Resumos
Refletir sobre um conceito em construção - o conceito de competência - e o uso de estratégias interativas para aprendizagem são os objetivos deste artigo. Tendo como pressuposto que elementos teóricos, em Ciências Sociais Aplicadas, como é o caso da Administração, são mais bem absorvidos e internalizados através de métodos de ensino-aprendizagem interativos, os autores determinam a interface entre a abordagem cinematográfica por meio do filme "Nenhum a Menos" e o marco referencial que norteia a noção de competência. Nota-se que são diversas as possibilidades de compreensão do conceito e, ainda mais, de discussão dos mesmos, tendo em vista a necessidade de sua contextualização. Conclui-se pela possibilidade de utilização da metáfora cinematográfica como estratégia complementar de ensino-aprendizagem por despertar maior interesse e proximidade com o "aprendiz", permitindo a ele estabelecer paralelos mais concretos entre a ficção e a realidade.
competências; gestão por competências; relação ensino-aprendizagem
This paper aims to reflect about competence as a building concept; and the use of interactive approaches for its learning. Theoretical elements in Social Sciences, as in Business, are embraced through interactive methods of teach-learning. The article debates the movie "Not One Less" and the competence idea. It is noticed the distinct concept understanding and, nonetheless, the debate about it, as a context requirement. It WITH concludes the possibility of use of the cinematographic metaphor as complementary strategy of teach-learning for awakening interest and proximity with the "apprentice", allowing establishing a concrete approach between the fiction and the reality.
competences; competence-based management; teach-learning approach
ARTIGOS
O quadro-negro como tela: o uso do filme Nenhum a menos como recurso de aprendizagem em gestão por competências
The blackboard as screen: the use of the movie "Not one less" as resource of learning in competence-based management
Maria Tereza Leme FleuryI; Amyra Moyzes SarsurII
IDoutora e Mestre em Sociologia pela FFLCH/USP. Professora Titular da Faculdade de Economia e Administração/Universidade de São Paulo - FEA/USP, tendo atuado como Diretora. Endereço: Av. Professor Luciano Gualberto, 908 - Edifício FEA1 - Cidade Universitária - São Paulo/SP - Brasil - CEP: 05508900. Email: mtfleury@usp.br
IIDoutoranda em Administração pela FEA/USP, Mestre em Administração pelo CEPEAD/FACE/UFMG. Pesquisadora, Consultora e Professora Convidada da UFMG, IEC/PUC-MG e Fundação João Cabral. Endereço: Av. Professor Luciano Gualberto, 908 - Edifício FEA1 - Cidade Universitária - São Paulo - Brasil - CEP: 05508900. Email: asarsur@usp.br
RESUMO
Refletir sobre um conceito em construção - o conceito de competência - e o uso de estratégias interativas para aprendizagem são os objetivos deste artigo. Tendo como pressuposto que elementos teóricos, em Ciências Sociais Aplicadas, como é o caso da Administração, são mais bem absorvidos e internalizados através de métodos de ensino-aprendizagem interativos, os autores determinam a interface entre a abordagem cinematográfica por meio do filme "Nenhum a Menos" e o marco referencial que norteia a noção de competência. Nota-se que são diversas as possibilidades de compreensão do conceito e, ainda mais, de discussão dos mesmos, tendo em vista a necessidade de sua contextualização. Conclui-se pela possibilidade de utilização da metáfora cinematográfica como estratégia complementar de ensino-aprendizagem por despertar maior interesse e proximidade com o "aprendiz", permitindo a ele estabelecer paralelos mais concretos entre a ficção e a realidade.
Palavras-chave: competências, gestão por competências, relação ensino-aprendizagem
ABSTRACT
This paper aims to reflect about competence as a building concept; and the use of interactive approaches for its learning. Theoretical elements in Social Sciences, as in Business, are embraced through interactive methods of teach-learning. The article debates the movie "Not One Less" and the competence idea. It is noticed the distinct concept understanding and, nonetheless, the debate about it, as a context requirement. It WITH concludes the possibility of use of the cinematographic metaphor as complementary strategy of teach-learning for awakening interest and proximity with the "apprentice", allowing establishing a concrete approach between the fiction and the reality.
Keywords: competences, competence-based management, teach-learning approach
Introdução
A discussão sobre competências, pela relevância que tem assumido no contexto organizacional, vem também, de forma conseqüente, suscitando reflexões no campo teórico. Levantam-se questionamentos sobre sua aplicabilidade à realidade nacional, bem como sobre os resultados que efetivamente pode-se alcançar por sua implementação. Um dos aspectos que mais têm sido abordados, e que é variável de análise básica quando se trata de considerar a implantação de modelos de gestão por competências, é o contexto no qual eles estarão inseridos. Isso vale para sua adoção e utilização em países, organizações e na atividade dos profissionais. De forma mais clara, o que se enfatiza aqui é a necessidade de compreensão do contexto no qual se propõe o uso da teoria (ou noção) sobre competências para, somente a partir daí, estabelecer-se alguma crítica sobre os conceitos e sua aplicabilidade.
O que muitas vezes ocorre é que a estratégia de utilização de modelos de gestão por competências vem sendo adotada pelas organizações sem que se perceba uma preocupação concreta com os aspectos que estão por trás do modelo, especialmente: (i) atenção com as características e/ou cultura do país, da organização e de seus profissionais; (ii) preocupação com o desenvolvimento das capacidades e possibilidades individuais; (iii) concepção do trabalhador como cidadão, sujeito de sua própria vida, ser ativo e capaz; e (iv) busca por resultados satisfatórios para empresas e, também, para trabalhadores, do ponto de vista da adequação ao trabalho e à sociedade.
