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CELINE ART PROJECT: NOTAS SOBRE ARTE, LUXO E A MAIORIDADE DO CAPITALISMO ARTISTA

CELINE ART PROJECT: NOTES ON ART, LUXURY, AND THE SOPHISTICATION OF ARTIST CAPITALISM

CELINE ART PROJECT: NOTAS SOBRE ARTE, LUXO Y LA MAYORIDAD DEL CAPITALISMO ARTISTA

RESUMO

Este artigo aborda as transformações ocorridas nas últimas décadas nos circuitos criativos a partir das intersecções cada vez mais substanciais entre as empresas e a arte, analisando em específico a relação entre a indústria do luxo e a arte contemporânea materializada no Celine Art Project, da grife francesa Celine, pertencente ao conglomerado LVMH. Com um método cruzado entre a história social e a sociologia da arte, este trabalho pretende demonstrar como tem sido recorrente a absorção de artistas pelas casas de luxo como estratégia para incrementar seu capital cultural. Um fenômeno focado no melhoramento simbólico dos produtos e da experiência de compra, suas consequências ainda podem ser percebidas na criação de codependências entre os artistas emergentes e as corporações.

PALAVRAS-CHAVE
Celine Art Project; Hedi Slimane; Arte contemporânea; Luxo; Capitalismo artista

ABSTRACT

This paper addresses the transformations that have occurred in recent decades in the creative circuits from the increasingly intersections between business and art; analyzing in particular the relationship between the luxury industry and contemporary art materialized in the Celine Art Project, of the French brand Celine, belonging to the LVMH conglomerate. Using a crossed method between social history and art sociology, this work intends to demonstrate how the absorption of artists by luxury houses has been recurrent as a strategy to increase their cultural capital. A phenomenon focused on the symbolic enhancement of products and the shopping experience, its consequences can still be seen in the creation of co-dependencies between emerging artists and the corporations.

KEYWORDS
Celine Art Project; Hedi Slimane; Contemporary Art; Luxury; Artist Capitalism

RESUMEN

Este artículo aborda las transformaciones ocurridas en las últimas décadas en los circuitos creativos a partir de las intersecciones cada vez más sustanciales entre las empresas y el arte, analizando en específico la relación entre la industria del lujo y el arte contemporáneo materializada en el Celine Art Project, de la marca francesa Celine, perteneciente al conglomerado LVMH. Con un método cruzado entre la historia social y la sociología del arte, este trabajo pretende demostrar cómo ha sido recurrente la absorción de artistas por las casas de lujo como estrategia para incrementar su capital cultural. Un fenómeno enfocado en el mejoramiento simbólico de los productos y la experiencia de compra, cuyas consecuencias aún pueden ser percibidas en la creación de codependencias entre los artistas emergentes y las corporaciones.

PALABRAS CLAVE
Celine Art Project; Hedi Slimane; Arte contemporáneo; Lujo; Capitalismo artista

Le luxe n'a pas favorisé la révolution de l'égalité. Mais c'est celle-ci qui explique en partie les métamorphoses de la consommation de luxe

Gilles Lipovetsky (apud LAFAY, 2015LAFAY, Denis. Gilles Lipovetsky: “Le luxe est un parfait miroir de notre civilisation”. La Tribune, 20 mai. 2015. Disponível em: https://region-aura.latribune.fr/debats/grands-entretiens/2015-05-20/gilles-lipovetsky-le-luxe-est-un-parfait-miroir-de-notre-civilisation.html. Acesso em: 9 abr. 2023.
https://region-aura.latribune.fr/debats/...
)

Depuis la fondation des grandes maisons au xix e siècle, le secteur du luxe s’est engagé (...) dans une véritable mutation. Il est passé d’une logique artisanale et familiale à une logique industrielle et financière

Elyette Roux ( 2009, p. 20ROUX, Elyette. Le luxe au temps de marques. Géoeconomie, n. 49, p. 19-36, 2009.)

PRÓLOGO

Desde meados dos anos 1980 – e em consequência do processo de globalização –, o campo da moda esteve suscetível a uma série de transformações de ordem econômica e social. A dispersão da produção para territórios antes periféricos (a oferta de mão-de-obra a valores módicos desloca a confecção para fábricas na Ásia, Norte da África e Leste Europeu [cf. ORTIZ, 2019, p. 17–18ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.]) foi acompanhada também pela descentralização dos mercados consumidores (primeiro para o Japão e Estados Unidos, depois, China [cf. JACOMET; MINVIELLE, 2014JACOMET, Dominique; MINVIELLE, Gildas. Marché, industrie et mondialisation. In Institut Français de la Mode (Org.). Mode et Luxe: économie, creation et marketing. Paris: Éditions du Regard, 2014, p. 16-48.]), ampliando a circulação dos bens para outras coordenadas. A clientela aristocrática das antigas maisons foi, ademais, suplantada por novos públicos enriquecidos para os quais a aquisição de objetos de luxo possuía outros significados culturais. Esse rejuvenescimento do consumo, respondido através de uma reestruturação da própria indústria – jovens e polêmicos designers como Alexander McQueen, John Galliano e Marc Jacobs, seriam convocados nos anos 1990 a reimaginar grandes casas como Dior, Givenchy e Louis Vuitton ( EVANS, 2012EVANS, Caroline. Fashion At the Edge: Spectacle, Modernity and Deathliness. New Haven: Yale University Press, 2012.) –, foi simultâneo à constituição dos grandes conglomerados do setor (o LVMH de Bernard Arnault, por exemplo, data de 1987) e de um estreitamento considerável entre esse universo e a produção artística: os primeiros lenços Vuitton assinados por artistas contemporâneos, como Arman e César, por exemplo, remontam a 1988.

Decorridas três décadas dessas transformações, o fenômeno arte/luxo se moderniza, tornando-se agora um tanto irrefutável. Sobre o tema, Jean-Noël Kapferer e Vincent Bastien ( 2012KAPFERER, Jean-Noël; BASTIEN, Vincent. The Luxury Strategy: Break the Rules of Marketing to Build Luxury Brands. Londres: Kogan, 2012.) chegam a falar de um processo de requalificação através do qual o luxo estaria se aproximando tanto da arte como da religião. A arte, por sua riqueza estética e simbólica e sua capacidade de chamar a atenção, ajudaria a garantir que as marcas, com seus produtos “atemporais”, permaneçam atuais e relevantes, e a religião, que contém o sagrado e promete a imortalidade, seria um tipo de correção epistemológica para um setor constantemente acusado de promover o profano do dinheiro e do consumo frívolo ( KAPFERER; BASTIEN, 2012, p. 34KAPFERER, Jean-Noël; BASTIEN, Vincent. The Luxury Strategy: Break the Rules of Marketing to Build Luxury Brands. Londres: Kogan, 2012.). Essa tese, que encontra reverberação no seminal trabalho de Luc Boltanski e Arnaud Esquerre ( 2017BOLTANSKI, Luc; ESQUERRE, Arnaud. Enrichissement: une critique de la marchandise. Paris: Gallimard, 2017.), indica que a relação nutrida entre o mundo da arte e o mundo dos negócios de luxo – um dos marcadores centrais para se apreender as estratégias de uma economia do enriquecimento – 1 1 O conceito de economia do enriquecimento, forjado por Boltanski e Esquerre ( 2017), fornece o modelo teórico que explicita as circunstâncias de avizinhamento entre campos culturais diversos (indústria e arte, por exemplo) na esteira daquilo que nomeiam ‘capitalismo integral’. Para os autores, esse processo de valoração perpassa todas as estruturas da mercadoria e institui uma definição de valor que transcende a esfera da produção (mais-valia absoluta e relativa) para descrever, alternativamente, os métodos de enriquecimento simbólico responsáveis pela distinção e sobrevida dos produtos e práticas na contemporaneidade. hoje “se torna mais pública, e serve para apoiar a publicidade de que as marcas de luxo se cercam a fim de aumentar suas vendas” ( BOLTANSKI; ESQUERRE, 2017, p. 33BOLTANSKI, Luc; ESQUERRE, Arnaud. Enrichissement: une critique de la marchandise. Paris: Gallimard, 2017.) 2 2 Exceto quando indicado o contrário, todas as traduções do francês e inglês foram feitas pelos autores deste artigo. . Lógica incorporada, grosso modo, por todos os agentes desse setor econômico, dos grandes conglomerados Richemont, LVMH e Kering, até as marcas que operam de maneira independente, como Chanel, Burberry e Hermès; o uso da arte como mecanismo de melhoramento simbólico (o “enriquecimento” que Boltanski e Esquerre explicam ser essencial para trasladar as coisas da forma mercadoria para a forma coleção) tornou-se uma máxima impossível de ser ignorada.

Se de maneira genérica experimenta-se uma associação bastante horizontalizada entre a arte contemporânea e os bens de luxo (de bolsas assinadas até a decoração de iates), de uma angulação mais específica é possível identificar estratégias muito próprias de cada uma das marcas de modo a melhor se adequarem às demandas de seus públicos consumidores: dito de outra forma, apesar de assumir ares metafenomênicos, essa relação está condicionada a questões particulares (interesses, classes de consumidores, grupos etários) que podem ser observadas quando isoladas as marcas e o uso social que fazem da arte. Será justamente no âmbito desse universo mais amplo que buscaremos entender especificamente a conexão da grife francesa Celine com uma fração emergente da arte contemporânea, uma relação que visa, poderíamos sintetizar, produzir um tipo de experiência ultraqualificada; uma espécie de abrigo, nos termos de Pinçon e Pinçon-Charlot ( 1998, p. 80PINÇON, Michel; PINÇON-CHARLOT, Monique. Grand Fortune: Dynasties of Wealth in France. Nova York: Algora, 1998.), “contra as vicissitudes da existência ordinária”.

