Resumo
Ainda que não tenha havido um movimento surrealista no Brasil, alguns modernistas se identificaram com a estética e alguns dos princípios norteadores deste movimento, como por exemplo o inconsciente, e realizaram trabalhos no campo da fotomontagem. Contudo, tais experiências foram ofuscadas, inicialmente pelo desejo de criar um imaginário nacional e, posteriormente, pelo espaço conquistado por obras de caráter mais construtivo.
Palavras-Chave:
Modernismo; Surrealismo; Fotomontagem
Abstract
Although Brazil did not see a full surrealist movement, some modernists identified with its aesthetic and certain guiding principles, such as the unconscious, and experimented with photomontage. But these experiences were overshadowed, at first, by the desire to create a national imaginary and, later, by the space conquered by more constructive works.
Keywords:
Modernism; Surrealism; Photomontage
Resumen
Aunque no hubo movimiento surrealista en Brasil, algunos artistas modernistas se identificaron con la estética y los principios rectores de este movimiento, como el inconsciente, y realizaron trabajos en el campo del fotomontaje. Sin embargo, estas experiencias quedaron ocultas, inicialmente por el intento de crear un imaginario nacional y, posteriormente, por el espacio que han alcanzado obras de tipo más constructivo.
Palabras Clave:
Movimiento modernista; Surrealismo; Fotomontaje
Podemos falar em surrealismo feito no Brasil, embora não possamos elencar uma quantidade significativa de artistas e obras capazes de serem denominados surrealistas e que parte da intelectualidade e da classe artística brasileiras fosse bastante crítica em relação ao movimento francês? Porém, o surrealismo é um movimento, não um estilo, e não houve um movimento surrealista no Brasil, mas artistas que atuaram de modo mais independente, como Cícero Dias, Ismael Nery, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Flávio de Carvalho, além de Maria Martins, reconhecida como surrealista em Nova York por Breton e Duchamp em 1943. Nesse cenário, saltam aos olhos as fotomontagens realizadas por artistas como Jorge de Lima, Alberto da Veiga Guignard e Athos Bulcão.
Segundo Robert Ponge, que abordou o surrealismo na América Latina em um dos textos para a mostra “Surrealismo”, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, em 2001, o surrealismo não nasceu em 1924, ano do lançamento da revista La Révolution Surrealiste e da publicação do manifesto de Breton, mas em 1919, com a descoberta dos poderes da escrita automática por Breton e Soupault, ainda que até 1924 o movimento não tivesse uma denominação ou um programa definido (PONGE, 2001PONGE, Robert. Sobre a chegada e a expansão do surrealismo na América Latina. In DAHER, Andrea (org.). Surrealismo. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil , 2001, pp. 42-87., p. 53). Ainda de acordo com Ponge, as informações sobre o surrealismo chegaram na América Latina com extrema rapidez. No Brasil, no segundo número da revista Estética, datada de janeiro de 1925, já se encontra um artigo de Prudente de Moraes Neto comentando uma crítica sobre o surrealismo publicada na França e, no mesmo ano, em Buenos Aires, um grupo de estudantes passou a discutir o movimento (Ibidem, p. 48).
Provavelmente, os primeiros a se interessar pelo surrealismo no Brasil foram Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda, editores da revista Estética. Um pouco mais tarde, em 1927, Ismael Nery entrou em contato com André Breton ao viajar para a Europa, mas o ano mais marcante teria sido 1928, com o lançamento de Antropofagia, tanto o manifesto como a revista, em que Oswald afirmou que “o surrealismo integrava de alguma forma o cabedal antropófago” (apud ibidem, p. 56), ainda que nem todos do grupo estivessem de acordo.
Primitivismo: Um Obstáculo
O desenvolvimento das teorias artísticas modernas no final do XIX e início do XX levou a uma reavaliação substancial das imagens e dos artefatos produzidos por sociedades tribais, bem como a uma reconsideração de seu suposto primitivismo, ainda que tenham persistido generalizações e dificuldades para contextualizar essas produções e, por vezes, até em discernir entre arcaico e tribal. Os ideais modernistas no início do século XX, moldados por princípios de simplificação, redução à essência e à organicidade, muitas vezes se identificaram com os artistas ditos “primitivos”. De um modo geral, esta era uma influência difundida entre toda a vanguarda, excetuando os futuristas.
