Acessibilidade / Reportar erro

Sou eu que dou as ordens: a autorrepresentação de Heitor dos Prazeres

I give the orders: the self-representation of Heitor dos Prazeres

Yo soy quien da las órdenes: la autorrepresentación de Heitor dos Prazeres

Resumo

Este artigo investiga os elementos combinados por Heitor dos Prazeres para constituir seu autorretrato, a pintura denominada O artista, do acervo do Museu de Arte de São Paulo. Fugindo das representações redutoras e esquemáticas, recorrentes na abordagem de indivíduos negros na história da arte brasileira, Heitor soma atributos para compor uma figura complexa, utilizando elementos legíveis sobretudo para aqueles parte de seu grupo de pertencimento. A pintura parece ser uma obra de exceção em seu legado, que nos impele à reflexão de seu papel na revolução cultural moderna de que fez parte, e que deu origem ao samba urbano carioca. O retrato nos demanda uma leitura curiosa acerca de seus valores e referenciais, para apreender como Heitor se dá a ver assumindo o agenciamento de sua própria imagem.

Palavra-Chave:
História da arte; Retratos; Representação afro-brasileira

Abstract

This essay investigates the elements combined by Heitor dos Prazeres to construe his self-protrait, the painting O artista [The Artist], in the São Paulo Museum of Art collection. Circumventing the reductionist and schematic representations common to approaches to Black individuals in the history of Brazilian art, Heitor adds attributes to compose a complex figure, using legible elements from the group to which he belongs. A work of exception in his legacy, the painting urge us to reflect in the modern cultural revolution in which Heitor took part, and which gave birth to the urban samba of Rio de Janeiro. The portrait requires a curious reading about its values and references to understand how Heitor sees himself while assembling his own image.

Keywords:
Art History; Portraits; Afro-Brazilian Representation

Resumen

Este artículo analiza los elementos que combina Heitor dos Prazeres en la organización de su autorretrato, la pintura llamada El artista, de la colección del Museo de Arte de São Paulo. Al esquivar de las representaciones reduccionistas y esquemáticas, recurrentes en el enfoque de los individuos negros en la historia del arte brasileño, Heitor agrega atributos en la composición de una compleja figura, utilizando elementos legibles, especialmente para quienes forman parte de este grupo de pertenencia. La pintura parece ser una obra de excepción en su legado, lo que nos impulsa a reflexionar sobre su papel en la revolución cultural moderna de la cual formó parte y que dio origen a la samba urbana de Río de Janeiro. El retrato requiere una intrigante lectura sobre sus valores y referencias para aprehender cómo se puede ver a Heitor asumiendo la agencia de su propia imagen.

Palabras Clave:
Historia del arte; Retratos; Representación afrobrasileña

Pudina, mulher com nome de imperatriz, era minha bisavó paterna. Nascida Leopoldina, chegou ao mundo em 1875, quatro anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Sua mãe, Caetana, foi escravizada a vida toda. Dona Rosa, minha vó, veio em 1900, serena e estóica. Seu José, seu marido, contou ao meu pai e demais filhos sobre seu avô, um escravo pertencente à categoria perversa e desumanizante de reprodutor. A descendência é longeva, e minha tia Fia, ou Alaíde, carrega hoje o título de mais velha, do alto de seus 96 anos. É ela quem às vezes me dá vislumbres destas histórias, fragmentos que, embora pequenos, lhe surgem muito nítidos. Penso na história da estirpe, em especial sobre a geração de meus avós, aquela do pós-abolição, a mesma do multiartista Heitor dos Prazeres, nascido em 1898. Figura fundamental no século XX carioca, Heitor viveu e criou atravessado pela religiosidade afro-brasileira e sua relação com a ancestralidade negra. Mas como há inúmeros modos de ser negro, esta conexão não se deu da mesma maneira entre os meus.

Embora meus pais tenham tido contato com o candomblé e com a umbanda, meu pai em especial era, por assim dizer, um pesquisador, com espiadas e passagens por vertentes religiosas e espirituais distintas, como a Pró-vida, a Amorc, o Espiritismo, que o conduziram para um vínculo de décadas com a Rosacruz Áurea, legatária dos cátaros. Somam-se ainda leituras sobre a Antroposofia de Rudolf Steiner e uma grande admiração pela Teosofia da russa Helena Blavatsky e sua A voz do silêncio. Uma lembrança antiga resgata uma incursão de meus pais ao candomblé durante os anos 1970, quando viajaram para visitar o terreiro de uma célebre mãe de santo do Rio de Janeiro, conhecendo ainda seu amplo apartamento com vista para a praia de Copacabana, acompanhados por amigos, também paulistas. Suas orientações tiraram de minha mãe o receio de mar que por um período a acometeu. Eu e minha irmã narramos com naturalidade a história que havíamos ouvido sobre os encontros com essa mulher, que nos parecia imensa e poderosa, para quem de nossa escola francesa para meninas desejasse ouvir. Meus pais foram chamados à escola pela freira-mor, e foi pedido que compreendessem como eram disruptivas tais narrativas mágicas e pagãs, naquele ambiente, cristão e educador, onde éramos as únicas negras. Eles, que não tinham tanto apego ao que de católico a escola oferecia, entenderam mais uma vez que transitávamos em mundos distintos, o negro e o branco, e seria prudente evitar embaralhamentos futuros. Sou então levada a meditar sobre o trabalho perverso e perfeito feito pelos poderes instaurados por aqui. Constato que vivi permeada por desconhecimento do que foi esteio para quem me antecedeu, tento avaliar a extensão do que perdi, que ocos foram produzidos, e como nada ocupou este lugar devidamente. Hoje, o caminho não está na adoção tardia de certa fé, mas na tentativa de contribuir para a maior compreensão da arte negra, e da espiritualidade de matriz africana via obras artísticas, diálogo que aqui tento fazer com Heitor dos Prazeres.