CONTEXTOS E PRETEXTOS

A relação entre o universo da moda de luxo e a arte, sobretudo aquela dita de vanguarda, não é propriamente recente. De Charles Worth, Jacques Doucet, Paul Poiret e Elsa Schiaparelli, que foram alguns dos primeiros grandes colecionadores de arte moderna, à inserção mais recente do dispositivo artístico em lojas e passarelas, passando evidentemente pela recorrente citação – seja ela direta (livre apropriação, como no caso de Mondrian ou Gary Hume por Yves Saint Laurent) ou indireta (referenciação, caso de McQueen com Rebecca Horn ou Hans Bellmer) (cf. FIGUEREDO, 2018FIGUEREDO, Henrique Grimaldi. Entre padrões de estetização e tipologias econômicas: a economia estética na moda contemporânea a partir da passarela de Alexander McQueen (1992-2010). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2018.) – dos trabalhos de artistas celebrados, o universo da moda legitimada parece, desde sua origem, tensionar os liames e os territórios onde se produz e se reproduz a “boa arte”. Essa “boa arte” – aquela constituída narrativa e materialmente pelos circuitos especializados de galerias, instituições e agentes que regem a hierarquização e a legitimação nos mercados de símbolos – tende a ser tomada ou assaltada pela moda como uma espécie de ferramenta simbólica de promoção e diferenciação, operação que certamente (e ainda) ancora-se na “crença no valor superior da arte” ( SHAPIRO, 2007, p. 137SHAPIRO, Roberta. Que é artificação? Sociedade e Estado, vol. 22, n. 1, p. 135-151, 2007.).

Para a socióloga britânica Angela McRobbie ( 1998McROBBIE, Angela. British Fashion Design: Rag Trade or Image Industry? Londres: Routledge, 1998.), aludir a uma metodologia de trabalho imediatamente reconhecida como artística ou, ainda, envolver-se institucionalmente nesse meio serve simultaneamente para proteger os designers de uma lógica excessivamente mercadológica – um acordo compensatório com um tipo de denegação econômica, por muito tempo recorrente no campo da arte – e produzir uma marca distintiva de sua presença no mercado, valorizando sua prática e de todos os produtos a ela relacionados. Esse tipo de estratégia, que em inúmeras ocasiões utiliza o vocabulário legitimador da arte e de seus movimentos ( avant-garde, pós-moderno, desconstrutivismo) “para explicar a si mesma ao mundo que lhe é externo” ( MCROBBIE, 1998, p. 51McROBBIE, Angela. British Fashion Design: Rag Trade or Image Industry? Londres: Routledge, 1998.), instrumentaliza os códigos artísticos “como dispositivos de promoção na imprensa” ( MCROBBIE, 1998, p. 115McROBBIE, Angela. British Fashion Design: Rag Trade or Image Industry? Londres: Routledge, 1998.) cumprindo uma almejada opacidade disciplinar. 3 3 Tomando o equipamento museal para ilustrar o argumento, observamos que esse embaciamento pode ser utilizado tanto para criar um lugar de memória para um costureiro, como o Museu Pierre Cardin (Paris); para homenagear alguns elementos da moda, caso da exposição “Fashioning Masculinities: The Art of Menswear”, no Victoria & Albert Museum (Londres); ou ainda para constituir acervos, caso do Projeto Masp Moda (São Paulo). No caso da criação, transborda ainda nos produtos e práticas hibridizadas (bolsas assinadas, joias seriadas etc.) cujo valor superavitário é justificado por sua conexão com as artes visuais.

Como bem pontuado pela curadora Ginger Duggan em seu estudo sobre os desfiles performáticos que marcaram os anos 1990, as aproximações entre esses dois universos “representam um ponto significativo no desenvolvimento de um intensificado fenômeno arte/moda” ( DUGGAN, 2002, p. 3DUGGAN, Ginger Gregg. O maior espetáculo da Terra: os desfiles de moda contemporâneos e sua relação com a arte performática. Fashion Theory, vol. 1, n. 2, p. 3-30, 2002.), ainda mais contundente e rastreável na medida em que as empresas se expandem e as relações globalizam-se. Ao buscar um avizinhamento menos tangente entre campos anteriormente díspares, a moda de luxo dedica-se a executar um redesenho das fronteiras, de maneira que a ambiguidade e a imprecisão possam figurar como elementos definidores: “trata-se de um desfile ou um evento? É um vestido ou uma escultura? Isto é uma boutique ou uma galeria de arte?” ( DUGGAN, 2002, p. 4DUGGAN, Ginger Gregg. O maior espetáculo da Terra: os desfiles de moda contemporâneos e sua relação com a arte performática. Fashion Theory, vol. 1, n. 2, p. 3-30, 2002.).

Tais alterações não se reduzem apenas a um desses polos. Nas últimas décadas, por exemplo, foi possível diagnosticar uma maior financeirização da arte ( HOROWITZ, 2011HOROWITZ, Noah. Art of Deal: Contemporary Art in a Global Financial Market. Princeton: Princeton University Press, 2011., BARRAGÁN, 2020BARRAGÁN, Paco. From Roman Feria to Global Art Fair / From Olympia Festival to Neo-Liberal Biennial: On the ‘Biennialization’ of Art Fairs and the ‘Fairization’ of Biennials. Londres: ARTPULSE Editions, 2020.), cujo efeito foi a reconfiguração do ecossistema artístico, com coleções corporativas, empresas e agentes privados sendo habilitados a disputar processos de legitimação ( WU, 2006WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 1980. São Paulo: Boitempo, 2006.). Elas garantem também entrelaçamentos menos tímidos entre as marcas e os artistas, estes muitas vezes mobilizados, é preciso reconhecer, pela publicidade cruzada que assegura sua presença e relevância num mundo saturado de signos ou pelo enorme capital financeiro controlado por estas corporações. Assim, se a moda percebe na arte – e especialmente naquilo que convencionou-se chamar de arte contemporânea – um potencial transformador, artistas também encontram nas indústrias do luxo uma forma de captar recursos para viabilizar projetos antes inexequíveis: 4 4 Outro caso, mas que se relaciona ao uso da arte antiga ou moderna para melhoramento da performance de produtos de moda, é o da associação entre marcas ou redes de fast fashion com museus, dos quais podemos destacar MoMA x Dr. Martens, MoMA x Uniqlo e Zara x Reina Sofia. Ver Ábile ( 2019). “vê-se um exemplo disso no desfile de Vanessa Beecroft 5 5 Vanessa Beecroft é uma artista italiana radicada nos Estados Unidos. Utilizando-se sobretudo da performance, videoarte e fotografia, muitas das obras de Beecroft recorreram a modelos profissionais – nuas ou seminuas – com o intuito de produção de tableaux vivants. realizado no Museu Guggenheim em 1998” ( DUGGAN, 2002, p. 4DUGGAN, Ginger Gregg. O maior espetáculo da Terra: os desfiles de moda contemporâneos e sua relação com a arte performática. Fashion Theory, vol. 1, n. 2, p. 3-30, 2002.), com a participação de 50 modelos portando apenas lingeries e saltos altos Gucci, num evento patrocinado pela grife italiana.

Se outrora, ainda que houvesse encontros pontuais, era possível falar de um incontornável istmo entre arte e moda, onde a dimensão estética – esta temperada ao paladar kantiano – surgia como exclusivamente arrolada “ao universo das artes, claramente distinto do mundo das artesanias” ( NEGRIN, 2012, p. 43NEGRIN, Llewellyn. Fashion and Aesthetics, a Fraught Relationship. In GECZY, Adam; KARAMINAS, Vicki (orgs.). Fashion and Art. Londres: Berg, 2012, p. 43-54.), agora, agentes do campo da moda afirmam que as barreiras entre ambos não existem mais. Marie-Françoise Leclère, jornalista da Elle e de Le Point, escreve, por exemplo, que “não há mais limites nem contradições entre a arte e a moda, os museus e o mercado: são fronteiras fictícias” 6 6 Ver LECLÈRE ( 2009). . O que veremos, todavia, é que, diferentemente do que Leclère declara, os limites entre ambos os espaços não são fictícios, eles estão fortemente mantidos, sendo sua diferença necessária para a produção de uma requalificação ontológica dos produtos da moda de luxo. Nessa nova paisagem cultural, onde as relações entre arte e moda não estão isentas das pressões de uma economia global, do marketing de guerrilha dos conglomerados de luxo e da emergência de novas modalidades de consumo (mais complexas), é possível, portanto, enxergar alguns padrões de aproximação. Dentre eles, o Celine Art Project, apesar de recente, torna-se particularmente interessante, pois retrata as tendências mais atuais de hibridização e cruzamento entre a arte e o luxo.

Objetivando descrever como as associações entre o campo da arte e o universo da moda de luxo se relacionam com a emergência de uma forma de consumo particular, comum à maioridade de um capitalismo artista, esta digressão tomará como objeto de análise o caso do Celine Art Project. Nessa proposta, iniciada em 2019, o designer de moda francês, Hedi Slimane, atual diretor criativo da marca de luxo Celine, coordena um processo de aquisição, comissionamento e exibição de artistas contemporâneos emergentes em lojas conceito ( flagships) da marca. Elencando primeiramente os players desse projeto – entre eles o grupo de luxo LVMH, proprietário da marca Celine e um importante mediador simbólico da arte contemporânea –, discutiremos, em seguida, como uma figura de autoridade de bom gosto da arte e da moda, Hedi Slimane, também aparece como essencial nessa equação. Para demonstrar este argumento, uma vez apresentados os principais componentes desse jogo, seguiremos para uma análise concomitantemente quantitativa e qualitativa do projeto, possível a partir de uma amostra composta por 40 artistas – Tabela 17 7 Dados oficiais disponibilizados pela grife em seu site institucional. Disponível em: https://www.celine.com/en-int/celine-maison-de-couture/artistic-projects/. Acesso em: 9 abr. 2023. num recorte diacrônico que cobre desde a criação da iniciativa até julho de 2022, data da colaboração da grife com a ilustradora Renata Petersen para a produção das estampas Dysfunctional Bauhaus, a primeira da série Artist Spotlight, que visa integrar de maneira tanto mais efetiva as criações artísticas na passarela da casa. 8 8 A série Artist Spotlight, iniciada em 2022, diferencia-se do projeto do Celine Art Project (basicamente obras de arte comissionadas ou adquiridas para as flagships da marca) por integrar as criações dos artistas convidados aos produtos comercializados pela maison. As estampas desenvolvidas por Petersen, por exemplo, foram apresentadas durante o desfile masculino da grife (SS23), intitulado Dysfunctional Bauhaus, na Semana de Moda de Paris. No entanto, no que diz respeito ao objeto desta investigação, centraremos nosso olhar no Celine Art Project, que nos fornece uma amostra relativamente substancial a partir da qual certas aferições são possíveis.

