altamente mediadas e artificiais. É notório, porém, que a câmera de vídeo correspondia à alta tecnologia da época, o que serve de indício da abertura do artista para a incorporação de novas tecnologias em seu processo de criação desde jovem. Nesse sentido, sua prática artística se aproxima do paradoxo considerado por Heidegger em relação à técnica, segundo o qual o desvelamento do ser na era moderna seria possibilitado primordialmente por meio da própria técnica – “Ora, onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que salva”, nos versos recolhidos de Hölderlin pelo filósofo (HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2008b, p. 31). Assim, se por um lado há a ameaça constante do predomínio da lógica da exploração desmedida, por outro, talvez a arte possa emergir no contexto dessa iminência de modo a indicar outras articulações do tempo e alternativas de modos de vida. Em vista disso, as extensões do tempo operadas nas obras de Viola parecem configurar índices dessas possíveis transformações da vida no tempo para além da produtividade veloz vinculada à racionalidade instrumental.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ALMEIDA, Fernanda Albuquerque de. Imagens de tempo nas poéticas tecnológicas de Harun Farocki, Bill Viola e Anthony McCall . 2019. Tese (Doutorado em Estética e História da Arte). Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
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- HEIDEGGER, Martin. De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador. (1953-1954). In HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem . Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008a, pp. 71-120.
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- SAKAI, Kazuya. O teatro Nô. (1968). Afro-Ásia , n. 10-11, 1970, pp. 137-157.
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- WERLE, Marco Aurélio. A angústia, a morte e o nada em Heidegger. Trans/Form/Ação , n. 26, 2003, pp. 97-113.
- KIDEL, Mark. Bill Viola: The Eye of the Heart . BBC, 2003, 59’06”.
NOTAS
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1
. Cf. HANHARDT (2018)HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. . A publicação original foi traduzida para o português por ocasião da mostra “Bill Viola: Visões do tempo”, que ocorreu no Sesc Avenida Paulista de 29 de abril a 09 de setembro de 2018.
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2
. Instalação de vídeo/som. Gota de água do tubo de cobre; câmera colorida ao vivo com lente macro; tambor amplificado; projeção de vídeo no quarto escuro. Tamanho da imagem projetada: 230 x 310 cm. Dimensões da sala: 370 x 610 x 790 cm. ( HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 285)
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3
. Videoteipe, cor, som mono; 7 minutos. Produzido em Synapse; Syracuse University, Syracuse, NY. (Ibidem, p. 284)
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4
. Em memória de Wynne Lee Viola. Videoteipe, preto e branco, som mono, 54 minutos. Produzido em associação com Das kleine Fernsehspiel (ZDF), Mainz, Alemanha. (Ibidem, p. 286)
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5
. Deleuze considera, indistintamente, o plano americano, o primeiro plano (equivalente ao close ) e o primeiríssimo plano como formas do primeiro plano. Cf. DELEUZE (1985DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento . (1983). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. , p. 125).
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6
. Em seus livros Cinema 1. Imagem-movimento e Cinema 2. Imagem-tempo , Deleuze caracteriza dois regimes da imagem a partir do cinema clássico e moderno, sintetizados, respectivamente, pelos termos “imagem-movimento” e “imagem-tempo”. Resumidamente, a imagem-movimento mostra eventos, objetos e pessoas como uma realidade pré-existente, e a câmera efetua movimentos que priorizam a apresentação dessa realidade em encadeamentos lógicos e causais. A montagem reúne planos distintos para desenvolver a sensação de um tempo cronológico. Por sua vez, a imagem-tempo mostra as mesmas figuras em articulações do tempo não cronológicas, de modo a tornar espectador, juntamente ao personagem, um vidente. A montagem efetua rupturas de continuidade e produz anomalias de movimento, reforçando a intenção de surpreender o vidente por algo intolerável no mundo e confrontá-lo com algo impensável no pensamento.
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7
. Tríptico de vídeo em cores com alta definição, duas telas de plasma com 65 polegadas e uma com 103 polegadas montadas verticalmente, seis alto-falantes (três pares, som estéreo). Dimensões da sala: 450 x 650 x 1050 cm. ( HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 288)
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8
. Cf. o vídeo Ocean Without a Shore - Venice Biennale 2007, em que Bill Viola comenta a obra. Disponível em: https://youtu.be/6-V7in9LObI . Acesso em: 20 mai. 2020.