Penso que Heitor viveu algo de um trânsito entre esferas sociais e dimensões culturais diversas. Seus clientes brancos e capazes de incorporar a aquisição de pinturas entre suas despesas talvez apresentassem contrastes com ele. Eventualmente ele próprio pode ter agregado visões e possibilidades materiais de vida distintas das de alguns de seus parceiros, familiares e amigos. No entanto, chama a atenção seu enraizamento em seu território de origem, a área entre o cais do Porto e a Cidade Nova, região chamada por Heitor de “África em miniatura” que se desdobrou na denominação "Pequena África", e nas tradições originárias da diáspora afro-atlântica, como dado de permanência e alimentação contínua de sua obra. Heitor dos Prazeres foi um elo em uma cadeia em que cada pessoa e cada comunidade são liames, mantendo junções a custos muito altos.

O autorretrato de Heitor talvez seja um testemunho de um homem que vislumbrou uma multiplicidade de identidades em si, o que não é dizer pouco se consideramos que ele viveu em uma sociedade que tendia, e ainda tende, a ver o negro de modo estereotipado, redutor e desumanizado. O artista parece ter percebido que era, ele próprio, um ponto de convergência de valores diversos, e provocou sua sobreposição utilizando seu semblante. Na pintura vemos um homem de cabelos e sobracelha grisalhos, apresentado em perfil absoluto, segurando o rosto com uma das mãos, como quem reflete: o sábio. Heitor está cercado por uma rede de intercâmbio e solidariedade articulada pela geração que o antecedeu, e que constituía umacomunidade no Rio de Janeiro que surgiu como produto do movimento migratório da diáspora baiana, que deslocou mão de obra vinda do Nordeste para o trabalho na cultura cafeeira em ascensão no Sudeste.

FIGURA 1
Heitor dos Prazeres, O artista, 1959. Óleo sobre tela, 45,5 x 38,6 cm. Coleção Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP, São Paulo

FIGURA 2
Heitor dos Prazeres, A mulata (Retrato de nativa 1 ), 1959. Óleo sobre tela, 47,5 x 36,2 cm. Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, Rio de Janeiro

Eduardo Alexandre dos Prazeres, seu pai, foi um desses transplantados e combinava talentos como clarinetista, atuante na banda da Guarda Nacional, e marceneiro. Hilário Jovino Ferreira, tio que lhe deu o primeiro cavaquinho, era filho de escravizados libertos pernambucanos, e sua família chegou ao Rio depois de um período em Salvador (DICIONÁRIO Cravo Albin da Música Popular Brasileira, n.d., n.p.). Hilário foi parceiro e colega de homens como João da Bahiana, Pixinguinha, Donga e José Barbosa da Silva, o Sinhô, membros da primeira geração do samba urbano. Fundou diversos ranchos, inclusive o primeiro deles em 1893, chamado Reis de Ouro. A combinação de instrumentos melódicos e harmônicos como flauta, cavaquinhos e violões à percussão ajudou a tornar estas manifestações, que ocupavam o espaço público da cidade, mais palatáveis à sociedade branca, que reprimia o que se apresentava com marcada origem africana. Hilário estabeleceu os papéis de mestre de coreografia, ou mestre-sala, e porta-bandeira, exercendo o papel sob a denominação de Lalau de Ouro.

Os ranchos não podiam desfilar sem passar pela casa das tias baianas, e tanto Heitor quanto Hilário foram frequentadores destes espaços onde as esferas religiosa, celebratória, doméstica e dos vínculos de afeto se cruzavam com a dimensão pública da vida do Rio. Tia Ciata foi uma articuladora a partir de sua casa na Praça Onze, e era Iyá Kékeré, mãe pequena, no terreiro do babalorixá João Alabá de Omolu, um dos principais do Rio de Janeiro. As orientações que ofereceu, e que resultaram na cura de uma ferida persistente do presidente Venceslau Brás, exemplificam sua notoriedade e a importância desse enclave negro na cidade e das negociações que foi capaz de estabelecer para que seu quintal fosse o espaço potente que foi em um período de forte perseguição, em especial a migrantes da Bahia no pós-abolição, portadores das chaves das religiões de matriz afro-brasileira. Para exemplificar e dar sabor ao relato sobre a rede de ligações estabelecida entre esses protagonistas da primeira metade do século XX, entrego aqui que Hilário, com sua reputação de conquistador, se envolveu com Mariquita, filha de Ciata, contra a vontade da Tia, e em dado momento fugiu com Tia Amélia Kitundi, amiga de Ciata.

Os tambores tocados nos terreiros eram os mesmos que animavam as rodas, estimulando a coesão de grupo, as identidades compartilhadas e a busca por segurança. Cenas de dança, carnaval, brincadeiras de crianças e rituais de candomblé são as mais conhecidas dentre os temas de Heitor, e parecem ilustrar o prosaico da vida, quando de fato traduzem uma revolução cultural registrada em tempo real. Sobre a origem deste contexto social, nos diz Moura:

De fato, os baianos se impõem no mundo carioca em torno de seus líderes de candomblé e dos grupos festeiros, se constituindo num dos únicos grupos populares no Rio de Janeiro, naquele momento, com tradições comuns, coesão, e um sentido familístico que, vindo do religioso, expande o sentimento e o sentido da relação consangüínea, uma diáspora baiana cuja influência se estenderia por toda a comunidade heterogênea que se forma nos bairros em torno do cais do porto e depois na Cidade Nova, povoados pela gente pequena tocada para fora do Centro pelas reformas urbanísticas. […] Ali, os baianos forros migrados por opção própria constituíram uma elite no meio popular […] ( MOURA, 1983 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Brasil. Rio de Janeiro, Funarte, 1983, pp. 86-87. , pp. 86-87)

Heitor recebeu como patrimônio o benefício de caminhos abertos por quem o antecedeu e a inserção em um meio cultural vivo e dinâmico, com a presença de mestres inspiradores, sendo que alguns deles o viram tornar-se mestre também. Donga, João da Baiana e Pixinguinha eram filhos das tias do samba da Cidade Nova, respectivamente Tia Amélia do Aragão, Tia Perciliana de Iansã e Tia Raymunda. Portanto, a inserção da imagem de Heitor dos Prazeres na história da arte tem algo de dinástico, reconhece um lugar social de um personagem cuja importância não se dá de modo isolado, pelo contrário, seu protagonismo se dá neste contexto específico, e impulsionado por ele. Naquele círculo, seu valor era reconhecido em um dos raros espaços onde a auto-afirmação de um indivíduo negro e pobre era possível, em meio a uma sociedade de negação sistêmica das individualidades.