Todas essas considerações a respeito da noção de competências, muitas vezes, têm sido discutidas, especialmente, em sala de aula, sem que os conceitos básicos que envolvem a teoria estejam claros para os envolvidos. Pela ampla divulgação e massificação de publicações relativas ao tema, parece natural que as pessoas pressuponham que já detêm certo domínio sobre os conceitos. Entretanto, cada vez mais tem avançado o conhecimento sobre esse conteúdo e novas pesquisas em maior profundidade vêm sendo desenvolvidas para ampliar as discussões e buscar as melhores práticas de integração da teoria à realidade das organizações.
Para suprir a lacuna referente à compreensão dos conceitos que norteiam o tema e, ainda mais, buscando ampliar a discussão sobre a validade e aplicabilidade dos mesmos, o uso de estratégias de ensino-aprendizagem menos formais têm sido utilizadas como uma saída pertinente, com resultados que atendem e superam as expectativas de entendimento e internalização dos conteúdos.
Nesse sentido, o uso de filmes como metodologia de ensino-aprendizagem demonstra ser uma alternativa viável e que traz resultados a esse intento. A possibilidade de utilização da metáfora permite que os participantes (alunos, estudiosos e demais interessados) aproximem-se do arcabouço teórico que sustenta a temática sobre competências de maneira "marginal" à primeira vista, mas, que se aprofunda a partir das discussões e interpretações permitidas e facilitadas pela análise do filme.
É assim que se estabelece esta proposta: o uso do filme Nenhum a menos permite uma rica conexão entre as diversas definições de competências humanas e as passagens, diálogos e desenrolar da trama. Considera-se que esse filme favorece diferentes "leituras" a respeito das abordagens de competências, tendo em vista uma série de situações adversas vividas pela protagonista, sob dado contexto político, econômico e social. Observa-se a possibilidade desse novo "olhar" a partir da análise dos personagens, sua vida, realidade mais próxima que os cerca e cenário da nação, no caso, a China pós-abertura, ainda vivendo sob a influência do regime de Mao Tsé-Tung.
A estória está ambientada nesse país de cultura oriental, sob influência de regime político socialista, deixando evidentes os problemas decorrentes das limitações de infra-estrutura para manutenção de uma dada escola (préescola à 3ª série) em região de zona rural. O diretor parece evidenciar a opressão do regime comunista chinês ao retratar uma pequena aldeia após a abertura política, mas, ainda sob sua forte influência. Sem dúvida, podese também transportar essa realidade para a situação vivenciada no Brasil, que apresenta graves dificuldades na educação, especialmente, nas áreas rurais.
Para efeito deste artigo, são levantadas e apresentadas algumas das abordagens mais difundidas no que tange à noção de competências, buscando nos autores que as exploram, a compreensão dos termos essenciais para dar início a sua discussão mais criteriosa. Paralelo a isso é elaborado um breve relato do filme escolhido - Nenhum a menos -, bem como uma contextualização da China como cenário no qual ele é ambientado. São desenvolvidas, então, interfaces entre a teoria e a metáfora proposta e, finalmente, tecidos alguns comentários finais, além do aporte bibliográfico.
As "noções" sobre competências: resgate teórico
A diversidade de abordagens e perspectivas: mais do que conclusões, reflexões e suporte para a análise da realidade
Como aporte teórico foram resgatadas as abordagens de alguns dos estudiosos do tema, de maneira a sistematizar as principais concepções e perspectivas na atualidade. O objetivo desse arcabouço conceitual reside na necessidade de sustentar a discussão proposta, apresentada ao final do artigo, estabelecendo a interface entre o filme (prática e realidade) e as discussões de cada autor referencial no tema em questão.
A gestão por competências e, mais especificamente, as chamadas "competências" têm sido um dos temas mais usualmente tratados por estudiosos, consultores e empresários nesses últimos anos. Apesar de, como reforça Bitencourt (2001), não se configurar como um termo novo, há uma grande variedade de abordagens e compreensões distintas sobre seu conceito e aplicabilidade.
A complexidade do contexto contemporâneo tem levado a uma ampliação das exigências das empresas com os trabalhadores e influenciado os estudos sobre os aspectos relativos às "competências" (ZARIFIAN, 1996). Não é sem razão, portanto, que tem crescido o interesse pelo tema e, ainda mais, têm proliferado publicações que, muitas vezes, levam o leitor, em seus diversos papéis, à ilusão de um conhecimento sobre o tema que, em grande parte das vezes, é ainda incipiente se comparado à profundidade e amplitude de estudos que continuamente vêm sendo desenvolvidos pelos estudiosos.
Nota-se que a ênfase dada pelos diversos autores difere, podendo centrar-se em aspectos da "formação, em comportamentos e resultados" até "aptidão, autodesenvolvimento e ação", conforme sistematiza Bitencourt (2001, p.27-29). Dessa forma, as correntes americana, latino-americana, francesa e australiana constroem diferentes significados para a gestão de competências, permitindo leituras "parciais" do tema e abrindo uma lacuna para sua compreensão mais contextual e holística.
Essa diversidade de estudos e abordagens é também compartilhada por Barato (1998) quando aponta as diferentes concepções da escola francesa e britânica sobre o termo, reforçando a idéia de diferentes "raízes" que norteiam o pensamento sobre as competências (britânica: raízes no behaviorismo; francesa: resultado de educação sistemática). Isso reforça a perspectiva de LeBoterf (2001), ao apontar a idéia de que competência seja, ainda, um "conceito em construção".
