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REFORMA DO ESTADO, DESCENTRALIZAÇÃO E AUTONOMIA FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS

STATE REFORM, DECENTRALIZATION AND FINANCIAL AUTONOMY OF LOCAL GOVERNMENT

RESUMO

Este artigo discute o processo de descentralização no Brasil da perspectiva do grau de autonomia financeira desfrutada pelos municípios brasileiros com população superior a 100 mil habitantes, considerados como os mais aptos a experimentar um maior protagonismo na implementação das políticas públicas. Após apresentar indicadores de que os municípios vêm assumindo maiores responsabilidades no financiamento das políticas consideradas direitos dos cidadãos brasileiros, adicionam-se outros dados que mostram o aumento da arrecadação fiscal ao longo da década de 1990, indicando que os municípios de médio e grande porte estão ampliando sua autonomia financeira por meio da melhoria na sua administração tributária, não obstante continuarem a depender das receitas de transferências. A evidência de que a União vem diminuindo sua participação no financiamento das políticas públicas torna necessário que os municípios continuem empenhados em maior esforço fiscal, sendo que esse objetivo poderá ser alcançado principalmente por uma melhora na arrecadação do IPTU.

PALAVRAS-CHAVE
Política pública; tributação; desenvolvimento regional

ABSTRACT

This article aimed at the Brazilian decentralization process concerning the cities with population between one hundred thousand and one million inhabitants and their level of financial autonomy. The article not only analyses the performance of the medium cities and their capacity of assuming greater responsibilities in the implementation of public policies but also analyses some statistics from the last decade. This analysis pointed out that the medium cities are increasing their financial autonomy in consequence of some changes in the public income management despite the fact that the medium cities still depend on the income transferred from state and central government. In addition, the budget for public policies from the central government is shrinking what should stimulate the implementation of public policies aimed at a growth on the public income, specially on IPTU.

KEYWORDS
Public policy; taxation; regional development

1 INTRODUÇÃO

A década de 1990 foi marcada pelo intenso debate acerca da globalização e seus reflexos sobre as estruturas sociais, políticas e espaciais. Tais reflexos suscitaram uma série de reformas estruturais que as agências multilaterais, em particular, o Banco Mundial, passaram a defender como necessárias para dar suporte a um capitalismo cada vez mais livre de barreiras nacionais. Entre essas reformas, destaca-se a “reforma do Estado”, objeto de pelo menos dois Relatórios do Desenvolvimento Mundial elaborados pelo BIRD ao longo dessa década. As principais estratégias propostas foram a privatização do setor produtivo estatal e a descentralização das estruturas de governo.

No Brasil, a descentralização governamental ganhou forte impulso a partir da Constituição Federal de 1988 com a inclusão dos municípios como um terceiro nível federativo, ampliando suas competências, mas também garantindo-lhes maior autonomia financeira. A partir daí, os municípios vêm acumulando novas responsabilidades, que incluem, além dos serviços de Saúde e Educação, muitas outras funções, podendo estender-se até a participação na política de regularização fundiária que o Ministério da Justiça anunciou como um de seus principais projetos no Governo Lula (2003/2007).

O objetivo deste artigo é discutir o processo de descentralização no Brasil, avaliando o grau de autonomia desfrutado pelos municípios brasileiros com população superior a 100 mil habitantes. Além dessa introdução, o artigo apresenta três seções. Na segunda, apresentamos indicadores de despesas públicas no período 1996-98 para delinear como os governos municipais vêm assumindo maiores compromissos no financiamento das políticas públicas. Na terceira seção, analisamos alguns itens das finanças municipais das “cidades médias” e capitais estaduais, conjunto de municípios com maior potencial de autonomia financeira e, portanto, de serem protagonistas das políticas públicas. Na quarta, elaboramos algumas reflexões à guisa de conclusões sobre o processo de descentralização experimentado pelos municípios brasileiros.

2 A DESCENTRALIZAÇÃO É UMA DAS FACES DA REFORMA DO ESTADO

Durante o período 1930-1980, o Brasil experimentou uma mudança extraordinária na sua estrutura social, produtiva, demográfica e política. Até a Revolução de 1930 - e a Grande Depressão de 1929 -, o país era essencialmente rural e dependente das agroexportações. A partir daí, houve um intenso processo de industrialização, e um outro, ainda mais acelerado, de urbanização da população. Em 1940, menos de uma terça parte da população (31,2%) vivia em áreas urbanas, mas, em 1980, esse índice já havia alcançado dois terços.1 23

Esse crescimento demográfico está associado às transformações na estrutura produtiva, com a Indústria passando a contribuir com 40,56% do PIB, em 1980, enquanto a Agropecuária diminuía sua participação a apenas 10,2%. A superação da condição de país agrícola levou à expansão do PIB per capita de R$ 637,00s em 19474 para R$ 2.686,00, em 1980. A partir desse ano, e até 1996, esse valor variou pouco, mas sempre mantendo um valor inferior ao vigente em 1996, tendo somente voltado a crescer a taxas modestíssimas, em 1997. Em 2001, o PIB per capita do país era de R$ 2.922,00, apenas 8,8% superior àquele de 1980.

