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OS MUSEUS IMPRESSOS: MALASARTES E A PARTE DO FOGO

PRINTED MUSEUMS: MALASARTES AND A PARTE DO FOGO

LOS MUSEOS IMPRESOS: MALASARTES Y A PARTE DO FOGO

RESUMO

O presente artigo procura pensar possibilidades de museu que suplantavam o modelo moderno no contexto da década de 1970. Para isso, sugere olhar para as revistas Malasartes e A parte do fogo como possíveis museus impressos que estariam em confronto com o pensamento vinculado à ideia de museu moderno associada ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Museu; Revista de arte; Moderno

ABSTRACT

This article discusses the different conceptions of museum which, in the 1970s, rivalled its – at the time prevalent – modern conception. For this purpose, it analyzes the magazines Malasartes and A parte do fogo considering them as possible printed museums in a dispute with the underlying idea of modern museum behind the Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Museum; Art Magazine; Modern

RESUMEN

Este artículo intenta pensar posibilidades de museo que suplantaban el modelo moderno en el contexto de los años 1970. Para estos fines, propone mirar las revistas Malasartes y A parte do fogo en cuanto posibles museos impresos, las cuales estarían en enfrentamiento con el pensamiento ligado a la idea de museo moderno asociada al Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Museo; Revista de arte; Moderno

I.

Em julho de 1978, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sofre um incêndio de proporções trágicas, tendo sido destruída a maior parte do seu acervo. Para além das consequências do incêndio relativas à destruição do acervo, o incidente se revela um marco simbólico de um fim de projeto de modernidade, que àquela altura se desfazia. Diante desse marco e como análise desse processo de mudanças, proponho um contraponto estabelecido por duas iniciativas editoriais: Malasartes e A parte do fogo – ambas publicações vinculadas ao contexto de uma determinada vanguarda carioca que orbitava o MAM. Realizadas em um período temporal distinto – sendo a Malasartes veiculada entre 1975-76, e A parte do fogo , em 1980 –, as publicações trazem, cada uma à sua maneira, um campo de discussão que tensiona o modelo de museu moderno. Além de confrontar certa narrativa moderna atrelada ao MAM que se configurava em uma leitura teleológica da história e no descolamento das práticas artísticas das questões sociais e culturais da época, as revistas poderiam ser lidas como possíveis “museus impressos”. Assim, através de seus discursos e propostas gráficas, tais publicações forjaram possibilidades museográficas que, ao mesmo tempo que forçavam uma ruptura ao modelo de museu moderno, se consolidavam enquanto face narrativa de uma outra história da arte, funcionando como veículos de passagem do moderno ao contemporâneo.

II.

Para além das diferenças históricas, recorro a O museu imaginário de André Malraux ao propor uma análise das revistas Malasartes e A parte do fogo como possíveis museus impressos, sendo um aspecto fundamental nessa análise o olhar sobre as escolhas editoriais e curatoriais como um campo de confrontação das metamorfoses e de ruptura frente a um determinado projeto de museu moderno.

No livro O museu imaginário (1947/1965), o autor André Malraux parte de uma reflexão acerca dos álbuns fotográficos e livros de artista apontando como as imagens técnicas apresentadas em sequência poderiam reconfigurar a narrativa teleológica da arte. A partir da fotografia, o autor estabelece o conceito de metamorfose de sentidos e reflete sobre a capacidade das obras de se transformarem e metamorfosearem para além dos seus sentidos originais, liberando-as dos seus valores de culto para afirmarem seus valores expositivos nas infinitas possibilidades interpretativas.

Seguindo nessa análise, Malraux amplia seu horizonte e insere o museu como um espaço que igualmente possibilitaria tal metamorfose de sentidos, a dizer, como um campo de reflexão no qual as obras se conectariam entre si e com a própria história da arte ocidental. Desse modo, sugere diversas camadas de leitura a cada nova organização e promove relações de idas e vindas constante entre passado, presente e futuro. Nesse sentido, o conceito de Malraux se descola de um ideal de museu moderno fundado na perspectiva de um acervo construído no presente que mirava no que poderia se tornar cânone no futuro, e que serve de base para o projeto do MAM, do qual a narrativa teleológica era um dos pilares.

III.

Entre 1975 e 1976, a revista Malasartes veiculou seus três únicos números. Impressa em offset em preto e branco, em tamanho 23 x 32 cm e com cerca de 40 páginas, a revista foi editada pelos artistas Carlos Vergara, Carlos Zilio, Cildo Meireles, José Resende, Luiz Paulo Baravelli, Rubens Gerchman e Waltercio Caldas, além do crítico Ronaldo Brito e do poeta Bernardo Vilhena. Após sua terceira edição, por divergências entre os autores1 1 . Sobre esse fato, Ronaldo Brito relata que, com o crescimento súbito da revista, houve uma divergência entre os editores sobre o rumo da publicação. Nessa ocasião, houve uma proposta de tornar a revista uma publicação do grupo Globo, o que desagradou uma parte dos editores, que desejavam manter uma autonomia editorial e uma linha de edição mais conceitual. Diante do impasse, optou-se por acabar com a revista. , a publicação foi descontinuada. Em março de 1980, foi publicada a revista A parte do fogo , que tinha entre seus editores os artistas Cildo Meireles, José Resende, Tunga e Waltercio Caldas, além dos críticos João Moura Junior, Paulo Venâncio Filho, Paulo Sergio Duarte e Ronaldo Brito. Rodada em formato de jornal no tamanho 42 x 60 cm, com impressão em duas cores na capa e preto e branco no seu miolo de oito páginas, a publicação durou apenas o número inicial.

Ambas as iniciativas carregavam semelhanças, tanto por seus participantes – Cildo Meireles, José Resende, Waltercio Caldas e Ronaldo Brito foram tanto da Malasartes quanto criadores de A parte do fogo – quanto na proposta de intervenção no circuito da arte brasileira.

Ainda que contasse com os artistas paulistas José Resende e Luiz Paulo Baravelli, a Malasartes era fundamentalmente uma revista carioca concebida nos salões do Museu de Arte Moderna do Rio, impressa na cidade e que refletia a cena local. Sendo o palco principal dessa cena, o MAM reverberou nas páginas da publicação, seja no espaço dado aos artistas para mostrarem seus trabalhos – com obras muitas vezes já exibidas anteriormente na área experimental do museu, caso de Lygia Pape e Carlos Zilio –, seja no debate travado com o curador do museu, Roberto Pontual, a partir da exposição “Arte Agora I”, quando um manifesto contra determinadas atitudes do curador foi veiculado no terceiro número da revista. Fato é que a história da revista se confunde com a atuação de seus artistas, que, em sua maioria, fazem parte de um grupo que se inscreve na arte brasileira como uma vanguarda carioca atenta às questões conceituais. Em A parte do fogo esse grupo se repete.

Sobre a atuação no circuito da arte, tanto a Malasartes quanto A parte do fogo trazem semelhanças nos editoriais que as definem. No caso da Malasartes , tal como se nota na passagem abaixo, presente em seu primeiro número, é possível constatar que, para além dos objetos de arte, a revista se volta aos estudos dos processos de produção de arte, sua veiculação e mecanismos que a realimentam:

Tradicionalmente, as revistas nas quais os artistas são maioria defendem um movimento, um ismo. Vindos de formações diferentes, e com uma produção pessoal não menos diferente entre si, o que nos une é um consenso sobre o papel que a arte desempenha em nosso ambiente cultural e o que ela poderia desempenhar.

Malasartes é, portanto, uma revista sobre a política das artes. Entre a aparente opção de editar uma publicação que trate a arte como objeto de consumo e outra que seguisse a moda das revistas enigmáticas, Malasartes preferiu, pretensiosamente, tomar a si a função de analisar a realidade contemporânea da arte brasileira e de apontar alternativas. ( INTRODUÇÃO, 1975INTRODUÇÃO. Malasartes , n. 1, set/out/nov. 1975, p. 4. , p. 4)

Na última frase da citação, delimita-se a função da publicação em analisar a realidade contemporânea da arte brasileira e apontar alternativas. Como efeito de comparação, no editorial da revista A parte do fogo , em certa medida, o conceito explicitado surge novamente.