Julgando que a articulação entre essa base empírica e os debates de ordem conceitual seja suficiente para apresentar – ao menos de uma perspectiva panorâmica – esse fenômeno, relacionamos, por fim, essa espécie de novo paradigma arte/luxo na contemporaneidade à emergência de outras modalidades de consumo. Estas seriam menos conspícuas, como escreveria Veblen ( 1987VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Nova Cultural, 1987.), e mais engendradas a um encadeamento no qual as práticas, objetos e lugares adquirem significado quando postos em conjunto ( ORTIZ, 2019ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.). Em outras palavras, quando, para a efetivação de um consumo “performático” realmente distintivo – e mais adequado à expressão das individualidades contemporâneas –, a aquisição de uma bolsa Chanel deve estar associada a certo estilo de vida: a frequência aos hotéis boutique e restaurantes Michelin; destinos turísticos exclusivos; os bairros e ruas da moda espalhados por Paris, Milão ou Tóquio etc.

NOMEAR OS PLAYERS

Tema caro aos sociólogos que refletiram sobre o funcionamento dos campos artísticos, a ideia de jogo (nomeadamente aquela solidificada na praxeologia bourdieusiana) é uma ferramenta conceitual bastante utilizada para testar os limites, potencialidades e tendências nesse espaço social. Poderíamos argumentar que a estabilidade de qualquer jogo social se encontra subordinada à manutenção sistemática de suas regras; de um lugar de criação da própria illusio. A um só tempo causa e consequência do jogo, as leis que balizam sua experiência e as disposições do jogador ( habitus) constituem os territórios onde se configuram as possibilidades do jogo – suas peças, seus movimentos, e particularmente os seus players, aqueles autorizados a jogar –, sendo, por isso, sua instância mais intrínseca e resguardada. A crença no jogo, processo fundamental que equilibra e oculta o universo inconsciente das ações individuais e coletivas, é o que estrutura, portanto, uma espécie de ordem das coisas, gerando uma forma de apreensão “automática do mundo social como mundo natural” ( BOURDIEU, 2013, p. 113BOURDIEU, Pierre. Capital simbólico e classes sociais. Novos Estudos, vol. 96, p. 105-115, 2013.). Pierre Bourdieu ( 1989, p. 286BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.) escreve que “qualquer instituição só pode funcionar se for instituída ao mesmo tempo, na objetividade de um jogo social e nas atitudes que levam a entrar no jogo”; o que aplicado ao nosso objeto sociológico, poderia ser ainda compreendido como os processos de reprodução ou emulação das regras da arte no universo do luxo, que visam, em última instância, fornecer as credenciais simbólicas de atuação e disputa nesse meio.

A compreensão desse jogo social – no qual uma casa de luxo habilita-se a demarcar, circular e promover a arte contemporânea – passa, por conseguinte, pela nomeação de seus players (os jogadores) e das condições materiais e simbólicas que asseguram o seu passe. Três principais players poderiam aqui ser elencados: a casa de luxo Celine; seu atual diretor criativo, Hedi Slimane, que surge – nas narrativas do grupo – como um agente cultural qualificado que possibilita esses processos; e o conglomerado de luxo ao qual pertence, o LVMH (Louis Vuitton Moët Hennessy), de Bernard Arnault.

O primeiro destes players, a marca Céline, foi fundada em 1945 por Céline Vipiana como uma loja de sapatos em couro para crianças e só irá adquirir uma orientação voltada para produtos em couro e a moda prêt-à-porter feminina, pela qual é conhecida atualmente, nos anos 1960. Iniciando sua expansão internacional em 1976, na década seguinte, em 1987, tem parte de suas ações adquiridas pelo empresário francês Bernard Arnault. Arrolada ao Comité Colbert, 9 9 Tal associação foi criada em 1954 com o objetivo de propagar uma imagem específica da França no mundo, isto é, a de que ela é um país do luxo. Ver: https://www.comitecolbert.com/membres/celine/. Acesso em: 25 out 2022. majoritariamente assumida pelo grupo LVMH e incluída na Fédération française de la couture, du prêt-à-porter des couturiers et des créateurs de mode 10 10 Constituída em 1973, a Fédération surge da Chambre syndicale de la haute couture, que tem seu primeiro formato estabelecido em 1868. Enquanto sindicato de empregadores, ela reúne as maiores marcas de moda da França e do exterior. Ver: https://fhcm.paris/fr/. Acesso em: 25 out 2022. em 1994 ( DEENY & WEISMAN, 1994DEENY, Godfrey; WEISMAN, Katherine. Guarded optimism. WWD, vol. 168, n. 70, p. 14, Gale Academic OneFile, 10 out. 1994.), a Céline foi palco, desde então, da visão de grandes estilistas. Incumbido de sua direção criativa em 1997, o designer estadunidense Michael Kors foi particularmente importante para a valorização do nome da marca através de sua ligação com o luxo. Substituído em 2004 por Roberto Menichetti, seguido de Ivana Omazie em 2005 e Phoebe Philo em 2008 (que permaneceu na casa por dez anos); desde 2018, a Céline é comandada por Hedi Slimane.

No caso de Slimane, que possui formação em História da Arte pela École du Louvre, ele inicia sua carreira trabalhando em uma exposição celebratória do monograma Vuitton ao lado de Jean-Jacques Picart. 11 11 Jean-Jacques Picart é um dos mais influentes consultores em moda e alta costura. Com um escritório de relações públicas que representou Thierry Mugler, Emanuel Ungaro, Hermès, Kenzo, Chloé, Ferragamo e Jil Sander, Picart esteve associado à Maison Christian Lacroix de 1986 a 1999. Ver: https://www.businessoffashion.com/community/people/jean-jacques-picart. Acesso em: 9 abr. 2023. Foi Picart quem também o apresentou a Pierre Bergé, rendendo-lhe o primeiro contrato como diretor de moda masculina da marca Yves Saint Laurent em 1996. Posteriormente diretor criativo de outra marca de luxo, a Dior Homme (2000-2006), Slimane “abandonou” a moda por seis anos, mudando-se para Los Angeles e dedicando-se à fotografia. Retornando em 2012 como diretor artístico da Yves Saint Laurent, ocupa desde 2018 a direção da Céline. Figura que transita naturalmente entre a arte e o luxo, Slimane é autor de diversos photobooks 12 12 Entre eles destacam-se Berlin (2003), Stage (2004), London, Birth of a Cult (2005) e Interzone (2005). e foi por dois anos (2000-2002) artista residente do KW Institute for Contemporary Art, em Berlim. Curador – nas sedes de Paris e Bruxelas da Almine Rech – da mostra “Myths and Legends of Los Angeles” (2011), com trabalhos de Chris Burden, John Baldessari, Patrick Hill, Sterling Ruby e Ed Ruscha, Slimane exibiu também suas obras em galerias e instituições em Tóquio (Koyanagi Gallery), Nova York (MOMA/PS1 e Mary Boone Gallery), Lisboa (Ellipse Foundation), Amsterdã (FOAM Museum), Zurique (Galerie Gmurzynska) e Los Angeles (MOCA Museum). 13 13 Ver: https://www.hedislimane.com/diary/. Acesso em: 13 out 2022. Autoridade que se constrói paulatinamente em dois espaços simbólicos, o designer parece, ao menos dessa angulação, acumular as condições ideais para um casamento bem-sucedido entre o luxo e a arte contemporânea.

O terceiro destes players, o grupo LVMH, criado em 1987, poderia ser identificado como a ponte que não apenas permite, mas também estrutura materialmente essa relação. Precursor na utilização de artistas como mecanismo de valorização de seus produtos – dos lenços assinados por Arman ainda em 1988, passando pelo design de suas lojas reimaginado por Stephen Sprouse e Yayoi Kusama, e a criação de uma linha de bolsas apresentadas no Louvre com Jeff Koons – o LVMH é também mantenedor da Fondation Louis Vuitton, em Paris, na qual exibe sua coleção de arte e apresenta exposições idealizadas em parceria com instituições altamente reconhecidas no campo da arte, como o MoMA. Capital simbólico acumulado, ou melhor, convertido através do uso de seu capital financeiro e social – daquilo que Moreau e Sagot-Duvauroux ( 2016MOUREAU, Nathalie; SAGOT-DUVAUROUX. Le marché de l’art contemporain. Paris: La Découverte, 2016.), Wu ( 2006WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 1980. São Paulo: Boitempo, 2006.) e Moulin ( 2007MOULIN, Raymonde. O mercado da arte: mundialização e novas tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007.) diagnosticam como as mudanças que culminam na emergência das grandes coleções corporativas de arte – o LVMH concentra ferramentas (curadores importantes, publicações, instituições etc.) que lhe auxiliam a disputar um assento no concorrido campo da arte contemporânea.