No período 1930-1980, a expansão econômica e a modernização das estruturas sociais, políticas, demográficas e econômica estiveram associadas à intervenção estatal num contexto de afirmação das políticas keynesianas, de ampliação de direitos sociais e da concepção cepalina, segundo a qual a industrialização era considerada instrumento de superação do subdesenvolvimento. A implementação exitosa de dois planos de desenvolvimento, o Plano de Metas (1956-1961) e o II PND (1974-79), permitiu que praticamente se completasse a estrutura industrial no Brasil, elevando o país à condição de potência regional. Nos dois planos, o investimento público do governo federal foi o mecanismo que sustentou o êxito daquelas políticas, o que teria permitido a “marcha forçada” da economia brasileira mesmo após a desaceleração do crescimento econômico, na segunda metade da década de 1970. Aquele período foi, enfim, marcado pela constituição do país como uma nação, segundo o eminente economista Celso Furtado, por ter articulado as distintas regiões do país em torno do projeto nacional de industrialização.

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a taxa de investimentos caiu significativamente, resultado da crise econômica, mas, em particular, em função da incapacidade do governo federal de sustentar as taxas de investimento que tinha realizado principalmente no período de 1950 a 1970. Em 1980, a taxa de investimentos5 5 Como percentagem do PIB e a preços de 1980, segundo a fonte IPEADATA. foi de cerca de 24%, declinando em seguida até atingir o nível mais baixo, correspondente a cerca de 14%, em 1992. Após a estabilização monetária de 1995, mediante a implantação do Plano Real, houve uma pequena melhora nessa taxa, mas esta tem se mantido em torno de 16% do PIB. Esse desempenho está associado à retração do setor público. Segundo o IBGE (Contas Nacionais do Brasil), o investimento público declinou significativamente em proporção à taxa de investimento global na economia brasileira. A tabela abaixo apresenta a composição dos investimentos, segundo a origem do capital.

TABELA 1
TAXA DE INVESTIMENTO, POR ORIGEM DO CAPITAL 1996-2000

Os dados acima apontam um declínio da contribuição do Setor Público para o nível dos investimentos na economia brasileira. Cabe destacar que esse declínio é mais significativo no âmbito das Empresas Públicas, mais do que na Administração Pública, devido ao aprofundamento do processo de privatização do setor produtivo estatal, uma das faces da “Reforma do Estado” ocorrida ao longo da década de 1990. É dentro desse contexto que a descentralização assume uma importância ímpar, como a outra face da “Reforma do Estado”, no sentido de busca por relegitimação.

A pesquisa “Despesas Públicas Por Funções 1996-1998”, do IBGE, consolida a estrutura das despesas públicas segundo os três níveis da Administração Pública e permite analisar a contribuição da União, estados e municípios6 6 Os dados sobre municípios cobrem apenas 245 dos 5.567 municípios brasileiros. Os municípios incluídos na pesquisa são capitais estaduais e municípios localizados em regiões metropolitanas, além de alguns cujas elevadas participações no PIB estadual os levaram a ser incluídos na amostra. A importância da amostra pode ser inferida a partir do percentual de população dos municípios incluídos em relação à população dos estados da região Sudeste: no Espírito Santo, a população dos municípios incluídos na amostra correspondeu a 48,8%, em Minas Gerais, 30,4%, no Rio de Janeiro, 79,4% e, em São Paulo, correspondeu a 53,5%. para os investimentos públicos, além de fornecer indicadores sobre as despesas nos setores que correspondem aos direitos dos cidadãos brasileiros, conforme expresso na Constituição Federal de 1988.

TABELA 2
DESPESAS PÚBLICAS: PARTICIPAÇÃO PERCENTUAL DAS DESPESAS NÃO-FINANCEIRAS E DESPESAS COM CAPITAL (INVESTIMENTOS) NAS DESPESAS TOTAIS DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS

Os dados acima nos permitem destacar dois fenômenos. O primeiro refere-se ao declínio das despesas não-financeiras como parte das despesas da União, o que se traduz num avanço das despesas financeiras, as quais incluem Juros, Amortizações e Inversões Financeiras. Em 1998, esses itens das despesas financeiras corresponderam, respectivamente, a 7,53%, 41,22% e 13,39% das despesas totais da União. Portanto, a incapacidade de sustentar investimentos é decorrente do crescente comprometimento do Governo Federal com a dívida pública. Nos níveis estaduais e municipais, há maior controle sobre o processo de endividamento, inclusive por parte da União, que, até a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal em maio de 2000, vinha assumindo parte das dívidas das instâncias sub-nacionais de governo, uma vez que era a avalista, quando não a credora, daquelas dívidas. De todo modo, causa preocupação a trajetória ascendente do comprometimento do dispêndio público com as despesas relacionadas ao endividamento do Estado brasileiro, particularmente da União.

O segundo fenômeno a ser destacado refere-se ao “ciclo político” do gasto público. O maior percentual de investimento municipal foi observado em 1996, ano de eleições de prefeitos. Quanto aos estados, o maior percentual de despesas com investimentos ocorreu justamente em 1998, ano de eleições de governadores. Os “investimentos eleitoreiros” poderão ser limitados após a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, devido ao impedimento de comprometer despesas que não podem ser pagas no mesmo mandato ou sem reserva de receitas para enfrentar o fluxo de despesas que ficarem para outro mandato governamental. De todo modo, a evidência do “ciclo político” indica que as eleições constituem poderoso instrumento de alocação da despesa pública em favor de investimentos que, mesmo sem informações sobre sua natureza, supõe-se que atendam a demandas da população.

O maior comprometimento das despesas da União com a dívida e sua incapacidade de manter níveis de investimentos são percebidos como impactos da globalização financeira, traduzida pelo aumento dos investimentos externos diretos e, principalmente, pelos fluxos de capitais especulativos, aplicados em mercados voláteis. O difícil enfrentamento na esfera nacional desse fenômeno internacional torna o setor público mais vulnerável, enfrentando crises de legitimidade no âmbito nacional. Cresce, portanto, a tendência de transferir aos níveis subnacionais de governo antigos compromissos, em particular, aqueles que se referem a direitos já conquistados pelos cidadãos e que estão expressos na Constituição Federal. As tabelas 3 e 4 apresentam os gastos públicos segundo níveis de governo em setores selecionados, aqueles correspondentes aos direitos dos cidadãos.

