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POLÍTICAS DA INDIGESTÃO (ANTROPOFAGIA REVISITADA)

POLITICS OF INDIGESTION (ANTHROPOPHAGY REVISITED)

POLÍTICAS DE INDIGESTIÓN (ANTROPOFAGIA REVISTA)

Resumo

A antropofagia, no contexto brasileiro dos anos 1920, foi elaborada a partir da ideia de uma devoração de referências externas como estratégia defensiva contra a dominação cultural. Consistiu na assimilação crítica de elementos heterogêneos, pois implicava escolha, edição e transformação. Indigestão, por sua vez, sugere que a antropofagia é um conceito potencialmente mistificador e, portanto, problemático. A partir de alguns estudos de caso, esta reflexão visa retraçar brevemente algumas das tensões históricas e atuais da antropofagia, tomando qualquer consenso como falso, pois oculta os conflitos em sua aparência de sociabilidade homogênea e dócil, como as forças da miscigenação (no debate sociopolítico dos anos 1920) e da globalização (na atualidade) buscam produzir.

Palavras-Chave:
Antropofagia; Denilson Baniwa; Tarsila do Amaral; João Loureiro; Lyz Parayzo

Abstract

Anthropophagy was elaborated in the Brazilian context, starting in the 1920’s, upon the idea of violently devouring external references as a defensive strategy against cultural domination. It consisted in the critical assimilation of heterogeneous elements, implying choice, editing and transformation. The notion of indigestion seeks to analyse anthropophagy as a potentially mystifying concept, and therefore, problematic. From a few study cases, this reflection aims to briefly retrace some of anthropophagy historical and present tensions. Indigestion takes consensus as false coverings to hide conflicts in its appearance of docile and homogeneous sociability as the forces of miscegenation (in the 1920’s socio-political debate) and globalization seek to produce.

Keywords:
Anthropophagy;; Denilson Baniwa; Tarsila do Amaral; João Loureiro; Lyz Parayzo

Resumen

La antropofagia, en el contexto brasileño de la década de 1920, se elaboró a partir de la idea de devorar referencias externas como una estrategia defensiva contra la dominación cultural. Para ello, se basaba en una asimilación crítica de elementos heterogéneos, pues implicaba elección, edición y transformación. La indigestión, a su vez, indica que la antropofagia es un concepto potencialmente desconcertante y, por lo tanto, problemático. A partir de estudios de caso, esta reflexión pretende rastrear brevemente algunas de las tensiones históricas y actuales de la antropofagia, considerando como falso cualquier consenso, ya que esconde conflictos en su apariencia de sociabilidad homogénea y dócil, como buscan producir las fuerzas del mestizaje (en el ámbito sociopolítico de los años 1920) y la globalización (actualmente).

Palabras Clave:
Antropofagia; Denilson Baniwa; Tarsila do Amaral; João Loureiro; Lyz Parayzo.

Quando o artista Denilson Baniwa (1984) declara, em 2021, ser um artista “antropófago” e associa a isso a necessidade de descolonizar a arte ocidental, percebemos que a antropofagia e os seus pressupostos defensivos contra a cultura hegemônica – consequentemente contra os seus processos de silenciamento, aculturação e exclusão – permanecem em disputa. Essa ideia é reiterada em um poema de sua autoria, no qual aponta a “falsidade” da antropofagia modernista brasileira. O poema de Baniwa (2021) termina mencionando uma “longa digestão”:

aqui jaz o simulacro macunaíma

jazem juntos a ideia de povo brasileiro

e a antropofagia temperada

com bordeaux e pax mongólica

que desta longa digestão renasça Makünaimî

e a antropofogia [sic] originária

que pertence a Nós

indígenas

Baniwa fala em uma “longa digestão”, mas poderíamos tomá-la como uma longa indigestão, isto é, como uma política da indigestão. Esta reflexão propõe revisitar a teoria cultural da antropofagia desenvolvida no contexto brasileiro, e a ideia de indigestão, para focalizar algumas de suas tensões históricas e atuais. A antropofagia, como teoria cultural no âmbito de relações assimétricas de poder, consiste na devoração do outro, em estratégia defensiva contra a dominação. Trata-se da assimilação crítica de elementos heterogêneos e conflitantes, ou seja, é mais do que uma adesão ao discurso hegemônico, pois implica contradição, escolha, edição e transformação. Para esta reflexão, princípios de harmonia serão colocados sob suspeição: elementos formais e emblemas sociais serão vistos em seus antagonismos, cujas operações baseadas no choque não são sublimadas. A noção de indigestão vai endereçar trabalhos artísticos contemporâneos que produzem situações disruptivas, muitas vezes desconfortáveis, como algo entalado na garganta, difícil de engolir ou digerir completamente; situações que produzem dissenso. Tal desconforto terá, aqui, a função de permitir um olhar crítico retrospectivo em relação a conflitos que se viam de algum modo apaziguados pela narrativa celebratória sobre o modernismo brasileiro. A figura da indigestão procura observar o consenso como um modo de dissimular a violência na sua aparência de sociabilidade homogênea e dócil, como, na atualidade, as forças da globalização e da miscigenação procuram produzir. Tem-se, aqui, na esteira de David Harvey (2008HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2008.), que o espaço do capitalismo, a partir de meados dos anos 1970, produz imensa comunicabilidade e fluxo de mercados e capitais em nível global, com rápido tempo de giro. A homogeneização e a universalização aí pressupostas são “perversas” - no dizer de Milton Santos (2006SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp , 2006.), geógrafo crítico da globalização - porque são apenas efeitos discursivos de um processo totalitário que produz, a todo tempo, fraturas subjetivas, territoriais, culturais, afetivas, trabalhistas etc. O argumento principal é que para manter-se hegemônico, o capitalismo precisa construir uma imagem unificada de si e, com isso, neutralizar imagens dissonantes1 1 1.O pano de fundo, tanto em Harvey como em Santos, é a garantia da hegemonia e do controle do plano simbólico e discursivo da produção do espaço, como proposto por Henri Lefebvre. Além dos trabalhos citados de Harvey e Santos, conferir, também, Henri Lefebvre (1993) na bibliografia. . Além disso, Ismail Xavier (2012XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify , 2012., p. 49) aponta para a imagem do capitalismo como antropófago. Ao comentar a presença da indústria cultural no Brasil dos anos 1960, o crítico percebe uma “matriz digestiva” comum tanto ao capitalismo - em seu comportamento assimilativo - quanto ao gesto irreverente da “resistência antropofágica”. Já para o sociólogo Octávio Ianni (2001IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 254), a globalização não deve ser teorizada como fenômeno homogeneizador. Em sua análise, tal processo é descrito como movimentos “desiguais”, “combinados” e “contraditórios” que, justamente por produzirem assimetrias e, portanto, uma assimilação “diferencial” da “sociedade global”, produzem “singularidades, particularismos e identidades”. Quanto à miscigenação, esta será abordada mais adiante. Para concluir a introdução, resta dizer que a antropofagia não será vista como uma teoria ainda em uso ou capaz de oferecer modelos e generalizações sobre a arte brasileira, mas sim como uma oportunidade para refletir sobre as relações estruturais entre forma artística e violência.