A PARTE DO FOGO é uma publicação para intervir no processo cultural brasileiro. Conquistar um espaço para a produção de arte contemporânea que não seja apenas um território a mais na topografia do saber instituído. Este lugar não existe. Portanto, ninguém procure metáforas de ocupação para este trabalho. Conquistá-lo é produzi-lo como prática política específica que se corporifica nas linguagens do trabalho artístico. (MEIRELES et al. , 1980, p. 1)

É importante frisar o momento histórico no qual se dão ambas as iniciativas, visto que se observa, a partir desses editoriais, uma mudança de perspectiva nas questões políticas que permeiam a atuação das revistas. A Malasartes é de 1975-76 e, portanto, anterior ao processo de abertura do país, à anistia geral e ao incêndio do MAM. Já A parte do fogo , de 1980, lida com os paradoxos e problemas que se refletem a partir de tais processos – a começar pelo seu nome que, ainda que idêntico ao título de um livro de Blanchot, inevitavelmente tem relação com o incêndio do museu, ocorrido dois anos antes. A parte do fogo seria também sobre como atuar em uma nova condição, na qual um projeto de modernidade parecia suplantado, e a crise das utopias era uma realidade consolidada. Na revista se fala a partir daquele agora, entendendo com bastante clareza as forças que se impunham no momento.

Para compreendermos a que se refere o editorial da Malasartes quando propõe o termo “política das artes” enquanto um campo de atuação, recorro ao texto de Ronaldo Brito que abre a revista, intitulado “Análise do circuito”. No texto, Brito procura delimitar qual seria a função da arte em seu ambiente cultural. Para o autor, tratava-se de um circuito dominado pelas leis do mercado, que valorizava o objeto e era regido pelas vontades de uma elite econômica. Essa seria a realidade na qual a Malasartes pretendia intervir e apontar alternativas ao expor uma produção que se dizia à margem desse circuito. Sobre o crescimento do mercado de arte no Brasil, a partir da década de 1970, Brito coloca:

Não é suficiente, por exemplo, afirmar que a implantação e consolidação do mercado foi o fator dominante na arte brasileira dos anos 70, ampliando o público comprador dentro de certo setor (afastando outros setores, certamente) e produzindo graves distorções tanto na área da produção – é o caso do famoso ‘estilo’ acrílico – quanto na área da crítica – sacralizando obras desimportantes, recalcando outras importantes, etc. ( BRITO, 1975BRITO, Ronaldo. Análise do circuito. Malasartes , n. 1, set/out/nov. 1975, pp. 5-6. , p. 5)

Se até o início da década de 1970 o inimigo a ser combatido era o regime autoritário imposto pela ditadura militar, em 1975, esse inimigo parecia ter se materializado nas “forças do mercado”, que regiam o sistema da arte. Àquela altura, as artes visuais já não se impunham como força mobilizadora capaz de confrontar diretamente a autoridade do Estado (e talvez nunca tenham se imposto enquanto tal), seja por um relaxamento do Estado para as questões culturais, relegando-as a um plano não ameaçador e compondo arranjos que mantinham suas dissidências sob controle, seja – como sinalizou Frederico Morais – por um processo de autocensura desses agentes que, após um longo período de repressão, já optavam por serem menos incisivos nas suas críticas, e, certamente, pelo arrefecimento das práticas revolucionárias de esquerda, suprimidas com violência pela ditadura. A “política das artes”, portanto, parecia ter se sobreposto a uma “arte política” engajada. Soma-se a isso a consolidação da “crítica institucional” como prática artística que ampliava a consciência para o sistema da arte e cujas tensões eram cada vez mais questionadas e problematizadas.

Ainda em “Análise do circuito”, é importante ressaltar que Brito, fugindo de uma leitura marxista, reconhece o quanto o mercado de arte era peça fundamental dentro de um sistema sadio. A questão, portanto, não estava na relação entre obra e commodity , mas no questionamento de como, cada vez mais, o mercado controlaria essa relação, definindo-a de acordo com seus interesses e pautando como tais obras seriam capitalizadas e institucionalizadas. Para Brito, esse fato é intrínseco ao capitalismo e, portanto, seria tarefa inútil lutar contra ele. Em sua acepção, uma das possibilidades de confrontar essa dinâmica seria “intervir criticamente na ideologia do circuito” (BRITO, 1975, p. 6) para criar situações alternativas dentro do próprio circuito.

Nesse sentido, Ronaldo Brito propõe dois pontos que balizariam essa atuação/intervenção. Primeiro, a “reorganização dos artistas contemporâneos em torno de um programa comum de ação dentro do circuito” (BRITO, 1975, p. 6). Trata-se de ação que corrobora uma tentativa de se pensar um corpo coletivo que pudesse pautar as questões e reivindicações, batendo na tecla, ainda hoje em voga, de que os artistas sempre sobrepõem suas questões individuais às questões coletivas, alimentando as distorções do circuito. No segundo ponto, que versa sobre “a formulação de uma História Crítica da Arte Brasileira” (Ibidem, p. 6), Brito ressalta que, em geral, as iniciativas críticas partem do mercado de arte e que, portanto, para intervir criticamente na ideologia desse circuito, seria fundamental a criação de novos discursos alheios ao controle do mercado. Tal reflexão é desdobrada ao longo dos três números da revista, propondo leituras que estariam fora do escopo hegemônico da arte ou de uma narrativa teleológica e apontando práticas que sempre estiveram à margem do mercado.

Na segunda edição da revista, uma matéria sobre o bloco de carnaval Cacique de Ramos, ilustrada por fotos de Carlos Vergara, e com texto de Bira Presidente – um dos fundadores do bloco –, divide as páginas com um texto de Mário Pedrosa sobre a obra de Volpi e com uma tradução de A arte e o sistema da arte , do crítico italiano Achille Bonito Oliva. Nesse caso, fica nítida certa tendência de busca pela pluralidade e por colocar em um mesmo patamar produções artísticas díspares, equivalendo-as em outra narrativa que não mais a “grande narrativa moderna”.

Mesmo que similares em seus desejos de intervenção no circuito, o texto que inicia A parte do fogo é bastante incisivo na sua análise do cenário de abertura política vivido em 1980, e ressalta como esse processo poderia recalcar determinadas produções em prol de uma suposta unidade cultural. Tal crítica reverbera ainda hoje quando nos damos conta de que o processo da anistia ampla, geral e irrestrita acabou tendo efeitos colaterais indesejados ao longo do tempo. A equivalência dos agentes envolvidos, isto é, torturadores e militantes, não só impossibilitou qualquer reparação dos crimes cometidos pelo governo como também sublimou toda violência praticada pelo Estado durante o período. O editorial da A Parte do fogo já tocava em tais questões:

Para o processo cultural brasileiro o que significa a nova política de conciliação do governo? Qual a Producão conveniente neste momento em que, para não perder as rédeas do progresso, o governo estende a mão e grande parte da oposição, mais uma vez se deixa conduzir? Estas questões, curiosamente, não fazem parte das preocupações e dissertações que se avolumam a cada dia sobre o tema. Parecem, mesmo, impertinentes (em todos os sentidos). Mas onde buscar as injunções culturais desses fatos senão na própria produção e em sua dinâmica? Levantando o peso do autoritarismo de um poder forte e centralizado, ressurge um outro autoritarismo – o da conciliação imposta de cima para baixo. Mal dissolvido ainda o peso da repressão, formas prontas, intactas reaparecem em certas manifestações, pretendendo dizer quem somos e o que devemos fazer. Espécie de trabalho de reexumação, com caráter purificante. Um certo compromisso de retomada, um certo alívio com a volta de certos valores, são os elementos exclusivos desta nova consciência moral da conciliação. (MEIRELES et al. , 1980, p. 1)

Naquele momento, o artigo escrito por seus editores – artistas e críticos atuantes no circuito – demonstrava clareza ao compreender o quanto os termos “democracia”, “povo” e “produção cultural”, usados em demasia, traziam imprecisões que esvaziavam seus sentidos essenciais para se tornarem vocabulários de uma retórica de manutenção de poder. “A verdade da instituição é cobrir o real da coisa instituída” (MEIRELES et al. , 1980, p. 1), diz o texto em trecho que reforça a dimensão da “crítica institucional” proposta pela revista. Ampliando essas questões a uma dimensão política para além da instituição de arte, o editorial é contundente ao refletir sobre como as relações institucionais se ligam diretamente com as condições políticas do momento.