TABELA 3
DESPESAS PÚBLICAS: PARTICIPAÇÃO PERCENTUAL DE SETORES SELECIONADOS NAS DESPESAS DA UNIÃO, DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS (EM %)
TABELA 4
DESPESAS PÚBLICAS: PARTICIPAÇÃO PERCENTUAL DE CADA NÍVEL DE GOVERNO NA DESPESA TOTAL DO PODER PÚBLICO EM SETORES SELECIONADOS (EM %)

Habitação, Saúde e Educação são direitos sociais, conforme disposto no art. 6o da Constituição Federal. Desenvolvimento Urbano e Saneamento foram incluídos por constituírem setores nos quais o gasto público é fundamental para permitir melhores condições de vida e terem impacto positivo no cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano. O setor Proteção Social inclui os subsetores Trabalho, Assistência Social e Previdência Social, todos são direitos sociais. No setor Ordem e Segurança Pública, estão incluídos subsetores correspondentes a direitos civis, casos do Policiamento Militar, da Defesa Civil e do Judiciário.

Conforme indicam os dados, a União compromete percentuais significativos de suas despesas com os setores relativos a Proteção Social e Ordem e Segurança Pública. O primeiro refere-se a responsabilidade típica do governo federal, conforme expresso na Constituição Federal, por incluir a Previdência Social, item mais significativo das despesas não-financeiras dos governos urbi et orbi.7 7 Em seu estudo comparativo sobre federalismo fiscal, ASENCIO (2000) analisa a estrutura das finanças públicas, considerando a presença ou a ausência do orçamento da Previdência Social, que, em função de sua magnitude, pode mascarar o processo de descentralização nas federações por ele analisadas. Dos gastos totais efetuados nesse setor, a União contribui com mais de 75%. Já o segundo refere-se a um setor da competência principal dos governos estaduais, os quais destinam pelo menos 70% dos gastos nesse setor, devido aos impactos do Judiciário e do Policiamento Militar.

Na esfera dos governos estaduais, como na União, o setor Proteção Social é o principal comprometimento das despesas estaduais, ainda que sua participação

Além desses dois setores, os governos estaduais são os principais responsáveis pelos gastos em Habitação. Os estados são responsáveis por mais de 50% dos dispêndios públicos nesse setor, observando-se uma participação declinante da União e, inversamente, um aumento da participação dos gastos municipais, os quais já correspondem a um quarto dos gastos em Habitação. Pode-se inferir desse resultado que os municípios devam estar assumindo novas responsabilidades no atendimento de demandas que representam direitos dos cidadãos em face da retração dos dois níveis governamentais superiores.

Entre os governos municipais, os maiores comprometimentos das despesas referem-se aos setores Saúde e Educação. Trata-se dos dois setores nos quais houve maior avanço no processo de descentralização na prestação dos serviços, com a União alocando para eles de 2 a 4% do seu orçamento global. Apesar de percentuais baixos, o dispêndio do governo federal na Saúde corresponde a mais de 50% do gasto no setor, sendo, portanto, seu principal financiador. No setor da Educação, são os governos estaduais que financiam mais de 50% dos gastos públicos, ficando a União responsável por aproximadamente 30%.

Ainda no que tange aos municípios, cabe destacar a trajetória ascendente da participação do setor Proteção Social nos gastos públicos. Apesar de os municípios financiarem apenas cerca de 3% dos recursos totais do setor, esses valores vêm crescendo e consumindo uma parcela também crescente do orçamento municipal em função da elevação das despesas com o subsetor Assistência Social.

Os governos municipais destinam parcelas significativas, porém menores que nos setores acima mencionados, em Desenvolvimento Urbano e Saneamento. Em ambos, houve redução dos percentuais em relação às despesas totais dos municípios. No entanto, correspondem claramente a responsabilidades municipais, dado que as prefeituras participam com valores superiores a 60% dos gastos totais nesses setores. Nos dois casos, os governos estaduais aumentaram significativamente sua participação no financiamento, verificando-se uma estagnação no financiamento da União. Esse crescente financiamento na esfera estadual pode estar relacionado com o anteriormente aludido “ciclo político”, dado que 1998 foi ano de eleições para governadores. De todo modo, o financiamento decrescente em Saneamento, cujos investimentos estão praticamente paralisados, pode estar relacionado com os impasses sobre a qual esfera de governo cabe a responsabilidade de regular o setor: aos estados, como já vinham fazendo por intermédio de empresas estatais, ou aos municípios, em conformidade com a autonomia municipal conquistada em 1988?

Cabe finalizar, destacando o aumento da contribuição dos municípios em quase todos os setores considerados. Apenas naqueles dois onde o financiamento era responsabilidade dos governos municipais, Desenvolvimento Urbano e Saneamento, houve diminuição da contribuição dos municípios. Nos demais, houve transferência de responsabilidade no financiamento para os governos municipais, num processo de descentralização claramente definido. Esse aumento de encargos na esfera dos governos locais suscita grande preocupação quanto à responsabilidade dos executivos municipais em assumirem novas funções, considerando os distintos graus de autonomia financeira desfrutada pelos 5.567 municípios brasileiros.