Extensivamente documentada, a antropofagia foi um manifesto, uma revista, um movimento artístico, uma teoria cultural. Foi um termo enunciado no contexto brasileiro no final da década de 1920 (CAMPOS, 1975CAMPOS, Augusto de. Revistas re-vistas: os antropófagos. Revista de Antropofagia. Ed. facsim. São Paulo: Abril Cultural: Metal Leve, 1975.)2 2 2.O Manifesto antropófago foi publicado pela primeira vez em 1928, por Oswald de Andrade, na Re-vista de Antropofagia, um periódico independente editado pelo próprio Oswald, Raul Bopp e An-tônio de Alcântara Machado, com a colaboração de outros autores, como Mario de Andrade. Du-rante o primeiro ano, somou um total de dez números, e, em 1929, seu segundo ano - ou “2ª Dentição” como dizia a própria revista - foi publicada no jornal Diário de São Paulo, totalizando 15 números. Conferir, nas referências bibliográficas, a edição fac-símile com introdução de Augusto de Campos. , retomado nos anos 1960 com a Tropicália e a Nova Objetividade Brasileira, em 1967, entre outras manifestações culturais3 3 3.Para um panorama breve do período, além do já mencionado texto de Ismail Xavier, conferir Carlos Zilio (2009); Celso Favaretto (2000); Hélio Oiticica (1986a); Glauber Rocha (1965); e Fernão Ramos (1987). Destacamos, também, o teatro de José Celso Martinez Corrêa, a atuação multimídia no gênero do horror de José Mojica Marins, e a atuação nos âmbitos cul-turais e políticos de Abdias do Nascimento. , e objeto de uma revisão em 1998, na XXIV Bienal Internacional de São Paulo, (1998a) com curadoria de Paulo Herkenhoff. O termo tem aparecido em discussões recentes que procuram reavaliar o seu legado cultural - e o que foi obscurecido por ele -, à medida que nos aproximamos de seu centenário. Ele ambicionava descrever um traço singular da cultura brasileira, por exemplo, a sua formação multicultural, sua relação com a modernização e a transgressão à norma imposta pela colonização cultural ou pelas relações assimétricas de dependência econômica e cultural.

Historicamente, o que singulariza a antropofagia descrita por Oswald de Andrade (1890-1954) no Manifesto antropófago (1928) é a relação totem-tabu, de parricídio, devoração ritual da figura de autoridade e sua substituição por atos permanentes de transgressão. O poeta e crítico literário Haroldo de Campos (1992CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios sobre teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. pp. 231-256., p. 234) nos diz que a

“Antropofagia” oswaldiana (…) é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir de uma perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem” (…), mas segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação.

Em referência a Freud4 4 4.Oswald de Andrade faz menções à obra Totem e tabu. Essa foi publicada pela primeira vez como volume único em 1913 sob o título Totem und Tabu. , Oswald de Andrade preocupa-se em atacar os pressupostos da civilização do colonizador (totem), encontrados, principalmente, nas figuras da “catequese”, do “homem vestido”, da “consciência enlatada”, da “história” e dos “Conservatórios”, entre outras. Trata-se, para o poeta, da “transformação permanente do Tabu em totem”, da “absorção do inimigo sacro” (ANDRADE, 1990aANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Secretaria de Cultura, 1990a. pp. 47-52., pp. 47-48, 50-51). O caráter beligerante do Manifesto - e da Revista de Antropofagia - acentua as operações e imagens de choque, a justaposição heterogênea e conflitante de elementos5 5 5.Sobre a Revista de Antropofagia, interessa notar que, quando veiculada pelo jornal de grande circulação, a diagramação das páginas acentuou o caráter fragmen-tário da linguagem e o conflito de imagens dissonantes. . De acordo com Benedito Nunes (1990NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Secretaria de Cultura , 1990. pp. 5-39., p. 15),

os aforismos do Manifesto antropófago misturam, numa só torrente de imagens e conceitos, a provocação polêmica à proposição teórica, a piada às ideias, a irreverência à intuição histórica, o gracejo à intuição filosófica. Usando-a pelo seu poder de choque, esse Manifesto lança a palavra “antropofagia” como pedra de escândalo para ferir a imaginação do leitor com a lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie. Imagem obsedante, cheia de ressonâncias mágicas e sacrificiais, com um background de anedotas de almanaque, mas também com uma aura soturna e saturniana, tal palavra funciona como engenho verbal ofensivo, instrumento de agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo (…) misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de flagelação pública, como sucedâneo verbal da agressão física a um inimigo de muitas faces, imaterial e proteico.

Mas o gesto de rebeldia implicou, também, ao menos metaforicamente, recorrer à suposta “pureza” dos povos praticantes da “antropofagia carnal”, que evitam as “sublimações do instinto sexual” (ANDRADE, 1990aANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Secretaria de Cultura, 1990a. pp. 47-52., p. 51), dentro de um contexto mais amplo da reflexão do autor sobre o que considera ser uma sociedade matriarcal e próxima a um estado natural. Benedito Nunes (2004NUNES, Benedito. Antropofagia e vanguarda - acerca do canibalismo literário. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 9, n. 7, pp. 316-327, 2004. DOI: 10.11606/issn.2237-1184.v0i7p316-327. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ ls/article/view/25428 . Acesso em: 22 mar. 2022.
https://www.revistas.usp.br/ ls/article/...
, p. 326) ainda diria:

era o primitivismo que nos capacitaria a encontrar nas descobertas e formulações artísticas do estrangeiro aquele misto de ingenuidade e pureza, de rebeldia instintiva e de elaboração mítica, que formavam o depósito psicológico e ético da cultura brasileira.

No entanto, tal rebeldia não apaga o que está em jogo: de um lado, a identificação com o dominador - uma necessidade de falar em pé de igualdade com a metrópole, afirmar uma autonomia cultural - e, de outro, a identificação com o sujeito primitivizado. “Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si”, diria Oswald em um texto tardio, de 1950 (ANDRADE, 1990cANDRADE, Oswald de. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial. In ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Secretaria de Cultura , 1990c. pp. 157-159., p. 157). Para o poeta, o que fundamenta o banquete antropofágico é a relação simultânea de afinidade e hostilidade, identificação e desidentificação. A apropriação seletiva da alteridade é aquilo que permitiria o acesso à singularidade da experiência cultural modernista brasileira, a partir de um contágio e de uma violência essenciais. O crítico literário Luiz Costa Lima (1991LIMA, Luiz Costa. Antropofagia e controle do imaginário. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre, v. 1, n. 1, pp. 62-75, 1991., p. 63) faz uma síntese precisa, embora evite o problema político do primitivismo:

Oswald [de Andrade] enfatiza uma força primitiva de resistência à doutrinação promovida pelo colonizador. Essa capacidade de resistência seria antes um traço cultural do que o produto de algum estoque étnico. E, por isso, identificada apenas pelo modo como opera; pelo canibalismo simbólico. Em poucas palavras, a doutrinação cristã e europeia não teria superado o poder de resistência da sociedade colonial, que se manifestaria na manutenção de nossa capacidade de devorar e ser alimentado pelos corpos e valores consumidos. (…) na antropofagia, o inimigo não é identificado com algo impuro ou com um corpo poluído, cujo contato então se interditasse. (…) convém destacar que a antropofagia (…) não recusa a existência do conflito, senão que implica a necessidade da luta.