Buscando uma compreensão mais sistematizada: o ponto de vista de alguns estudiosos
Os trabalhos de Sandberg (1994) apontam que as competências são construídas a partir do significado do trabalho e não implicariam, assim, somente a aquisição de atributos. Para esse autor é importante não só a competência que é desenvolvida, mas, como ela é desenvolvida e como se dá a sua aplicação - a prática do trabalhador.
Também enfatiza essa preocupação, a abordagem de Zarifian (1996) quando reforça a idéia de que a concepção tradicional de competências apega-se a uma análise objetiva dos postos de trabalho, delimitando o foco do termo e atando-o a uma visão taylorista e burocrática da inserção do homem no mundo do trabalho. O autor trabalha, assim, a "evolução" dessa concepção para uma "gestão da e pela competência", pensando na combi-nação de conhecimentos (aptidão), experiências (ação), análise e avaliação da empresa (resultados). Ele compreende as competências como a assunção de responsabilidades e o desenvolvimento de atitude reflexiva sobre o trabalho, o que amplia o entendimento dessa nomenclatura para aspectos mais sociais. Isso implica analisar as mutações do trabalho e sua organização, inseridas num contexto mais amplo e histórico (ZARIFIAN, 2001).
Do ponto de vista histórico, McClelland (1973) foi o primeiro a propor o conceito de competência de forma estruturada. Segundo sua concepção, a competência é vista como uma característica subjacente, relacionada com um desempenho superior na realização de uma tarefa; algo do indivíduo que foi denominado de "estoque", como aquilo que ele possuía em termos de repertório individual.
O deslocamento do foco sobre o "estoque" de conhecimentos para a forma como o indivíduo mobiliza seu repertório de conhecimentos e habilidades em determinado contexto, foi proposto inicialmente por LeBoterf (1995). Para o autor, as competências não são, elas mesmas, recursos na forma de saber agir, saber fazer ou atitudes. Elas vão depender de um componente mobilizador e essa mobilização é adequada a cada diferente situação. É assim que LeBoterf (1995) conceitua competência como um saber agir que envolve integrar, mobilizar e transferir recursos, conhecimentos e habilidades, com reconhecimento pelos outros, em dado contexto.
Bitencourt (2001) enfatiza os estudos relacionados às três dimensões principais consideradas na análise das competências: o saber (referente ao conhecimento/conceitos), o saber fazer (referente às habilidades/princípios) e o saber agir (relativo às atitudes/práticas). A partir desses aspectos, segundo discute a autora, pode-se conceber a dimensão da "apropriação do conhecimento (saber) em ações no trabalho (saber agir). Destaca-se que é nesse momento que o desenvolvimento de competências agrega valor às atividades e à organização..." (Ibid., p.35).
Segundo Fleury e Fleury (2001), pode-se definir competência como "um saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem valor econômico à organização e social ao indivíduo" (Ibid., p.20). O que está pressuposto nesse conceito é que a "competência individual encontra seus limites, mas, não sua negação no nível dos saberes alcançados pela sociedade, ou pela profissão do indivíduo, numa época determinada." (Ibid., p.21).
Essa concepção abrange, ainda, a idéia de um processo que, pela sua amplitude, envolve a aprendizagem e a gestão do conhecimento. O quadro 1 propõe algumas definições sobre as competências do profissional que dão a dimensão desses três grandes blocos de conceitos, a saber: competências, aprendizagem e gestão do conhecimento; que servirão, adiante, como motes para a interface com o filme proposto.
Dutra (2001, 2004) afirma que, para discutir o conceito de competência, é importante também incluir a concepção de entrega. Um determinado indivíduo é avaliado e analisado para efeito de admissão ou promoção, por exemplo, tendo em conta sua capacidade de contribuição à organização. Assim, ao escolher alguém para integrar-se à empresa, são verificados aspectos de sua formação e experiência e
também seu modo de atuar, sua maneira de realizar o trabalho solicitado, suas realizações, enfim, queremos nos assegurar de que a pessoa a ser escolhida terá condições de obter os resultados que a organização espera e necessita. (Id., 2001, p.28)
Em continuidade a essa lógica, Dutra (2001, 2004) propõe que o processo de agregação de valor dos indivíduos seja traduzido por sua contribuição efetiva ao patrimônio da organização, permitindo-lhe manter suas vantagens competitivas ao longo do tempo, ainda que esse indivíduo não pertença mais à organização.
Zarifian (2001, p.41) lança um conceito importante no âmbito da discussão sobre as mutações no conteúdo do trabalho que denomina de "eventos". O evento é compreendido como aquilo "que ocorre de maneira parcialmente imprevista, inesperada, vindo perturbar o desenrolar normal do sistema de produção, superando a capacidade da máquina de assegurar sua auto-regulagem." Nesse sentido, trabalhar é, na concepção do autor, estar em expectação a esses acasos e enfrentá-los com sucesso, permitindo a continuidade do processo de produção; portanto, confrontar o evento. Existem três procedimentos que podem ser distinguidos com relação ao evento: (i) antes do evento - sua antecipação parcial, expectação quanto à ocorrência; (ii) durante o evento - intervenção ativa, muitas vezes, sob pressão; e (iii) depois do evento - seria o debruçar-se reflexivo sobre o ocorrido para compreender melhor e evitar que volte.