A instituição “democratiza” sua fala, o mercado “democratiza” sua fala, mudam, traficam conteúdos diversos, mas não alteram suas características. Basicamente, não interessa por a nu a luta ideológica em curso nos territórios que delimitam. Basicamente, escondem o processo real de formação de valores que manipulam e disseminam, tentam apagar essa história.

É preciso dizer que a retórica de Abertura pode recalcar eventuais linguagens de abertura. E, legitimando-se como Verdade Institucional, cumprirá este papel, com seu belo nome e tudo. O que se observa como sintoma é grave: não se fala em novas linguagens, não se deseja novas linguagens. Ao que tudo indica, essas seriam pura e simplesmente aquelas que foram reprimidas pela censura oficial. E, entre elas, como a própria inteligência do Poder supunha, não existem diferenças. (MEIRELES et al. , 1980, p. 1)

Tal qual se nota, o texto propõe uma recolocação de determinados valores e pautas assimilados pelo processo de abertura, que relegava à margem uma prática mais experimental e conceitual, e afirma a possibilidade de intervir no circuito de arte através da publicação. O último parágrafo demonstra tal desejo:

O trabalho permanente de abertura no campo cultural é o de descobrir as regiões interditadas do conflito, do desacordo, pondo a nu contradições que resistem ao desejo de homogeneizar o que, por natureza, trabalha uma heterogeneidade específica, A PARTE DO FOGO. (Ibidem, p. 1)

Ainda que houvesse outras iniciativas editoriais surgidas ao longo da década de 1970 com objetivos similares aos da Malasartes e A parte do fogo – como as publicações Artéria e Corpo estranho , de São Paulo –, os dois exemplos aqui reunidos foram revistas que, de alguma forma, se alinharam ao circuito conceitual a partir do MAM. Nesse sentido, é possível afirmar que as publicações funcionavam como um braço editorial de uma determinada vanguarda carioca, e, por isso, nas páginas dessas revistas, as possibilidades de repensar o museu moderno a partir do MAM foram aplicadas com alguma liberdade.

Diante desses fatos, as iniciativas escolhidas podem ser vistas como um campo de exercício experimental de curadoria e “crítica institucional”, afirmando uma ideia abrangente que poderia situar tais iniciativas entre o museu impresso e a ideia de livro/revista de artista. Seguindo na hipótese de “museu impresso”, fica claro o conflito com o modelo de museu do qual o MAM era o exemplo mais representativo no circuito local.

IV.

O artista Ulises Carrión começa seu texto manifesto A nova arte de fazer livros , de 1975, com a seguinte definição: “Um livro é uma sequência de espaços. Cada um desses espaços é percebido em momentos diferentes – um livro também é uma sequência de momentos. O livro é uma sequência espaço-tempo” ( CARRIÓN, 1975CARRIÓN, Ulisses. The New art of making books. Kontexts , n. 6-7, 1975, n.p. , n.p.). Sendo a arquitetura de uma exposição também uma sequência de espaços que articulam uma dimensão temporal através da percepção do espectador sobre aquele espaço, pensar certo tipo de livro como espaço expositivo é um processo coerente a essa perspectiva.

Apesar do “livro de artista” ter uma trajetória autônoma em relação à arte conceitual e ao pós-minimalismo – com exemplos que abrangem da Caixa-verde , de Duchamp, às edições de luxo, como Jazz , de Matisse, publicada em 1947 –, a possibilidade de aproximação entre o espaço tridimensional do objeto-livro e o espaço arquitetônico do cubo branco ganha força no contexto das práticas artísticas conceituais. É nesse contexto que os trabalhos têm como ponto em comum as diferentes possibilidades dessa nova materialidade, que se distancia da objetificação do resultado artístico para articular uma dimensão efêmera e residual das obras.

“Como conservar detritos, ambientes, proposições, manifestações plurisensoriais, happenings e conceitos?”, indaga Frederico Morais (1975MORAIS, Frederico. O museu: a cidade lúdica. In MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual , 1975, pp. 58-62. , p. 58) pensando o “museu pós-moderno”. Tais questões produzem crescimento das possibilidades investigativas quanto ao registro e circulação desse contexto, fazendo com que as exposições se adequem a um novo sistema e alargando as noções de montagem para suportes que respondam a tal prática. Na esteira da passagem entre o museu moderno e um pensamento pós-moderno, essa nova produção de visualidades não só aparecia como um problema museográfico – já que a instituição teria que se adequar, pensando novas possibilidades de catalogação e manutenção do seu acervo – como também estimulava os artistas a transformarem o registro das ações, muitas vezes efêmeras, na obra que ficava: no trabalho que podia ser institucionalizado.

Se a relação espaço-tempo se tornava matéria indissociável de uma produção artística baseada no processo, o livro como possibilidade de exploração dessas práticas crescia como um suporte possível e trazia na sua materialidade outras questões também caras à produção conceitual, como novos campos de circulação das obras de arte e a ruptura com os meios tradicionais de apresentação.

Nesse sentido, pensar o livro como espaço expositivo foi caminho natural de desdobramento para determinada produção conceitual – uma produção que, por sua carga de imaterialidade, muitas vezes culminou em obras que se objetificavam apenas na forma de um registro visual: na fotografia, no vídeo ou em instruções e desenhos esquemáticos. Diante dessa situação, a crítica e pesquisadora Gwen L. Allen afirma que a chamada “desmaterialização da arte” resultou em uma materialização do impresso, com a pesquisa artística se aprofundando nas formas de veicular essas proposições (ALLEN, 2013, p. 508).

Em 1969, o curador Harald Szeemann realizou a exposição "When Atitudes Become Form", na qual articulou uma discussão em torno da possibilidade formal que se apresentava dentro de uma produção que privilegiava o processo em relação à produção de objetos. Nela, o catálogo da exposição era um desdobramento das próprias ideias que estavam sendo debatidas na mostra. Realizada por Szeemann, a publicação não opera por uma lógica de registro do que estava sendo apresentado naquele momento, mas por um caminho de autonomia que, à sua maneira, não dependeria da exposição para fazer sentido. Assim, os artistas participantes eram convidados a pensar o catálogo tal como uma exposição impressa onde, para além das fotos da mostra, se pretendia veicular propostas originalmente concebidas para o formato do livro.

Era como se o tempo de apreensão dessa produção conceitual pudesse perpassar o tempo de duração da exposição, não resumindo o livro ao que era pra ser visto no espaço. Trata-se daquilo que o editor e curador estadunidense Seth Siegelaub definiu como a possibilidade de se pensar no catálogo e nos livros de artista como fontes de informação primária de uma situação de arte. Dessa forma, o catálogo não dependeria mais de uma exposição para existir: ele poderia até mesmo ser a exposição em si ( ALLEN, 2013ALLEN, Gwen. The Catalogue as an Exhibition Space in the 1960s and 1970s. In SZEEMANN, Harald. When Attitudes Become Form: Bern 1969/ Venice 2013. Catálogo de exposição. 2013, pp. 505-510. , p. 506).

Em 1968, apenas um ano antes da exposição de Harald Szeemann, Siegelaub editou Xerox Book , uma publicação que pensava de forma radical a possibilidade do livro como suporte expográfico. Nela, Siegelaub parte de balizas pré-determinadas, como o tamanho do papel e a forma de impressão através de fotocópia, para convidar os artistas Carl Andre, Robert Barry, Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Robert Morris e Lawrence Weiner para ocuparem, cada um, 26 páginas do livro.