Triangulando a atuação e o significado desses ‘jogadores’, é possível argumentar que, em 2018, a contratação de Hedi Slimane foi apenas uma das estratégias aplicadas para revigorar a imagem e os produtos Céline; isto é, para além da inclusão de um designer-autor, o LVMH dedicou-se também a reestruturar todo o universo e o imaginário social relativos à casa de moda: a linha de perfumaria (com um único perfume, apresentado em 1964 e descontinuado há anos) foi relançada; lojas-conceito foram abertas em Los Angeles, Madri, Paris, Tóquio, Xangai, Londres e Milão; um ateliê de alta-costura foi criado juntamente de uma linha de moda masculina; o nome Céline – detentor de um sotaque inequivocamente francês – perdeu o acento; e em 2019 inicia-se o projeto Celine Maison de Culture (uma brincadeira com a palavra francesa couture), agregando o Celine Art Project e o programa Celine Artistic Collaboration.

A Celine de Slimane (agora sem o l’accent aigu, marca de sua definitiva internacionalização), paramentada com os instrumentos materiais e simbólicos corretos, estaria apta a pleitear novos valores narrativos (sobre o que é cultura, luxo e arte) e se consolidar no acirrado mercado de símbolos na mundialização. Metamorfoseando-se a partir da articulação entre aspectos autorais (Slimane), a tradição de uma instituição (a marca) e a atuação de um agente legitimado de promoção (LVMH), a marca francesa de alcance limitado assume a capacidade de jogar o jogo que baliza socialmente práticas simbólicas que lhe eram previamente estrangeiras.

HEDI SLIMANE: O ESTILISTA COMO CURADOR

O sociólogo Renato Ortiz ( 2019, p. 65ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.), ao designar o que chama de universo do luxo, escreve que “um universo é um território no interior do qual habita um modo de ser e de estar no mundo; ele é constituído por indivíduos, instituições, práticas e objetos”. Essa estrutura – que é um todo, “totalidade na qual a integração das partes que o compõem faz-se necessária, elas encontram-se interligadas” ( ORTIZ, 2019, p. 65ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.) – apenas funcionaria simbolicamente uma vez estabelecidos os vínculos existentes entre seus distintos pontos, dito de outra maneira, quando se inscrevem as relações entre os significantes e seus significados sociais. Dessa perspectiva, uma peça Celine como um signo isolado seria apenas um traço deste mundo luxuoso, “no entanto ao articular-se a outros objetos (lenços Hermès, bolsas Louis Vuitton, relógios Rolex) e a outras práticas (frequência a lojas chiques em Paris, viagens de avião em primeira classe, estadia em hotéis-palácios), sua natureza torna-se inteligível” ( ORTIZ, 2019, p. 8ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.). Essa noção que permite apreender a construção dos valores simbólicos em uma cadeia previamente organizada de espaços e práticas encontra certa similaridade – poderíamos provocar – com um dado campo da arte. No campo da arte, a distribuição das autoridades é igualmente assimétrica, cada um de seus pontos acumula certo valor que adquire real significado somente quando posto em relação a outras coordenadas.

A competência artística de Slimane – criada a partir da relação entre esses diferentes pontos de autorização (galerias, instituições, residências artísticas etc.) –, mantida paralelamente à construção de sua legitimidade no espaço da moda, parece gerar uma entidade hibridizada que encontrará na Celine seu espaço ideal de autorrealização. A figura do criador, de importância seminal quando pensamos na associação entre o universo da moda de luxo e a arte, 14 14 A centralização em uma pessoa dotada da autoridade de criar é um dos vários pontos comuns entre ambos os espaços: no espaço da arte, temos o artista; no espaço da moda, o estilista. O próprio surgimento do criador de moda está em alguma medida baseado no papel do artista no espaço da arte. Ver o texto “Alta Costura e Alta Cultura”, de Pierre Bourdieu em Questões de Sociologia (1983). torna-se, portanto, um objeto legítimo de análise que auxilia a explicar o seu papel expandido nos mercados culturais contemporâneos.

Apesar de ser mais conhecido pela sua atuação como estilista, Slimane trabalha continuamente como fotógrafo (ele assina projetos editoriais para publicações experimentais como a Visionaire, 15 15 Em 2000, assinou uma edição especial da revista, publicada em 6000 exemplares e comercializada como item de colecionador por 175 dólares cada. fotografa artistas e musicistas; e é dele também uma das capas de lançamento da revista Garage, dedicada à arte e à moda contemporânea). Como vimos, a relação de Slimane com a arte antecede mesmo sua notoriedade no campo da moda. Exercendo continuamente um papel de criador de moda, mas também de criador de arte, o trabalho de Slimane tende a ocupar uma zona embaciada, na qual essas práticas corriqueiramente se intercruzam.

Esse posicionamento autoral, de imposição de uma mbal de artista – como argumentariam Bourdieu e Delsaut ( 2004BOURDIEU, Pierre; DELSAUT, Yvette. O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia. In BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. Porto Alegre: Zouk, 2004, p. 113-190.) –, surge já na abordagem que ele possui na marca Celine: é o estilista que extrapola a identidade criativa e mesmo a tradição que a mbale carrega. Não há no trabalho de Slimane a tentativa de fazer roupas que sigam a linha estética ou reverenciem a costureira-fundadora da casa, partindo, ao contrário, de uma experimentação que lhe é intrínseca. Vale dizer que tal característica não existe somente no caso Slimane-Celine. O estilista, que esteve anteriormente na direção criativa da mbale Yves Saint Laurent (e na qual também instiga um encurtamento do nome para Saint Laurent), criava peças de identidade estética bastante semelhantes às que vemos atualmente na Celine, ou seja, poderíamos dizer que Slimane faz Slimane em qualquer lugar, seja na Saint Laurent, seja na Celine. É preciso reconhecer, entretanto, que esse tipo de abordagem autoral 16 16 Acerca da perspectiva autoral trazida pelos novos designers para as grifes tradicionais, podemos explicá-la talvez como uma terceira fase da evolução na profissão-estilista, sendo a primeira aquela do surgimento histórico da atividade com Charles F. Worth seguida pelo desenvolvimento de diversas casas de moda, e a segunda, a fase de substituição dos costureiros fundadores por novos designers, que são caracterizados por um maior respeito à tradição e aos arquivos da casa. A terceira fase, esta que corresponde aos substitutos dos substitutos (terceira, quarta, quinta geração ou mais de designers) se distingue pelo fato desses criadores, longe de tentarem permanecer nas sombras da maison, não se preocuparem necessariamente em reverenciar sua identidade, criando uma abordagem própria arrolada ao culto à personalidade e à inovação criativa que definem os mercados artísticos da contemporaneidade. não é exclusiva do trabalho do criador e alinha-se a uma mudança substancial dos modos de produção e consumo contemporâneos em que as coisas tendem a ser percebidas a partir de uma chave mais cultural, mais artística ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., BAUDRILLARD, 1988BAUDRILLARD, Jean. Selected Writings. Cambridge: Polity Press, 1988.). Destacam-se aqui dois de muitos exemplos possíveis: sua antecessora na Celine, Phoebe Philo, também criou uma identidade estética bastante particular durante seus anos na marca; e Daniel Roseberry, atual diretor criativo da Schiaparelli, que busca ressaltar certos pontos, como a relação da estilista-fundadora com os artistas surrealistas, e suprimir outros, como seu trabalho em peças de tricô.

Se a imposição de certo olhar autoral, por parte do estilista, sobre as marcas de moda (dessimbolizando muitas vezes a tradição da grife e de seu acervo) é uma característica marcante no universo do luxo contemporâneo, a operação que se identifica com o Celine Art Project 17 17 O Celine Art Project não é o único projeto de arte no qual Slimane está envolvido. Há ainda o Portrait of a Performer e o Portrait of an Artist. Neles, o estilista fotografa personalidades, e os resultados do trabalho são incorporados, às vezes, à própria publicidade da marca. – assinado como “Celine par Hedi Slimane” – dá um passo além. Se normalmente essa mbal da mbal – uma espécie de assinatura da assinatura – denotaria uma interpretação da marca Celine por Slimane no nível da moda, no caso do Celine Art Project, há ademais a criação, por Slimane, de uma visão parcialmente autonomizada da marca Celine sobre as coisas que se produzem no universo das artes.

Essa assinatura fica ainda mais patente uma vez compreendido como se dá a seleção dos artistas participantes. Assim como os antigos marchands d’art selecionavam os artistas que seriam objeto de seus investimentos materiais e simbólicos de promoção, o projeto nos faz crer que, da mesma maneira que o “gênio criador” de Slimane o permite criar roupas, o “gênio criador” decorrente de seu papel de marchand d’art (soberania que advém, como vimos, de sua circulação numa geografia das autoridades artísticas) o outorgaria a fazer também um trabalho de curadoria, elegendo os artistas e as narrativas que serão incorporadas ao projeto. Essa divisão de papéis entre estilista e marchand, que era a mantida por Yves Saint Laurent e Pierre Bergé, seus antigos patronos, seria então duplamente assimilada por Slimane, um agente habilitado a formar e informar a demanda ( MOULIN, 2007, p. 30MOULIN, Raymonde. O mercado da arte: mundialização e novas tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007.); isto é, que disputa e constrói, pelo acúmulo de capitais específicos, modelos referenciais na arte.