Em complementação, Zarifian (2001) defende a idéia de que competência implica envolvimento, autonomia e automobilização. Formar não pode ser sinônimo de adestramento para realização de dada tarefa e nem pode reduzir-se à simples transmissão de conhecimentos e informações.
Ratificam a importância das competências, os argumentos de Ducci (1996), especialmente por: (i) centrar o processo de crescimento econômico e desenvolvimento social no ser humano, como agente e beneficiário da mudança; (ii) responder ao mesmo tempo à educação e emprego; e, (iii) adaptar-se à necessidade de mudança, por ser um conceito dinâmico e de dimensão internacional. A autora reforça a idéia de que distintas variáveis (como as transformações na organização da produção e trabalho, o novo perfil exigido do trabalhador e o impacto nos sistemas de educação e formação) apontam para diferentes ênfases e contextos, sendo a chamada "competência", a combinação de tais práticas em situações reais de trabalho. Especificamente para um indivíduo é sua capacidade de enfrentar e resolver com êxito as incertas situações no trabalho, a partir de sua formação e experiências anteriores.
Ressalta-se aqui a necessária diferenciação entre o que é a competência adquirida ao longo e durante toda uma experiência de vida e o que é a exigência de títulos e a "falsa impressão" que programas de formação isoladamente podem gerar sobre a aquisição de reais competências para os indivíduos (LÉVY-LEBOYER, 2000).
Ressalta-se, também, os resultados de extensa pesquisa coordenada por Barbosa (2005, p.241) em 37 diferentes organizações, situadas em quatro estados brasileiros, que adotam o modelo de gestão por competências. As conclusões apontam para uma certa homogeneidade no conceito adotado para competências, seguindo a "noção de conhecimentos, habilidades, atitudes e comportamentos", o que leva à pressuposição de uma implementação calcada nas tradicionais concepções de recursos humanos (RH) quanto às atividades baseadas em cargos, bem como quanto aos demais subsistemas de RH. Tanto é assim que a análise seguinte do autor aponta que a responsabilidade pela elaboração dos modelos nas empresas demonstra ser dos dirigentes ou grupo estratégico, com uma ação individual ou em conjunto com setores como o de RH, as gerências ou consultorias externas. A preocupação com os resultados e o foco na competitividade parece justificar essa centralização na cúpula das empresas.
Competências e aprendizagem: discussões que se complementam
Há que se ressaltar, ainda, a interface e complementação entre os conteúdos de competências e aprendizagem. Na realidade, há uma crescente tendência em agrupar tais estudos de modo a ampliar a discussão sobre ambos. Uma das razões que justificam tal fato é justamente a idéia de que o processo de aprendizagem pressupõe a possibilidade de incremento das competências individuais e, conseqüentemente, das competências organizacionais. Uma organização que aprende apresenta melhores oportunidades de estabelecer uma dinâmica de crescimento para os indivíduos que nela atuam, bem como, para toda a empresa.
Nesse sentido, e dando ênfase aos conteúdos que interessam para a análise proposta, destacam-se as afirmações de Senge (1998, p.84) quando propõe que o aprendizado pode envolver algum treinamento, mas vai além. Ele indica que poucas pessoas aprendem as coisas que são realmente importantes "...para nossa vida em programas de treinamento. O aprendizado ocorre no dia-a-dia, ao longo do tempo. O aprendizado sempre acontece quando as pessoas estão às voltas com questões essenciais ou se vêem diante de desafios."
A aprendizagem, de acordo com Moura (s/d), consiste na aquisição e/ou na modificação de formas de comportamento; ou seja, as pessoas aprendem quando ganham novas - ou modificam - formas de agir, pensar e sentir. A aprendizagem é algo que só se percebe quando já ocorreu, pois é um constructo capaz de explicar transformações havidas e que são notadas em função das condições existentes antes e depois do processo de aprendizagem. O autor também ressalta que, para haver aprendizagem, é importante a existência de dois acontecimentos: (i) a existência de uma situação para a qual o organismo não está, momentaneamente, equipado para satisfazer, configurando-se uma exigência de adaptação; e (ii) a existência de um movimento, partindo de dentro para fora, no sentido de mobilizar o organismo para buscar meios de satisfazer as exigências ou peculiaridades da situação. Ele conclui dizendo que a aprendizagem é, portanto, um processo que relaciona dois componentes: um externo, representado pela situação, e outro, interno, representado pela motivação.
Tal processo de aprendizagem pode ser compreendido a partir de duas vertentes teóricas, conforme ressaltam Fleury e Fleury (1995). Os autores afirmam que o modelo behaviorista tem como foco o comportamento, por este ser observável e mensurável. O modelo cognitivo pretende explicar melhor, fenômenos mais complexos, como a aprendizagem de conceitos e a solução de problemas, levando em conta as crenças e percepções dos indivíduos que influenciam seu processo de apreensão da realidade. De toda forma, a aprendizagem é compreendida como um evento interno, não observável e inferido por meio do desempenho das pessoas.
Assim, toda essa diversidade de abordagens que permeiam a discussão sobre as competências leva à necessidade de se conhecer de modo mais denso os diversos autores e seus estudos, de modo a elaborar uma melhor análise e crítica sobre essa concepção. Nesse sentido, foi adotada a metáfora cinematográfica, por meio do filme Nenhum a menos, que demonstrou ter elementos ricos e oportunos para uma apreciação mais apurada dos aspectos conceituais, bem como, propiciar forma mais interativa para a assimilação dos referidos conceitos.