Xerox Book afirma na sua narrativa visual as características materiais, espaciais e temporais do que seria propriamente o objeto-livro, e os trabalhos sublinham a todo instante essa condição – seja propondo sequências que lidam com a temporalidade das páginas (como a obra de Carl Andre), seja trabalhado com as possibilidades de impressão (como fazem Robert Morris e Robert Barry), seja com a página enquanto parte de um grid (na obra de Lawrence Weiner) ou com a percepção do espectador/leitor frente à produção daquele objeto (como no trabalho de Joseph Kosuth).

Ainda que Xerox Book possa ser visto como um exemplo paradigmático para se pensar na possibilidade de uma exposição impressa, ao transpor essa narrativa histórica do “livro de artista” para o contexto brasileiro, temos pontos a serem questionados e que, de certa forma, contradizem o modelo hermético baseado na produção conceitual e minimalista norte-americana.

No texto “Sabão”, de 2018, o artista e escritor paulista Fabio Morais comenta que a história do “livro de artista” no Brasil poderia ser contada por suas atitudes gráficas e seus hibridismos. Para Morais, por conta de diversos motivos, o “livro de artista” jamais conseguiu se impor no Brasil como um suporte proeminente. Dentre os motivos mais óbvios identifica-se o alto custo de produção, a dificuldade de distribuição, a baixa taxa de leitura da população e principalmente o valor do objeto-livro. Sendo assim, para traçarmos a história de uma produção nacional, seria necessário se desvincular do objeto-livro enquanto suporte principal dessa análise.

Ainda nesse texto, Morais aponta alguns exemplos do que seria essa atitude gráfica aplicada a suportes não convencionais, entre eles: a reforma gráfica feita por Amilcar de Castro no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil , em 1959, o livro de Flávio de Carvalho narrando a Experiência nº2 , a exposição “De 0 a 24h”, de Antonio Manuel – publicada em um fascículo dentro de O Jornal , em 1973–, as esculturas nomeadas Livro da criação , de Lygia pape, as esculturas-publicações Gibis , de Raymundo Colares, a revista Navilouca , de 1974, editada por Waly Salomão e Torquato Neto, com projeto gráfico de Oscar Ramos e Luciano Figueiredo, e o projeto de Lygia Pape para as embalagens dos produtos da marca Piraquê. Exemplos que, segundo o autor, sugerem que “nossa história talvez paute-se mais no ato editorial que no objeto por ele produzido” ( MORAIS, 2018MORAIS, Fabio. Sabão . Florianópolis: Editora Par(ent)esis, 2018. , p. 15).

Seria, portanto, a partir desse ato editorial forjado na tentativa de ampliação do circuito de arte que poderíamos pensar as revistas Malasartes e A parte do fogo como possíveis “museus impressos”: não apenas revistas/livros de artista, mas enquanto publicações editadas por artistas, caracterizadas por seus hibridismos, em que trabalhos gráficos pensados para as páginas das revistas conviviam lado a lado com traduções de textos teóricos, textos ensaísticos e matérias autorais que promoviam um sentido educativo e crítico. Assim, ao inserir a ideia editorial também como uma prática curatorial, tais publicações inevitavelmente ampliavam a circulação de práticas artísticas que se encontravam à margem de um circuito restrito e, ainda, educando/provocando esteticamente seus leitores, pensavam o impresso como espaço expositivo, isto é, como suporte para uma atitude gráfica que fugia da neutralidade.

V.

No primeiro número da Malasartes , logo após o texto “Análise do circuito”, de Ronaldo Brito, temos uma sequência de matérias que expõem a condição de autoralidade presente na revista, em atitude que ora se apresenta como intervenção crítica no circuito da arte, ora como prática artística. No texto seguinte ao de Brito, o artista Luiz Paulo Baravelli escreve “Pontos de um pintor”, com 39 itens refletindo sobre a ideia da pintura em uma situação onde a arte conceitual já era intrínseca ao processo artístico, ao menos para aqueles que se inseriam no grupo da Malasartes . Desse modo, ao mesmo tempo que traça uma narrativa histórica dotada de um tom irônico em que apresenta, na forma de tópicos, uma situação que ficaria entre uma escrita ensaística e uma escrita poética, Baravelli emite seu ponto de vista, assumindo os riscos inerentes a essa aposta opinativa.

Na matéria seguinte, temos uma página dupla com o trabalho Leitura silenciosa , de Waltercio Caldas, feito especialmente para a revista. Trata-se de uma série de desenhos de objetos banais, dispostos um ao lado do outro, em pares, em uma espécie de análise combinatória que obedece a uma sequência, como as de histórias em quadrinho. Com isso, ao percorrer os hiatos das relações estabelecidas entre os objetos – um cigarro, um livro, um copo de água, um copo de vinho, um dado, um despertador, uma cadeira, um cinzeiro – que se repetem nos diferentes pares possíveis, o leitor é levado a um sentido de pausa e reflexão.

Em seguida, temos a tradução do texto “Arte depois da filosofia”, de 1969, de autoria do artista estadunidense Joseph Kosuth, até então inédito por aqui. Depois, a matéria organizada por Cildo Meireles, intitulada “Quem se desloca recebe quem pede tem preferência”2 2 . Frase do técnico de futebol Gentil Cardoso. . Este seria um exemplo de como a publicação pretendia intervir no circuito, expondo em um veículo de massa trabalhos que até então teriam pouca visibilidade institucional, objetivo que fica claro no parágrafo de abertura da matéria:

Os trabalhos a seguir publicados são, às vezes, bastante diferentes entre si. Mas tem uma característica comum: de uma forma ou de outra foram marginalizados pelo circuito, seja de um modo direto, seja pelas próprias condições de violência econômica em que opera. Como toda a proposta crítica surgida nos últimos anos não puderam encontrar uma veiculação eficaz e algumas tem agora seu primeiro contato com o público. O presente material obedece ao critério de escolha de Cildo Meireles e foi produzido por: Umberto Costa Barros, Alfredo Fontes, Guilherme Vaz, Luiz Fonseca, Cláudio Paiva, Tunga, Cildo Meireles e Vicente Pereira. (MEIRELES, 1975, p. 14)

Na matéria, além das fotos dos trabalhos, havia alguns textos dos artistas. Contudo, tais textos nem sempre ilustravam o que era mostrado, promovendo uma relação ambivalente entre texto e imagem, tal qual evidenciado no depoimento de Tunga, disposto junto a fotos de uma escultura sem título, no qual declara: “O campo de ação do meu trabalho é o desejo” (TUNGA in MEIRELES, 1975MEIRELES, Cildo. Quem se desloca recebe quem pede tem preferência. Malasartes , n. 1, set/out/nov. 1975, pp. 14-19. , p. 16). O mesmo ocorre no texto de Luiz Fonseca, escrito em parceria com Silviano Santiago, em que uma descrição da palavra “espicaçar” é reunida à descrição em francês de “casse-tête”, e o “Poema em linha reta”, de Fernando Pessoa, é aproximado à obra de Fonseca, que retrata um casal gay. Ou ainda, nos textos de Vicente Pereira, nos quais nos deparamos com transcrições de trechos de filmes sem o acompanhamento de nenhuma imagem, aos quais o autor chama de trailers – considerados, nesse caso, o próprio trabalho.