No contexto das vanguardas históricas, sobretudo para os cubistas - devido a aspectos formais - e para os surrealistas - devido ao interesse pela alteridade -, aquilo que era considerado primitivo parecia potencialmente capaz de promover rupturas com a tradição. Artistas modernistas representantes dos mais diversos estilos, como Picasso, Matisse, Apollinaire, entre outros, colecionaram objetos e artefatos originários do Oriente, da África ou da Oceania - na maior parte das vezes ignorando seu contexto funcional ou ritualístico original - como se estes pudessem constituir um reservatório de novas formas, composições, cores e soluções inusitadas, além de manifestar conteúdos eróticos, exóticos ou inconscientes.
Foi durante as primeiras décadas do século XX que a pintura, a escultura e a gravura modernistas foram mais influenciadas pela arte africana e do Pacífico. A obra de Gauguin já havia sido moldada por referências da arte bretã medieval, gravuras japonesas e arte da Polinésia. Picasso visitou o Museu Etnográfico do Trocadéro em 1907, e vemos seu impacto em Demoiselles d’Avignon; membros do Die Brücke, como Emil Nolde e Kirchner, também se inspiraram na arte e nos artefatos que puderam ver em museus etnográficos e viagens; os surrealistas foram atraídos por variados objetos da América, da África e do Pacífico, que também inspiraram artistas como Modigliani. Max Ernst voltou-se para a arte mexicana, e Brancusi se inspirou tanto na arquitetura vernácula romena como na arte africana, dentre tantos outros exemplos desse intenso interesse dos modernistas por aquilo que acreditavam ser o “primitivo”.
Em 1905, Braque já havia comprado uma máscara africana das mãos de um marinheiro, Vlaminck comprou três esculturas do Daomé e da Costa do Marfim e, posteriormente, adquiriu mais duas esculturas e uma máscara que acabou vendendo para Derain, que por sua vez a pendurou em seu ateliê em Montmartre, onde foi vista por Picasso. Em 1906, Matisse comprou sua primeira obra africana, originária do Congo, em um antiquário chamado Le Père Sauvage, e a levou para a casa de Gertrude Stein, onde Picasso a viu. A partir de 1907, Picasso começou a frequentar o Museu do Trocadéro na companhia de Derain e de Apollinaire, que o apresentou a Carl Einstein, e, entre 1906 e 1910, começou a colecionar cartões postais com imagens etnográficas editadas pelo fotógrafo e documentarista Edmond Fortier.
A célebre fotografia de Picasso rodeado por esculturas e objetos africanos em seu ateliê do Bateau-Lavoir em 1908 foi realizada pelo jornalista norte-americano Frank Gelett Burgess e sabe-se que, na época, Picasso e Apollinaire frequentavam uma loja no Boulevard Raspail onde encontravam objetos da África e da Oceania, bem como pinturas de artistas naïf. Em 1912, em uma viagem a Marselha na companhia de Braque, Picasso comprou mais peças, e sua coleção foi ainda ampliada com a aquisição de outras obras apresentadas a ele por Paul Guillaume. Em dezembro de 1913, expôs na Neue Galerie, em Berlim, com a participação de Carl Einstein, que escreveu o prefácio para o catálogo, mostrando obras recentes ao lado de esculturas africanas, numa exposição intitulada “Picasso - Negerplastik”.
Outra exposição, organizada por Alfred Stieglitz em Nova York entre 1914 e 1915 e intitulada “Picasso-Braque”, reunia obras destes dois artistas ao lado de peças do Gabão e objetos pré-colombianos de origem mexicana. Ao final de 1915, Picasso participou, ao lado de artistas como Modigliani e Matisse, entre outros, de uma exposição na qual suas obras eram confrontadas com 25 esculturas pertencentes à coleção de Paul Guillaume.