Antevista por Tarsila do Amaral (1886-1973), ao menos desde a pintura A negra (1923), e por Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia pau-brasil (1924)6 6 6.Cito um fragmento do Manifesto da Poesia Pau-Brasil: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem remi-niscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos (…)” (ANDRADE, 1990b, p. 45, grifo nosso). , a antropofagia modernista funda ou aprofunda um mito de origem, aquele que visa interpretar a cultura brasileira pelos componentes de sua paisagem natural e humana; desrecalca as matrizes indígena e africana da população brasileira - ocultadas pelo genocídio e pela escravidão (ALENCASTRO, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.; MONTEIRO, 1994MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 1994.) e pelas teorias racistas de eugenia e branqueamento da população (MUNANGA, 1999MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.; SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras , 1993.) - não sem a sombra classista expressa no interesse pelo primitivo e pelo exótico. É preciso ter presente a contradição entre a fixação de uma ideia de brasilidade e um processo de formalização por montagem, justaposição, que é, por assim dizer, antiontológico. Como vimos, a afirmação de uma identidade cultural brasileira responde ao projeto de “colocar a arte brasileira em dia com a cultura ocidental e fazê-la voltar-se para apreensão do Brasil”, ou seja, ser “internacionalista” e, ao mesmo tempo, aberta à “autoindagação”. Trata-se, desde o começo, de “uma arte brasileira para exportação” (ZILIO, 2009ZILIO, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro , [v. 18], n. 18, pp. 114-147, 2009., p. 117). E se as estratégias formais vistas tanto na Revista de Antropofagia quanto em algumas pinturas de Tarsila do Amaral, notadamente em A negra e outras da década de 19207 7 7.Pinturas como São Paulo e Estrada de Ferro Central do Brasil, ambas de 1924, demonstram tentativas de geometrização e racionalização do plano pictórico antagonizadas por formas “moles”, intumescentes e descontínuas. Um outro exem-plo paradigmático seria Feira II, de 1925, pintura na qual frutas, plantas e animais são geometrizados, organizados em agrupa-mentos seriais, mas suas cores, volumes arredondados e formas irregulares carregam o plano pictórico de sensualidade, como a contradizer a mecanicidade da estrutura compositiva. Muitos outros exemplos da década de 1920 seriam possíveis (AM-ARAL, 2008). , preservam o choque, a cumplicidade e também a reversibilidade de elementos contraditórios - por exemplo, estrangeiro e local, moderno e arcaico, urbano e natural, geométrico e informe, figurativo e abstrato, para mencionar apenas alguns -, estes não deixam de acusar, nesse “desconcerto” e nessa ambivalência internos, para dialogar com Roberto Schwarz, a própria dinâmica da modernização contraditória e conservadora como a brasileira. Para Schwarz, a maneira como ideologia liberal (de corte europeu) e escravidão convivem num misto de antagonismo e cumplicidade no século XIX crava marcas profundas na vida político-social brasileira: “um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras” (SCHWARZ, 2000aSCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000a., p. 25)8 8 8.Nos diz ainda o autor: “posto de parte o raciocínio sobre as causas [do descompasso entre posturas liberais e universalistas e a manutenção da escravidão], resta na experiência aquele desconcerto que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício - contrastes rebarbativos, desproporções, dis-parates, anacronismos, contradições, conciliações e o que for - combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar” (SCHWARZ, 2000a, p. 21). Isso não deixa de reavivar a memória da cordialidade, tal como aparece em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (2016). Vemos ecos desse modo de entender sociologicamente as relações estruturais que as formas artísticas mantêm com o seu contexto em críticos de arte como Rodrigo Naves, Sônia Salzstein, Paulo Sérgio Duarte e Otília Arantes. A famosa frase de Mário Pedrosa (1998, p. 413), de que estaríamos “condenados ao moderno”, poderia servir aqui de chave interpretativa, embora de modo mais otimista, para denunciar a convivência contrastante, mas muitas vezes apaziguada, entre uma ideologia cultural emancipatória que não encontra lastros concretos no quadro sócio-político. Vale conferir, mesmo que rapidamente, a discussão de Sérgio Bruno Martins (2015) sobre a noção de “forma difícil”, de Rodrigo Naves, procurando uma alternativa à inter-pretação schwarziana. . Não tendo sido desarmado o mecanismo social e econômico do privilégio do grande latifundiário - baseado na propriedade da terra, monocultura para exportação, clientelismo, exploração do trabalho semiforçado já no regime de produção do café -, as ideias de universalidade, justiça e liberdade foram sujeitas a todo tipo de particularismos, exceções, favores e relações assimétricas de dependência, mesmo após a abolição (Idem, 2000b)9 9 9.Nos diz o autor, ao comparar a adesão às ideologias liberais e a manutenção de regimes coloniais: “Mesma coisa para o ciclo do café, decisivo e longo, cuja prosperidade assentava sobre a escravidão e, mais adiante, sobre o trabalho semiforçado, com o qual chegaria ao nosso tempo. Assim, a ligação do país à ordem revolucionada do capital e das liberdades civis não só não mudava os modos at-rasados de produzir, como os confirmava e promovia na prática, fundando neles uma evolução com pressupostos modernos (…) O estatuto colonial do trabalho, desassistido de quaisquer direitos, passava a funcionar em proveito da recém-constituída classe dominante nacional (…) A mão de obra culturalmente segregada e sem acesso às liberdades do tempo deixava portanto de ser uma so-brevivência passageira, para fazer parte estrutural do país livre (…)”. (SCHWARZ, 2000b, p. 26) . O que nos interessa mais diretamente é o convívio de elementos contraditórios, sociais e os relativos à forma artística, num jogo de tensões, explicitação e encobrimento.

Parece justo afirmar que, em sua versão modernista, a antropofagia brasileira foi o movimento de uma elite intelectual e econômica baseada em São Paulo, que monopolizou, entre o fim da década de 1910 e a década de 1920, a noção de modernidade no âmbito das artes visuais brasileiras. Segundo a anedota que se conta, Oswald de Andrade teria escrito o Manifesto antropófago sob o impacto da pintura Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral. Abaporu é um termo derivado de outros dois vocábulos tupi-guarani, aba (homem ou pessoa) e porú (comedor de carne humana), em referência às práticas antropofágicas tupinambá (GUALBERTO; ROFFINO, 2021GUALBERTO, Tiago; ROFFINO, Sara. Só a antropofagia nos une? The Brooklyn Rail, New York, fev. 2021. Critics Page. Disponível em: Disponível em: https://brooklynrail.org/2021/02/criticspage/Cartas-aos-Leitorxs . Acesso em: 8 fev. 2021.
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)10 10 10.Os vocábulos teriam sido “encontrados por Amaral e Andrade no dicionário Tesoro de la lengua guarani (1639-40), do missionário peruano Padre Antonio Ruiz de Montoya. Este dicionário servia de auxílio para as novas missões jesuíticas em seu trabalho de evangelização das populações indígenas nas Américas durante o período colonial” (GUALBERTO; ROFFINO, 2021). . O movimento nasce a partir de uma fantasia nativista e uma reconciliação mítica - ou, ainda, de uma instrumentalização oportunista - com o elemento autóctone representado pelas etnias indígenas e africanas. O termo “oportunista” procura remeter diretamente à recente retrospectiva de Tarsila do Amaral, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), em 2019. Na exposição e nos diversos textos do catálogo (OLIVA; PEDROSA, 2019OLIVA, Fernando; PEDROSA, Adriano (org.). Tarsila popular. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand , 2019. Catálogo de exposição.), a ênfase recaiu, principalmente, na instrumentalização do exotismo como uma espécie de passaporte de acesso à vanguarda parisiense, algo que também notamos na biografia realizada por Aracy Amaral (AMARAL, 2010AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. 4. ed. São Paulo: Editora 34 : Edusp, 2010.). A excelente comparação entre as pinturas A negra e Autorretrato (Manteau rouge), realizadas no mesmo ano, parece evidenciar a questão que está em jogo. Na discussão racial do período, além da eugenia, é importante considerar a noção de democracia racial, identificada ao sociólogo Gilberto Freyre,11 11 11.Atentar que o termo “democracia racial” não aparece na obra referida de Freyre (1930), mas no debate crítico que se estabelece a partir dela. a partir da miscigenação.