3 A DESCENTRALIZAÇÃO FOI ACOMPANHADA DE AUMENTO DA ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

A arrecadação tributária, que durante o regime militar (1964-1985) havia sido estabilizada em aproximadamente 25% do PIB, elevou-se para 30% No fim da década de 1990, alcançando um percentual superior aos 36%, em 2002 (GIAMBIAGI e ALÉM, 1999GIAMBIAGI, Fábio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas municipais. Rio de Janeiro: Campus e Secretaria do Tesouro Nacional, 1999.). Essa elevação da carga impositiva foi produzida num contexto de recuo do “Estado Desenvolvimentista” e de implementação de reformas constitucionais que vêm redefinindo o papel do Estado. Conforme indicado na seção anterior, essa maior apropriação da renda nacional pelo Estado não ampliou as bases fiscais do setor público, permitindo-lhe financiar investimentos produtivos em infra-estrutura social, mas, ao contrário, aumentou as suas despesas financeiras.

A União aumentou sua fatia na arrecadação tributária, criando novos tributos não partilháveis com os estados e municípios, como a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira - CPMF - ou a Contribuição Social sobre o Lucro Liquido - CSLL. No nível estadual, houve significativa elevação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS -, que teve ampliada as suas fontes geradoras. Entre os municípios também ocorreu um significativo esforço fiscal, não apenas por meio da efetiva cobrança dos impostos municipais, tornada uma obrigação após a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas também pela estagnação das receitas de transferências da União e dos estados, resultando num maior esforço em relação à política de arrecadação própria municipal.

Nos primeiros anos após a entrada em vigor da Constituição Federal, o maior impacto na elevação das receitas municipais foi proporcionado pelo acréscimo das transferências. Contudo, o aumento de responsabilidades assumidas pelos municípios, em face da diminuição dos gastos federais, vem se refletindo em novas necessidades de financiamento municipal, que devem ser atendidas por sua própria arrecadação. Assim, nos dez anos seguintes à promulgação da atual Constituição,

o volume de recursos próprios dos municípios elevou-se em cerca de R$ 9,7 bilhões, um acréscimo de aproximadamente 197%. Seu crescimento médio anual foi duas vezes mais rápido que o dos tributos estaduais e cerca de três vezes o dos federais.

E, ainda,

nunca os municípios tiveram uma importância relativa tão elevada na administração pública nacional. Pelo lado da despesa, os últimos dados das contas nacionais (1999) revelam que, em 1998, os municípios responderam por 19% da folha de pagamento de todos os servidores públicos ativos no país, por 39% das aquisições de bens e serviços para custeio e por cerca de metade da formação bruta de capital fixo dos governos. Pelo lado dos maiores programas sociais do governo, o peso dos municípios em sua execução já se aproxima da casa dos 30% do gasto nacional com ensino e saúde (J. R. e ARAÚJO, 2000J. R., Affonso e ARAÚJO, Erika. A capacidade de gastos dos municípios brasileiros. Arrecadação própria e receita disponível. Cadernos Adenauer, n. 4. Os municípios e as eleições de 2000. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, junho 2000.).

Apesar da elevação nas receitas tributárias municipais, ainda são as transferências constitucionais as principais fontes das receitas municipais: a quota-parte do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS - representou 24,3% das receitas correntes líquidas dos Municípios em 2001, mais do que o Fundo de Participação dos Municípios - FPM, com 18%.8 8 Esses percentuais referem-se a médias das receitas municipais de 4.884 municípios para os quais havia dados financeiros disponíveis, o que corresponde a 90% do total dos municípios brasileiros (FERREIRA, MORAES e ARAÚJO, 2002). As receitas tributárias próprias representaram 18,9% das receitas, das quais a mais importante manteve-se com o ISS, com 8,2%, seguido do IPTU, com 6,6%. Esses valores são diferentes quando agrupamos os municípios segundo classes de tamanho de sua população. Em apenas 167 municípios a receita tributária própria foi superior à média nacional (18,9%), 104 dos quais com população superior a 50 mil habitantes. Aliás, esses municípios com mais de 50 mil habitantes foram responsáveis pela arrecadação de 91% dos impostos municipais. No que concerne à contribuição das transferências constitucionais, o FPM é a parcela mais significativa das receitas dos pequenos municípios e o ICMS é mais importante para os municípios de médio e grande porte: aqueles com população inferior a 50 mil habitantes apropriaram-se de 64% do FPM, mas apenas 30% do ICMS. Nessas localidades, os valores do FPM correspondem, em média, a parcelas de 45 a 80% de suas receitas correntes líquidas.

O processo de descentralização vem sendo experimentando de forma muito distinta entre os 5.567 municípios brasileiros. Para cerca de 90%, a dependência financeira do FPM e das transferências voluntárias é vital, donde se conclui que a transferência de responsabilidades da União e dos estados os torna muito dependentes de articulação em redes federativas, verticais e horizontais. Entre os municípios maiores, em particular entre os de população superior a 100 mil habitantes, a descentralização pode ser acompanhada de alguma autonomia financeira que lhes permita financiar projetos de interesse local. Nessas condições, tais municípios passam a experimentar um inédito protagonismo nas políticas públicas.

As tabelas a seguir permitem avaliar a situação financeira das cidades médias e capitais estaduais durante a década de 1990. Os dados de finanças públicas estão disponíveis na Secretaria do Tesouro, nos arquivos “FINBRA”, Finanças do Brasil, para os diversos anos aqui considerados. Há variação na cobertura do universo das cidades com mais de 100 mil habitantes entre os anos da série, entretanto, os dados coletados cobrem aproximadamente 90% do universo dos municípios pesquisados. As metrópoles com população superior a 1 milhão de habitantes, no entanto, não estão com o mesmo nível de cobertura, especialmente no primeiro período considerado, de 1991 a 1994. Pode-se, contudo, afirmar que são elas que auferem os maiores valores per capita de tributos próprios, o que lhes permite apresentar menor grau de dependência das receitas de transferências. Financeiramente, portanto, são municípios com maior autonomia, o que os capacita a formular e implementar políticas de interesse local.