Os livros Arte negra e da Oceania (1919) e Esculturas negras e da Oceania. Colônias francesas e Congo belga (1923), publicados respectivamente por Henri-Georges Clouzot e André Level, continham imagens de obras pertencentes à coleção de Picasso. Não que este tenha sido um colecionador organizado ou tivesse desenvolvido um conhecimento aprofundado. Ele mesmo afirmava não saber reconhecer a procedência de uma peça, não as catalogava ou pesquisava sua origem. Sua coleção não era composta por itens excepcionalmente relevantes ou raros, tratava-se de uma seleção de objetos que chamaram sua atenção e foram adquiridos sobretudo pela engenhosidade com que solucionavam algum problema plástico de seu interesse.
A tendência primitivista abarcava formas de criatividade que tinham como denominador comum aquilo que era percebido como remoto, ou antagônico, ao mainstream europeu. O leque de formas artísticas alternativas que os artistas colecionavam e exploravam era amplo: pinturas pré-históricas, figuras pré-colombianas, pintura naïf, arte feita por crianças e doentes mentais, art brut, arte popular.
Contudo, esta noção de margem, ou periferia, quando aplicada à obra de intelectuais de vanguarda brasileiros, é problemática. O conceito europeu de primitivo estabelece uma relação binária entre a civilização europeia e seu outro. E, aos olhos de muitos europeus, o Brasil constituía exatamente este outro. ( GREET, 2015 GREET, Michelle. Devouring Surrealism: Tarsila do Amaral’s Abaporu, Papers of Surrealism, n. 11, 2015, pp. 1-39. Disponível em: <Disponível em: https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/63517395/surrealism_issue_11.pdf >. Acesso em: maio 2022.
https://www.research.manchester.ac.uk/po... , p. 15, tradução minha)1 1 Esta passagem foi citada por Isabella Rjeille, no texto “Ficções tropicais”, que se encontra no catálogo Maria Martins, desejo imaginante (RJEILLE, 2001). Uma das artistas mais associadas ao surrealismo, Maria Martins desenvolveu a maior parte de sua carreira no exterior e enfrentou bastante resistência entre os brasileiros.
Segundo Oswald de Andrade, o primitivismo, que na França aparecia como exotismo, era para nós no Brasil autêntico primitivismo e, para conhecê-lo, os modernistas paulistas adotaram a prática das viagens pelo país, praticada por vários representantes do surrealismo europeu, porém com uma intenção diferente. Enquanto o europeu buscava a alteridade, os brasileiros empreendiam tais expedições desejando conhecer a fundo sua própria cultura. Em 1924, por ocasião da visita de Blaise Cendrars ao Brasil, um grupo de artistas e escritores viajou ao Rio de Janeiro no Carnaval e a Minas Gerais na Semana Santa. Para muitos, foi Cendrars o responsável por essa redescoberta do Brasil, uma vez que a Poesia Pau-Brasil e a temática antropofágica foram gestadas após tais viagens, assim como o aprofundamento de Mário de Andrade no folclore e o processo que desaguaria em Macunaíma (JACQUES, 2021JACQUES, Paola Berenstein. Pensamentos selvagens, montagem de uma herança, 2. Salvador: Edufba, 2021., p. 241). Benjamin Péret foi igualmente acolhido pelos modernistas, mas com algumas ressalvas, justamente por ser um representante do surrealismo.
Em suas viagens ao Brasil, Péret
[…] redigiu um ensaio sobre o quilombo de Palmares, circulou pelo Norte e pelo Nordeste, realizou viagens para reservas indígenas, adquiriu objetos de arte indígena e arte popular e realizou anotações que lhe permitiram escrever vários artigos sobre os índios brasileiros. (PONGE, op. cit., p. 80)
Foi Péret quem apresentou Murilo Mendes a Breton, e o encontro com o surrealismo foi para Mendes um coup de foudre:
Abracei o surrealismo à moda brasileira, tomando dele o que mais me interessava: além de muitos capítulos de cartilha inconformista, a criação de uma poética baseada na acoplagem de elementos díspares. Tratava-se de explorar o subconsciente; tratava-se de inventar um outro “frisson nouveau”, extraído à modernidade; tudo deveria contribuir para uma visão fantástica do homem e suas possibilidades extremas. ( MENDES, 2001 MENDES, Murilo. André Breton. In Surrealismo - Labirinto surrealista, textos escolhidos. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 113-114. , p. 114)
Murilo Mendes também ficou encantado com Max Ernst e seu livro de fotomontagens La Femme à 100 têtes, segundo ele, fundamental para o desenvolvimento de sua poesia. Porém, para Oswald, a antropofagia deveria ser uma reação crítica à dominação artística europeia e deveria se dar não pela negação das ideias estrangeiras, mas pela sua devoração, “em particular aquelas das jovens vanguardas europeias”, pela prática de “se apropriar delas, incorporá-las e transformá-las” (ANDRADE apud JACQUES, op. cit., p. 384).