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9
. Cf. KIDEL, Mark. Bill Viola: The Eye of the Heart . BBC, 2003, 59’06”.
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10
. Ao longo de sua carreira, Viola demonstrou entusiasmo com a incorporação de novas tecnologias a seu processo de criação. Dentre outros exemplos possíveis, ressaltamos uma situação descrita pelo próprio artista: “Nunca vou me esquecer quando, em 1998, um amigo engenheiro [Thomas Piglin, com quem Viola trabalhava desde 1982] trouxe uma dessas primeiras telas planas de LCD de última geração para que avaliássemos. [...] Eu sabia que estava vendo um novo passo na evolução da imagem em movimento. [...] A imagem tinha uma qualidade suave e acetinada, pois não trazia vidro na sua frente. [...] E a fonte da imagem era digital, o que significava alta resolução e baixo ruído. Mas a escala era o mais surpreendente. Eu me vi caindo dentro da imagem, me perdendo em sua aura, e [aquela tela] tinha apenas 16 polegadas de largura” (VIOLA apud HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , pp. 176-180).
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11
. A conexão com aspectos da cultura japonesa é uma via para acessar a arte de Viola, mas há outras referências relevantes, tais como a arte renascentista e o misticismo cristão e islâmico.
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12
. Projeção traseira de vídeo em cores em tela montada na parede em um quarto escuro. Tamanho da imagem projetada: 140 x 240 cm; 15’20’’. Intérpretes: John Malpede, Weba Garretson, Tom Fitzpatrick, John Fleck e Dan Gerrity. (HANHARDT, op. cit., p. 287)
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13
. Políptico de vídeo em cores em cinco telas planas de LCD montadas na parede, 38 x 246 x 5,5 cm, 18’ 39’’ minutos. Intérprete: Weba Garretson. (Ibidem, p. 287)
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14
. Cinco canais de projeção de vídeo em cores nas paredes de uma sala grande e escura; som estéreo para cada projeção. Tamanho da imagem projetada: 240 x 320 cm cada. Dimensões da sala: 370 x 1525 x 1830 cm. Intérpretes: Josh Coxx (painéis i-iv), Andrew Tritz (painel v). ( HANHARDT, 2018HANHARDT, John G. Bill Viola . (2015). / Kira Perov (ed.). São Paulo: Sesc Edições, 2018. , p. 287)
-
15
. Cf. FLORENTINO NETO (2008)FLORENTINO NETO, Antonio. Recepção e diálogo: Heidegger e a filosofia japonesa contemporânea. Natureza Humana , 10(1), 2008, pp. 147-160. .
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16
. Para Heidegger, a tradição filosófica ocidental perpetuou um equívoco na compreensão do que existe simplesmente enquanto coisa (ente) e do que é enquanto ser. Cf. WERLE (2003)WERLE, Marco Aurélio. A angústia, a morte e o nada em Heidegger. Trans/Form/Ação , n. 26, 2003, pp. 97-113. e HEIDEGGER (1999)HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos . São Paulo: Nova Cultural, 1999, pp. 223-261. .
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17
. O título original em japonês, Shukyo to wa nani ka , significa O que é religião? . Heine esclarece que “o tradutor Jan Van Bragt mudou o título aparentemente para ressaltar a filosofia do nada absoluto no pensamento de Nishitani, consistente com outros expoentes da Escola de Kyoto da filosofia japonesa moderna” (HEINE, 1990, p. 191).
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18
. MARRA (1999MARRA, Michael. Modern Japanese Aesthetics: A Reader. Honolulu: University of Hawai’i Press, 1999. , p. 177). Tradução nossa da versão inglesa: The bottom of loneliness / Falls off: / Oh, the falling sleet!
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19
. Cf. SAKAI (1970)SAKAI, Kazuya. O teatro Nô. (1968). Afro-Ásia , n. 10-11, 1970, pp. 137-157.
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*
ESTE ARTIGO É PARTE DOS RESULTADOS DA TESE IMAGENS DE TEMPO NAS POÉTICAS TECNOLÓGICAS DE HARUN FAROCKI, BILL VIOLA E ANTHONY MCCALL (2019).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Dez 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
10 Jan 2020 -
Aceito
17 Out 2020