Nesse trabalho, levantamos os principais componentes das receitas municipais - IPTU, ISS, FPM e ICMS, além de um indicador de despesa, o gasto com investimentos. Todos os valores são apresentados em termos per capita. Foram consideradas as cidades com população superior a 100 mil habitantes, sendo que as capitais estaduais foram agrupadas separadamente porque sua condição de sede de governo lhes assegura uma dinâmica distinta das demais cidades. Estas, por sua vez, foram divididas entre metropolitanas e não-metropolitanas, sendo as primeiras localizadas em regiões metropolitanas e as demais no interior dos estados. Além das 27 capitais estaduais, foram incluídas 198 “cidades médias”, 81 das quais “metropolitanas” e 117 ditas “não-metropolitanas”. Cabe acrescentar, por fim, que o período considerado, anos 90, foi dividido em três partes: 1991/94, período marcado por intenso processo inflacionário; 1995/98, período de estabilização monetária; 1999/2000, após a desvalorização cambial com a superação da política da “âncora cambial”.

TABELA 5
EVOLUÇÃO DA RECEITA TRIBUTÁRIA PER CAPITA E DOS INVESTIMENTOS PER CAPITA

A descentralização governamental pode ser experimentada como instrumento de fortalecimento dos municípios desde que eles desfrutem de autonomia financeira proporcionada pelas suas bases fiscais. Os municípios com mais de 100 mil habitantes são aqueles que têm maior potencial de arrecadação tributária própria. No entanto, mesmo entre estes, as principais componentes das receitas municipais são as transferências constitucionais, em particular, a quota-parte do ICMS. Cabe destacar, entretanto, que houve elevação generalizada na arrecadação tributária per capita nos municípios com população superior a 100 mil habitantes ao longo da década de 1990, à exceção das cidades médias, metropolitanas e não-metropolitanas, da região Nordeste. No Sudeste, ao contrário, os valores arrecadados foram, em média, os mais elevados, seguidos daqueles apresentados pelos municípios da região Sul. As regiões Centro-Oeste e Norte, de ocupação mais recente, também fizeram um esforço crescente de melhorar sua arrecadação, ainda que os valores per capita tivessem sido sempre inferiores aos das duas regiões mais desenvolvidas, Sudeste e Sul.

O grupo das capitais estaduais apresentou um desempenho superior ao das cidades médias metropolitanas e não-metropolitanas no que concerne à arrecadação de tributos próprios. Esse resultado está associado à peculiaridade desses municípios, sedes de governos estaduais, que sustentam um nível de atividade econômico que os torna destinos de fluxos migratórios, em particular nas regiões mais deprimidas, no Nordeste, contribuindo para melhorar suas bases fiscais. Por motivos similares, e pelo “transbordamento” da população dos núcleos das regiões metropolitanas, os municípios considerados “cidades médias metropolitanas” também apresentaram melhores resultados em relação aos não-metropolitanos, à exceção dos localizados no Centro-Oeste, região que vem sendo ocupada por atividades agroindustriais, cuja localização acompanha a produção primária, menos concentrada espacialmente. Constatou-se, ainda que no Sudeste e Sul a distância entre a arrecadação dos tributos municipais de cidades médias metropolitanas e não-metropolitanas foi pequena, o que sugere que nessas regiões o maior desenvolvimento econômico vem sendo acompanhado de maior equilíbrio espacial, permitindo ampliar as bases fiscais das cidades médias do interior sudestino e sulista.

Esse desempenho guarda relação com a evolução do nível dos investimentos municipais per capita, ou seja, onde houve maior arrecadação tributária própria, foram observados maiores níveis de investimentos municipais per capita. Cabe registrar, entretanto, que, no Sudeste, as cidades médias não-metropolitanas investiram valores mais altos do que as metropolitanas, mesmo tendo arrecadado valores mais baixos de tributos próprios. Isso pode estar levando a um diferencial de condições de vida favorável a essas cidades, em relação às metropolitanas, o que as torna destinos mais atraentes aos fluxos migratórios, fenômeno que vem ocorrendo também entre as cidades médias não-metropolitanas do Centro-Oeste. Conforme já foi observado (SANTOS, 2003SANTOS, Angela Moulin S. Penalva. O desafio da gestão local em cidades de porte médio. Economia, Espaço e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2003 (no prelo).), durante o período 1996-2000, a taxa de crescimento demográfico das cidades médias não-metropolitanas, em relação às metropolitanas, só foi superior nessas duas regiões: no Sudeste, foi de 8,6% ao ano entre as cidades médias não-metropolitanas, sendo de apenas 1,3% entre as metropolitanas; no Centro-Oeste, esses percentuais foram, respectivamente, 35,4% e 10,8%. Esse maior dinamismo demográfico pode conduzir, no entanto, a uma maior intensidade no uso do equipamento e infra-estrutura dessas cidades, reproduzindo ampliadamente novas necessidades de financiamento, em contexto marcado por forte mobilidade da população associada à falta de crescimento econômico.