O papel do estilista como curador – embora não completamente inaudito – poderia, suspeitamos, ser tomado como um sintoma das mudanças sociais, políticas, econômicas e nas sensibilidades que desembocam na sofisticação de certo capitalismo artista, no qual as “as dimensões estéticas-imaginárias-emocionais” são agora mobilizadas “tendo em vista o lucro e a conquista dos mercados” ( LIPOVETSKY & SERROY, 2015, p. 14LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Explicando parte dos motivos do assalto do universo do luxo à arte contemporânea, essa mudança de paradigma ativa um sério processo de concentração discursiva sobre as práticas culturais que dissimula a artificialidade do mundo social – de suas relações de poder – como mundo natural. Destarte, as ‘escolhas artísticas’ de Slimane devem ser compreendidas como escolhas norteadas pelas hierarquias operantes no campo da arte que definem e autorizam alguns criadores em detrimento de outros: como logo veremos, a suposta liberação das escolhas do estilista-curador é apenas parcial, sendo exercida dentro de ‘um’ universo dos possíveis na arte – um território com fronteiras estáveis –, habitado por certos grupos de artistas a partir dos quais a seleção deve ser concretizada.

CELINE ART PROJECT E AS FRONTEIRAS ENTRE ARTE E MODA

O Celine Art Project escancara as porosidades existentes entre os espaços de produção e circulação da arte e da moda; processo certamente facilitado pelo impacto do capital financeiro de seu grande entusiasta, o grupo LVMH, em ambos os espaços de produção.

Alterando substancialmente a paisagem empresarial a partir do final dos anos 1980, a formação dos conglomerados de luxo é tema indissociável das mudanças nos padrões de consumo e circulação culturais ( JACKSON, 2004JACKSON, Tim. A Contemporary Analysis of Global Luxury Brands. In BIRTWISTLE, Grete; BRUCE, Margaret; MOORE, Christopher (orgs.). International Retail Marketing, a case study approach. Oxford: Elsevier, 2004, p. 155-169.). Alguns trabalhos pontuaram, por exemplo, como a compra de pequenas e médias empresas familiares por tais grupos possibilitaram a expansão e o alcance internacional dos negócios, ao mesmo tempo que impactaram a dimensão de inovação e criatividade nas marcas de moda ( CRANE, 1997CRANE, Diana. Globalization, Organizational Size, and Innovation in the French Luxury Fashion Industry. Production of culture theory revisited. Poetics, n. 24, p. 393-414, 1997., ROUX, 2009ROUX, Elyette. Le luxe au temps de marques. Géoeconomie, n. 49, p. 19-36, 2009.). A própria história da Celine nos demonstra isso: há uma diferença muito clara entre o alcance da marca antes e depois da compra pelo LVMH. Hoje, o espaço da moda é formado majoritariamente por tais grupos, que coordenam e abrigam em seu portfólio as marcas mais poderosas e desejadas por uma nova modalidade de consumidor.

Não restringindo sua atuação somente à área da moda – visto que “é um modo de produção estético que define o capitalismo do hiperconsumo” ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 13LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) –, é possível identificar que esses grupos passam a fazer uma série de investimentos também no espaço de produção e circulação da arte: o Mobile Art da Chanel; a plataforma Prada Transformer, desenhada por Rem Koolhaas; o HBOX, concebida por Didier Faustino e Benjamin Weil e patrocinada pela Hermès; as muitas exposições de arte que usufruíram do capital do universo do luxo. Tais investimentos, que por sua vez não foram menosprezados pelos agentes originários dos campos artísticos, permitiram que os grupos de luxo passassem a ser vistos, ao menos em certa medida, como instituições reconhecidas de mediação simbólica da arte.

Esses diálogos, sempre pautados por relações de poder desiguais entre seus agentes – a natureza distinta entre arte e moda faz pender os processos de definição em favor da primeira –, ocasionalmente podem colidir com experiências nas quais essas fronteiras são constrangidas. Mas, se sugerimos uma associação entre arte e moda no contexto desse projeto, é porque partimos da premissa de que há uma divisão entre os espaços de produção de uma coisa e outra. Isso significa que, ainda que haja comunicação entre eles, seus respectivos campos simbólicos são mantidos, bem como seus respectivos limites. Em outras palavras, a arte continua sendo arte e a moda continua sendo moda.

Mobilizando o caso do Celine Art Project, percebe-se que há um movimento no qual, ainda que ambos os espaços envolvidos estejam em plena expansão e possuam fronteiras porosas, essas fronteiras são bem definidas. Ou seja, os produtos desses espaços são tão específicos que não há perigo deles se misturarem, e menos ainda que percam suas qualificações e características próprias por conta desse encontro: a escultura é a escultura, a bolsa é a bolsa, e mesmo que exista alguma contaminação, esta é sofisticadamente contida. Um modo de se observar a manutenção dessas qualificações e características é entender que ainda que o discurso de certos agentes (e aqui, principalmente daqueles da moda) caminhe no sentido de afirmar o fim das fronteiras entre arte e moda, a divulgação nas mídias específicas demonstra o contrário: o Celine Art Project foi publicizado tanto pela Sotheby’s, uma das quatro casas de leilões mais antigas do mundo, como pela Vogue, revista de moda que ocupa certa centralidade nos discursos desse espaço social. Apesar do material de divulgação ter sido semelhante (com fotos e textos explicativos) nas duas mídias, o Celine Art Project foi comentado pelos detalhes que definem as especificidades das respectivas publicações: a arte, pela Sotheby’s 18 18 Disponível em: https://www.sothebys.com/en/articles/the-celine-art-project-at-the-nexus-of-art-and-fashion-renata-petersen-mel-kendrick-hu-xiaoyuan-oscar-tuazon-rochelle-goldberg. Acesso em: 14 out. 2022. e a moda, pela Vogue. 19 19 Disponível em: https://vogue.gr/suzy-menkes/suzypfw-celine-s-art-project/. Acesso em: 14 out. 2022.

Nesse sentido, podemos compreender que a arte, que não está na maioria das vezes diretamente aplicada ao item de moda, encontra-se ali para elevar a experiência da compra. Isso mostra que não há sentido em afirmar que arte e moda são dois espaços semelhantes ou equiparáveis, mas sim dois espaços que se encontram em um estado específico, de autonomia relativa: é por existirem fronteiras tão bem definidas que não se confunde o que é arte e o que é moda; mas é também pelo fato de essas fronteiras terem alguma porosidade que essa associação está habilitada a ocorrer – é a partir da manutenção do status de/da arte que se torna possível ensaiar uma mbalenão do luxo. 20 20 A ideia de artificação, forjada pelas sociólogas francesas Nathalie Heinich e Roberta Shapiro ( 2012, 2013) trata de explicar como se dá a passagem da não arte para a arte. Da forma como as duas intelectuais concebem esse fenômeno, para que algo se artifique é necessário que o faça em relação a algo já previamente artificado (de um bem ou prática entendido como arte). No que diz respeito ao nosso objeto, entendemos que a presença da arte contemporânea no universo do luxo serve justamente para isso, estabelecer um modelo segundo o qual o luxo se artificaria parcialmente, elevando tanto sua cotação simbólica como seu valor financeiro.

UM BREVE ESTUDO MORFOLÓGICO DO CELINE ART PROJECT

Desde a sua criação em 2019, o Celine Art Project contabilizou a incorporação de 40 artistas ao seu acervo. Esse corpus de obras, curatorialmente constituído por Slimane, é também adensado por cinco colaborações diretas com os produtos da casa, no contexto do chamado Celine Artistic Collaboration – Tabela 1 e Tabela 2. Especificamente sobre esse segundo caso, o que vemos são criações aplicadas às peças da Celine ou peças seriadas em pequena escala – um tipo de alta joalheria (descrita como Haute Maroquinerie) criada em prata ou vermeil – licenciadas através de espólios ou fundações de artistas celebrados, como César e Louise Nevelson. Uma vez criados, esses objetos são desfilados nas apresentações oficiais da marca e integram as coleções comercializadas exclusivamente nas suas lojas mais importantes.

Tabela 1.
Artistas (por ordem alfabética de sobrenome) com obras comissionadas ou adquiridas pelo Celine Art Project (2019-2022).

Tabela 2.
Programa Celine Artistic Collaboration (2019-2022).

Embora interessante para se compreender a natureza da hibridização perseguida entre arte e moda hoje, no caso da Celine, uma atenção especial parece ser dirigida ao braço do projeto que redimensiona a experiência espacial e fenomênica da compra. Desse modo, se nos atermos aos dados recolhidos e tratados sobre o Celine Art Project, podemos fazer algumas aferições. O acervo criado por Slimane para a casa é composto 97,5% de peças contemporâneas (com exceção de uma pintura do século XVII abrigada em uma das flagships de Londres), sendo o trabalho mais antigo registrado uma peça de 1991. Grande parte das obras é datada do ano da colaboração do artista com a mbale, o que de uma perspectiva prática pode ser interpretado como uma predileção por obras comissionadas (prática bastante comum no mecenato artístico), isto é, aquelas desenvolvidas especificamente para uma de suas flagships. Em relação ao tipo de suporte, 80% encaixam-se na categoria ‘escultura’, com certa inclinação por objetos em madeira, cerâmica ou metal, dispostos diretamente sobre o piso ou em plintos, com uma escala cromática alinhada à identidade visual da marca e à decoração clínica de suas lojas Figura 1

Figura 1.
José D’Ávila, Aporía IV, 2017. Escultura, dimensões variadas, flagship Celine Madison, Nova York.

Em relação aos nomes selecionados, salta aos olhos o fato de serem majoritariamente artistas emergentes ou mais conhecidos em suas realidades nacionais – caso, por exemplo, dos brasileiros Artur Lescher e Paloma Bosquê, indicada ao Prêmio PIPA 24 24 Maior honraria brasileira conferida à produção artística contemporânea. em 2015, 2016 e 2017 –, o que segue uma abordagem distinta de outras casas de luxo que investem em arte. Nomes celebrados – os stars da arte contemporânea, terminologia do sociólogo Alain Quemin ( 2013QUEMIN, Alain. Les stars de l'art contemporain. Notoriété et consécration artistiques dans les arts visuels. Paris: CNRS, 2013.) – como Damien Hirst, Jeff Koons ou Maurizio Cattelan não são o foco do projeto. Essa operação singular denota inclusive um sentido de sofisticação, como se Slimane – grande connaisseur da arte e dos artistas – estivesse imprimindo sua visão sobre o que há de melhor qualidade na produção contemporânea e disputando simultaneamente um espaço de autorização dessas legitimidades. Assim como o grupo LVMH que financia o projeto, Slimane aparece também como um mediador da “boa arte”.