No acervo do Museu de Arte Moderna do Rio há uma figura feminina que, por suas feições, acredito ser o pendant do autorretrato, infelizmente identificado no acervo como A mulata. Os retratos, de dimensões semelhantes, mostram o casal Heitor e Nativa Paiva, esta, que se tornou sua segunda esposa, após o falecimento de Glória dos Prazeres. Se o gênero do retrato celebra figuras eminentes, estes são dedicados a indivíduos certamente conhecidos em seu pedaço, respeitados e bem situados socialmente dentre os seus, que possuíam, ademais, certa possibilidade de circulação na sociedade branca, dado o status de Heitor como artista. Mas o dado primeiro é o do grupo de pertencimento. A exibição lado a lado das pinturas caracteriza um núcleo familiar, uma relação de vínculo e afeto, que garante permanência através dos dois filhos do casal, Ionete e Heitorzinho, e perenidade pelos retratos talvez criados para a parede de sua casa. Isto não é pouco já que a representação de afro-brasileiros sem que sejam exemplares da raça, do exótico, ou de ofícios é rara na arte brasileira, e aqui configura sujeitos identificáveis retratados em função de suas vidas compartilhadas e privadas. Nativa aparece adornada por uma faixa nos cabelos, brincos e um colar semelhante ao que vemos em seu retrato fotográfico, que deixa evidente a semelhança de feições. Além desses indicadores, Heitor dá atenção especial ao crespo do cabelo, ao tom da pele, mais claro que o seu, e também aos seios e à silhueta acinturada, modelados dentro do vestido vermelho, que arremata com babados nas mangas. O par de retratos exprime o modernismo de Heitor, na economia formal que adota, nos recursos que aplica para salientar as características pessoais e subjetivas que elege e nas figuras que escolhe, imbuídas de valor social não tradicional.

Boinas são frequentes para a identificação de artistas em obras de arte da tradição, tornando visível um ofício e os talentos necessários para seu exercício. A de Heitor é vermelha, como vemos em outros autorretratos seus, com a diferença de que, nestes, ele se mostra no ato de pintar. Em um deles, seu avental não apenas se soma para a criação de identidade, mas exibe nervuras dinâmicas que parecem tornar visíveis a energia, ou o estado mental, quem sabe os movimentos de sua consciência que acompanhariam o momento de criação. Ao invés do avental, vemos, naquele caso, uma camisa branca cuja fatura é testemunho do desejo do pintor de dar tratamento meticuloso às texturas e de suas intenções de utilizar cada elemento da pintura para acrescentar complexidade à sua identidade. A aplicação de diferentes tons de branco sugere a trama têxtil do linho e dá ao colarinho, punhos e à faixa que acomoda os botões a aparência de tecido duplo. O abotoamento avança com formalidade pelo pescoço, e cada casa é executada com precisão por pincéis finos. Também o cabelo, a barba e o pompom que arremata a boina são executados com pinceladas delicadas que buscam a sugestão dos fios. Quando realizou a obra, o artista já havia tido inserções de prestígio no circuito das artes, tendo sido premiado na primeira Bienal de São Paulo e recebido uma sala especial com curadoria de Sergio Milliet na segunda. É, portanto, um mestre também nas artes visuais, embora celebrado como pintor ingênuo. Lemos, em um periódico de época, o comentário que vê em Heitor as limitações impostas pelo que o crítico denomina de sua natureza “instintiva”, que caracterizaria uma etapa natural na evolução artística, superada por outros artistas supostamente mais experientes e completos. Seu pleno potencial não estaria portanto manifesto, sua ação seria inconsciente, e seu talento, bruto, carente de desenvolvimento:

[...] Heitor dos Prazeres, exemplo opulento de pintura instintiva, “primitivo”, como lhe chamam alguns. Seus quadros denunciam o observador agudo, o homem do detalhe, com capacidade para registrar, uma a uma, as minúcias de qualquer paisagem. Isso representa uma grande habilidade. Contudo, a prática afastará qualquer artista dessa tendência e o “instintivo” cederá lugar a uma arte “construída e consciente” cheia de intenções que faço votos sejam plenamente atingidas2 2 Palavras do crítico de arte Celso Kelly a propósito da Exposição de Artistas Brasileiros no Museu de Arte Moderna do Rio, comentando Heitor e Djanira como artistas que “planam longe da arte abstrata" (KELLY, 1952, p. 9). .

FIGURA 3
Heitor dos Prazeres, Autorretrato no ateliê, 1965.Óleo sobre tela, 45 x 37 cm. Coleção Ary Ferreira de Macedo

A própria denominação de “artista contínuo”, referência ao seu trabalho no poder público, como chegou a ser chamado (NO MUSEU DE ARTE MODERNA..., 1952, p. 5), mostra como seu status de artista surge relativizado, combinado com indicadores de posição social e adendos desqualificadores de suas habilidades. Valladares ([1968] 2000, p.104) evidencia a natureza das expectativas quando afirma que os consumidores de obras classificadas como naif esperam que os artistas “primitivos” "sejam homens de cor, preto, mulato ou índio, procedente da pobreza a fim de que a obra seja autêntica pela origem".

A maior freqüência de oportunidades para artistas de cor ocorre quando estes se identificam a determinado tipo de produção, permitido e aplaudido pelo público consumidor. E esta permissão e aplauso se referem à denominada arte primitiva, situada em termos de docilidade, de poeticidade anódina, na dose exata em que a pintura naïf deve comportar-se no conjunto das coleções ou das decorações de ambientes privados de aparente clima cultural. (Ibidem, p. 101)

O autorretrato de Heitor com sua força de autoafirmação negra não corresponde a estas expectativas de brandura inócua.Em sua trajetória de funcionário público, Heitor veio a ser restaurador do Laboratório de Conservação e Restauração de Quadros de Pintura do Patrimônio Histórico do Ministério da Educação, atividade que desenvolveu no período próximo à execução do seu autorretrato em questão. Sobre seu desempenho, um jornal da época afirma, com a surpresa do jornalista, ter o artista se revelado um “bom restaurador sem precisar estudar um dia sequer” (HEITOR DOS PRAZERES..., 1961, n.p.). De novo, a intuição e o instinto do autodidata em ação.