Ainda que estejamos nos referindo de modo geral a noções elaboradas no decorrer de mais de um século - em uma ponta, a necessidade de produção do Estado-nação, a partir da Independência, em 1822; e na outra, a sua inflexão na Era Vargas, a partir de 1930 -, tais conceitos aparecem sob a forma de uma convivência harmônica entre as raças, mesmo que sustentada, no contexto da escravidão, pela autoridade do patriarca latifundiário e pela exploração sexual das mulheres escravizadas (NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., pp. 61-64). A mestiçagem seria a prova de uma harmonia que relativizaria os lugares fixos demarcados pela raça no plano da dominação, como se houvesse uma diminuição da distância entre a “casa-grande” e a “senzala”, observável, por exemplo, no “mito do senhor benevolente” e no estereótipo da “mãe preta”.12 12 12.Segundo Abdias do Nascimento (1978), é “benevolente” a conversão do negro africano aos valores cristãos e civilizados do colonizador português, assim como uma outra mistificação é perceber as sobrevivências da cultura africana na culinária, música, dança, linguagem e religião como indício de “relações relaxadas e amigáveis entre senhores e escravos” (p. 55). Por fim, outro mito é a imagem benigna da “mãe preta”, responsável pelo aleitamento da criança branca (p. 57). Acrescen-ta-se que, no referido catálogo da exposição retrospectiva de Tarsila do Amaral no MASP, os ensaios de Irene V. Small (2019) e Maria Castro (2019) investigam criticamente e em profundidade as relações da pintura A negra (1923) com o estatuto da mulher negra escravizada, nos anos anteri-ores à Abolição. Kabengele Munanga desmonta a harmonia fantasiosa do conceito ao examinar, cronologicamente, a construção teórica de suas principais nuances - e autores - e a sua instrumentalização na produção de uma identidade cultural nacional homogênea. Para o antropólogo - assim como para o artista e ativista político Abdias do Nascimento -, no ideário brasileiro, miscigenação deve ser vista como sinônimo de “embranquecimento” da população, ou seja, fruto de discursos e estratégias político-ideológicas conduzidas pela elite dirigente para promover a assimilação das populações não brancas, sua aculturação e, no limite, o seu completo extermínio. Nos diz Munanga (op. cit., p. 80):

O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes.

Podemos especular que essa é uma perspectiva que está estruturalmente ligada a alguns aspectos formais da obra de Tarsila do Amaral. Muito visível, mas raramente trabalhada pela crítica especializada, é a lisura, o caráter suave e homogêneo das superfícies e volumes, um esforço evidente de esconder as pinceladas e o trabalho manual implicado nas imagens. Isso certamente discorda da opinião de que seja uma simples adesão à iconografia cubista e ensinamentos de Fernand Léger e Albert Gleizes. Os aspectos inumanos, mecânicos, das pinturas de Léger ganham uma outra significação nas dinâmicas socioculturais brasileiras, como se procurou descrever até aqui. A lisura na pintura de Amaral parece corresponder ao apagamento dos conflitos sociais mencionados sob o signo da mestiçagem, assim como poderíamos, do mesmo modo, tentar situar o escapismo das paisagens da fazenda e da mata em algumas telas do final dos anos 1920, nas quais até mesmo a incongruência entre paisagem natural e urbana deixa de ocorrer13 13 13.Para mencionar alguns exemplos, conferir, principalmente, as obras A lua, 1928; Composição (figura só), 1930; e Sol poente, 1929 (AMARAL, 2008). . Além da dimensão estrutural da cor, como quis Haroldo de Campos (2010CAMPOS, Haroldo de. Tarsila: uma pintura estrutural. In AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo . 4. ed. São Paulo: Editora 34: Edusp, 2010, pp. 463-464.)14 14 14.Trata-se do texto “Tarsila: uma pintura estrutural” (CAMPOS, 2010, p. 464). A famosa construção do autor é: “A cor em Tarsila não é um elemento naturalista, um elemento de conteúdo. Será antes um elemento da forma, um formante, uma cor estrutural. E, no entanto, esses rosas e azuis “caipiras”, por exemplo, geometrizados nas casinhas que modulam o cenário tarsiliano, são também índices, vestígios óticos de um contexto brasileiro circunstante para o qual apontam como flechas sensíveis (…) Seu realismo não é, portanto, um realismo descritivo, de temática exterior, retórico, mas um realismo intrínseco, de signos, que pode abrir inclusive para o devaneio e para o mágico”. , há uma dimensão estrutural do procedimento que procura dissimular a aspereza do trabalho corporal - e, consequentemente, do seu correlato social - implicado na pintura. Isso é tanto mais flagrante quando olhamos para o conjunto de obras de Tarsila imediatamente anteriores - paisagens, estudos da figura humana, retratos e autorretratos -, no qual a marca do gesto é ostensivamente enfatizada.

Quanto à recuperação da noção de antropofagia nos anos 1960, ela se endereça à relação entre violência, escatologia e morte do período marcado pela ditadura militar (1964-1985), bem como ao confronto com o mundo do consumo e dos mass media. Como forma de oposição, para mencionar apenas algumas posturas, encontramos a utopia da emancipação por meio da participação do espectador, ao qual voltarei mais adiante, e a arte como veículo de guerrilha e ativismo15 15 15.Além dos textos já mencionados em nota anterior com referências à produção artística nos anos 1960, vale conferir a tese de doutorado de Artur Freitas (2007). . Essa oposição pode ser encontrada na produção de um conjunto de artistas brasileiros da década de 1960, em propostas curatoriais e manifestações coletivas, inclusive em espaços públicos. Em seu esforço de teorização, Oiticica fala de uma “superantropofagia” (OITICICA, 1986bOITICICA, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. In OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto . Rio de Janeiro: Rocco , 1986b. pp. 84-98., pp. 85), com o duplo sentido de uma filtragem crítica dos estereótipos de brasilidade veiculados, principalmente, pelas mídias de massa e pelo turismo, e fala também de uma ampliação do campo de experimentação artística, quando indica uma “tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete”, que incluiria a produção de ambientes imersivos e propostas participativas, talvez tomadas, quase literalmente, como uma devoração do espectador. Na XXIV Bienal Internacional de São Paulo (1998b), curada por Paulo Herkenhoff com a colaboração de muitos outros críticos, historiadores e curadores, a noção de antropofagia aparece mais difusa, talvez misturada a noções mais gerais de negociação, hibridização, multiculturalismo e globalização, num quadro mais amplo de debate pós-colonial16 16 16.Tal como podemos identificar em O local da cultura, de Homi Bhabha (1998), e Culturas híbridas, de Néstor García Canclini (1998). . A curadoria do núcleo de artistas contemporâneos brasileiros parece escapar ao tom do discurso triunfante da antropofagia como guinada numa relação assimétrica de poder, concentrando-se em relações intersubjetivas, no microcosmo da vida cotidiana e da domesticidade, e em figuras poéticas do encontro, da fusão sexual, do espelhamento e do corte.

Feita essa breve recapitulação, proponho a realização de alguns estudos de caso que incrementem a discussão a partir da recusa em reprimir o conflito, de onde a violência emerge como estratégia de formalização. Em 2018, o artista João Loureiro (1972-) apresenta o projeto Reprodução assistida a partir de uma comissão para produzir uma obra que seria exibida no interior dos espaços de uma galeria comercial e, ao mesmo tempo, expandida para algum outro local na vizinhança. Uma alternativa, certamente, seria aproveitar a oportunidade desse “respiro” em relação ao espaço privado do mercado de arte e enfatizar alguma dimensão restauradora da noção de espaço público. Não é o que o artista faz, ciente de seu papel como potencial instrumento dos desejos expansionistas da galeria de arte e do projeto curatorial. Ao contrário, Loureiro decide manter a troca comercial como o elemento central de seu trabalho. A relação que buscou foi entre dois espaços comerciais distintos: a galeria de arte, como já sabemos, e um supermercado afastado apenas uma quadra dali. Lemos a seguinte descrição da obra produzida para a exposição (em panfletos disponíveis na galeria, no supermercado e websites):

No açougue do supermercado Futurama, uma vitrine congeladora contém esculturas de carne moída, reproduções em escala reduzida da obra “Figura reclinada em duas peças: pontos” de Henry Moore. Uma vez por semana, uma dessas esculturas é exposta na vitrine refrigerada principal do açougue e depois transportada até uma criação de moscas domésticas, onde é usada como alimento para esses insetos. Uma vez por semana, as moscas adultas são retiradas dessa criação e libertadas no bairro da Vila Buarque. Semanalmente, o artista vai até o açougue e recolhe as moscas mortas da armadilha luminosa para insetos ali instalada. As carcaças das moscas são levadas para o espaço de exposição na galeria e são espetadas com alfinetes numa escultura de isopor, reprodução à escala real da obra “Formas únicas de continuidade no espaço”, de Umberto Boccioni. Esta escultura é um dos principais símbolos do Futurismo e seu gesso original encontra-se no acervo do MAC-USP, em São Paulo. A partir dele foram realizadas as versões em bronze, a quarta e última feita para a TATE Gallery e trocada com o MAC pela escultura (…) de Moore. Ao longo da exposição os mesmos processos são repetidos e a escultura de isopor vai acumulando cada vez mais moscas mortas. ( ALMEIDA, 2018 ALMEIDA, Bruno de. Reprodução Assistida, abr. 2018. Disponível em: https://www.joaoloureiro.info/filter/en/Assisted-reproduction-2018. Acesso em: 30 jan. 2022.
https://www.joaoloureiro.info/filter/en/...
, não paginado)

FIGURA 1
João Loureiro, Reprodução assistida, 2018. Isopor, base de madeira, carne, antioxidantes, gelificante, ovos, freezer, armadilha para moscas, lâmpadas UV, alfinetes, moscas, vídeo e instalação elétrica.