Seguindo nas páginas da revista, temos a matéria organizada por Rubens Gerchman, intitulada “Roupa dentro do corpo”. Nela, o autor propõe um inventário de situações em que a roupa possui um caráter central. Gerchman, no entanto, não se atém apenas às práticas artísticas e extrapola esses limites criando paralelos e conexões entre diversas atividades e usos, tais quais: uma roupa de trabalho na selva, um pescador construindo uma treliça de madeira, um Parangolé de Hélio Oiticica e o New look de Flávio de Carvalho. Há, nesse sentido, a opção por um anacronismo e por uma maior contaminação das artes com a sociedade, fato que compõe uma das bases do que seria o “museu impresso”. Como reflexo da sobreposição entre pensamento curatorial e editorial aqui vista, podemos notar a opção por construções narrativas que suplantassem a perspectiva moderna de separação entre campos de saber, isto é, entre natureza e cultura, entre arte e sociedade. No texto que abre a matéria, Gerchman aponta:

Reconstrução de um todo num espaço histórico, ahistoricamente, sem perder de vista as partes: os artistas aqui reunidos em 4 páginas se contradizem no tempo e no espaço/obra (pensamento). Nos pareceu interessante agrupá-los para uma possível leitura onde unidades autônomas com significados diversos possam formar um novo todo de significado uno/aberto/a Histórico. ( GERCHMAN, 1975GERCHMAN, Rubens. Roupa dentro do corpo. Malasartes , n. 1, set/out/nov. 1975, pp. 20-23. , p. 20)

Seguindo nessa análise, após o ensaio “Formação do artista no Brasil”, de José Resende, e o histórico texto “Teoria do não objeto”, de Ferreira Gullar, temos algumas páginas destinadas à ocupação de um artista convidado, mantidas nos três números da publicação. O espaço, que coube a Carlos Zilio nessa primeira edição, tinha o intuito de apresentar visual e conceitualmente uma exposição. No texto escrito por Zilio, podemos compreender com mais clareza o que o projeto curatorial/editorial da Malasartes propunha.

Se tradicionalmente, o artista encontrava na mudez ou no subjetivismo a melhor forma para situar o seu trabalho, deixando ao crítico a tarefa de conceituá-lo, hoje esta posição não encontra mais sustentação. Uma atitude de ação substitui globalmente a de contemplação. Assim, o trabalho escrito, a performance e outras atividades foram desenvolvidas como uma ampliação no relacionamento do artista com o público.

A mudança de comportamento está diretamente ligada a uma nova concepção de arte. Entendê-la como uma manipulação de elementos formais é, certamente, uma apreensão parcial de um complexo mais amplo. Partimos da consideração de que a arte é uma forma de conhecimento. Seu campo se localiza, por exemplo, no mesmo plano da filosofia e da ciência, com as devidas distinções no uso de linguagens particulares, relação de formação de concepções, de pensamentos, de ideias. ( ZILIO, 1975ZILIO, Carlos. S/t. Malasartes , n. 1, set/out/nov. 1975, pp. 28-29. , p. 28)

Embora se refira a uma tentativa de Zilio de inscrever um conjunto de trabalhos realizados entre 1973 e 1974 na esfera da publicação, o trecho supracitado tem relação direta com o que vai se tangenciando na Malasartes desde seu editorial: a proposta de intervenção no circuito de arte. Zilio afirma de maneira ampla as condições referentes ao fazer artístico exibido na revista ao longo dos seus três números, no qual uma atitude de ação substituiria a de contemplação e no qual, segundo ele, “há uma tentativa de romper com o fetichismo que separa o trabalho de arte do espectador” (Ibidem, p. 28). No texto, o artista aponta também uma mudança no regime de visualidades e atitudes, que refletiria um questionamento ao projeto de museu moderno.

Esta exposição, realizada com trabalhos de 73 e 74, não pretende ser o resultado da disposição deles nas paredes de uma sala. Ela obedece a um projeto de intervenção crítica no circuito de arte e a partir deste ponto é que o espectador deve procurar realizar sua leitura. O importante não é um ou outro elemento, embora eles possuam a sua individualidade. O que interessa é o conjunto, entendido não como a soma dos significados isolados, mas como conceito totalizador. (Ibidem, p. 28)

Buscando um paralelo entre os escritos de Zilio e a possibilidade de se pensar a revista como um “museu impresso”, é importante ressaltar a última frase do texto, na qual o artista afirma o conjunto da exposição não como a soma de significados isolados, mas como algo que pudesse ser lido na sua totalidade. Nesse sentido, o discurso proposto pela Malasartes também se consolida na ideia de totalidade – textos, matérias, intervenções diversas que se somam ao reivindicar uma mudança de perspectiva em relação à condição moderna: seja ao romper com as separações de saberes e práticas artísticas, reduzindo as hierarquias entre a noção de popular e erudito, seja ao vincular o mercado da arte à ideologia progressista, que àquela altura já se distanciava de uma ideia utópica.

São inúmeros os exemplos que, ao longo das três edições, afirmam a contaminação entre fazeres artísticos num percurso que insere em uma mesma ordem produções de caráter distintos – das manifestações populares, ao design de objetos, passando por intervenções conceituais e a poesia marginal. Também é recorrente o distanciamento em relação à narrativa teleológica, visto que a publicação apresenta, em uma mesma chave de análise, os textos conceituais e críticos de Joseph Kosuth, Ferreira Gullar, Mário Pedrosa, do sertanista Sergio Meirelles e da arquiteta Lina Bo Bardi, textos que confirmam e apresentam outras possibilidades de leitura da história da arte para além da tradição moderna.

Ainda no primeiro exemplar, na sequência da matéria de Carlos Zilio temos a tradução de “O problema do provincianismo”, do crítico australiano Terry Smith, um texto do cineasta Haroldo Marinho Barbosa e uma coluna de literatura editada por Bernardo Vilhena, com a publicação de diversos autores ligados à poesia marginal, como Chacal, Charles, Francisco Alvim, além de Ana Cristina Cesar, entre outros.

Nos números subsequentes, a estrutura da publicação se mantém. Neles, são apresentados artigos e trabalhos dos seus editores, traduções de textos inéditos representativos sobre arte, reedições de textos ou trabalhos que por algum motivo caíram no esquecimento, além do espaço para poesia e, eventualmente, música e cinema. Algumas matérias foram fundamentais para estruturar as diretrizes propostas no editorial inicial, como o ensaio fotográfico realizado por Miguel Rio Branco sobre a periferia de Brasília, a matéria sobre o bloco de carnaval Cacique de Ramos realizada por Carlos Vergara, a leitura de Ronaldo Brito sobre as intervenções do artista Umberto Costa Barros feitas na área experimental do MAM, a transposição da exposição “Eat Me – a gula ou a luxuria?”, de Lygia Pape, o ensaio “Prática de claridade sobre nu”, com fotos e textos de Tunga, os depoimentos de diversos artistas sobre a área experimental e, por fim, o manifesto resultante do debate travado com o curador do MAM, Roberto Pontual, por conta da exposição “Arte Agora I”.

Dos depoimentos dos artistas sobre a área experimental, nos quais se pretendia comentar sobre o primeiro ano do espaço surgido em 1975 no Museu de Arte Moderna do Rio, temos alguns pontos que adensam uma discussão que questionava a manutenção do projeto de modernidade almejado pelo MAM. Enquanto a Malasartes tinha como foco as questões vinculadas ao processo e ao experimentalismo conceitual, o MAM, de acordo com os artistas que participavam da revista, ainda estaria preso a questões caras à sua dimensão moderna, isto é, à manutenção de uma ideia de arte fechada em si mesma, caracterizada pela produção de objetos e que pretendia intervir na sociedade a partir de seus valores estéticos. A artista Anna Bella Geiger, ao fazer uma breve genealogia do museu, ressalta que o MAM sempre buscou atuar como uma alternativa à situação cultural vigente, mas indaga sobre a posição do museu em 1975-76:

Qual estaria sendo realmente a posição do MAM quanto a essa “alternativa”? Pelos fatos ocorridos na Área experimental , e pelo programa apresentado nesse inicio de 76 se poderia descrevê-lo no momento como um museu de estruturas aparentemente renovadoras, portanto aquém de suas possibilidades e de seus objetivos originais. Seria, portanto, necessário da parte do museu uma conceituação que deixasse claro em que se baseia o seu critério de atuação, de contemporaneidade. É preciso saber (por exemplo) se a criação de uma área experimental veio apenas obedientemente, como desejam certos membros, ajudar a cumprir a sua programação anual e, junto a acervos imprecisos e impressionistas, impressionar o público com uma história da arte contada pelo seu status e aparência, ou para discutir e transformar além de outras coisas o próprio conceito e função de um museu. (GEIGER; HERKENHOFF; MACHADO, 1976, p. 25)

Dessa forma, o papel da revista passaria diretamente por tensionar esse modelo moderno, que àquela altura parecia não se deslocar para o contemporâneo. O então artista e hoje curador Paulo Herkenhoff corrobora a opinião de Geiger.