A condescendência nubla a visão de Heitor como figura exemplar do modernismo, artista que trouxe para a cena uma forma musical que renovou linguagens e atualizou os sistemas estéticos tradicionais a partir da experimentação na música e na pintura. Buscou e encontrou meios de expressão autenticamente brasileiros, livres em suas soluções, sem necessidade de incorporar modelos europeus, sendo expressão cabal dos estatutos do chamado Primeiro Modernismo. Suas letras traziam aquilo que o Manifesto Pau-Brasil chama de “A língua sem arcaísmos, sem erudição”, fazendo cantar “Como falamos. Como somos” (ANDRADE, 1976ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Vozes, INL ; Petrópolis, Brasília , 1976, p. 6., p. 6). O que o diferenciava daquela turma de 1922 era ele ser “de dentro da coisa”, e não o outro, branco, pautado pelo metrônomo da alteridade. O cotidiano está presente como personagem de suas pinturas e cenário de suas músicas, ouvidas naquela cidade onde os desejos de modernização de uma elite resultaram em ação violenta para os que com ele se pareciam. Heitor dos Prazeres é moderno antes de ser pintor.

Se por um lado suas telas ilustram cenas de rua animadas e coloridas, a vivência do espaço público para um homem negro era marcada pela repressão que sobrepunha, à circulação e à convivência, o estigma da vadiagem, classificada como crime. Negros, descendentes de escravos, muitos deixados sem ocupação no pós-abolição, eram percebidos como ameaça pelo seu mero caminhar pela paisagem urbana. Para Heitor, esse medo era concreto, e ele foi detido por vadiagem aos 13 anos, tendo sido enviado à colônia correcional Dois Rios, na Ilha Grande. Daí a vestimenta cuidada se apresentar como antídoto, ferramenta para estabelecer um tipo de presença capaz de facilitar outras medidas de emancipação. O apuro na execução da camisa traduz a atenção à aparência que se repete nas fotografias em que se exibe engomado, em ternos de lã ou linho, com chapéu de palha ou feltro e, por vezes, com charmosos sapatos bicolores, dando provas à reputação de homem elegante. Esse figurino contrasta com a camiseta listrada utilizada em apresentações musicais, e inserida em muitos personagens de suas pinturas, como um uniforme de malandro para consumo de seu público, distinto de seus grupos de pertencimento.

FIGURA 4
Frame do documentário Heitor dos Prazeres, de Antônio Carlos de Fontoura, 1965.

As identidades de malandro, se por um lado são associadas ao samba, por outro, se conectam a visões estereotipadas de marginalidade, rompidas quando o artista insere no autorretrato o requintado homem de família, o pintor, o sábio e o mestre respeitado para construir sua imagem.

Por ser chamado de “malandro”, vive o bohemio, muitas vezes, azucrinado pela polícia que, por deficiencia de conhecimentos da língua, tem a respeito desse vocábulo a mais negra ideia. Incoherente esta polícia, porque durante largo tempo, deixou em completa paz de corpo e de espirito os mais legítimos malandros do Brasil - os antigos senadores e deputados que por nove e tres anos viviam “sem pegar no pesado o dia inteiro...”

Com a valorização comercial do samba, que conquista todos os paladares musicaes, muitos sambistas, como Heitor dos Prazeres, o “diretor” da escola de Oswaldo Cruz, mudam quase completamente de vida, transformando os hábitos, cheios de preocupações elegantes e de bem vestir... Passam a frequentar os studios de gravação e dão palmadinhas de camaradagens ao ventre de afamados maestros e pianistas...Ah! Malandros!... (LÁ em cima, 1931 apud PINHEIRO, 2021 PINHEIRO, Bruno. Moenda de Heitor dos Prazeres, medalha de prata na I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Revista de História da Arte e da Cultura, Campinas, SP, v. 2, n. 2, 2021, pp. 119-141. Disponível em: <https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/rhac/article/view/15139>. Acesso em: 16 mar. 2022.
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
, p. 124)

Nesta reportagem, a elegância é vista quase como uma fantasia, algo adotado para facilitar e propiciar a inserção social e a circulação em ambientes onde não há real pertencimento. Já na pintura, o modo de apresentação de Heitor se relaciona à sua autopercepção, que não precisa ser definida em relação ou a propósito de outrem, diferente de si, a quem caberia a avaliação. A referência às palmadinhas de camaradagem que poderiam ser dadas por malandros nos homens brancos e reconhecidos trai a nota de humor que ridiculariza a convivência destes indivíduos de perfil distinto como iguais. O artista subverte assim as expectativas, colocando-se em um lugar onde não cabe a subordinação.

Na pintura, o cachimbo está posto à boca, mas aparece apagado, fazendo com que seus predicados simbólicos prevaleçam sobre os funcionais, embora possamos supor ser o fumo um hábito do artista, registrado em imagens em que leva o objeto à mão. O cachimbo é associado aos negros mais velhos - minha vó Pudina pitava o seu - e é um frequente atributo nas representações do Preto-Velho, entidade da umbanda.