Abordagem metodológica
A idéia de utilizar um filme como instrumento de compreensão dos conceitos que subsidiam o sistema de gestão por competências passa pela convicção de que realidade e ficção aproximam-se, e que a busca por semelhanças e divergências entre ambas pode ser uma forma bastante adequada de análise da utopia sobre o mundo cotidiano real.
Essa não é, de forma alguma, uma idéia recente. Pelo contrário, a busca por estratégias de ensino-aprendizagem mais adequadas a novas realidades, demandas e situações específicas tem levado vários autores a estudar mecanismos passíveis de desenvolvimento e adoção nas salas de aula. No caso específico da utilização de filmes, obras como a de Oliveira (1996-1998), das mais difundidas no meio acadêmico, marcam a tentativa de sistematização de películas voltadas para o treinamento do comportamento em ambientes de aprendizagem.
Mais recentemente, e dessa mesma perspectiva (mas, com o uso de peças teatrais), Ruas (2005) discute a preocupação com os métodos de ensino-aprendizagem através das iniciativas de professores em estabelecer a conexão entre teoria e prática, indicando alguns dos autores preocupados com essa temática, especialmente representados através de recentes publicações nos anais do Enanpad (Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós Graduação em Administração). Entre os estudos destacados, encontram-se: Andrade, Maheu e Oliveira (2004), Ikeda, Veludo-de-Oliveira e Campomar (2004), Protil, Borenstein e Fischer (2004), Souza et al (2004), Stahl (2004), Stahl e Lopes (2004), e, ainda, artigos em revistas especializadas em administração, como a produção de Wood Jr. e Paula (2004). Ruas (2005) enfatiza que entre as alternativas mais apropriadas de solução no campo do ensino-aprendizagem em administração estão aquelas: (i) vinculadas a formas mais heterodoxas, (ii) que são construídas à luz das circunstâncias do problema a enfrentar e (iii) que permanecem associadas ao objetivo do aprendizado, entre outras.
A metáfora do cinema, uma nova metáfora dramatúrgica, desenvolvida a partir da metáfora do teatro, constitui uma forma de ver e de não ver o fenômeno organizacional na sua realidade cotidiana. Essa é a proposição de Wood Jr. (1998) em seu trabalho que se insere no campo dos estudos organizacionais, dentro da abordagem do simbolismo organizacional. A proposição central defendida é de que as organizações contemporâneas estão experimentando um aumento de intensidade simbólica. Para estudar o fenômeno, ele propõe um novo tipo ideal: a "organização cinematográfica" ou "organização de simbolismo intensivo"(OSI).
No que tange ao uso do filme como estratégia, provavelmente, uma das maiores dificuldades seria assistir ao filme com o "olhar do pesquisador", ou seja, conseguir interpretar e estabelecer analogias coerentes e sustentadas entre a teoria, a narrativa e a realidade que se pretende investigar. Cocteau (1968) deixa claro que
o perigo com os filmes é que nós nos acostumamos a vê-los sem lhes prestarmos a mesma atenção que prestaríamos a uma peça ou livro. Mas eles são um veículo de idéias e de poesia de primeira classe que podem levar o espectador a domínios aonde, anteriormente, só o sono e os sonhos o levaram. Eu tenho pensado, com freqüência, que seria não apenas econômico, mas admirável se um faquir hipnotizasse um auditório inteiro. Ele poderia fazer seus espectadores assistirem a uma fantástica apresentação e, além disso, ordenar que não a esquecessem quando despertassem. Este, de certo modo, é o papel da tela - praticar um tipo de hipnotismo do público e possibilitar que um grande número de pessoas sonhe o mesmo sonho juntas. (COCTEAU, 1968, p.76)
Tal forma de ver não deixa de considerar que todo "olhar" é, essencialmente, interpretativo e que o processo de interpretação é necessariamente um desafio, um risco, cheio de conflito e aberto à discussão, bem como, que toda interpretação dependerá, em última instância, do campo de investigação e das circunstâncias específicas da afirmativa. (THOMPSON, 1995).
A idéia de utilização da metáfora se ancora no chamado efeito metafórico de Pêcheux (1997). No seu sentido amplo, metáfora é o emprego de palavra fora do seu sentido normal, por analogia. Por efeito metafórico, Pêcheux (1997) define o efeito semântico que se produz numa substituição contextual, isto é, por um deslizamento de sentido numa distância entre x e y, sendo esta constitutiva tanto do sentido produzido por x quanto do produzido por y. Assim, a metáfora não se coloca como comparação nem como desvio, mas como transferência. Uma transferência que se dá num processo contínuo de deslizamentos, através dos quais é possível se chegar tanto ao lugar da interpretação quanto ao lugar da historicidade. Para Pêcheux (1997), o sentido se delineia sempre na relação que uma palavra ou uma expressão têm na relação com outra palavra ou outra expressão.
Tal proposta de interpretação da metáfora através de filme cinematográfico está alicerçada em teorias de aprendizagem da linha sociohistórica-cultural, como as de Vygotski (2001) e Bakhtin (1986). A aprendizagem ocorre, da perspectiva dos autores, na interação com o outro e com o objeto de conhecimento. Nesse sentido, o professor situa-se como um mediador para que o aluno internalize (se aproprie de) significados culturais. A partir do uso dessa estratégia, a compreensão dos conceitos que envolvem o sistema de gestão por competências estaria sendo mais bem conduzida e facilitada.