O próprio MAM é testado enquanto instituição. Os problemas de toda ordem (montagem, divulgação, verbas, etc.) sofridos pelos artistas remeteriam a perguntas como: até que ponto o MAM definiu efetivamente a sua posição frente à Área experimental ? A existência de tais problemas (no despreparo para lidar com esse tipo de arte) decorreria da própria posição ideológica (implícita) do MAM frente à arte contemporânea? A resposta a estas e outras indagações possíveis, juntamente com uma análise da atuação global do MAM, é importante para se constatar se a abertura da Área experimental representa uma atitude no sentido de apoio à experimentação ou uma tentativa de recuperação e neutralização da atividade contemporânea. (GEIGER; HERKENHOFF; MACHADO, 1976, p. 27)

De acordo com os depoimentos dados pelos artistas sobre a área experimental, havia uma insatisfação com a posição do museu, traduzida em desconfiança sobre os rumos daquele espaço. Como colocou Herkenhoff, a negação da instituição em relação às praticas contemporâneas não seria explícita, pois de fato havia a abertura de um espaço: por maiores que fossem as críticas, havia algum olhar do MAM sobre o que seria esse experimental. A tensão que se dava, portanto, era de um âmbito maior. Isto é, de uma luta pela qual cada vez mais os artistas conseguiam se organizar e reivindicar determinadas posições, confrontando, através da “crítica institucional”, da “política das artes” ou das práticas experimentais, o papel de uma instituição que surgira moderna e que não parecia demonstrar adesão a uma nova condição que, ao longo dos anos 1970, se tornava cada vez mais evidente.

No texto “Análise do circuito”, Ronaldo Brito aponta duas formas de intervenção na ideologia do circuito de arte: a reorganização dos artistas em torno de um programa comum de ação e a formulação de um novo pensamento crítico, mais próximo das questões contemporâneas, que não fosse atrelado ao mercado. É interessante refletir como, ao longo dos três números da Malasartes , essas duas posições convergiram, consolidando o que foi chamado no editorial de “política das artes”. Na terceira e última edição da revista, é veiculado o manifesto contra os critérios de seleção da exposição “Arte Agora I”. Em certo sentido, o manifesto pode ser tomado como uma aplicação prática das duas vias apresentadas por Brito. No parágrafo de abertura do manifesto, fica nítida a posição tomada pelo grupo.

No final de fevereiro passado, 17 artistas elaboraram um manifesto no qual colocavam em questão os critérios do Salão Arte Agora I, assim como a atuação de setores da crítica. A esse manifesto, seguiu-se a resposta do sr. Roberto Pontual – responsável pela organização do referido salão – o que nos permite levar adiante uma mais ampla análise de sua atuação como crítico e dos procedimentos de que se utiliza para dissolver os significados críticos da ação dos artistas e da produção de arte. Gostaríamos de ressalvar que o alvo desta análise não é a pessoa do crítico e sim sua prática como agente de uma ideologia cultural e suas estreitas ligações com o mercado de arte, prática essa, e disso temos plena consciência, determinada pela posição que ocupa no circuito de arte e pelos interesses que defende. (MANIFESTO, 1976, p. 28)

O manifesto publicado é resultado de um debate que se inicia com a retirada de 17 artistas da exposição “Arte Agora I”. Por não concordarem com os critérios de seleção do salão de arte, os artistas Paulo Herkenhoff, Mauro Kleiman, Ivens Machado, Waltercio Caldas, Antonio Manuel, Mônica Barbosa, Tunga, Ascânio Monteiro, Ronaldo do Rego Macedo, Sergio Augusto Porto, Ana Maria Maiolino, Rogério Luz, Cildo Meireles, Leonardo Pereira Leite, José Resende, Raul Córdula Filho e Artur Barrio decidem retirar-se da exposição a poucos dias da abertura. O grupo, então, veicula na ocasião um primeiro manifesto endossando a decisão e apontando a premiação como combustível para provocar competitividade entre os artistas e confundir os aspectos pragmáticos da comercialização com o caráter eminentemente cultural da arte.

Como resposta, Pontual publica esse manifesto em sua coluna no Jornal do Brasil , onde apresenta sua defesa. O novo manifesto veiculado pela Malasartes irrompe, portanto, como uma tréplica da discussão em voga. Nele, ao longo do texto, vemos a desconstrução dos argumentos de Pontual e de sua posição de crítico de arte – exercida em um jornal de grande circulação – concomitante à de diretor de exposições do MAM. Segundo os artistas, os argumentos utilizados por Pontual em sua defesa acabam por corroborar a parcialidade de um sistema de arte comprometido. Ao final, somados aos artistas que deixaram a mostra, assinam o manifesto diversos outros artistas que concordavam com a crítica veiculada.

O que fica claro nesse imbróglio é tanto a tomada de posição dos artistas quanto a possibilidade de se reivindicar novos campos para a crítica de arte, mais abrangentes que aqueles supostamente vinculados a Pontual. Demarcando essa posição, e sublinhando os itens reivindicados, os artistas que haviam deixado a mostra publicam, na Malasartes , um adendo ao manifesto:

  • Os artistas assumem uma posição frente aos setores da crítica que:

  • - Exerçam toda e qualquer forma de apadrinhamento;

  • - Não assumam uma metodologia adequada de análise, carecendo inclusive de uma visão multidisciplinar;

  • - Reforcem o colonialismo cultural pelo uso sistemático de modelos importados preestabelecidos;

  • - Se mostrem incapazes, no uso de suas estruturas de avaliação, de perceber as novas linguagens;

  • - Se manifestem frequentemente através de informações errôneas e incompletas da percepção distorcida ou mesmo do silêncio deliberado. ( MANIFESTO, 1976MANIFESTO. Malasartes , n. 3, abri/mai/jun. 1976, pp. 28-29. , p. 29)

Tomando-se a Malasartes como um “museu impresso”, chegamos ao seu terceiro número com a compreensão de que, nesse caso, o projeto de museu contemplado pela revista assumia posições distintas das escolhas feitas pelo MAM. Em 1975, já era possível inferir a derrota dos projetos revolucionários de esquerda e o crescimento do mercado de arte no país, paralelo ao “milagre econômico”. Tal crescimento, seguido de uma euforia consumista voltada para a especulação, não se materializou em um aumento da produção ou na melhora das condições do circuito, mas como uma operação de compra e revenda de obras, sendo a maioria dos trabalhos comercializados à época de artistas canônicos do primeiro modernismo, como Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral.

Refletindo sobre esse contexto, Carlos Zilio, José Resende, Ronaldo Brito e Waltercio Caldas escrevem, em 1976, o texto “O boom, o pós-boom e o dis-boom”, no qual postulam uma revisão da ideologia e dos conceitos pelos quais a arte moderna havia se orientado até então. No texto, os autores deixam clara a proposta crítica que estava em jogo, e que se refletia na posição adotada pela Malasartes em relação ao Museu de Arte Moderna do Rio. A ideia de progresso, tida como um dos vértices do pensamento moderno, havia se alterado. O mercado e o próprio sistema capitalista eram agora os condutores da ideologia progressista, que se fazia então carregada de ventos distópicos.

Desmistificada a noção “progressista” do mercado e o processo “moderno” de institucionalização da arte, levanta-se a questão do significado dessa linguagem: considerar a arte moderna como vértice de desenvolvimento de toda a arte apenas confunde e elide o fato de que ele explicita um estágio preciso da dinâmica do capitalismo. O importante é analisá-la como um processo de conhecimento específico estruturado a partir de um momento histórico determinado.