Não é possível compreender Heitor dos Prazeres sem pensar nas “macumbas” que frequentou e cantou, para usar um termo seu. Para além das imagens fotográficas que nos trazem sua elegante figura, encontrada também em filme, faz falta vê-lo dançando na rua ou cantando no terreiro. O verdadeiro autor das pinturas é também este Heitor, aquele que vive onde o movimento é ordenador, onde rito e festa são permeáveis, e onde as obras plasmam o que foi experienciado nos microcosmos negros que habitou. Pinheiro comenta a transmissão de pontos de umbanda feita por Heitor na Rádio Tupi em 1936 e registrada em reportagem na revista O Cruzeiro (CAVALCANTI, 1936CAVALCANTI, Carlos. Macumba, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 21 mar. 1936, pp. 18-19. apud PINHEIRO, 2021PINHEIRO, Bruno. Moenda de Heitor dos Prazeres, medalha de prata na I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Revista de História da Arte e da Cultura, Campinas, SP, v. 2, n. 2, 2021, pp. 119-141. Disponível em: <https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/rhac/article/view/15139>. Acesso em: 16 mar. 2022.
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
, p. 129), que exemplifica seu comprometimento com a difusão “pedagógica” de práticas combatidas com violência pela polícia:

No estúdio, Prazeres explicava o conteúdo dos pontos e seu caráter religioso para um público composto por indivíduos da alta sociedade da capital federal, empresários, políticos, diplomatas e o proprietário da rádio, Assis Chateaubriand. ( PINHEIRO, 2021 PINHEIRO, Bruno. Moenda de Heitor dos Prazeres, medalha de prata na I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Revista de História da Arte e da Cultura, Campinas, SP, v. 2, n. 2, 2021, pp. 119-141. Disponível em: <https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/rhac/article/view/15139>. Acesso em: 16 mar. 2022.
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
, p. 129)

A espiritualidade está presente nessa tela tanto quanto nas cenas de terreiro que executa representando um homem negro idoso, possível sacerdote de práticas espirituais, que, ao mesmo tempo , alude à presença da entidade capaz de vocalizar relatos do tempo da escravidão ou sintetizar de modo arquetípico a ancestralidade. Muitas casas de famílias negras exibem em suas paredes pinturas retratando um preto de cabelos brancos e pitando cachimbo, e a minha não foi exceção, embora visível na parede como tantas Nossas Senhoras pintadas em outras casas decoram sem ser objeto de devoção.

Considerados como figuras-chave na umbanda, acredita-se que os Pretos-Velhos teriam sido, ao lado dos caboclos e exus, precursores espirituais, ou mitos primordiais da umbanda, embora façam parte de diferentes cultos espiritualistas tais como o candomblé ketu, o candomblé de caboclo, o catimbó, o espiritismo kardecista, o Tambor de Mina do Maranhão ou o culto daimista da barquinha (DIAS; BAIRRÃO, 2011DIAS, Rafael de Nuzzi; BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 20, 2011, pp. 145-176.). Nos primeiros centros de umbanda, foram líderes espirituais e patronos (CONCONE, 2001CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. Caboclos e pretos-velhos da umbanda. In PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, pp. 281-303.).

muitos integrantes deste grupo de fundadores eram, como Zélio, kardecistas insatisfeitos, que empreenderam visitas a diversos centros de “macumba” localizados nas favelas dos arredores do Rio e de Niterói. Eles passaram a preferir os espíritos e divindades africanos e indígenas presentes na “macumba”, considerando-os mais competentes do que os altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no tratamento de uma gama muito ampla de doenças e outros problemas. (BROWN, 1985BROWN, Diana. Uma história da umbanda no Rio. In INSTITUTO de Estudos da Religião (org.). Umbanda e política. Rio de Janeiro: Marco Zero, pp. 9-42, 1985, p. 11)

FIGURA 6
Heitor dos Prazeres, Terreiro de Preto Velho, 1959. Óleo sobre tela, 50 x 65 cm. Coleção particular

No disco de pontos de umbanda que Heitor grava em 1955 denominado Macumba3 3 Disco Macumba, autoria identificada como Heitor dos Prazeres e sua Gente, 1955. Rádio Serviços. Propaganda Ltda. , duas faixas tratam dessa figura religiosa emblemática. A primeira faixa do LP, "Tá rezando", fala do Preto-elho escravo africano, sempre trabalhando, e na denominada "Nego Véio" há referência ao sofrimento tradicionalmente associado a esse personagem.

Tá Rezando, Heitor dos Prazeres

Preto Véio quando canta tá rezando

Preto Véio quando canta tá rezando

Preto Véio quando canta tá rezando

Ôôôôô

Preto Véio quando dança tá cutungando

Ôôôôô

Preto Véio africano

No tempo do cativeiro

Está sempre trabalhando

Com seu povo no terreiro

Nego Véio, Heitor dos Prazeres

Ei, Nêgo Véio está sofrendo

Ei, Nêgo Véio está morrendo

Ei, Nêgo Véio está sofrendo

Ei, Nêgo Véio está morrendo

Ei, Nêgo Véio está cansado

Vive triste, amargurado

De tanta desilusão

Ei, Nêgo Véio já não chora

Nêgo Véio vive agora

Sofrendo do coração

O Preto-Velho pode ser visto como uma versão da subalternidade negra imaginada, da aceitação das mazelas, impressa no imaginário coletivo. Capaz de retornar à realidade terrena para contribuir com os encarnados, é a figura do escravo sacralizado e deificado por processos de inversão simbólica (NEGRÃO, 1996NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Edusp, 1996., p. 145). Relaciona-se ao culto dos ancestrais, em sua interação com os viventes, que na experiência da sociedade escravocrata brasileira compreende aqueles arrancados de sua terra natal. Trata-se de uma figura tão preciosa quanto folclorizada, à maneira das baianas de saias rodadas, mas com a diferença de ser uma imagem religiosa do negro escravo (SANTOS, 2007SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. A construção simbólica de um personagem religioso: o preto velho, Revista TOMO, n. 11, 2007, pp. 161-195. Disponivel em: <Disponivel em: http://espiritualidades.com.br/Artigos/S_autores/SANTOS_Eufrazia_Cristina_Menezes_tit_Construcao_simbolica_personagem_ religioso_o_Preto-Velho.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2022.
http://espiritualidades.com.br/Artigos/S...
).