TABELA 6
EVOLUÇÃO DAS RECEITAS DE IPTU E ISS PER CAPITA

As principais fontes de arrecadação tributária são o IPTU e o ISS. Esse último é o principal item das receitas tributárias municipais. Esse resultado está associado ao fato de que se trata de um imposto indireto, de fácil cobrança, e é arrecadado mais intensamente onde haja maior nível de atividade econômica, motivo pelo qual é a base de arrecadação fiscal própria das cidades aqui consideradas. Pelos mesmos motivos, é no Sudeste onde se arrecadam os maiores valores desse imposto, principalmente pelo impacto das capitais estaduais, onde a arrecadação média representa aproximadamente de duas a três vezes o conjunto das capitais estaduais brasileiras. Entre as cidades médias, a arrecadação do ISS é também significativamente superior à das cidades das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste e um pouco superior à das cidades sulistas. É preciso frisar, entretanto, que os valores médios do ISS foram se elevando sistematicamente ao longo dos anos 90, indicando que o esforço por melhoria na administração fazendária foi generalizado entre os municípios com mais de 100 mil habitantes.

O IPTU é um imposto direto, incidente sobre o patrimônio imobiliário, mais difícil de ampliar as bases de arrecadação por dois motivos principais: por um lado, uma elevação da carga impostiva é mais facilmente percebida, o que aumenta as resistências dos contribuintes, por outro lado, o crescimento do patrimônio imobiliário nem sempre é incluído no cadastro de imóveis, seja por dificuldades de atualização relacionadas à pouca capacitação técnica do pessoal das prefeituras, seja pela irregularidade de grande parte dos novos imóveis, fenômeno que vem sendo chamado de “cidade ilegal”. Ainda assim, é preciso comemorar a elevação também generalizada da arrecadação média per capita desse tributo. Mais uma vez, é preciso destacar os valores arrecadados nas cidades do Sudeste, especialmente nas suas capitais, como os mais elevados. As cidades nordestinas fugiram novamente à regra, observando-se declínio dos valores arrecadados em todos os grupos de cidades, inclusive nas suas capitais estaduais. Quando se comparam os resultados das cidades médias metropolitanas e não-metropolitanas, verificase que as primeiras conseguiram arrecadar mais em todas as regiões, sendo que apenas no Sul houve diferença pequena entre o desempenho das metropolitanas e não-metropolitanas. Esse resultado sugere que há espaço para crescimento da arrecadação desse imposto, principalmente entre as cidades não-metropolitanas do Sudeste e Centro-Oeste, nas quais o crescimento demográfico acentuou-se na segunda metade da década de 1990. Caso não seja retomada a expansão da economia, acredito que o aumento da arrecadação do IPTU deverá ser o suporte de novas melhorias na administração fazendária que se reflitam na elevação da arrecadação tributária própria. Conforme verificado para o caso dos municípios fluminenses (SANTOS, op. cit.), a relação entre imóveis cadastrados e aqueles onde há efetivo recolhimento do IPTU é de aproximadamente 50%. Se essa relação for observada entre a maioria dos municípios brasileiros - ou, pelo menos, entre as cidades médias e grandes, as quais vêm apresentado maior dinamismo demográfico -, pode-se alimentar a expectativa de que haverá maior arrecadação desse tributo, ampliando as receitas municipais.

Mesmo entre as cidades mais populosas, as receitas municipais ainda dependem basicamente das transferências constitucionais, das quais as mais importantes são o FPM e a quota-parte do ICMS. A maior dependência de receitas de transferências não implica que os municípios tenham pouca autonomia uma vez que essas duas transferências estão garantidas constitucionalmente, e também porque, devido ao critério de distribuição dessas transferências, os municípios mais dependentes do ICMS são aqueles de maior dinamismo econômico, o que torna a quota-parte do ICMS uma virtual receita própria. No que respeita ao FPM, entretanto, a maior dependência dessa fonte de recursos é um indicador de falta de dinamismo, e, portanto, de limitada autonomia financeira. Não causa surpresa, assim, constatar que são as cidades localizadas na região sudestina aquelas em que a participação do ICMS é maior.

Os anos 90 foram marcados pela estagnação econômica, com o PIB brasileiro tendo se expandido, em média, aproximadamente 2% ao ano, o que deixou a renda per capita praticamente estagnada. No entanto, ocorreu um movimento expansivo no país no período 1995-98, quando houve a estabilização monetária sustentada na política da âncora cambial. Esse comportamento da economia brasileira refletiu-se na evolução da arrecadação do ICMS, que cresceu nesse período, mas declinou no último biênio da década em todas as regiões, assim como nos dois grupos de cidades médias e no grupo das capitais estaduais. Ainda assim, o ICMS manteve-se como principal item das receitas municipais, o que nos leva a considerar o efeito positivo que a retomada do crescimento econômico trará para os governos municipais, o que, certamente, fortalecerá as prefeituras como atores das políticas públicas.

Diferentemente das demais fontes de receitas municipais, o ICMS contribui com valores per capita superiores nas cidades médias em relação às capitais estaduais. Isso porque as atividades industriais vêm abandonando as áreas metropolitanas, evitando seus crescentes custos de aglomeração, tendendo a ocupar preferentemente as cidades de médio porte localizadas nas regiões mais dinâmicas do país.9 9 O processo de desindustrialização das metrópoles está em curso nos países industrializados, inclusive no Brasil, verificando-se uma crescente especialização das metrópoles em serviços, como os de telecomunicações, publicidade e financeiros. Esses fenômenos estão discutidos em muitos autores, entre os quais VALLADARES e PRETECEILLE (1990), BENKO (1995) e SASSEN (1998). Por isso, nas regiões Sudeste e Sul, a arrecadação do ICMS é muito similar para os dois grupos de cidades médias; no Centro-Oeste e, em men or medida, também no Nordeste, as cidades não-metropolitanas recebem valores bem mais elevados do que as metropolitanas, ocorrendo o inverso entre as cidades da região Norte. Esse resultado sugere que nas regiões mais desenvolvidas o dinamismo econômico é disseminado nos dois grupos de cidades médias, mas, nas regiões mais pobres, o maior dinamismo está circunscrito às cidades médias metropolitanas, ainda muito dependentes do núcleo das regiões metropolitanas, capitais estaduais, onde a população estadual vem se concentrando, num movimento que esvazia as pequenas cidades.