A pertinência do discurso de arte se dá, respondendo a leitura feita até hoje pelo mercado, com uma postura crítica e se propondo a repensar a possibilidade da relação arte/sociedade em um momento de transição. O debate deve, pois, ocorrer no eixo linguagens-leituras, não se podendo defender as elaborações de linguagens contemporâneas sem simultaneamente viabilizar leituras contemporâneas. É essa relação que se trata de politizar, tendo em vista inclusive os seus pontos de contato com o sistema social mais amplo. (ZILIO; RESENDE; BRITO; CALDAS [1976], 2001, p. 196)

Em substituição ao eixo de debate que havia anteriormente, no qual os vértices seriam a arte e a sociedade – pensando a arte como um vetor de construção da sociedade progressista moderna –, os autores inserem uma nova chave, caracterizada pelo eixo “linguagens-leituras”. Nesse sentido, a leitura crítica do sistema da arte tornava-se condição fundamental para a compreensão das novas linguagens artísticas, que ultrapassavam a ideia moderna da arte encerrada em si mesma. Fazia-se necessário, portanto, assumir como leitura para determinada produção experimental a contaminação dos processos artísticos por outras áreas, como sociologia, história, antropologia e mais. Só assim, ao reivindicar novos pontos de contato que não a arte em si, tornava-se possível estabelecer uma outra história crítica, vinculada a um sistema social mais amplo. Analisando o texto “O boom, o pós-boom e o dis-boom” a partir do que foi realizado na Malasartes , podemos tangenciar o que seria esse suposto “museu impresso” e, dessa forma, contrapô-lo ao projeto moderno atrelado ao MAM.

VI.

Em 1980, é publicada A parte do fogo , revista de número único editada por Cildo Meireles, José Resende, João Moura Jr., Paulo Venâncio Filho, Paulo Sergio Duarte, Rodrigo Naves, Tunga e Waltercio Caldas. A publicação em formato jornal e tamanho 60 x 42 cm (fechado) já tornava a leitura daquele impresso um embate entre leitor e suporte, rompendo com a passividade do objeto-livro convencional.

A publicação, que poderia ser vista como um desdobramento das questões apresentadas na Malasartes , deslocava a discussão travada anteriormente para o contexto pós-abertura política, explicitando um olhar crítico para o circuito de arte, que já não era o mesmo de 1975-76. Seu caráter autoral, exposto no editorial, dava à revista um sentido de manifesto. Além disso, em seu texto de abertura, fica clara a tentativa de intervenção no circuito a partir do eixo “linguagens-leituras”, apresentado anteriormente em “O boom, o pós-boom e o dis-boom”.

Há, segundo a revista, um desejo explícito de renovação da crítica associada à ideia moderna de arte e sociedade. “Boa parte da ‘teoria’ da arte é a simples renovação de uma mítica e arbitrária relação arte & sociedade. Forma reflexa onde transitam homologias, reino de um Sujeito onipotente capaz de falar a Arte” (MEIRELES et al. , 1980, p. 1). Percebe-se, portanto, que a publicação propõe, como chave de leitura, uma abordagem individualizada, necessária para embasar um conflito exposto em que as “teorias” não se sobreponham aos trabalhos. No exercício de se pensar as revistas como possíveis “museus impressos”, A parte do fogo parece ir além da Malasartes ao assumir a condição de um novo suporte para as obras e a relação dessas com o texto crítico.

A PARTE DO FOGO é um espaço em que os trabalhos vão agir. Não se trata de transportá-los simplesmente para a folha de papel impressa. Assim como o desenho de um cachimbo não é um cachimbo os trabalhos aqui presentes são outro trabalho, A PARTE DO FOGO. Não são registros da pura aparição, nem querem perpetuar esse instante ingênuo. Distante do fascínio, da sedução, do cego deslumbramento, um outro corpo é materializado a partir de identificações com as questões dos trabalhos. Questões que até agora foram sua única garantia de continuidade querem se tornar agora explícitas. Logo, pressupõem um esforço contra o habitual raciocínio do circuito de arte no Brasil, que confunde tudo para depois achar tudo confuso. Uma confusão tática, acompanhada do séquito de sinais “teóricos” de reconhecimento, de consagração, de “calços culturais”, cumprindo a finalidade de instituir barreiras entre as práticas artísticas. Não respeitá-las, sabotar seus balizamentos, significa trazer à mostra processos similares que podem atravessar o cinema, o teatro, a literatura, a música, a dança, a cultura dita popular. Persistir em fazer da arte uma questão, insistir em pensá-la, encontrá-la no lugar onde se processa. ( MEIRELES et al., 1980MEIRELES, Cildo et. al. Editorial. A parte do fogo , n. 1, mar. 1980, p. 1. , p. 1)

É interessante apontar que o corpo editorial da publicação, diferentemente da Malasartes , é formado por um número igual de críticos e artistas, somando-se a eles o poeta e tradutor João Moura Jr. Vê-se, então, que se estabelece, à primeira vista, um trabalho aos pares: um crítico realiza um trabalho de reflexão, e o artista, a obra. Esse pareamento, no entanto, não é uma continuidade da teoria moderna de reificação da figura do artista a partir do olhar do crítico. O que propõe A parte do fogo é uma paridade entre palavra e imagem. Através de um campo visual e textual, a revista constrói o adensamento de um debate mais amplo sobre a própria condição da imagem e do texto para o pensamento contemporâneo – conforme expresso na sua página de abertura:

Aqui a diferença dos trabalhos elimina a proximidade como índice de identidade imediata. É a aparente distância, essa proximidade distante, que os identifica. Imagens e textos. Espécie de aliados incomuns: unidos pela diferença. Uma identidade em que cada palavra, cada imagem, faz o mesmo percurso por vias diferentes. Aqui, a palavra não descreve a imagem, é uma imagem. E a imagem por si escreve sua palavra. Esta identidade está antes de qualquer palavra ou imagem, ela constitui a linguagem, o embate real, A PARTE DO FOGO. (MEIRELES et al. , 1980, p. 1)

Ao pensarmos A parte do fogo como um “museu impresso”, temos situação na qual o texto e a imagem teriam pesos similares, com o texto crítico se confundindo com o texto poético, num lugar entre o ensaio e a produção artística – um lugar em que a escrita experimental produz pensamento crítico. Na página dedicada a Tunga e Paulo Sergio Duarte, vemos uma foto que ocupa a folha inteira com um detalhe da obra Pálpebras (1979), de Tunga, com duas placas de borracha apoiadas na parede e uma lâmpada entre elas.

Sobre a foto, temos o texto “O estrangeiro da consciência”, de Paulo Sergio Duarte, no qual o autor discorre sobre a impossibilidade de “ver” tudo que está em um trabalho, ressaltando o poder do não dito, das brechas, da incompreensão como questão fundamental à arte. “Mostrar, quase demonstrando, que a ignorância nem sequer imita. A descrição nem sequer copia uma aparência, não alcança a mimeses da tendência, não prolonga um movimento íntimo” (DUARTE, 1980, p. 3). O tom que conduz a escrita de Duarte, sempre no limite entre a poesia e o ensaio, provoca reflexão sobre a obra Pálpebras sem sequer mencioná-la ou descrevê-la. Ao fim, o autor apresenta um poema:

Bem depois

Primeiro mal estar da aurora. Grito Lancinante.

Como queria um cotidiano distante

Das primeiras páginas

Das folhas

Traços como braços numa rima mutilada

À procura de outros braços

Rastros de confusa paisagem rastejam

Convergem

Tudo natureza

[...]