Para Santos, diferentes representações podem ser associadas à figura do Preto-elho. Pai João seria dentre elas a que representa o griot, o escravo conhecedor das histórias da família, o rei ou príncipe destronado em África (RAMOS, 1954RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Carioca, 1954., pp. 231-232 apud SANTOS, 2007SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. A construção simbólica de um personagem religioso: o preto velho, Revista TOMO, n. 11, 2007, pp. 161-195. Disponivel em: <Disponivel em: http://espiritualidades.com.br/Artigos/S_autores/SANTOS_Eufrazia_Cristina_Menezes_tit_Construcao_simbolica_personagem_ religioso_o_Preto-Velho.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2022.
http://espiritualidades.com.br/Artigos/S...
, p. 165). Seria também o bom escravo que ocupa a imaginação do branco, curador, passivo e humilde, moldado à guisa de santos mártires. Nos romances, é a evidência da lealdade e apreço dos escravizados por seus senhores, construindo a imagem de uma raça branda, inferior e servil. Relaciona-se ainda a representações como o negro velho que faz medo nos contos infantis, como o Bicho-Homem, ou o papa-figo, que andaria sujo e em andrajos, capaz de raptar crianças para lhes devorar o fígado. São os sobreviventes de décadas de trabalho forçado, surgem curvados, portando bengalas ou sentados em tocos de árvores. Por vezes, surge como aquele que vive nas matas, o quilombola rebelde, que representa o confronto com poderes estabelecidos, apresentando o que seria a face exu do Preto-Velho. Esta variante pode se sobrepor ao feiticeiro que tem o conhecimento sobre o poder das plantas, sua manipulação, benzeções e procedimentos de “mandinga”, sendo o principal curador na umbanda, o que queima ervas em seu caldeirão.

A associação dos negros idosos com a feitiçaria pode ser interpretada como uma reminiscência da percepção negativa da herança africana. Publicado em 1881, sete anos antes do nascimento de Heitor dos Prazeres, o romance O tronco do Ipê, de José de Alencar, traz nesta passagem a visão da sociedade branca que demonizava indivíduos e suas crenças:

Saía dela [velha cabana de sapé] um preto velho. De longe esse vulto dobrado ao meio, parecia-me um grande bugio negro, cujos longos braços eram de perfil representados pelo nodoso bordão em que se arrimava. As cãs lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão. Era este, segundo as beatas, o bruxo preto, que fizera pacto com o Tinhoso; e todas as noites convidava as almas da vizinhança para dançarem embaixo do ipê um samba infernal que durava até o primeiro clarão da madrugada. (ALENCAR, 1997, p. 14 apud SANTOS, 2007 SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. A construção simbólica de um personagem religioso: o preto velho, Revista TOMO, n. 11, 2007, pp. 161-195. Disponivel em: <Disponivel em: http://espiritualidades.com.br/Artigos/S_autores/SANTOS_Eufrazia_Cristina_Menezes_tit_Construcao_simbolica_personagem_ religioso_o_Preto-Velho.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2022.
http://espiritualidades.com.br/Artigos/S...
, p. 175)

Se buscamos em Jung (2000JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 250-266. apud LAGES, 2019LAGES, Sônia Regina Corrêa. Preto velho, memória, juventude umbandista, Numen, v. 22, n. 1, 2019, pp. 57-65., p. 63) o arquétipo do Velho Sábio, encontramos a representação da força moral e da capacidade de orientação que torna evidentes os caminhos do destino. Esta visão contradiz a subserviência e passividade contidas no estereótipo redutor.

[…] podemos considerar as entidades do preto e da preta-velha como os portadoras do conhecimento de povos africanos sobre a natureza humana, sobre a capacidade curativa da medicina fitoterápica; de sua capacidade humana de acolher o outro em sua fragilidade e necessidades, da importância que tem os mais velhos por já terem passado por experiências de sofrimento, e, portanto, são detentores, também, sobre o conhecimento de como superá-los. ( LAGES, 2019 LAGES, Sônia Regina Corrêa. Preto velho, memória, juventude umbandista, Numen, v. 22, n. 1, 2019, pp. 57-65. , p. 63)

Ao escolher o Preto-Velho como referência alicerçante para seu autorretrato, Heitor dos Prazeres enfrenta o estigma de ser negro, somado ao de ser vinculado às religiões afro-brasileiras, embora seja capaz de realizar uma obra complexa, que faz convergir diferentes significados codificados na linguagem do retrato. É provocador analisar obras de arte geradas por indivíduos afinados com a apreciação do supranatural no mundo. Ao nos debruçarmos sobre esta produção, devemos realizar o esforço consciente de buscar sua ótica, mais do que seus temas, investigando os conceitos essenciais incutidos em seus trabalhos, e como eclodem em sua estética. Heitor dos Prazeres é exemplo de um criador em grande conexão com preceitos e léxicos, que devemos nos esforçar para acessar devidamente, para que possamos constituir as chaves ainda faltantes na tradição da teoria e da história da arte, talhada por concepções eurocentradas. As noções de ancestralidade, religiosidade e poder, indissociáveis da figura do Preto-Velho, são marcantes nas tradições transmitidas nas comunidades negras.

Encontramos, por exemplo, as palavras de Seu Julião, morador do Rio de Janeiro nos anos 1990, que apresenta seu testemunho quando já levava 81 anos. Ele fala sobre os poderes de seu avô.

[…] meu avô veio da África… ele e mais outro, um companheiro dele que chamava "Camisa Preta", eles eram africanos legítimos! Eles passavam no caminho e ninguém via eles, eles iam trabalhar na fazenda e a enxada trabalhava sozinha e eles voltavam pra casa […] Mas eles não trabalhavam não, quem trabalhava era a ferramenta deles. […] Era reza brava. Eles tinham. […] Se dessem uma coça no escravo, quem tomava a coça era a patroa. O escravo não sentia dor nenhuma… quem sentia dor era a patroa. Era magia negra mesmo, magia negra da África. Isso não tinha aqui não, porque quem trouxe foi eles de lá. Eles eram africanos puros. ( RIOS; CASTRO, 2005 RIOS, Ana Lugão; CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Editora Record, 2005. , p. 70)4 2 Palavras do crítico de arte Celso Kelly a propósito da Exposição de Artistas Brasileiros no Museu de Arte Moderna do Rio, comentando Heitor e Djanira como artistas que “planam longe da arte abstrata" (KELLY, 1952, p. 9).