O olhar sobre o filme: Nenhum a menos
Breve relato da estória
O filme Nenhum a menos (Yi Ge Dou Bu Neng Shao, em chinês, ou Not one less, em inglês) foi realizado em 1998, sob direção de Zhang Yimou e tem sua narrativa passada na China nos anos pós-abertura política (CANAU, 2005).
A estória inicia-se quando o professor Gao, da escola primária de Shuiquan - uma pequena aldeia na China - , tem de se ausentar durante um mês para visitar a mãe doente. O prefeito Tian consegue, para substituí-lo, apenas uma adolescente de 13 anos, Wei Minzhi. Como a evasão escolar é grande, o professor adverte-a para que não permita que mais alunos abandonem a escola, garantindo-lhe o pagamento de 50 yuans e mais um pequeno extra se for bem-sucedida (daí o título Nenhum a menos). Minzhi, pouco mais velha que alguns dos seus alunos (do primário ao 3º ano, na mesma classe), pouco mais consegue fazer do que escrever textos no quadro e ensinar uma canção, de qualquer forma, erroneamente (CANAU, 2005).
Os diálogos iniciais, bem como os que se seguem entre os dois professores (titular e substituta), revelam a concepção de educação vigente no local, em torno da qual é construído o modelo de ensino adotado. No caso, essa concepção parece ser a de que a educação servirá como mantenedora da sociedade como está constituída, sem criticá-la, repetindo os modelos já existentes e curando os seus males (LUCAS, 2005).
A preocupação com não perder alunos retrata a China da época, seu contexto político e as formas utilizadas para reprodução das idéias de Mao Tsé-Tung (sem perder de vista o caráter "reprodutor" de toda instituição escolar ao redor do mundo). Não é sem razão, portanto, que Minzhi esconde uma de suas alunas, quando esta é convidada a ingressar numa escola para esportistas, e desespera-se quando, logo em seguida, Huike, um dos seus alunos mais difíceis de controlar, é obrigado a ir trabalhar na cidade para ajudar a mãe que está doente e imersa em dívidas. Minzhi recusa-se a perder outro aluno e a partir daí se desenrola a essência da estória. A primeira parte, ambientada na aldeiazinha, mostra uma adolescente iniciando sua trajetória e descobrindo seu potencial; a segunda se passa no caos da cidade e apresenta uma "nova" Minzhi.
Curioso ressaltar, para compreensão mais completa da obra, que Nenhum a menos passa-se a partir do ponto de vista de Minzhi, cuja única preocupação é cumprir a sua função de professora durante um mês. O diretor cria uma obra naturalista, num estilo documental, em que a câmera se comporta como um observador imparcial. Há um realismo social que é obtido sobretudo através da escolha do elenco, não só constituído por amadores, mas recorrendo a pessoas que exercem funções idênticas ou similares às das suas personagens e que usam no filme seu nome verdadeiro. Essa "não-representação" parece contribuir para compreender melhor o desenrolar das dificuldades de Minzhi, tendo em conta o contexto da estória narrada e o problema socioeconômico ilustrado, como por exemplo, o fato de que, apesar do gradual desenvolvimento econômico e da melhoria do sistema educacional na China, pequenas aldeias isoladas têm ainda dificuldades de ascender ao progresso, nesse e noutros campos (CANAU, 2005).
Nenhum a menos demonstra claras preocupações sociais, relativas às condições da interioridade na China moderna, patentes sobretudo no texto apresentado no final do filme, que menciona que "a pobreza tira mais de um milhão de crianças da escola todo ano na China. Com a ajuda de doações, cerca de 15% delas conseguem voltar a estudar." O tema escolhido e a forma que o revestiu não levantaram problemas junto às autoridades chinesas, como aconteceu com outras obras de Zhang, que abordaram temáticas político-sociais mais sensíveis. Quando o filme foi excluído da Seleção Oficial de Cannes 99 (e inserido na "alternativa" A Certain Regard), a decisão foi mal recebida pelo realizador, que afirmou: "Parece que no Ocidente, existem sempre dois critérios na interpretação de filmes chineses; ou são 'anti-governo' ou 'representam propaganda governamental'. Isto não é aceitável." Assim, o realizador decidiu retirar seus dois filmes que deveriam ser exibidos no festival. Nenhum a Menos viria a ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1999 (CANAU, 2005).
Evidentemente, o filme não é uma unanimidade em termos de repercussão das idéias político-sociais da China naquele momento histórico. Há os que defendem que ele apresenta uma visão equivocada do papel da escola, fazendo parecer que a professora substituta é melhor que o professor titular por pensar soluções novas de problemas em conjunto com os alunos. Nesse sentido, o filme reduziria o papel do professor e da teoria e enalteceria o pragmatismo da aprendizagem. Há ainda ênfase exagerada na utilização do trabalho infantil como saída para problemas financeiros, revelada quando a professora propõe aos alunos que carreguem tijolos para conseguir determinada quantia que permita pagar a viagem de ônibus até a cidade. Os alunos abandonam a sala de aula para realizar tal tarefa (IKEDA, 2005).