FIGURA 2
João Loureiro, Reprodução assistida, 2018.

De saída, o variado conjunto de meios utilizados dificulta localizar o trabalho em categorias estáveis. A obra serve-se do trabalho anônimo e especializado de muitos profissionais, como escultores para a peça em isopor e para os moldes das cópias em carne crua; um entomólogo que coordena a alimentação, reprodução e liberação das moscas; a mão de obra para a fixação das moscas mortas na superfície do isopor; um realizador de vídeo que captou e editou as imagens da carne apodrecendo e da atividade das moscas em uma caixa de acrílico; e funcionários do supermercado e da própria galeria de arte. Talvez seja possível observar essa fragmentação e ocultação do trabalho como espelhamento de dinâmicas capitalistas. As operações de Reprodução Assistida parecem localizar-se em algum ponto entre dinâmicas de produção fordistas-disciplinares (por meio de metáforas de sistemas fechados e controlados com encadeamento mecânico e a sua relação com uma área urbana específica) (HARVEY, 2008HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2008.) e pós-fordistas-biopolíticas (a imaterialidade da circulação ininterrupta, a flexibilidade multimídia da obra, seu intenso regime de exposição, a abrangência do comércio que absorve totalitariamente a esfera da vida) (HARDT; NEGRI, 2001HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.)17 17 17.O trecho a seguir poderia muito bem servir de sinopse da obra de Loureiro: “Não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum panorama exterior que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada escapa do dinheiro. A produção e a reprodução são vestidas de trajes monetários” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 51). . Somos surpreendidos, também, pela circularidade e redundância das operações que, alegoricamente, se referem a outra relação circular, de troca comercial, entre duas instituições artísticas importantes em seus respectivos contextos, que se valeram de obras importantes de suas coleções para uma permuta. A troca e a morte produzem a temporalidade específica da obra, sem recair em estereótipos sentimentais de transformação holística. O contexto não dá espaço para esse tipo de fantasia: o supermercado chama-se Futurama, um neologismo que indica o ato de imaginar o futuro, algo como uma utopia, contrastado com o visível processo de falência do supermercado, com a ameaça iminente de seu fechamento. De fato, o supermercado foi reduzindo as suas atividades. Quando fui visitá-lo, no fim do período da exposição, podia-se ver o freezer com as esculturas de carne, mas o açougue já não funcionava, assim como algumas áreas estavam bloqueadas, as luzes apagadas e as prateleiras vazias. Pesa-se a indiferença brutal que o meio da arte (eu mesmo incluído) pode manifestar em relação ao contexto agonizante, que, no limite, implica uma certa indiferença aos funcionários que em breve estariam desempregados.

Como afirmado antes, o trabalho não parece apostar em uma noção restauradora de um sentido público, como a melhoria da qualidade de vida dos possíveis frequentadores desses espaços ou a intensificação da experiência perceptiva - e o sentido pedagógico que poderia advir. É relevante indicar, mesmo que brevemente, a discussão presente em Artificial Hells, da crítica e historiadora da arte Claire Bishop (2012BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London: Verso, 2012.). Nesse texto, encontramos as noções de espaço público e de participação do espectador mobilizadas pelo dissenso: em sua análise, a autora privilegia as obras artísticas que têm em comum o abandono de posturas benevolentes, que tendem a produzir artificialmente lugares comunitários de integração sem conflito, e favorece propostas que não apaziguam o confronto e as diferenças entre os participantes, mas sim que sustentam e até mesmo exageram as tensões em jogo18 18 18.Bishop (2012, pp. 25-26) nos diz: “In insisting upon consensual dialogue, sensitivity to difference risks becoming a new kind of repressive norm - one in which artistic strategies of disruption, intervention or overidentification are immediately ruled out as ‘unethical’. By contrast, I would argue that unease, discomfort or frustration - along with fear, contradiction, exhilaration and absurdity - can be crucial to any work’s artistic impact. This is not to say that ethics are unimportant in a work of art, nor irrelevant to politics, only that they do not always have to be announced and performed in such a direct and saintly fashion”. Vale atentar que a observação de Bishop sobre o Brasil carece de comparações mais nuançadas, ainda que seu interesse recaia sobre a obra de Augusto Boal realizada no exílio (em particular, na Argentina). Os contrastes que elabora em relação à mobilização da participação do espectador no contexto brasileiro, acaba reduzido às práticas do “sentir” e do “perceber”, e a uma dependência estrita da abstração de corte construtivo. Ainda que essas sejam características latentes, não são capazes de explicar os múltiplos impulsos que diferenciam não somente os artistas oriundos dos grupos concreto e neoconcreto, mas também artistas cuja tônica política é evidente, como o próprio Oiticica, Cildo Meirelles e, por que não, outros artistas por vezes apartados do cânone das artes visuais, como José Mojica Marins e Abdias do Nascimento. . Outros projetos de Loureiro produzem relações conflituosas ou desencantadas com seus contextos, como O fantasma (2008), que pude analisar em outra ocasião (PERA, 2021PERA, Luiz Renato Montone. Codificação (sobre um trabalho de João Loureiro). In: (RE)EXISTÊNCIAS: ANAIS DO 30º ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 30, 2021, João Pessoa. Anais [...]. João Pessoa: ENANPAP, 2021. Disponível em: Disponível em: www.even3.com.br/Anais/30ENANPAP2021/383601-CODIFICACAO-(SOBRE-UMTRABALHO-DE-JOAO-LOUREIRO) . Acesso em: 22 mar. 2022.
www.even3.com.br/Anais/30ENANPAP2021/383...
), e Escala de cinzas (2012-2013), no qual a participação efetiva do espectador é tensionada por frustrações perceptivas, mediada pela compra e venda, e especificada em termos de classe social. De fato, Reprodução Assistida se mantém indiferente à noção de esfera pública como lugar da inclusão, supostamente democrática e universal. O trabalho antagoniza essa pressuposição, para falar com Chantal Mouffe (2013MOUFFE, Chantal. Quais espaços públicos para práticas de arte crítica? Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 27, pp. 181-199, 2013.). Parece, ainda, impor a lógica de exibição para além dos limites físicos da galeria de arte, na forma de objetos especiais (feitos de carne moída crua) em exposição (no congelador ou ao lado das outras carnes no açougue). Tal indiferença já está anunciada no título, que sugere um processo parasitário, um regime de crise que tende à entropia (apodrecimento, morte e o inorgânico do isopor), mas que a relativa previsibilidade garante uma aparência de homogeneidade, manifestada, na obra, na sequencialidade e na circularidade ininterrupta (ilusão afinal contrariada pelo fechamento do supermercado). O termo “reprodução”, vale insistir, é polissêmico: refere-se ao determinismo biológico, à previsibilidade estrutural de reprodução de um sistema econômico-social e às cópias geradas a partir de um molde. “Assistida”, por sua vez, pode conotar monitorada, portanto, no interior de um regime escópico, no qual é difícil determinar o tipo de cooperação - deliberada ou passiva - do espectador. Se parece certo dizer que sua visão de espaço público é desencantada19 19 19.Muito diferente é a noção de espaço público em obras de um artista como Rubens Mano. A participação do espectador e a implicação dos contextos institu-cionais, em muitos de seus projetos, buscam uma espécie de enriquecimento democrático, sem a interdição do conflito. Sugiro, para essa comparação, a obra Vazadores - elaborada para a XXV Bienal Internacional de São Paulo (2002) - e a polêmica de seu encerramento antecipado. A justificativa econômica de evasão de re-ceita da bilheteria também apontava para um déficit de universalização do acesso. , devemos localizar a capacidade crítica da obra de manter essa tensão e de associar as supostas qualidades emancipatórias da modernidade artística aos pressupostos da guerra, do capitalismo e do patriarcado - o elã, por assim dizer, da ideologia futurista (MARINETTI, 1961MARINETTI, Filippo Tommaso. Initial Manifesto of Futurism. In TAYLOR, Joshua Charles. Futurism. New York: Museum of Modern Art, 1961. pp. 124-125.) -, que desembocaram, por fim, em nosso projeto de modernidade excludente. É como se o trabalho repusesse em sua forma algo da violência, do expansionismo e da indiferença social, utilizando, para isso, carne podre e moscas mortas como alegorias de um desenvolvimento que lutou para ser moderno, mas que é moderno somente para alguns.