Embora seja essa a abordagem das aquisições e comissionamentos da Celine par Slimane, há por detrás dessa operação uma obediência às regras do jogo da arte; isto é, para que a legitimação da escolha aconteça é preciso respeitar ou emular essas regulações. Essa estratégia pode ser facilmente apreendida na página que a marca dedica a cada um dos artistas no site do projeto: além de uma fotografia da obra e da localização da flagship onde foi instalada, o Celine Art Project apresenta a trajetória dos criadores, destacando sua pesquisa plástica, os seus temas, mas sobretudo – e aqui é que ocorre a confirmação da legitimidade da prática – uma lista com suas exposições em importantes museus, bienais e galerias, assim como os prêmios recebidos. 25 25 Este era o layout da página do projeto em outubro de 2022.

Se a consolidação da posição desses artistas no campo e do efeito de sua arte para o melhoramento simbólico da casa depende desses sinais objetivados – a exposição dos “pequenos eventos históricos” acumulados e que atestam sua importância 26 26 Para a socióloga e economista francesa Nathalie Moureau ( 2017), a entrada de um artista para a história da arte e a sua hierarquização frente aos seus pares depende do acúmulo de pequenos eventos históricos. Esses eventos podem ser muitos – a entrada em uma coleção importante, uma exposição, a publicação de um catálogo etc. – e são eles que balizam tais posições no campo artístico. No caso do Celine Art Project, a manutenção de biografias dos artistas com essas informações funciona de maneira a produzir uma credibilidade incontestável para a iniciativa e mitigar qualquer dúvida acerca de sua relevância cultural. ( MOUREAU, 2017MOUREAU, Nathalie. Tout ce qui brille n’est point or. Ouvrirouver, vol. 13, n. 2, p. 436-457, 2017.) – é porque a dignificação do luxo ainda está condicionada em sua relação com um tipo de arte previamente testado e autorizado. Se “a obra é feita não duas, mas cem vezes, mil vezes, por todos que se interessam por ela” ( BOURDIEU, 1996, p. 198BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), e o “o discurso sobre a obra não é um simples adjuvante, destinado a favorecer-lhe a apreciação, mas um momento da produção da obra, de seu sentido e seu valor” ( BOURDIEU, 1996, p. 197BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), a forma como Slimane articula essas dimensões – seja nos veículos em que o projeto é divulgado, seja no modo como esses discursos são alinhados em sua página institucional – visa delimitar a fronteira, especificando que aquilo ali exposto é uma obra de arte e garantindo que esta exerça o efeito notabilizador de uma obra de arte, preceito que, no cerne de um capitalismo das coisas artísticas, é o factualmente perseguido e alvejado.

A MAIORIDADE DO CAPITALISMO ARTISTA

Da tese de que o desenvolvimento do capitalismo financeiro global não exclui os processos estetizantes que poderiam em alguma medida contrariar os modelos fordistas vigentes, os teóricos franceses Gilles Lipovetsky e Jean Serroy ( 2015LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) apontam como que, racionalmente e de maneira generalizada, o aspecto artístico e cultural passa a ser mobilizado com o intuito de ampliar os mercados: são as economias estetizadas (termo proposto pela socióloga britânica Joanne Entwistle), no qual a qualidade estética – seja uma aparência ou um estilo – encontra-se mercantilizada, isto é, “definida e calculada como um mercado em si e vendida visando lucro” ( ENTWISTLE, 2009, p. 10ENTWISTLE, Joanne. The Aesthetic Economy of Fashion: Market and Values in Clothing and Modelling. Oxford: Berg, 2009.).

Esse modelo, nomeado por Lipovetsky e Serroy ( 2015LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) como capitalismo artista, seria caracterizado também por um trabalho sistemático de “estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração generalizada da arte, do look e do afeto no universo consumista” ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Respondendo aos processos de individualização das subjetividades e da emergência de um consumo mais performativo, o reenquadramento ontológico das práticas culturais é o que explicaria, para eles, as investidas da indústria do luxo sobre a arte contemporânea e outras modalidades da cultura legítima. 27 27 A própria ideia de "indústria do luxo", que à primeira vista incorreria em um paradoxo (luxo = raridade; indústria = massificação, serialização) é ela mesma um traço desse capitalismo artista. Assim, é só em um capitalismo artista que faria sentido falar em termos de indústria de luxo; é nesse modelo econômico que podemos pensar e sistematizar as intervenções dos grupos empresariais sobre as artes e seus circuitos.

Dessa angulação, o tipo de consumo que define o que chamamos de maioridade do capitalismo artista seria então um modo superqualificado de apropriação das coisas e das práticas que nas realidades globalizadas – diga-se, atravessadas por profundos processos de serialização da vida – serviriam como elementos particulares de diferenciação. Vimos em Ortiz ( 2019ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.) que os objetos e as práticas de luxo apenas adquirem significado quando posicionadas de maneira relacional. Esse universo do luxo, que se manifesta materialmente no mundo dos ricos, torna-se a casa ideal desse outro tipo especializado de consumo tanto material como “performático”, no sentido de indicar um movimento aberto à observação de um terceiro (sobretudo de seus pares, os outros ricos).

O Restaurante Beige, localizado em Tóquio, por exemplo, está situado no último andar de um prédio de propriedade da Chanel, no mesmo edifício que abriga uma grande flagship da marca, no bairro de Ginza – lugar conhecido por suas inúmeras boutiques de luxo. O ambiente assinado por Peter Marino – arquiteto-griffe –, além de possuir decoração, paleta de cores e organização que segue a identidade visual da Chanel, apresenta um menu assinado por Alain Ducasse, o chef que acumula o maior número de estrelas Michelin. 28 28 O Guia Michelin, publicado pela primeira vez em 1900, foi criado como um guia turístico que visava promover o mercado automobilístico. Adotando desde 1931 o sistema de uma, duas ou três estrelas como uma “premiação” para os restaurantes de maior qualidade, o guia transformou-se na maior distinção concedida no campo da gastronomia. Dessa perspectiva, é natural que o luxo, que carrega a excelência e raridade como elementos essenciais, tenha se aproximado a este universo nos novos empreendimentos que desenvolve. Os hotéis, spas ou museus gerenciados pela indústria do luxo, quando incorporam o elemento gastronômico, fazem-no exclusivamente através desse traço distintivo. Há ainda o caso do Palazzo Versace. A marca italiana atualmente é proprietária de dois hotéis de luxo, um na Austrália e outro nos Emirados Árabes. A decoração acompanha os elementos visuais da casa e possui uma série de comodidades, dentre elas, nove restaurantes e bares onde os consumidores podem viver o melhor da “experiência” da grife. Já a Vogue, cujo foco é a moda de luxo, tem se tornado cada vez mais uma publicação que divulga e norteia um certo estilo de vida – digamos, um certo savoir-vivre – mantendo sessões sobre gastronomia e os melhores restaurantes; viagens e os melhores roteiros; artes e as melhores exposições, dentre outros tópicos que poderiam vir a interessar os habitantes desse mundo dos ricos.

No caso do Celine Art Project, esse modelo que descrevemos e que põe distintas frequências e práticas do luxo em relação, parece ser ainda mais qualificado. Nesse sentido, as nuances são bastante reveladoras: o caso não é de uma pessoa que consome um produto da marca Celine e depois vai visitar uma galeria de arte; ou de alguém que compra um tailleur Chanel e em seguida vai almoçar no restaurante Beige; muito menos de uma pessoa que pessoa que faz compras na Versace e tem uma estadia no hotel da marca. No caso do Celine Art Project, as pessoas consomem os produtos Celine e apreciam a arte ao mesmo tempo, manifestação de um estilo de vida “elevado”, sendo a arte a alavanca última da distinção.

O encontro entre moda e arte no contexto desse empreendimento seria, então, reconhecido pelos agentes que ocupam determinado espaço social, ou seja, aquilo que Ortiz ( 2019ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.) descreve como o mundo dos ricos; um lugar em que o consumo tende a ser mais estetizado e diferenciado. Em suma, a apropriação simultânea de duas esferas culturais já definidas como distintivas (a arte e o luxo) indicaria, por sua vez, uma dimensão um tanto mais teatralizada e graduada de consumo; de um consumo que –embora característico desse capitalismo artista – atingiria sua maioridade em espaços hibridizados, como as flagships Celine.

O PAPEL DAS FLAGSHIPS NO CELINE ART PROJECT

Especificamente no caso da Celine, a marca possui produtos distribuídos em faixas de preço bastante diversas, de modo que a associação de seu produto de moda com a experiência de apreciação de obras de arte contemporânea indica mais uma tentativa de segmentação desses consumidores do que seu alargamento. Como bem explicado por Renato Ortiz ( 2019ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.), apesar de o universo do luxo e o mundo dos ricos serem espaços em plena expansão, de alcance global, eles são estruturas hiper-restritas; e este olhar direcionado para o lugar em que ocorrem as diferentes formas de consumo de uma marca, uma maneira de coletar as pistas que clarificam esse ponto.

No caso da Celine Art Project, a articulação entre moda e arte não se encontra exposta em todas as suas lojas. Ainda que existam mais de 150 lojas Celine no mundo, as obras cuidadosamente eleitas por Slimane somente estão presentes nas flagships. Existe uma série de detalhes que definem as flagships e que as diferenciam de outros tipos de lojas. A flagship é a loja que carrega o conceito da marca em sua essência. Ela materializa a narrativa da marca, tem uma arquitetura singular e uma seleção própria de produtos, que são também expostos de forma específica ( SUDJIC, 2010SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.).