Sendo assim, não é de se estranhar que poucos autores tenham se debruçado na análise de pinturas de Tarsila do Amaral do ponto de vista do surrealismo. De acordo com Michele Greet, Tarsila reprovava abertamente o surrealismo, e tal atitude teria influenciado a recepção de sua obra (op. cit., p. 2). O grupo de Tarsila pretendia ser autêntico e independente em relação às vanguardas europeias.
Diga-se de passagem, a reação negativa em face do surrealismo não é uma peculiaridade dos brasileiros. Clement Greenberg também o considerava um fenômeno especificamente francês, sobretudo devido à língua e às referências literárias. Greenberg sempre recusou associações entre Jackson Pollock e o surrealismo, embora o próprio artista tenha feito menções à importância de seu convívio com os surrealistas franceses radicados em Nova York, que o apresentaram ao automatismo, para que ele tivesse chegado às suas drip paintings.
A Montagem e a Colagem: Fenômenos Europeus?
A emergência da fotomontagem se deu sobretudo com o dadaísmo, embora talvez ela não tivesse existido sem o cubismo. Adotando como estratégia o nonsense, as fotomontagens dadaístas apresentavam uma visão crítica da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa. Dadaístas, como Hannah Höch, ou soviéticos, como Rodchenko, foram alguns dos primeiros a se interessar por fotografias, e imagens de um modo geral, encontradas na mídia.
Nesse momento, havia também a intenção de romper com a ideia de obra como totalidade, como unidade coerente, e a fotomontagem representava justamente uma estratégia para trabalhar com a descontinuidade.
A estratégia da montagem está intimamente ligada ao pensamento que estruturava os periódicos surrealistas, como a revista Documents, que procedia por aproximações inusitadas entre imagens e textos sobre objetos de diferentes períodos e procedências e, até mesmo, que ocupassem posições diversas na hierarquia do que se considera arte popular ou erudita.
Um desenho de Delacroix reproduzido a algumas páginas dos hediondos ex-votos da Notre-Dame de Liesse, ou uma paisagem de Constable mostrada não longe de uma fotografia de acidente de estrada; ou ainda um quadro de Fernand Léger próximo a múmia de um cachorro. No fim das contas, contudo, Documents deve ser pensada como uma autêntica revista de arte, mas no sentido preciso, no sentido ativo, não temático, de que certa arte das aproximações, das montagens, dos esfregamentos, das atrações de imagens, em suma, certo estilo de pensamento figural duplicado de certo estilo de pensar as figuras - presidia verdadeiramente a composição, a forma dessa revista. ( DIDI-HUBERMAN, 2015 DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe, ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. , pp. 26-27)
Segundo Paola Berenstein Jacques, vários poemas que compõem o livro Pau-Brasil são exemplos claros de montagens de fragmentos. Segundo Jaques,
Oswald, para tratar das questões mais primitivas, consideradas como ideias em estado selvagem, operava de forma totalmente moderna, sobretudo pelo uso da técnica da montagem, por choque entre fragmentos diferentes, por operações de estranhamento, por nexos imprevistos. (JACQUES, op. cit., p. 261)
O mesmo poderia ser dito do Manifesto e da Revista da Antropofagia, que, efetivamente, exploram uma série de recursos das vanguardas artísticas. Alberto da Veiga Guignard, Jorge de Lima e Athos Bucão realizaram fotomontagens surrealistas, com referências ao universo onírico e situações insólitas. Porém, não se refletiu muito sobre estes trabalhos, que foram ofuscados pelo fato de o surrealismo não ter sido assimilado pelo modernismo brasileiro mais canônico.