Para abordar um outro trabalho artístico, proponho retomar brevemente à utopia da participação do espectador, caro à tradição construtiva brasileira. Nessa perspectiva, a participação emancipada baseia-se na diluição total do objeto artístico na esfera da vida cotidiana. O objeto passa a ser apenas um dispositivo que deverá produzir uma situação aberta, cuja sequência beneficia-se de uma indeterminação essencial e deve se desenvolver no tempo (GULLAR, 1977GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. In AMARAL, Aracy (coord.). Projeto construtivo na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977, pp. 85-94.; BRITO, 1999BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999.).20 20 20.Dado que a bibliografia sobre o neoconcretismo é extensa e as omissões são inevitáveis, limito-me a indicar alguns nomes de pesquisadores que se debruçaram sobre o assunto, e que influenciaram diretamente o modo como entendo o assunto, entre eles Mário Pedrosa, Hélio Oiticica, Celso Favaretto, Paulo Herkenhoff, Sônia Salzstein, Guy Brett, Paula Braga, Sérgio Bruno Martins, Felipe Scovino, Michael Asbury e Irene V. Small. Tal diluição do objeto artístico ocorre a partir de uma interpretação original da tradição construtiva europeia. Não tendo encontrado aqui terreno para a expansão e a universalização - isto é, para a socialização generalizada dos benefícios da modernização -, ao contrário, esbarrando, nos anos de 1950 e 1960, tanto com um projeto desenvolvimentista limitado quanto com um regime totalitário, a matriz construtiva concreta sofre uma crítica interna. Desde a publicação do Manifesto neoconcreto (GULLAR, 1959), busca-se erotizar o corpo tornado mecânico pela excessiva racionalidade da sociedade técnico-industrial. E vai além, busca-se uma teoria e uma prática artísticas que unifiquem raciocínio, afetos e sensações a partir da percepção direta, por vezes tomada como “pura exaltação sensorial”, como quis Mário Pedrosa (1981PEDROSA, Mário. Arte Ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva , 1981. pp. 205-209., p. 206); tudo isso alimentado por uma (fantasia) política de extrapolação de espaços museológicos e marcadores sociais como classe, raça, gênero, que teria, por exemplo, mobilizado Oiticica a ir morar no Morro da Mangueira e a colocar a marginalidade no centro de suas preocupações artísticas e ideológicas. Se no plano artístico isso certamente produz uma experiência inventiva em relação aos meios expressivos e aos limites disciplinares, na experiência social direta isso produz frustrações e estranhas apropriações, dadas as assimetrias dos mesmos marcadores de classe, raça e gênero que se tentou transpor. Pensemos nas imagens de pessoas anônimas do Morro da Mangueira trajando os Parangolés de Oiticica, na apropriação que o artista faz da frase alusiva ao transe ritual do candomblé (“Estou possuído”), ou, ainda, na famosa “seja marginal seja herói”, em referência à morte violenta de um homem perseguido pela polícia. Nas obras de Oiticica, e de outros artistas do período, a pesquisa rigorosa com as cores e elementos formais herdados da abstração leva a uma superação do quadro de cavalete e a uma expansão para a imersão da experiência corporal, acenando com a promessa de uma fusão utópica entre arte e vida.

Quando encontramos esse rigor da pesquisa cromática somado à sua diluição no espaço da vida cotidiana, porém deslocado de modo desconcertante num trabalho como Secagem rápida (2015), de Lyz Parayzo (1994-), somos obrigados a repensar criticamente o legado das experiências concreta e neoconcreta. A marginalidade é sustentada pelo trabalho do começo ao fim e acusa, desde o interior, a inadequação desses códigos para a emancipação de todos os indivíduos. A marginalidade elaborada por Parayzo não consistia em uma imagem mítica, mas uma realidade cotidiana. Proponho acompanharmos um comentário do pesquisador Guilherme Altmayer (2016ALTMAYER, Guilherme. A secagem rápida de Lyz Parayzo. Concinnitas, Rio de Janeiro, Dossiê Mix Education, sobre arte, sensualidade e educação, v. 1, n. 28, pp. 15-19, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/view/25920/18488 . Acesso em: 29 abr. 2022.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, pp. 15-16) sobre o seu encontro com Secagem rápida:

O primeiro contato que tive com Lyz Parayzo foi na abertura da exposição Encruzilhadas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no final de abril de 2015. Não fomos apresentados, não vi seu rosto, nem ouvi sua voz, mas vi seu cu e suas mãos de unhas pintadas em dezessete fotografias emolduradas em um papelão azul improvisado e fixadas nas paredes de um dos cubículos do banheiro masculino que fica perto da piscina da escola. À primeira vista, as imagens pareciam ser múltiplas cópias de uma mesma fotografia, mas ao observar mais atentamente pude perceber que as fotografias se diferenciavam através das diferentes cores usadas nas unhas dos dedos que afastavam suas nádegas e deixavam a mostra o seu cu (…) soube que aquela instalação não fazia parte da exposição oficial que inaugurava naquela noite. A extra oficialidade e o caráter “explícito” das imagens, fez com que no dia seguinte o trabalho fosse removido pela direção da escola. Ainda no dia seguinte, Parayzo, em uma segunda tentativa de ocupação, voltou a colar mais imagens no mesmo cubículo, mas estas também acabaram sendo removidas.

FIGURA 3
Lyz Parayzo, série Secagem rápida (Rosa choque). Foto: Lyz Parayzo, 2015. Impressão em papel fotográfico, 10×15 cm.