A análise da evolução dos valores per capita do FPM corresponde ao inverso do que foi discutido a respeito do ICMS: o FPM é mais significativo justamente naquelas localidades onde a arrecadação do ICMS - e também das receitas tributárias próprias - foi menor. O destaque fica por conta dos municípios nordestinos, especialmente das capitais, onde os valores do FPM foram significativamente mais elevados do que nas demais cidades, capitais e cidades médias de todas as demais regiões do país. Cabe finalizar apontando para a diminuição das receitas de transferências também em relação ao FPM. Esse resultado já era esperado porque esse fundo é constituído pela arrecadação de dois impostos federais, o IPI e o IR, que, devido à estagnação econômica, implicou queda de arrecadação, sobretudo do IPI, o que se refletiu na perda dos valores do FPM.

4 CONCLUSÕES

A federação brasileira é constituída pela União, por 26 estados, pelo Distrito Federal e por 5.567 municípios, todos experimentando elevado grau de autonomia política, administrativa e econômica. Esses entes federativos, no entanto, não apresentam o mesmo nível de autonomia financeira. Entre os municípios, aqueles que têm maior população conseguem explorar uma melhor base econômica que lhes proporciona maior arrecadação própria, além de maiores transferências da quota-parte do ICMS, ficando os municípios pequenos muito dependentes de receitas de transferências constitucionais, sobretudo do FPM, mas também de outras transferências, como os repasses do SUS e FUNDEF, além das transferências voluntárias. Nessas condições, sua capacidade de formular e financiar políticas de interesse local é muito reduzida. Cabe, no entanto, destacar o aumento das receitas tributárias próprias dos municípios brasileiros, em particular dos de médio e grande porte, ao longo dos anos 1990.

Nesse período, os municípios brasileiros vêm assumindo novas competências e maiores responsabilidades no financiamento das políticas públicas, como vimos na segunda seção desse trabalho. Não se pode acusar a Constituição Federal de ter promovido uma descentralização governamental apenas com a “muni-cipalização das receitas”, como a União tanto acusou, especialmente na primeira metade dos anos 1990. Além do aumento das receitas de transferências constitucionais para os municípios, foram transferidas também novas responsabilidades, que vêm consumindo mais recursos da esfera municipal de governo.

O processo de “municipalização das receitas” foi invocado para sustentar um aumento da carga tributária total pela União por meio da criação de novas contribuições, como a CSLL e a CPMF, tributos não partilhados com estados e municípios. Diante do aumento de sua participação no financiamento das políticas públicas, os municípios trataram de aumentar sua arrecadação própria, modernizando seu aparelho arrecadador ou até mesmo passando a arrecadar efetivamente todos os impostos de sua competência, o que muitos não faziam anteriormente. Assim, o aumento dos impostos no âmbito municipal tem uma maior correspondência com a ampliação dos gastos públicos em relação à maior carga impostiva ocorrida no âmbito federal, uma vez que a União tem comprometido parcelas crescentes do seu orçamento no custo da sua dívida pública. Em tal contexto, o processo de descentralização assume um papel de relegimitador do poder público.

Os municípios com maior capacidade de enfrentar esses novos desafios são as cidades médias e grandes. As capitais estaduais, mas também alguns municípios de médio porte, estão se tornando atores que vêm desfrutando de inédito protagonismo político no cenário brasileiro. Nas capitais estaduais, sua condição de sede de governo, em alguns casos, como as localizadas no Nordeste, proporciona as únicas e/ou mais dinâmicas atividades na região, atraindo grandes contingentes migratórios desde o interior estadual. Por isso, conseguiram arrecadar maiores valores per capita de tributos próprios em relação às cidades médias - e certamente em relação às cidades de pequeno porte, que não foram objeto de nossa investigação.

Entre as cidades médias, as localizadas em áreas metropolitanas arrecadam mais receitas tributárias próprias do que as cidades não-metropolitanas, o que não implica que invistam valores per capita também maiores. Ao contrário, as cidades não-metropolitanas tendem a investir proporcionalmente mais, resultado que reflete o impacto dos investimentos das cidades não-metropolitanas do Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Nessas regiões, há maior dinamismo econômico derivado de maior presença das atividades industriais nas cidades médias do interior estadual, inclusive na região Centro-Oeste, cuja indústria é tipicamente um “segundo andar” da agropecuária. Esses maiores investimentos e dinamismo atraíram maiores fluxos migratórios, elevando o crescimento demográfico dessas localidades em maiores proporções do que nas cidades metropolitanas dessas regiões.