As fotomontagens de Jorge de Lima foram reunidas no livro A pintura em pânico, em 1943. Tadeu Chiarelli comenta que, embora o título esteja relacionado a um livro anterior, Poesia em pânico, que Jorge de Lima e Murilo Mendes publicaram juntos em 1938, a menção ao pânico da pintura pode dar lugar a uma outra interpretação:
Não deixa de indicar que o autor devia possuir a consciência do que a fotomontagem poderia representar para o devir da arte na sociedade burguesa: a desestruturação do conceito de arte como obra única, realizada por um autor determinado a partir da concepção de formas originais. As fotomontagens de Jorge de Lima, mesmo fiéis ao ideário já, de alguma maneira, consagrado pelos surrealistas europeus, guardavam - pelo menos potencialmente - o desejo de desestruturarem, ou ajudar na desestruturação da logica burguesa, apresentada na pintura como única modalidade “digna” de arte visual. ( CHIARELLI, 2003 CHIARELLI, Tadeu. A fotomontagem como introdução à arte moderna: visões modernistas sobre a fotografia e o surrealismo, Ars, São Paulo, v. 1, n. 1, 2003, pp. 67-81. , p. 79)
A criação e a recepção das fotomontagens de Jorge de Lima foram cuidadosamente abordadas por Annateresa Fabris no artigo “Fotomontagem e surrealismo: Jorge de Lima”, publicado em 2002. Segundo Fabris, A pintura em pânico recebeu críticas bastante negativas, como no artigo “Fotomontagem de imoralidades”, de Tristão Ribas, a começar pela técnica, que seria uma besteira feita às custas dos outros. Mário de Andrade, menos refratário, “atribuía uma função pedagógica à fotomontagem” (FABRIS, 2002, p. 1), uma espécie de iniciação ao modernismo e ao cubismo.
Embora Jorge de Lima não tenha realizado um grande número de fotomontagens, Fabris acredita que a fragmentação e a desarticulação faziam realmente parte de seu universo poético.
Por isso, mesmo tendo como modelo o Max Ernst de La Femme 100 têtes (1929) e do romance-colagem Une Semaine de bonté (1934), o artista não se aproxima da fotomontagem como de uma experiência casual. Sua motivação profunda está diretamente vinculada à busca constante de fragmentos aparentemente desconexos, aproximados pela memória que ignora a passagem do tempo, num processo que estabelece um continuum entre poesia, pintura e fotomontagem. (Ibidem, p. 2)
No caso de Athos Bulcão, que realizou montagens bem posteriormente, já no início da década de 1950, Chiarelli se pergunta se esta ocorrência foi extemporânea pelo fato de a estética surrealista sempre ter ficado à margem no Brasil e se, já na década de 1950, tais produções não teriam sido obscurecidas por não se adaptarem à visão grandiloquente de brasilidade, visível nas pintura de Di Cavalcanti, Portinari e outros, ao mesmo tempo que, igualmente, não se adaptavam às preocupações formais dos novos grupos de artistas e intelectuais, ligados às tendências construtivas do período (CHIARELLI, op. cit., p. 75).
Outro fator levantado por Chiarelli para compreender o porquê de a reverberação das fotomontagens no Brasil ter sido tão pequena é o fato de a própria fotografia ser uma prática ainda incipiente no país quando o modernismo surgiu. Enquanto em Nova York e Paris a estreita relação entre fotografia e vanguardas já era recorrente, sobretudo devido às iniciativas de Alfred Stieglitz, no Brasil, a fotografia era praticada sobretudo como registro, familiar ou jornalístico, vindo a ser considerada uma expressão artística comparável ao desenho, à pintura, à gravura e à escultura apenas posteriormente. Apesar de Mário de Andrade, Flávio de Carvalho e Vicente do Rego Monteiro, dentre poucos, terem realizado fotografias, eles mesmos não a viam como arte. Foi apenas na década de 1950, em grande parte graças aos fotoclubes, que a fotografia teve seu status reconhecido.