FIGURA 4
Intervenção a partir da obra Secagem rápida (Rosa choque), 2015, de Lyz Parayso

O trabalho se realiza a partir de uma posição clandestina em todo o seu processo de produção: as 35 fotografias são realizadas cedo pela manhã num parque público, com iminente risco de repressão. Cada imagem apresenta variações da mesma pose, mas 24 diferentes variações de cores de esmalte de unha - no jogo do bicho, vinte e quatro é o número do veado, pejorativamente associado a membros da comunidade LGBTQIA+. As fotografias são impressas e montadas de modo precário no interior de uma cabine de banheiro masculino, numa instituição cultural localizada num bairro afluente, na cidade do Rio de Janeiro. A intervenção ocorre como evento surpresa, não autorizado, na data de abertura de uma exposição formal na qual Parayzo trabalhava no setor educativo e não como artista. Ao localizar o discurso pictórico na pintura de unhas e a exibição em um banheiro público, Parayzo transgride e expande os limites produzidos pelo contexto institucional - nota-se que no que se refere à sexualidade, o banheiro masculino pode ser um lugar permeável a interdições e transgressões. A operação parece denunciar tais limites (de inclusão igualitária e efetiva universalização), bem como os limites e as autoilusões das promessas emancipatórias da participação, caras à tradição construtiva brasileira. Seguindo Jota Mombaça (2020), a questão que se coloca é: quais mãos podem manipular os objetos que supostamente produzem emancipação? Em outras palavras, emancipação para quem?21 21 21.Mombaça faz uma crítica da não racialização do debate sobre a participação. Argumenta que o exercício contínuo da produção da diferença (e o caráter emancipatório que adviria daí) proposto pela participação, se não reconhece a esfera de privilégio (branco) na qual é debatido e prat-icado, não faz mais do que ser “devorado” pelo sistema cognitivo capitalista no qual se assenta. Ao irromper de modo violento, inesperado e marginal, o trabalho de Lyz Parayzo, ainda que de modo efêmero, logra atacar a estabilidade sem conflitos do sistema artístico, num misto de crítica, paródia e estratégia de guerrilha. A violência da exclusão é confrontada diretamente sem qualquer mistificação pacifista.

Proponho, ainda, um último comentário sobre um trabalho de Denilson Baniwa, cujo alerta inicial serviu de pretexto para esta reflexão. Hilo - Nada que é dourado permanece (2020) foi incluído numa exposição coletiva recente voltada à prática artística de artistas indígenas contemporâneos.22 22 22.Trata-se da exposição “Véxoa: Nós sabemos”, com curadoria de Naine Terena, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 31 de outubro de 2020 e 22 de março de 2021. Conferir website da insti-tuição: http//:pinacoteca.org/programação/vexoa-nos-sabemos/. Acesso em: 4 nov. 2021. Baniwa decide intervir na área externa do museu, em local próximo à entrada principal, normalmente usada como estacionamento de veículos. Nas frestas do pavimento de paralelepípedos, o artista planta sementes de flores, ervas medicinais e pimenta. As imagens da fresta e do tempo cíclico parecem produzir o motor interno do trabalho. São imagens exploradas já no título: hilo, fio, cordão, faz referência à cicatriz da semente, uma espécie de cordão umbilical que é o ponto de germinação da planta. As frestas - e termos correlatos, como rachadura e fratura - aparecem, também, na forma do espaço residual. Soma-se a escolha de plantas com potencial para o corpo, o espírito e a subjetividade (MUNIZ, 2021). Essa atitude rejeita de uma só vez a lógica institucional do objeto especial em exposição, a conservação como interrupção do processo de envelhecimento do objeto, o regime de visibilidade baseado na propriedade (por vezes roubo), o isolamento e a proteção do objeto artístico apartado dos conflitos sociais. Tal recusa permite ao artista antever um uso renovado do espaço público ao estabelecer um caráter comunal, ainda que sutil, através da ideia de tempo em movimento e cuidado. O espaço não é, por um período, produzido como espaço anônimo (para o pedestre, o visitante, o cliente, o turista etc.) ou destinado aos veículos particulares. Outros projetos do artista parecem se nutrir dessa fragilidade do gesto individual, da sobreposição de imagens, gestos e contextos. As intervenções, mesmo ao enfrentar a escala urbana, não parecem produzir fantasias de onipotência e dominação, pois efêmeras. Isso é visível na escolha dos meios, como outdoors, projeções de vídeo e laser em monumentos e edifícios, além de performances nas quais o corpo do artista é confrontado com estruturas massivas da cidade e com o corpo de instituições como a Bienal de São Paulo, na qual o artista faz uma intervenção surpresa, não convidada pela organização do evento.23 23 23.Trata-se da performance Pagé-onça hackeando a 33a Bienal de Artes de São Paulo, 2018.

FIGURAS 5 E 6.
Denilson Baniwa, Hilo - Nada que é dourado permanece, 2020. Site specific. Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

Para concluir esta reflexão, é importante ressaltar que, embora ocorram estratégias de apropriação em algumas das obras discutidas, elas não parecem ser um traço definidor da noção de antropofagia. Em vez de tomá-la por seu potencial digestivo, a indigestão se coloca como noção mais apropriada. Tenho insistido na transgressão e na recusa como modos de formalização que internalizam os conflitos, sustentam e por vezes exageram as tensões. Também evitei adotar uma abordagem celebratória, não tomando a antropofagia como objeto de um ressurgimento recente ou como uma forma de produzir generalizações sobre identidade e nacionalidade. Ainda que a antropofagia, tal como elaborada desde os anos 1920, seja fundada nas noções de transgressão e de choque, o conceito pede a sua desmistificação.

Referências Bibliográficas

  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • ALMEIDA, Bruno de. Reprodução Assistida, abr. 2018. Disponível em: https://www.joaoloureiro.info/filter/en/Assisted-reproduction-2018 Acesso em: 30 jan. 2022.
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Notas