Atravesses em diagonal o espelho

Respire fundo para que sobre a imagem sobre a mesa não reste mais nada

Da noite deste amanhecer

(do desenho – fala-se – como domínio da linha, e fechados como contos)

concluo: eu é que não entro neste elevador. Um gesto covarde. ( DUARTE, 1980DUARTE, Paulo Sergio. O estrangeiro da consciência. A parte do fogo , n. 1, mar. 1980, p. 3. , p. 3)

Para além das qualidades poéticas, podemos pensar o deslocamento que Duarte propõe assumindo uma posição que se confunde à figura do artista, mas que ainda assim segue produzindo pensamento crítico. Outro exemplo dessa relação seria o texto de Paulo Venâncio Filho sobre a obra O sermão da montanha – Fiat lux (1979), de Cildo Meireles. Na página, vemos algumas imagens da instalação, uma pequena descrição da obra, e o poema Fiat Ars , de Venâncio Filho.

Fiat Ars

Sente-se que algo vai acontecer

Tudo que pode acontecer é tudo

Iminência que poderia ainda acontecer

Alguma coisa

É quase inevitável que algo não aconteça

Vai acontecer

Entretanto está acontecendo durante todo o tempo

Durante todo o tempo de todos os segundos, minutos, horas.

Durante todo o tempo de todas as 24 horas

Durante todas as 24 horas de todo o tempo

Onde havia espaço se armazenou

Energia potencial energia em disponibilidade riqueza

Centenas de milhares de fósforos que são um fósforo só

O mesmo fósforo

Do espectador fósforo

O fósforo do trabalho

Espectador que é o trabalho no processo

Evento onde há transformação e redistribuição de energia

Espírito que não pode ignorar seu peso, sua massa, sua energia

seu trabalho

(...)

Tensão pelo desperdício

Tensão policiada

Tensão no olhar

Tensão no caminhar

Tensão no ouvir

Temor de um riscar de fósforo

Temor de um riscar de espelho

Temor de um riscar de ator

Iminência do trabalho achar seu lugar

Iminência de toda energia ser utilizada

Iminência das cinzas reacenderem. (VENÂNCIO FILHO, 1980, p. 7)

O trabalho apresentado por Cildo Meireles consistia em um cubo formado por 126.000 caixas de fósforo e 5 atores, caracterizados como supostos seguranças ou capangas, que com seus óculos escuros e trajes à paisana guardavam aquela carga – pronta para ser detonada a qualquer momento. No chão da galeria, haviam lixas que produziam atrito com as solas dos sapatos dos espectadores. O som desse atrito era amplificado e somado a barulhos de fósforos sendo riscados. Nas paredes da sala, oito espelhos no tamanho 1 x 1,5 m continham, cada um deles, um versículo do Sermão da montanha .

Na revista, o que se vê são algumas fotos dessa ação, que durou exatas 24 horas. Assim, é a partir dessa situação de iminente catástrofe e tensão, presentes no trabalho de Cildo, que Paulo Venâncio Filho produz seu texto. Embora exerça a crítica de arte traçando paralelos como “entropia do trabalho social / ineficiência necessária ao sistema / trabalho que gera atrito / atrito que produz calor / expansão / dilatação / tensão” (Ibidem, p. 7), o texto de Venâncio Filho se afirma como um poema. Nele, suas lacunas, silêncios e espaços criam, junto à imagem, a relação entre crítica e obra, em que um alimenta o outro sem hierarquias definidas.

Nesse mesmo campo ensaístico/artístico também podemos ressaltar a contribuição de Ronaldo Brito sobre a obra de Waltercio Caldas, na qual o crítico disserta sobre uma série de trabalhos realizados pelo artista entre os anos de 1967 e 1978, expostos no livro Aparelhos (1979). Ainda que se refira a esses trabalhos em A parte do fogo , sua contribuição não se atém às obras especificas, mas a toda uma produção que estava contemplada na revista, como vemos no trecho a seguir:

Quem não está nos limites não afirma nem nega, muito menos relativiza: tenciona, corrói, força, insiste e persiste. Trata-se de uma posição que não se define pelo movimento das áreas que a rodeiam, pela interferência que produz nessas áreas. A proposta é trabalhar a diferenciação no conceito de arte, no objeto de arte, no meio de arte. É atuar ambíguo, basculante, fazer mover o chão, o concreto da linguagem e sua inscrição cultural. A questão não é denunciar, evidenciar ou reproduzir a chamada crise, é combatê-la do interior, refazer a sua genealogia, pontualizá-la em cada momento de sua articulação. É agredir sua sutil materialidade ao invés de atacar escandalosamente sua representação ideológica. Trabalhar por assim dizer a costura dos limites, desalinhá-las na solidariedade do tecido. ( BRITO, 1980BRITO, Ronaldo. Aparelhos. A parte do fogo , n. 1, mar. 1980, p. 2. , p. 2)

Completando a publicação, temos uma página destinada a José Resende e Rodrigo Naves, com comentários de Naves sobre a obra pública sem título (1978), realizada por Resende na cidade de São Paulo, na qual o artista inseriu uma grande placa de concreto negro na Praça da Sé. “Não há como apropriar essa laje pela visão, nem como lhe dar as costas. Negro sorriso”, escreve Naves (1980NAVES, Rodrigo. Todo peso. A parte do fogo , n. 1, mar. 1980, p. 6. , p. 6).

E, por fim, há a tradução do texto “A literatura e o direito à morte”, de Maurice Blanchot originalmente publicado no livro A parte do fogo , de 1949 e que dá nome à revista. E outra tradução do texto “Sobre pintura”, escrito por Mark Rothko em 1947, editado junto aos trabalhos, Salto no vazio , de Yves Klein, de 1960, e Bloco de Berlim para Charles Chaplin, de Richard Serra, de 1977.

VII.

Conforme mencionado no início deste ensaio, a posição de tomar as revistas Malasartes e A parte do fogo como “museus impressos” é certamente influenciada pela ideia de museu imaginário , proposta pelo teórico francês André Malraux. Para Malraux, o confronto entre imagens díspares produziria novas relações – surgidas a partir dessas diferenças –, possibilitando leituras que metamorfoseavam o sentido original das obras e as deslocavam de um valor de culto para um valor expográfico. Segundo o autor, tal artifício intui a brecha para a imaginação e outorga um lugar ativo ao espectador, convocando-o a formular as lacunas apresentadas.

Onde a obra de arte não tem outra função senão a de ser obra de arte, numa época em que a exploração artística do mundo prossegue, a reunião de tantas outras obras-primas, e a ausência de tantas outras obras-primas, convoca, em imaginação, todas as obras-primas. Como poderia este possível mutilado não apelar para todo o possível? ( MALRAUX, 2011MALRAUX, André. O museu imaginário . Lisboa: Edições 70, 2011. , p. 11)

Guardadas as devidas distâncias entre o texto publicado originalmente em 1947 e as revistas supracitadas, infere-se, pelo cotejamento das publicações, o alargamento do que fora apresentado pelo teórico francês. Contudo, é possível afirmar que, no que tange seus aspectos curatoriais, tanto a Malasartes quanto A parte do fogo exerceram a prática de sobrepor temporalidades, assuntos e expressões artísticas compondo, em seu conjunto de matérias, uma curadoria que se distanciava da noção moderna teleológica. Desse modo, embora não tenham perdurado enquanto revistas, tornaram-se exemplos paradigmáticos do contexto de mudanças expresso na década de 1970. Assim, para além da intervenção produzida no circuito de arte, é possível afirmar que ambas as publicações – aqui interpretadas como museus impressos – demarcaram uma posição de ruptura diante do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e, consequentemente, de uma noção mais ampla do conceito de museu moderno.

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NOTAS

  • 1
    . Sobre esse fato, Ronaldo Brito relata que, com o crescimento súbito da revista, houve uma divergência entre os editores sobre o rumo da publicação. Nessa ocasião, houve uma proposta de tornar a revista uma publicação do grupo Globo, o que desagradou uma parte dos editores, que desejavam manter uma autonomia editorial e uma linha de edição mais conceitual. Diante do impasse, optou-se por acabar com a revista.
  • 2
    . Frase do técnico de futebol Gentil Cardoso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    1 Maio 2021
  • Aceito
    10 Jun 2021
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