Dessa mesma perspectiva crítica, ressalta-se que o filme aborda excessivamente o tema do capitalismo como "melhor" alternativa que o comunismo, com todo o enredo girando em torno da questão do dinheiro. A abordagem materialista e utilitarista do diretor Zhang Yimou ganha relevo: com a abertura do país, o realizador busca sinalizar as glórias do capitalismo contra o retrógrado regime chinês. Isso pode ser evidenciado, ao se observar algumas passagens, como quando a professora só aceita o cargo porque iria receber (prometida pelo prefeito) uma boa quantia de dinheiro. Por isso, ela parece não se importar, no início da narrativa, se os alunos copiavam ou não a lição do quadro. Em complementação, ela saiu à procura do aluno que foi para a cidade porque o professor lhe disse que ela só receberia seu dinheiro extra se todos os alunos continuassem na escola. Na continuidade da estória, e, embora a cidade também seja palco de desigualdades, são apresentadas as possibilidades do capitalismo urbano como "salvadoras", e a professora encontra a oportunidade de transformar a sua vida, de achar a sua solução e ajudar a escola decadente. Mesmo no interior, ao se analisar alguns trechos, há capitalismo: no giz, no prefeito interesseiro, no vendedor de tijolos, no desejo pela coca-cola, no aluno que recebe dinheiro para revelar o esconderijo da colega. É como se a tendência à busca pelo capital não pudesse ser revertida. Se o interior é a China, quase feudal, retrógrada, isto é, comunista, a cidade é a possibilidade de realização dos sonhos, da televisão como veículo divino, mesmo que não se negue as desigualdades (IKEDA, 2005).
Compreendendo o contexto do filme: a China
A China tem uma população aproximada de 1,277 bilhão de habitantes cuja composição é distribuída por chineses han, 92%, e grupos étnicos minoritários, 8% (chuans, manchus, tibetanos, mongóis e outros). Seu idioma principal é o mandarim, mas também se fala dialetos regionais. A economia da China gira em torno de produtos agrícolas, pecuária e mineração. Sua indústria concentra-se no segmento têxtil (algodão), materiais de construção (cimento) e siderúrgica (aço). Pode-se observar que grande parte da economia, portanto, concentra-se na zona rural, local onde é passada a trama do filme escolhido. Como no Brasil, as zonas rurais concentram o maior contingente de pobres e analfabetos, caracterizando-se como regiões de poucas oportunidades em termos de trabalho, renda e desenvolvimento cultural. Uma das mais importantes informações, refere-se à taxa de analfabetismo do país, em torno de 15% (em 2000).
Do ponto de vista político, o país é fortemente marcado pelo governo de Mao Tsé-Tung. Ele nasceu em 26 de dezembro de 1883, no sul da China, e em 1911 alistou-se no Exército Republicano para lutar na Revolução Burguesa, que destronou o último imperador, Pinyin Pu-Yi. Anos depois ele também participou de protestos contra o Tratado de Versalhes, que tinha garantido interesses do Japão no território da China. Nessa época Mao teve seus primeiros contatos com a teoria marxista. Em 1º de julho de 1921 foi fundado o Partido Comunista Chinês. Mao, uma das 50 pessoas que estava na cerimônia, previu o futuro da organização: "Uma pequena centelha que incendiará o país". Em 1934 Mao conseguiu furar o bloqueio das tropas que dividiam os comunistas e se dirigiu para o Norte, no que passou à história como a Grande Marcha. Comandando 100 mil homens (30 mil soldados, 20 mil dos quais feridos, e 70 mil camponeses) percorreu 9.650 km em condições duríssimas. A Grande Marcha o consagraria como principal líder da Revolução Chinesa. Em outubro de 1949, a missão gigantesca de Mao era modernizar um país quase totalmente de agricultores. Chefiando um grupo guerrilheiro, Mao Tsé-Tung combateu imperialistas, burgueses, japoneses e nacionalistas até se tornar o Grande Timoneiro da China. O país se tornou comunista. Em 1959 ele foi forçado a abandonar o país, mas, como presidente do Comitê Central do PCC, Mao manteve sua influência na China. Em 1966 ele liderou a Revolução Cultural, quando milhares de jovens, os guardas vermelhos, prendiam os inimigos do Grande Timoneiro. Depois de três anos de conflitos, com o apoio do Exército, Mao conseguiu restabelecer a ordem no país. Em 1976, morreu aos 82 anos (MAO TSÉ-TUNG, 2005).
O atual presidente da China, Hu Jintao, quer reforçar o desenvolvimento econômico e continuar favorecendo sua ascensão. O crescimento do país foi de 9,1% em 2003 e de 9,7% no primeiro semestre de 2004 (NOTI-CIAS..., 2005). O presidente tem reforçado que a China iniciou uma reforma completa em sua estrutura econômica, promovendo constantemente os mecanismos de mercado no fim da década de 1970, e afirmou que o desenvolvimento da economia de mercado passou a fazer parte da Constituição chinesa em 1993. Nesses 26 anos, a China dedicou seus esforços para impulsionar a reforma e abertura, persistindo na direção do sistema econômico de mercado. Hoje, sob critérios aceitos pela comunidade internacional, o sistema econômico de mercado está estabelecido no país (PRESIDENTE..., 2005).
Mais que limitações, potencialidades: o paralelo entre filme e teoria
O ponto de partida é, desde já, revelar a leitura sobre o filme, reafirmando que Nenhum a menos não é apenas sobre as limitações de Minzhi, a professora substituta, mas, especialmente, sobre suas potencialidades. O filme não diz só da incapacidade inicial e até ausência de estímulo em tratar de algo completamente alheio ao seu universo, a sala de aula, mas, muito mais sobre a possibilidade de tomar esse espaço como um lugar de desenvolvimento, de criação, de aprendizagem e realização.