A flagship é um elemento importante de nossa análise, na medida em que ela aparece como território comum entre os espaços da moda e da arte, e mais do que simples matéria, é também uma linguagem. Tais espaços deixam, portanto, de ser tomados a partir de uma separação categórica arte/produto; e a manutenção da diferença entre eles também deixa de restringir-se à mobilização de elementos um do outro. Esse território comum, por sua vez, é seguramente projetado por um arquiteto importante 29 29 Provavelmente um ganhador do Prêmio Pritzker, a maior honraria da arquitetura. Uma rápida verificação de flagships de marcas como Louis Vuitton, Prada, Chanel, Hermès e Dior, indica que elas compartilham entre si essa dimensão: são todos projetos de profissionais laureados com o Pritzker. ( SUDJIC, 2010SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.), um dos fatores que permite com que a arte não seja excessivamente corrompida pela “vulgaridade” das relações mercadológicas. Ao mesmo tempo, as roupas e acessórios, com ares de itens artísticos, partilham os expositores e a iluminação “museológica” desses territórios, sofrendo uma transubstanciação qualquer.

Em síntese, as flagships da Celine – Gráfico 1 –, que recebem as obras de arte curadas por Slimane, são especializadas como espaços em plena hibridação entre loja de luxo e galeria de arte. Ao passo em que tais lojas consomem-se e apreciam-se simultaneamente as modas e as artes (mas também, como vimos, a arquitetura), as flagships aparecem como um espaço ideal para o consumo teatralizado e hiperqualificado que caracteriza o capitalismo dos nossos dias.

A localização dessas flagships constitui outro ponto que requer atenção. Ortiz ( 2019ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.) argumenta que, ao refletirmos sobre o universo do luxo, a unidade geográfica que mais se destaca são endereços específicos de cidades singulares. Em outros termos, a unidade geográfica não será toda a cidade de Paris, por exemplo, mas sim a Avenida Montaigne ou a Rue François 1er, no Triangle D’Or; tampouco será toda a cidade de Milão, mas o Quadrilatero mba Moda. Ao cruzarmos esses endereços com outras lojas Celine, é possível ainda observar como a opção de manter as obras de arte em flagships e não em qualquer loja (que, embora ocupem endereços igualmente prestigiosos, tendem a ser mais acessíveis que as primeiras) indica as mencionadas características de hiper-restrição, de um acesso permitido a apenas uma pequena parcela dos habitantes desse mundo dos ricos.

Consumir Celine em uma flagship assinada por um arquiteto de grife e na qual encontram-se expostas obras de arte seria, então, inegavelmente mais performático e distintivo que consumir Celine em uma loja que é mbale e simbolicamente mais acessível, como sua unidade na Galeries Lafayette, em Paris. Considerando, ainda, que independentemente de onde se compra os produtos da marca, os consumidores da Celine dispõem de um certo nível de recursos financeiros, não seria absurdo sugerir que essa nova modalidade de consumo identificada em projetos como o Celine Art Project denotaria uma forma de alguns ricos teatralizarem e estilizarem seus padrões de consumo diante de outros ricos.

Gráfico 1.
Número de obras totais do Celine Art Project distribuídas por flagships (2019-2022).

Se pudermos propor uma última reflexão sobre o tipo de arte exposta nessas lojas, uma outra provocação ainda seria possível. Se o reconhecimento dos códigos, mais do que a simples portabilidade de objetos de luxo, tem se tornado o mecanismo mais eficiente de distinção, identificar uma obra de David Adamo ou Paul Gees (artistas do projeto) seria ligeiramente mais eficiente como trunfo simbólico que o excessivamente midiático Damien Hirst. Hirst certamente é um artista mais estável em termos de reconhecimento e infinitamente mais caro que seus concorrentes, mas para a operação de elevação que se deseja explorar nessas espacialidades, a curadoria de Slimane é precisa em ressaltar os artistas conhecidos – mas não exageradamente – como um aspecto que assevera a dimensão singularizada do consumo. Se a ideia de capitalismo artista é um recurso conceitual analítico das relações econômicas na contemporaneidade, poderíamos afirmar que o Celine Art Project é um exemplo heurístico que nos permite apreender suas formas histórica e socialmente assumidas.

NOTAS DE SAÍDA

“Luxo e moda são, ambos, instrumentos de diferenciação individual, porém, hoje, somente o luxo associa-se a uma hierarquia social latente, por isso somente o luxo é responsável por uma re-hierarquização também latente”, escreve Ortiz ( 2019, p. 244ORTIZ, Renato. Universo do luxo. São Paulo: Alameda, 2019.) ao designar que muitas são as modas, mas que o luxo, como elemento de dominação simbólica, ocupa uma dimensão específica – e talvez a mais diferenciada – nas sociedades capitalistas contemporâneas. Se o luxo é o bastião final dos processos de distinção e elevação, interessa às empresas não apenas fazer moda (por mais cara que esta seja), mas criar objetos e experiências super qualificadas que forneçam ao (neo) consumidor o arsenal de que carece.

Os usos da arte e a noção do criador de objetos de luxo que se identifica com o artista em sua versão romântica são aparatos simbólicos que comprimem ou fissuram as fronteiras disciplinares. Se o objetivo é a zona final de indefinição – de, como estabelece Le Bail ( 2011, p. 100LE BAIL, Stéphanie. Le Luxe, entre business et culture: évolutions, actualité et perspectiu mbalen modèle français. Paris: France-Empire, 2011.), onde “o luxo é arte e a arte é um luxo” –, estratégias são continuamente tomadas e sofisticadas para a obtenção desse resultado. O Celine Art Project – que converge aspectos práticos (o comissionamento de obras de arte, a loja-galeria, a experiência teatralizada de compra) e narrativos (o estilista curador) – trabalha não só pela conformação de uma distinção, mas também pela legitimidade simbólica de um padrão que se consolida como referencial para a efetivação da própria diferença.

Nessa batalha que não é entre o luxo e o não luxo, mas que se dá, ao contrário, nas trincheiras simbólicas de seu próprio espaço social hiper-restrito, experimenta-se a disputa pela constituição dos padrões culturais nas esferas mais elevadas. Como mediador, não interessa ao LVMH replicar a operação para todas as suas casas, o que diluiria seu efeito de raridade. Isso torna, portanto, a Celine de Slimane um caso especialmente significativo para se compreender as lógicas de hibridização nas economias do capitalismo artista. No entanto, é perceptível que o grupo parece também estar interessado em levar essa ideia do consumo simultâneo de arte e dos produtos de luxo para outras marcas de seu portfólio. É como interpretamos, por exemplo, o caso ainda mais recente da Guerlain e seu projeto Bee Art by Guerlain, iniciativa que engloba e dinamiza todas as ações da empresa no âmbito da arte e no âmbito da ecologia. A mais recente exposição, inaugurada em 2022, leva o nome de “Les Militantes”, e foi promovida em parceria com Paris+ par Art Basel, uma das feiras de arte mais reconhecidas do planeta e que estreava em Paris naquele ano.

Cada vez mais recorrente, os usos sociais da arte como mecanismo de artealização 30 30 A ideia de artealização que adotamos neste ponto, em alternativa ao termo artificação ( SHAPIRO, 2007), objetiva ressaltar o elemento mágico que envolve as operações de transubstanciação do luxo e de seu consumo através da arte. A artealização (uma ritualização através da arte) acerca, nesse sentido, os objetos de luxo (embora raros, serializados) à dimensão totêmica do fetiche religioso. dos objetos e práticas de luxo possuem efeitos sensíveis – e às vezes funestos – sobre os mais diversos campos culturais. Nesse universo, nada é gratuito. Se o luxo lança mão de imensos recursos econômicos e institucionais para fagocitar a arte, da mais legitimada às práticas ainda emergentes, é porque esta é o objeto mais eficiente para a obtenção de seus fins, cujo desfecho (e independentemente dos discursos de encantamento e celebração dos artistas) tende a ser sempre financeiro: como empresas globais compostas por acionistas e obedientes a uma lógica de mercado, seu objetivo é o lucro.

Convergindo então os instrumentos materiais (altos investimentos), institucionais (toda a estrutura do grupo LVMH), as influências (capital social negociado em círculos privilegiados) e logísticos (toda uma cadeia globalizada de distribuição), parecem poucos os agentes ou artistas que poderiam realmente se impor frente aos avanços do universo do luxo sobre a arte. Se esta tende a ser a nova lógica dos mercados simbólicos de hoje, poderíamos concluir esta análise com dois questionamentos de grande envergadura: Quanto do valor final dos produtos Celine se deve a sua relação com a arte contemporânea? e Até onde a grife atua influindo na consolidação e circulação das carreiras dos artistas? E mais, como os novos Médicis da contemporaneidade, estaria o universo do luxo apto a encetar ou desacelerar certas narrativas na história da arte? Estes são tópicos que apenas o tempo e uma sistemática observação científica poderão responder.

REFERÊNCIAS

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  • WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 1980. São Paulo: Boitempo, 2006.