Em outra história transmitida por gerações, o dono de uma propriedade, vendo que a chuva se aproximava, colocou seus feitores para acelerar o trabalho dos escravizados na colheita do arroz. Uma mulher negra grávida entrou em trabalho de parto e não foi autorizada a deixar o campo, apesar de suas dores, dando à luz ali mesmo, em meio ao arrozal. Quem conta a história nos diz que poderes sobrenaturais transformaram a chuva em uma tempestade muito forte:“Ó, disse que veio aquela tempestade, ó, inundou tudo. Inundou a fazenda, inundou tudo. Disse que virou água pura.” (Ibidem, p. 71) A desumanidade do fazendeiro foi punida com os prejuízos causados com o alagamento de suas terras, pela ação de negros capazes de manipular a natureza a partir dos conhecimentos que guardavam.

Já a história de uma senhora de fazenda, Maria Silvia Paes de Andrade, revela a violência exercida por mulheres brancas, e aquela que podia atingir os filhos das mulheres negras. Chamada de Ana Brava, era conhecida por seus gritos e maus tratos aos escravizados. Um menino negro faleceu depois da sinhá lhe aplicar o castigo de receber, na pele, um caldeirão de óleo fervente. Depois disso, nasceu na sinhá um rabo que atrapalhava seu andar e a fazia utilizar uma cadeira furada para se acomodar sentada. Por vezes a encontravam gritando para o vazio “Tira esse negrinho daqui”, assombrada por visões recorrentes, que, assim como a cauda, foram a penitência aplicada como maldição por negros capazes de lograr tal castigo (Ibidem).

Nas reminiscências passadas oralmente, ainda que os sujeitos sejam ocultos, o mágico preconiza a rebeldia e afirma a força daqueles a quem se atribuiu apenas vulnerabilidade. Aqui, a origem africana é associada a faculdades especiais, e a espiritualidade, à força capaz de criar rupturas no cotidiano de opressão. A negação do trabalho forçado, a vingança das agressões físicas, o corpo que se torna inviolável, tudo era possível a partir desse outro tipo de poder, secreto e encantado. Por meio destas vozes, algo nos alcança com relação ao domínio destes ancestrais sobre forças capazes de impor expiações, potência mobilizada por quem não tolerou abusos. Nesta cadeia, os ancestrais envolvidos nas narrativas estavam em conexão com seus próprios ancestrais. Para além dos mitos fantásticos desfiados para as crianças pela voz das mulheres negras, e que fascinaram a pintora Tarsila do Amaral durante sua infância na fazenda de sua família, havia narrações que traduziam a identidade de vigor daqueles sujeitos negros através do tempo. Essas experiências vivenciadas pelos africanos e afro-brasileiros, narradas a partir de seus prismas, são evidência de sua inteligência, de suas dinâmicas de defesa coletiva e de seu vigor, embora não tenham sido ouvidas devida e integralmente.

Rosa, minha avó, era de Barra Mansa, enquanto seu marido era natural de Barra do Piraí, cidades do Vale do Paraíba Fluminense, região de notável produção de café no século XIX. Meu avô, que decidiu estabelecer-se com a família no interior de São Paulo, primeiro em Bauru e depois em Marília, visitava a cidade do Rio de Janeiro com frequência, sem, no entanto, carregar a esposa ou os sete filhos. Era o homem mais elegante da cidade de Marília, e digamos, namorador. Fantasio sobre os círculos que pode vir a ter estabelecido na primeira metade do século XX em terras cariocas. Possuía espírito empreendedor, era proprietário de pequenas terras arrendadas e de um estabelecimento que alguns parentes dizem ter sido o primeiro hotel da cidade, mas que na visão de outros seria uma pensão. A casa da família tinha água encanada, jardim, copa e despensa cheia, sendo as latas de biscoito ali guardadas mais um indicador de sua situação, nos relatos de minhas tias. Dizem ainda que ele esteve com um presidente brasileiro na antiga capital, talvez Getúlio. Não arquiteto uma audiência, mas quem sabe um encontro em um evento público? Almejo crer que seus padrões de sociabilidade e sua extroversão justificam minha imaginação quando fabulo que frequentou rodas de música e troca na antiga capital. Será que conheceu Heitor dos Prazeres, seu contemporâneo? Quero inventar que sim.

Quando pesquisava sobre Maria Auxiliadora, conversei com seu irmão, João Cândido da Silva, também pintor, hoje falecido, que me contou histórias de sua mãe. Ela e um amigo viajavam para o Rio em busca de música, dança e romance, arrumando namoradas e namorados que ficavam contrariados quando eles escapavam de volta para Minas Gerais. Falamos de uma jovem mulher negra-indígena, de origem popular, antecipando liberdades feministas nas primeiras décadas do século XX. Penso que a força dessa revolução cultural tinha um poder magnetizador para além das fronteiras do Rio, como a São Francisco dos anos 1970.

Meu avô José e Heitor foram homens que viveram dentro e fora do que se convencionou chamar de vida boêmia, que correm o risco de serem enquadrados no que o senso comum caracteriza como malandros, ignorando sua dimensão familiar ou mesmo empreendedora. Não nos chegam muitas narrativas sobre homens negros capazes de estruturar negócios e vida profissional, como foi o caso de ambos. Heitor dirigiu companhias artístico-musicais, para as quais desenhava e executava o figurino aplicando a aptidão herdada da mãe costureira, Celestina Gonçalves Martins, além de gerenciar os circuitos de apresentação. Estabeleceu diálogo com colecionadores de arte, e suas habilidades sociais o situaram na fundação de escolas de samba como Mangueira e Portela. Outro fator de inscrição sua na cultura afro-brasileira era seu apreço pela capoeira, usada em confrontos na defesa de amigos como Noel Rosa.

Quando contemplo o autorretrato de Heitor do acervo do Museu de Arte de São Paulo, vejo um artista a desvelar o indivíduo respeitado dentre os seus, o mestre de seu ateliê e o conhecedor de ritos e ancestral que ele esperava se tornar. Para conceber esta representação, o artista parte de uma concepção de homem que tem valor por sua existência na terra, e que mantém sua contribuição para com sua comunidade a partir de outra esfera, depois de sua partida.