Surrealismo Fora De Hora
Quando Maria Martins voltou ao Brasil, em 1949, foi inaugurada, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a exposição Do figurativismo ao abstracionismo. “A mostra evidencia e alimenta uma discussão que se acirrava no Brasil: a oposição entre artistas que produziam obras de vertente figurativa e os que se interessavam pela abstração, fosse lírica ou geométrica” (LOPES, 2021LOPES, Fernanda. Não se esqueçam que vocês vieram dos trópicos. In RJEILLEE, Isabella (org.). Maria Martins, desejo imaginante . São Paulo: MASP , 2021, pp. 41-49., p. 45)2 2 Cf. também FERREIRA (2013). .
Fernanda Lopes comenta que, nos Estados Unidos, onde Maria Martins viveu e trabalhou por tanto tempo, a tensão entre figurativos e abstratos não era significativa, mas que, no Brasil, onde se buscava construir uma identidade nacional, este seria um motor comum às duas vertentes:
[…] as discussões sobre uma arte brasileira, a necessidade de nos libertarmos da influência e dos padrões estrangeiros e a ideia de antropofagia, levantadas por Oswald de Andrade, têm, no uso da imagem, uma base importante de estruturação. (Ibidem, p. 45)
Por sua vez a abstração geométrica, ou seja, a arte de vertente construtiva, era vista como uma “superação de nosso subdesenvolvimento, de nosso atraso, estava atrelada ao processo de reconstrução e reafirmação do nosso passado através do nosso próprio olhar” (Ibidem, p. 46).
Apenas em 1956 foi montada, no MAM do Rio de Janeiro, uma grande exposição de Maria Martins, cujo catálogo continha textos de Breton, Murilo Mendes e Péret.
Embora ela frequentemente recusasse uma conexão direta com o movimento surrealista, as formas antropomórficas emaranhadas de suas esculturas, bem como sua aproximação singular ao desejo e ao erotismo feminino são contribuições cruciais para a sensibilidade surrealista e seus desdobramentos para além da Europa e dos Estados Unidos. ( PEDROSA; MARTINS, 2021 PEDROSA, Adriano; MARTINS, Heitor. Maria Martins no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo: MASP , 2021. , p. 13)
E, ainda mais tarde, em 1961, Sergio Lima reuniu um grupo de artistas surrealistas do Rio e de São Paulo, com apoio de Breton e de seu grupo, além de Maria Martins e Flávio de Carvalho, organizando finalmente a exposição “A mão mágica e o andrógino primordial”, em 1967. Além da exposição, Sergio Lima organizou, com Leila Ferraz Lima e Pedro Antônio Paranaguá, a revista A Phala, lançada pela Fundação Armando Álvares Penteado. Ao voltar ao Brasil, Maria Martins não viu seu trabalho ser bem recebido, nem pela crítica, nem por outros artistas. “A primeira lamentava que sua arte não fosse claramente ligada a uma corrente, de preferência geométrica: já os mestres das tintas, à procura de tons locais, rejeitavam o que não fosse exclusivamente ligado a termos nacionais” (CAVALCANTI, 2021CAVALCANTI, Auro. Maria Martins na Casa Roberto Marinho. In RJEILLEE, Isabella (org.). Maria Martins, desejo imaginante. São Paulo: MASP, 2021., p. 17).
Essas ocorrências, tão posteriores ao surgimento do surrealismo na França, sugerem que, de algum modo, o surrealismo foi reprimido pela crítica e pelos artistas, que durante muito tempo foram movidos pelo desejo de construir um imaginário nacional que excluía outras experiências, ainda que algumas produções, como as fotomontagens de Jorge de Lima e Guignard, pertençam claramente a essa estética. “Obedecendo tal proposição, todo o desenvolvimento da produção gráfica, pictórica ou escultórica tendente à não-figuração foi excluída do âmbito modernista” (CHIARELLI, op. cit., p. 67). Além disso, segundo Chiarelli, esse esforço por criar tal imaginário excluía a prática de linguagens artísticas mais experimentais, como a colagem, a fotomontagem, ou mesmo a fotografia.