NOTAS

  • 1
    O conceito de economia do enriquecimento, forjado por Boltanski e Esquerre ( 2017BOLTANSKI, Luc; ESQUERRE, Arnaud. Enrichissement: une critique de la marchandise. Paris: Gallimard, 2017.), fornece o modelo teórico que explicita as circunstâncias de avizinhamento entre campos culturais diversos (indústria e arte, por exemplo) na esteira daquilo que nomeiam ‘capitalismo integral’. Para os autores, esse processo de valoração perpassa todas as estruturas da mercadoria e institui uma definição de valor que transcende a esfera da produção (mais-valia absoluta e relativa) para descrever, alternativamente, os métodos de enriquecimento simbólico responsáveis pela distinção e sobrevida dos produtos e práticas na contemporaneidade.
  • 2
    Exceto quando indicado o contrário, todas as traduções do francês e inglês foram feitas pelos autores deste artigo.
  • 3
    Tomando o equipamento museal para ilustrar o argumento, observamos que esse embaciamento pode ser utilizado tanto para criar um lugar de memória para um costureiro, como o Museu Pierre Cardin (Paris); para homenagear alguns elementos da moda, caso da exposição “Fashioning Masculinities: The Art of Menswear”, no Victoria & Albert Museum (Londres); ou ainda para constituir acervos, caso do Projeto Masp Moda (São Paulo). No caso da criação, transborda ainda nos produtos e práticas hibridizadas (bolsas assinadas, joias seriadas etc.) cujo valor superavitário é justificado por sua conexão com as artes visuais.
  • 4
    Outro caso, mas que se relaciona ao uso da arte antiga ou moderna para melhoramento da performance de produtos de moda, é o da associação entre marcas ou redes de fast fashion com museus, dos quais podemos destacar MoMA x Dr. Martens, MoMA x Uniqlo e Zara x Reina Sofia. Ver Ábile ( 2019ÁBILE, Bárbara Venturini. Da grife de luxo ao fast-fashion: uma análise das estratégias de produção de coleções colaborativas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Estadual de Campinas, 2019.).
  • 5
    Vanessa Beecroft é uma artista italiana radicada nos Estados Unidos. Utilizando-se sobretudo da performance, videoarte e fotografia, muitas das obras de Beecroft recorreram a modelos profissionais – nuas ou seminuas – com o intuito de produção de tableaux vivants.
  • 6
    Ver LECLÈRE ( 2009LECLÈRE, Marie-Françoise mbale emballe Hong Kong. Le Point, 4 jun. 2009.).
  • 7
    Dados oficiais disponibilizados pela grife em seu site institucional. Disponível em: https://www.celine.com/en-int/celine-maison-de-couture/artistic-projects/. Acesso em: 9 abr. 2023.
  • 8
    A série Artist Spotlight, iniciada em 2022, diferencia-se do projeto do Celine Art Project (basicamente obras de arte comissionadas ou adquiridas para as flagships da marca) por integrar as criações dos artistas convidados aos produtos comercializados pela maison. As estampas desenvolvidas por Petersen, por exemplo, foram apresentadas durante o desfile masculino da grife (SS23), intitulado Dysfunctional Bauhaus, na Semana de Moda de Paris. No entanto, no que diz respeito ao objeto desta investigação, centraremos nosso olhar no Celine Art Project, que nos fornece uma amostra relativamente substancial a partir da qual certas aferições são possíveis.
  • 9
    Tal associação foi criada em 1954 com o objetivo de propagar uma imagem específica da França no mundo, isto é, a de que ela é um país do luxo. Ver: https://www.comitecolbert.com/membres/celine/. Acesso em: 25 out 2022.
  • 10
    Constituída em 1973, a Fédération surge da Chambre syndicale de la haute couture, que tem seu primeiro formato estabelecido em 1868. Enquanto sindicato de empregadores, ela reúne as maiores marcas de moda da França e do exterior. Ver: https://fhcm.paris/fr/. Acesso em: 25 out 2022.
  • 11
    Jean-Jacques Picart é um dos mais influentes consultores em moda e alta costura. Com um escritório de relações públicas que representou Thierry Mugler, Emanuel Ungaro, Hermès, Kenzo, Chloé, Ferragamo e Jil Sander, Picart esteve associado à Maison Christian Lacroix de 1986 a 1999. Ver: https://www.businessoffashion.com/community/people/jean-jacques-picart. Acesso em: 9 abr. 2023.
  • 12
    Entre eles destacam-se Berlin (2003), Stage (2004), London, Birth of a Cult (2005) e Interzone (2005).
  • 13
    Ver: https://www.hedislimane.com/diary/. Acesso em: 13 out 2022.
  • 14
    A centralização em uma pessoa dotada da autoridade de criar é um dos vários pontos comuns entre ambos os espaços: no espaço da arte, temos o artista; no espaço da moda, o estilista. O próprio surgimento do criador de moda está em alguma medida baseado no papel do artista no espaço da arte. Ver o texto “Alta Costura e Alta Cultura”, de Pierre Bourdieu em Questões de Sociologia (1983BOURDIEU, Pierre. Alta costura e alta cultura. In BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 154-161.).
  • 15
    Em 2000, assinou uma edição especial da revista, publicada em 6000 exemplares e comercializada como item de colecionador por 175 dólares cada.
  • 16
    Acerca da perspectiva autoral trazida pelos novos designers para as grifes tradicionais, podemos explicá-la talvez como uma terceira fase da evolução na profissão-estilista, sendo a primeira aquela do surgimento histórico da atividade com Charles F. Worth seguida pelo desenvolvimento de diversas casas de moda, e a segunda, a fase de substituição dos costureiros fundadores por novos designers, que são caracterizados por um maior respeito à tradição e aos arquivos da casa. A terceira fase, esta que corresponde aos substitutos dos substitutos (terceira, quarta, quinta geração ou mais de designers) se distingue pelo fato desses criadores, longe de tentarem permanecer nas sombras da maison, não se preocuparem necessariamente em reverenciar sua identidade, criando uma abordagem própria arrolada ao culto à personalidade e à inovação criativa que definem os mercados artísticos da contemporaneidade.
  • 17
    O Celine Art Project não é o único projeto de arte no qual Slimane está envolvido. Há ainda o Portrait of a Performer e o Portrait of an Artist. Neles, o estilista fotografa personalidades, e os resultados do trabalho são incorporados, às vezes, à própria publicidade da marca.
  • 18
  • 19
    Disponível em: https://vogue.gr/suzy-menkes/suzypfw-celine-s-art-project/. Acesso em: 14 out. 2022.
  • 20
    A ideia de artificação, forjada pelas sociólogas francesas Nathalie Heinich e Roberta Shapiro ( 2012SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Nathalie. De l’artification: enquêtes sur le passage à l’art. Paris: EHESS, 2012., 2013SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Nathalie. Quando há artificação? Sociedade e Estado, vol 28, n. 1, p. 14-28, 2013.) trata de explicar como se dá a passagem da não arte para a arte. Da forma como as duas intelectuais concebem esse fenômeno, para que algo se artifique é necessário que o faça em relação a algo já previamente artificado (de um bem ou prática entendido como arte). No que diz respeito ao nosso objeto, entendemos que a presença da arte contemporânea no universo do luxo serve justamente para isso, estabelecer um modelo segundo o qual o luxo se artificaria parcialmente, elevando tanto sua cotação simbólica como seu valor financeiro.
  • 21
    A partir dos dados disponibilizados em: https://www.celine.com/en-int/celine-maison-de-couture/artistic-projects/. Acesso em: 11out. 2022.
  • 22
  • 23
  • 24
    Maior honraria brasileira conferida à produção artística contemporânea.
  • 25
    Este era o layout da página do projeto em outubro de 2022.
  • 26
    Para a socióloga e economista francesa Nathalie Moureau ( 2017MOUREAU, Nathalie. Tout ce qui brille n’est point or. Ouvrirouver, vol. 13, n. 2, p. 436-457, 2017.), a entrada de um artista para a história da arte e a sua hierarquização frente aos seus pares depende do acúmulo de pequenos eventos históricos. Esses eventos podem ser muitos – a entrada em uma coleção importante, uma exposição, a publicação de um catálogo etc. – e são eles que balizam tais posições no campo artístico. No caso do Celine Art Project, a manutenção de biografias dos artistas com essas informações funciona de maneira a produzir uma credibilidade incontestável para a iniciativa e mitigar qualquer dúvida acerca de sua relevância cultural.
  • 27
    A própria ideia de "indústria do luxo", que à primeira vista incorreria em um paradoxo (luxo = raridade; indústria = massificação, serialização) é ela mesma um traço desse capitalismo artista. Assim, é só em um capitalismo artista que faria sentido falar em termos de indústria de luxo; é nesse modelo econômico que podemos pensar e sistematizar as intervenções dos grupos empresariais sobre as artes e seus circuitos.
  • 28
    O Guia Michelin, publicado pela primeira vez em 1900, foi criado como um guia turístico que visava promover o mercado automobilístico. Adotando desde 1931 o sistema de uma, duas ou três estrelas como uma “premiação” para os restaurantes de maior qualidade, o guia transformou-se na maior distinção concedida no campo da gastronomia. Dessa perspectiva, é natural que o luxo, que carrega a excelência e raridade como elementos essenciais, tenha se aproximado a este universo nos novos empreendimentos que desenvolve. Os hotéis, spas ou museus gerenciados pela indústria do luxo, quando incorporam o elemento gastronômico, fazem-no exclusivamente através desse traço distintivo.
  • 29
    Provavelmente um ganhador do Prêmio Pritzker, a maior honraria da arquitetura. Uma rápida verificação de flagships de marcas como Louis Vuitton, Prada, Chanel, Hermès e Dior, indica que elas compartilham entre si essa dimensão: são todos projetos de profissionais laureados com o Pritzker.
  • 30
    A ideia de artealização que adotamos neste ponto, em alternativa ao termo artificação ( SHAPIRO, 2007SHAPIRO, Roberta. Que é artificação? Sociedade e Estado, vol. 22, n. 1, p. 135-151, 2007.), objetiva ressaltar o elemento mágico que envolve as operações de transubstanciação do luxo e de seu consumo através da arte. A artealização (uma ritualização através da arte) acerca, nesse sentido, os objetos de luxo (embora raros, serializados) à dimensão totêmica do fetiche religioso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2023
  • Aceito
    05 Abr 2023
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