  • 1
    1.O pano de fundo, tanto em Harvey como em Santos, é a garantia da hegemonia e do controle do plano simbólico e discursivo da produção do espaço, como proposto por Henri Lefebvre. Além dos trabalhos citados de Harvey e Santos, conferir, também, Henri Lefebvre (1993) na bibliografia.
  • 2
    2.O Manifesto antropófago foi publicado pela primeira vez em 1928, por Oswald de Andrade, na Re-vista de Antropofagia, um periódico independente editado pelo próprio Oswald, Raul Bopp e An-tônio de Alcântara Machado, com a colaboração de outros autores, como Mario de Andrade. Du-rante o primeiro ano, somou um total de dez números, e, em 1929, seu segundo ano - ou “2ª Dentição” como dizia a própria revista - foi publicada no jornal Diário de São Paulo, totalizando 15 números. Conferir, nas referências bibliográficas, a edição fac-símile com introdução de Augusto de Campos.
  • 3
    3.Para um panorama breve do período, além do já mencionado texto de Ismail Xavier, conferir Carlos Zilio (2009); Celso Favaretto (2000); Hélio Oiticica (1986a); Glauber Rocha (1965); e Fernão Ramos (1987). Destacamos, também, o teatro de José Celso Martinez Corrêa, a atuação multimídia no gênero do horror de José Mojica Marins, e a atuação nos âmbitos cul-turais e políticos de Abdias do Nascimento.
  • 4
    4.Oswald de Andrade faz menções à obra Totem e tabu. Essa foi publicada pela primeira vez como volume único em 1913 sob o título Totem und Tabu.
  • 5
    5.Sobre a Revista de Antropofagia, interessa notar que, quando veiculada pelo jornal de grande circulação, a diagramação das páginas acentuou o caráter fragmen-tário da linguagem e o conflito de imagens dissonantes.
  • 6
    6.Cito um fragmento do Manifesto da Poesia Pau-Brasil: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem remi-niscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos (…)” (ANDRADE, 1990b, p. 45, grifo nosso).
  • 7
    7.Pinturas como São Paulo e Estrada de Ferro Central do Brasil, ambas de 1924, demonstram tentativas de geometrização e racionalização do plano pictórico antagonizadas por formas “moles”, intumescentes e descontínuas. Um outro exem-plo paradigmático seria Feira II, de 1925, pintura na qual frutas, plantas e animais são geometrizados, organizados em agrupa-mentos seriais, mas suas cores, volumes arredondados e formas irregulares carregam o plano pictórico de sensualidade, como a contradizer a mecanicidade da estrutura compositiva. Muitos outros exemplos da década de 1920 seriam possíveis (AM-ARAL, 2008).
  • 8
    8.Nos diz ainda o autor: “posto de parte o raciocínio sobre as causas [do descompasso entre posturas liberais e universalistas e a manutenção da escravidão], resta na experiência aquele desconcerto que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício - contrastes rebarbativos, desproporções, dis-parates, anacronismos, contradições, conciliações e o que for - combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar” (SCHWARZ, 2000a, p. 21). Isso não deixa de reavivar a memória da cordialidade, tal como aparece em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (2016). Vemos ecos desse modo de entender sociologicamente as relações estruturais que as formas artísticas mantêm com o seu contexto em críticos de arte como Rodrigo Naves, Sônia Salzstein, Paulo Sérgio Duarte e Otília Arantes. A famosa frase de Mário Pedrosa (1998, p. 413), de que estaríamos “condenados ao moderno”, poderia servir aqui de chave interpretativa, embora de modo mais otimista, para denunciar a convivência contrastante, mas muitas vezes apaziguada, entre uma ideologia cultural emancipatória que não encontra lastros concretos no quadro sócio-político. Vale conferir, mesmo que rapidamente, a discussão de Sérgio Bruno Martins (2015) sobre a noção de “forma difícil”, de Rodrigo Naves, procurando uma alternativa à inter-pretação schwarziana.
  • 9
    9.Nos diz o autor, ao comparar a adesão às ideologias liberais e a manutenção de regimes coloniais: “Mesma coisa para o ciclo do café, decisivo e longo, cuja prosperidade assentava sobre a escravidão e, mais adiante, sobre o trabalho semiforçado, com o qual chegaria ao nosso tempo. Assim, a ligação do país à ordem revolucionada do capital e das liberdades civis não só não mudava os modos at-rasados de produzir, como os confirmava e promovia na prática, fundando neles uma evolução com pressupostos modernos (…) O estatuto colonial do trabalho, desassistido de quaisquer direitos, passava a funcionar em proveito da recém-constituída classe dominante nacional (…) A mão de obra culturalmente segregada e sem acesso às liberdades do tempo deixava portanto de ser uma so-brevivência passageira, para fazer parte estrutural do país livre (…)”. (SCHWARZ, 2000b, p. 26)
  • 10
    10.Os vocábulos teriam sido “encontrados por Amaral e Andrade no dicionário Tesoro de la lengua guarani (1639-40), do missionário peruano Padre Antonio Ruiz de Montoya. Este dicionário servia de auxílio para as novas missões jesuíticas em seu trabalho de evangelização das populações indígenas nas Américas durante o período colonial” (GUALBERTO; ROFFINO, 2021).
  • 11
    11.Atentar que o termo “democracia racial” não aparece na obra referida de Freyre (1930), mas no debate crítico que se estabelece a partir dela.
  • 12
    12.Segundo Abdias do Nascimento (1978), é “benevolente” a conversão do negro africano aos valores cristãos e civilizados do colonizador português, assim como uma outra mistificação é perceber as sobrevivências da cultura africana na culinária, música, dança, linguagem e religião como indício de “relações relaxadas e amigáveis entre senhores e escravos” (p. 55). Por fim, outro mito é a imagem benigna da “mãe preta”, responsável pelo aleitamento da criança branca (p. 57). Acrescen-ta-se que, no referido catálogo da exposição retrospectiva de Tarsila do Amaral no MASP, os ensaios de Irene V. Small (2019) e Maria Castro (2019) investigam criticamente e em profundidade as relações da pintura A negra (1923) com o estatuto da mulher negra escravizada, nos anos anteri-ores à Abolição.
  • 13
    13.Para mencionar alguns exemplos, conferir, principalmente, as obras A lua, 1928; Composição (figura só), 1930; e Sol poente, 1929 (AMARAL, 2008).
  • 14
    14.Trata-se do texto “Tarsila: uma pintura estrutural” (CAMPOS, 2010, p. 464). A famosa construção do autor é: “A cor em Tarsila não é um elemento naturalista, um elemento de conteúdo. Será antes um elemento da forma, um formante, uma cor estrutural. E, no entanto, esses rosas e azuis “caipiras”, por exemplo, geometrizados nas casinhas que modulam o cenário tarsiliano, são também índices, vestígios óticos de um contexto brasileiro circunstante para o qual apontam como flechas sensíveis (…) Seu realismo não é, portanto, um realismo descritivo, de temática exterior, retórico, mas um realismo intrínseco, de signos, que pode abrir inclusive para o devaneio e para o mágico”.
  • 15
    15.Além dos textos já mencionados em nota anterior com referências à produção artística nos anos 1960, vale conferir a tese de doutorado de Artur Freitas (2007).
  • 16
    16.Tal como podemos identificar em O local da cultura, de Homi Bhabha (1998), e Culturas híbridas, de Néstor García Canclini (1998).
  • 17
    17.O trecho a seguir poderia muito bem servir de sinopse da obra de Loureiro: “Não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum panorama exterior que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada escapa do dinheiro. A produção e a reprodução são vestidas de trajes monetários” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 51).
  • 18
    18.Bishop (2012, pp. 25-26) nos diz: “In insisting upon consensual dialogue, sensitivity to difference risks becoming a new kind of repressive norm - one in which artistic strategies of disruption, intervention or overidentification are immediately ruled out as ‘unethical’. By contrast, I would argue that unease, discomfort or frustration - along with fear, contradiction, exhilaration and absurdity - can be crucial to any work’s artistic impact. This is not to say that ethics are unimportant in a work of art, nor irrelevant to politics, only that they do not always have to be announced and performed in such a direct and saintly fashion”. Vale atentar que a observação de Bishop sobre o Brasil carece de comparações mais nuançadas, ainda que seu interesse recaia sobre a obra de Augusto Boal realizada no exílio (em particular, na Argentina). Os contrastes que elabora em relação à mobilização da participação do espectador no contexto brasileiro, acaba reduzido às práticas do “sentir” e do “perceber”, e a uma dependência estrita da abstração de corte construtivo. Ainda que essas sejam características latentes, não são capazes de explicar os múltiplos impulsos que diferenciam não somente os artistas oriundos dos grupos concreto e neoconcreto, mas também artistas cuja tônica política é evidente, como o próprio Oiticica, Cildo Meirelles e, por que não, outros artistas por vezes apartados do cânone das artes visuais, como José Mojica Marins e Abdias do Nascimento.
  • 19
    19.Muito diferente é a noção de espaço público em obras de um artista como Rubens Mano. A participação do espectador e a implicação dos contextos institu-cionais, em muitos de seus projetos, buscam uma espécie de enriquecimento democrático, sem a interdição do conflito. Sugiro, para essa comparação, a obra Vazadores - elaborada para a XXV Bienal Internacional de São Paulo (2002) - e a polêmica de seu encerramento antecipado. A justificativa econômica de evasão de re-ceita da bilheteria também apontava para um déficit de universalização do acesso.
  • 20
    20.Dado que a bibliografia sobre o neoconcretismo é extensa e as omissões são inevitáveis, limito-me a indicar alguns nomes de pesquisadores que se debruçaram sobre o assunto, e que influenciaram diretamente o modo como entendo o assunto, entre eles Mário Pedrosa, Hélio Oiticica, Celso Favaretto, Paulo Herkenhoff, Sônia Salzstein, Guy Brett, Paula Braga, Sérgio Bruno Martins, Felipe Scovino, Michael Asbury e Irene V. Small.
  • 21
    21.Mombaça faz uma crítica da não racialização do debate sobre a participação. Argumenta que o exercício contínuo da produção da diferença (e o caráter emancipatório que adviria daí) proposto pela participação, se não reconhece a esfera de privilégio (branco) na qual é debatido e prat-icado, não faz mais do que ser “devorado” pelo sistema cognitivo capitalista no qual se assenta.
  • 22
    22.Trata-se da exposição “Véxoa: Nós sabemos”, com curadoria de Naine Terena, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 31 de outubro de 2020 e 22 de março de 2021. Conferir website da insti-tuição: http//:pinacoteca.org/programação/vexoa-nos-sabemos/. Acesso em: 4 nov. 2021.
  • 23
    23.Trata-se da performance Pagé-onça hackeando a 33a Bienal de Artes de São Paulo, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    07 Jun 2022
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