Ignorando toda produção artística burguesa do século anterior e dos primeiros anos do século XX no Brasil, os modernistas propuseram uma linha de conduta para a arte brasileira onde as manifestações privilegiadas deveriam ser a pintura e a escultura (duas modalidades consagradas pela cultura burguesa ocidental). Mas uma escultura e uma pintura que, mesmo experimentando certos estilemas vanguardistas, deveriam ficar restritas aos limites da figuração da paisagem física e humana do país, sem nunca enveredar por especulações rumo a soluções não-figurativas. (Ibidem, p. 78)
Apesar de o Manifesto Antropofágico ter algo do espírito surrealista, como o interesse pelo primitivo e pela arte popular, bem além da irreverência, e a insubordinação ao academicismo, os modernistas brasileiros eram nacionalistas, diferentemente dos franceses, que viviam uma crise de falta de sentido após a Primeira Grande Guerra não compartilhada pelos brasileiros. O contexto brasileiro não oferecia as condições necessárias para que brotasse um surrealismo provocado pelo tédio ou pela descrença. Nem no período do fascínio pelo local e pelo popular, nem a partir do desenvolvimentismo, com a aposta na arquitetura moderna e na abstração geométrica.
Jorge de Lima, fotomontagem para o livro A pintura em pânico, 1943. Fotomontagem, 90 x 60 cm. Acervo IEB-USP
Alberto da Veiga Guignard, sem título, 1931. Técnica mista, 23 x 15 cm. Coleção Isaac Krasilchik.
Alberto da Veiga Guignard, Evocação, 1931. Técnica mista, 25 x 19 cm. Coleção Isaac Krasilchik.
Referências Bibliográficas
- CAVALCANTI, Auro. Maria Martins na Casa Roberto Marinho. In RJEILLEE, Isabella (org.). Maria Martins, desejo imaginante. São Paulo: MASP, 2021.
- CHIARELLI, Tadeu. A fotomontagem como introdução à arte moderna: visões modernistas sobre a fotografia e o surrealismo, Ars, São Paulo, v. 1, n. 1, 2003, pp. 67-81.
- DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe, ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
- FABRIS, Annateresa. Fotomontagem e surrealismo: Jorge de Lima, Revista USP, São Paulo, n. 55, set./nov. 2002, pp. 143-151.
- FERREIRA, Glória. Figuração x abstração: Brasil no final dos anos 40. São Paulo: Instituto de Arte Contemporânea-IAC, 2013.
- GREET, Michelle. Devouring Surrealism: Tarsila do Amaral’s Abaporu, Papers of Surrealism, n. 11, 2015, pp. 1-39. Disponível em: <Disponível em: https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/63517395/surrealism_issue_11.pdf >. Acesso em: maio 2022.
» https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/63517395/surrealism_issue_11.pdf - JACQUES, Paola Berenstein. Pensamentos selvagens, montagem de uma herança, 2. Salvador: Edufba, 2021.
- LOPES, Fernanda. Não se esqueçam que vocês vieram dos trópicos. In RJEILLEE, Isabella (org.). Maria Martins, desejo imaginante . São Paulo: MASP , 2021, pp. 41-49.
- MENDES, Murilo. André Breton. In Surrealismo - Labirinto surrealista, textos escolhidos. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 113-114.
- PEDROSA, Adriano; MARTINS, Heitor. Maria Martins no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo: MASP , 2021.
- PONGE, Robert. Sobre a chegada e a expansão do surrealismo na América Latina. In DAHER, Andrea (org.). Surrealismo. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil , 2001, pp. 42-87.
- RJEILLEE, Isabella. Ficções tropicais. In RJEILLEE, Isabella (org.). Maria Martins, desejo imaginante . São Paulo: MASP, 2021.
Notas
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1
Esta passagem foi citada por Isabella Rjeille, no texto “Ficções tropicais”, que se encontra no catálogo Maria Martins, desejo imaginante (RJEILLE, 2001). Uma das artistas mais associadas ao surrealismo, Maria Martins desenvolveu a maior parte de sua carreira no exterior e enfrentou bastante resistência entre os brasileiros.
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2
Cf. também FERREIRA (2013).
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3
Rosa Gabriella de Castro Gonçalves é doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Professora Associada da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde também atua no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Em 2011, realizou um pós-doutorado no Departamento de História da Arte da Stanford University. Em 2016 publicou, pela Edufba, o livro Kant, Greenberg e a questão do formalismo da arte.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Set 2022 -
Data do Fascículo
Ago 2022
Histórico
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Recebido
04 Maio 2022 -
Aceito
25 Maio 2022