O artista considerava a repetição de temas que pautava suas encomendas limitante. Queixa-se de sentir-se acorrentado por fazer comércio de suas obras e declara sentir-se fracassando por ter de fazer coisas contra sua vontade. Depois de fazer uma obra de modo inspirado, os pedidos de reprodução se repetiam, deixando o artista frustrado.: "De forma que é uma tristeza. O artista que é obrigado a comercializar-se, para atender a situações monetárias, vive acorrentado e acaba morrendo não fazendo aquilo que ele quer".5 2 Palavras do crítico de arte Celso Kelly a propósito da Exposição de Artistas Brasileiros no Museu de Arte Moderna do Rio, comentando Heitor e Djanira como artistas que “planam longe da arte abstrata" (KELLY, 1952, p. 9).

Ao realizar este retrato, pintura de fatura cuidadosa, ele parece ter aplicado suas habilidades com diligência e elevação. A obra parece ser a manifestação dos ímpetos mais genuínos do pintor, obra de exceção em seu legado. O retrato nos demanda uma leitura curiosa acerca de seus valores e referenciais, para apreender como Heitor se dá a ver assumindo o agenciamento de sua própria imagem, combinando elementos de distinção legíveis para os seus. Afinal, como diz a letra de um samba seu, é ele quem dá as ordens.

Sou eu que dou as ordens

Sou eu que dou as ordens pra escola de samba sair

Sou eu que abre a roda pra moçada se divertir

Lá no morro quando é noite de luar

O samba é no terreiro até o sol raiar

Sem eu o morro não canta, sem eu a escola não sai

Sem eu o batuque está sempre naquele vai-ou-não-vai

Sou eu a vida do morro, a luz do sol que nasceu

Sou eu a estrela do dia, sou eu em tudo sou eu

Sou eu que dou as ordens pra escola de samba sair

Sou eu que abre a roda pra moçada se divertir

Lá no morro quando é noite de luar

O samba é no terreiro até o sol raiar

Sem eu o morro não canta, sem eu a escola não sai

Sem eu o batuque está sempre naquele vai-ou-não-vai

Sou eu a vida do morro, a luz do sol que nasceu

Sou eu a estrela do dia, sou eu em tudo sou eu

Referências bibliográficas

  • ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Vozes, INL ; Petrópolis, Brasília , 1976, p. 6.
  • BROWN, Diana. Uma história da umbanda no Rio. In INSTITUTO de Estudos da Religião (org.). Umbanda e política. Rio de Janeiro: Marco Zero, pp. 9-42, 1985
  • CAVALCANTI, Carlos. Macumba, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 21 mar. 1936, pp. 18-19.
  • CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. Caboclos e pretos-velhos da umbanda. In PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, pp. 281-303.
  • DIAS, Rafael de Nuzzi; BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 20, 2011, pp. 145-176.
  • DICIONÁRIO Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Hilário Jovino Ferreira. Disponível em: <Disponível em: https://dicionariompb.com.br/artista/hilario-jovino-ferreira >. Acesso em: 29 abr. 2021.
    » https://dicionariompb.com.br/artista/hilario-jovino-ferreira
  • HEITOR DOS PRAZERES VOLTA AO CARNAVAL..., Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, n. 13, 16 janeiro 1961, n.p.
  • JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 250-266.
  • KELLY, Celso. Exposição de Artistas Brasileiros, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 18.137. 10 maio 1952, p. 9.
  • LAGES, Sônia Regina Corrêa. Preto velho, memória, juventude umbandista, Numen, v. 22, n. 1, 2019, pp. 57-65.
  • LÁ EM CIMA.... Diário da Manhã, Rio de Janeiro, n. 11.081, 1 fev. 1931, p. 1
  • MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Brasil. Rio de Janeiro, Funarte, 1983, pp. 86-87.
  • NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Edusp, 1996.
  • NO MUSEU DE ARTE MODERNA -Exposição de Artistas Brasileiros, Correio da Manhã , Rio de Janeiro, n. 18, 6 junho 1952, p. 5.
  • PINHEIRO, Bruno. Moenda de Heitor dos Prazeres, medalha de prata na I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Revista de História da Arte e da Cultura, Campinas, SP, v. 2, n. 2, 2021, pp. 119-141. Disponível em: <https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/rhac/article/view/15139>. Acesso em: 16 mar. 2022.
    » https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/rhac/article/view/15139
  • RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Carioca, 1954.
  • RIOS, Ana Lugão; CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Editora Record, 2005.
  • SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. A construção simbólica de um personagem religioso: o preto velho, Revista TOMO, n. 11, 2007, pp. 161-195. Disponivel em: <Disponivel em: http://espiritualidades.com.br/Artigos/S_autores/SANTOS_Eufrazia_Cristina_Menezes_tit_Construcao_simbolica_personagem_ religioso_o_Preto-Velho.pdf >. Acesso em: 29 abr. 2022.
    » http://espiritualidades.com.br/Artigos/S_autores/SANTOS_Eufrazia_Cristina_Menezes_tit_Construcao_simbolica_personagem_ religioso_o_Preto-Velho.pdf
  • VALLADARES, Clarival do Prado. O negro brasileiro nas artes plásticas, Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, v. 10, n. 47, maio/jun. 1968, pp. 97-109. In AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento: Negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000 .Catálogo Mostra do Redescobrimento - Brasil +500. São Paulo. Associação Brasil 500 anos.
  • Heitor dos Prazeres (1965), Antônio Carlos da Fontoura, Brasil.

NOTAS

  • 1
    Sugestão da autora
  • 2
    Palavras do crítico de arte Celso Kelly a propósito da Exposição de Artistas Brasileiros no Museu de Arte Moderna do Rio, comentando Heitor e Djanira como artistas que “planam longe da arte abstrata" (KELLY, 1952, p. 9).
  • 3
    Disco Macumba, autoria identificada como Heitor dos Prazeres e sua Gente, 1955. Rádio Serviços. Propaganda Ltda.
  • 4
    Depoimento datado de 27 out. 1995.
  • 5
    Depoimento extraído do documentário Heitor dos Prazeres (1965), de Antônio Carlos da Fontoura. Disponível em: <https://portacurtas.org.br/filme/?name=heitor_dos_prazeres> Acesso em: 29 abr. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2022
  • Aceito
    07 Maio 2022
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br