A descentralização governamental está transformando os municípios em atores cada vez mais importantes nas políticas públicas. Alguns, como as cidades médias e capitais, destacam-se por seu dinamismo demográfico, superior à média nacional, impondo-lhes maiores desafios de gestão municipal. O maior crescimento da população do conjunto das cidades médias e grandes, em geral, envolve a crescente necessidade de fontes de financiamento, o que suscita melhorar ainda mais a arrecadação própria dessas localidades. Ou seja, o comprometimento com o aumento da arrecadação deve ser mantido no futuro próximo. Acredito que a maior autonomia financeira dos municípios não poderá prescindir de, pelo menos, três estratégias:

1) retomada do crescimento econômico, o que suscitaria maior dinamismo industrial, ampliando a arrecadação de todos os impostos, mas, particularmente, do ICMS, que corresponde ao principal componente das receitas municipais, em termos per capita. Essa estratégia extrapola as possibilidades de intervenção dos níveis municipais de governo, o que não ocorre com as outras duas abaixo mencionadas;

2) aumento da arrecadação do IPTU: por ser um imposto direto, incidente sobre a propriedade imobiliária, o executivo municipal encontra maior resistência em sua cobrança, dado que os proprietários imobiliários tendem a opor-se à variação da alíquota, à ampliação do cadastro imobiliário e, principalmente, à reavaliação da planta de valores da carta cadastral. Ademais, é preciso considerar que o crescimento econômico e/ou a regularização fundiária mas-siva, como pretende o Governo Lula, poderá trazer para a legalidade uma significativa parcela do patrimônio imobiliário urbano que hoje constitui a chamada “cidade ilegal”;

3) constituição de redes federativas, horizontais e verticais. Essas últimas com-preenderiam, além dos programas já existentes de saúde e educação, outras esferas da política pública, como poderá ser até mesmo o caso da segurança. Já as redes federativas horizontais são necessárias para viabilizar programas cujos custos envolvidos os municípios individualmente não têm condições técnicas (como no caso de saneamento de bacias hidrográficas) e financeiras de suportar.

  • 2
    Em 2000, a população urbana representava aproximadamente 81% da população brasileira.
  • 3
    A preços de 2001, segundo a fonte IPEADATA.
  • 4
    O cálculo do PIB foi iniciado em 1947.
  • 5
    Como percentagem do PIB e a preços de 1980, segundo a fonte IPEADATA.
  • 6
    Os dados sobre municípios cobrem apenas 245 dos 5.567 municípios brasileiros. Os municípios incluídos na pesquisa são capitais estaduais e municípios localizados em regiões metropolitanas, além de alguns cujas elevadas participações no PIB estadual os levaram a ser incluídos na amostra. A importância da amostra pode ser inferida a partir do percentual de população dos municípios incluídos em relação à população dos estados da região Sudeste: no Espírito Santo, a população dos municípios incluídos na amostra correspondeu a 48,8%, em Minas Gerais, 30,4%, no Rio de Janeiro, 79,4% e, em São Paulo, correspondeu a 53,5%.
  • 7
    Em seu estudo comparativo sobre federalismo fiscal, ASENCIO (2000) analisa a estrutura das finanças públicas, considerando a presença ou a ausência do orçamento da Previdência Social, que, em função de sua magnitude, pode mascarar o processo de descentralização nas federações por ele analisadas.
  • 8
    Esses percentuais referem-se a médias das receitas municipais de 4.884 municípios para os quais havia dados financeiros disponíveis, o que corresponde a 90% do total dos municípios brasileiros (FERREIRA, MORAES e ARAÚJO, 2002FERREIRA, Sérgio G.; MORAES, Ricardo e ARAÚJO, Érica. Os bons resultados orçamentários se repetem em 2001. Informe-se. Boletim 49, Área de Assuntos Fiscais e de Emprego, BNDES, dezembro de 2002. Disponível em <http://federativo.bndes.gov.br>.
    http://federativo.bndes.gov.br...
    ).
  • 9
    O processo de desindustrialização das metrópoles está em curso nos países industrializados, inclusive no Brasil, verificando-se uma crescente especialização das metrópoles em serviços, como os de telecomunicações, publicidade e financeiros. Esses fenômenos estão discutidos em muitos autores, entre os quais VALLADARES e PRETECEILLE (1990)VALLADARES, Lícia e PRETECEILLE, Edmond (orgs.). Reestruturação urbana. Tendências e desafios. Rio de Janeiro: Nobel, 1990., BENKO (1995)BENKO, Georges. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. São Paulo: Hucitec, 1995. e SASSEN (1998)SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Nobel, 1998..

Agradecimentos

Agradeço aos estagiários Leonardo Pereira Cassol, André Passos Ribeiro e Verônica Nascimento Brito, cujo apoio foi fundamental para o levantamento e organização dos dados.

REFERÊNCIAS

  • ASENSIO, Miguel Angel. Federalismo fiscal. Fundamentos. Analisis comparado y el caso argentino Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2000.
  • BENKO, Georges. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI São Paulo: Hucitec, 1995.
  • FERREIRA, Sérgio G.; MORAES, Ricardo e ARAÚJO, Érica. Os bons resultados orçamentários se repetem em 2001. Informe-se. Boletim 49, Área de Assuntos Fiscais e de Emprego, BNDES, dezembro de 2002. Disponível em <http://federativo.bndes.gov.br>.
    » http://federativo.bndes.gov.br
  • GIAMBIAGI, Fábio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas municipais Rio de Janeiro: Campus e Secretaria do Tesouro Nacional, 1999.
  • J. R., Affonso e ARAÚJO, Erika. A capacidade de gastos dos municípios brasileiros. Arrecadação própria e receita disponível. Cadernos Adenauer, n. 4. Os municípios e as eleições de 2000. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, junho 2000.
  • SANTOS, Angela Moulin S. Penalva. O desafio da gestão local em cidades de porte médio. Economia, Espaço e Sociedade no Rio de Janeiro Rio de Janeiro: FGV, 2003 (no prelo).
  • SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial São Paulo: Nobel, 1998.
  • VALLADARES, Lícia e PRETECEILLE, Edmond (orgs.). Reestruturação urbana. Tendências e desafios Rio de Janeiro: Nobel, 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2003
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