Ele é também um filme sobre a persistência, a capacidade de ultrapassar os próprios limites em busca de um objetivo definido, ainda que sem total conhecimento do caminho a seguir. Ressalta-se, ao iniciar a interface entre o filme e as distintas abordagens teóricas, que os "efeitos de sentidos" dados não são únicos. Eles vão variar segundo a história de cada sujeito-intérprete; portanto, a partir desse "olhar" que é peculiar, na posição de pesquisador. Ratifica-se que essa não é a única leitura possível nem tampouco a mais "correta": é mais uma interpretação, ancorada no caráter de incompletude da linguagem e da metáfora.
O filme pode ser recortado em três momentos: a chegada da professora substituta à aldeia e suas primeiras inserções em sala de aula, sua ida até a cidade à procura do aluno que vai trabalhar e o seu retorno e do aluno à aldeia, após a experiência vivida. Esses blocos resumem o filme e, ao mesmo tempo, remetem à análise central que se quer enfatizar: a necessidade de contextualização para emergência da competência, sua compreensão, desenvolvimento e avaliação. A vida na aldeia parece, à primeira vista, confinada pelas suas limitações e pobreza. A vida na cidade, aparentemente, aponta para realizações e oportunidades. No entanto, em qualquer das duas circunstâncias, o que prevalece é a possibilidade do aprendizado e da perspectiva de aflorar competências a partir dos eventos apresentados (ZARIFIAN, 2001).
É a partir dessa apresentação geral do filme e das suas possibilidades de leitura, que são construídas as interfaces entre a narrativa e os aspectos conceituais. Tal construção é apresentada de forma esquematizada no quadro 2, para facilitar o estabelecimento dos paralelos propostos:
Comentários finais
Este artigo buscou estabelecer uma interface entre o filme Nenhum a menos e os conceitos centrais utilizados em competências. Tal proposição parte da idéia de que são apropriadas as idéias de uso de diferentes estratégias na relação ensino/aprendizagem, especialmente, quando se trata das ciências sociais aplicadas, como é o caso da administração. A possibilidade de uso da metáfora cinematográfica permite mais significativa internalização dos conceitos e amplia as chances de debate mais aprofundado sobre a temática de competências, atualmente, tão difundida no meio acadêmico e empresarial.
Observa-se, com relação à narrativa, que tentando cumprir as orientações com relação ao modelo de ensinoaprendizagem apresentado (que remete ao aluno como sujeito passivo e ao saber do professor como central e à idéia da escola como espaço de reprodução de valores sociais, numa época marcada pelo regime de Mao), que a professora substituta Minzhi esbarra em situações que ajudam a revelar uma concepção diferente que ela tem acerca de como o conhecimento é construído, o que a faz vivenciar experiências inovadoras com os alunos e emergir competências individuais antes não reveladas.
A idéia vigente de como o conhecimento é construído pelos alunos dessa escola, passada à professorasubstituta, reforça aspectos relacionados à cópia da realidade e ao registro de fatos, à objetividade predominando sobre a subjetividade e à aprendizagem como resultante de treino e de experiência. A orientação dada pelo professor Gao sobre a solicitação aos alunos para copiar o texto do quadro, diariamente, como aquilo que basta fazer na classe, ilustra bem a idéia do aluno como "tabula rasa", sujeito do aprendizado.
Ao tentar cumprir rituais para os quais fora orientada - fazer cópias no quadro e treinar músicas com os alunos -, ela se mostra pouco à vontade e sem maior motivação. Diferentemente, quando problemas de real significado para o grupo e para ela surgiram, ela transforma-se, mostrando-se estimulada e criativa, propondo situações de aprendizagem que favoreceram o tratamento de conteúdos específicos relacionados a um saber-fazer para a questão tratada, como por exemplo, a viagem de um dos alunos versus como trazê-lo de volta para a escola. A sua preocupação com a discussão com os alunos sobre como resolver o problema de obter recursos para viajar, como calcular o valor de que precisaria para o ônibus, entre outras, sempre mediando as descobertas dos alunos e problematizando as situações, evidenciam princípios diferentes dos implícitos nas orientações que recebeu e capacidades não ensinadas, mas, adquiridas e experienciadas a partir da necessidade do contexto.
Assim, são discutidas possibilidades de como resolver os problemas levantados, identificando os conhecimentos de que os alunos dispõem e relacionando-os com outros que os levem aos objetivos. Durante todo o tempo, a professora assume o papel de mediadora entre o que se tem e o que se quer, procurando viabilizar a consecução dos objetivos. Quando viaja para procurar o aluno, a professora vive diferentes experiências que a levam a aprendizagens, até localizá-lo e trazê-lo de volta para a escola. Essas experiências, ao final, são compartilhadas com todos os que fazem parte da comunidade, de diferentes formas, principalmente, com os alunos que parecem incorporar o significado que a vivência trouxe.
Com relação aos paralelos estabelecidos entre teoria e filme, ressalta-se que, apesar da diversidade de abordagens, não se trata de concepções certas ou erradas da noção de competências. Mais que isso, a diversidade de perspectivas mostra uma evolução dos estudos a partir das necessidades do mercado e do desenvolvimento de pesquisas que se complementam tentando explicar melhor o fenômeno. Além disso, aponta para a intersecção inevitável da concepção de competências, com outros conceitos também relevantes, como o de processo de aprendizagem e gestão do conhecimento.
Tomando como referência a intensidade das transformações no contexto atual, é possível inferir que o que muda não são as relações entre as pessoas ou entre estas e o mercado, mas as próprias organizações em sua interrelação com o macroambiente. Fato este demonstrado claramente no cenário do filme que se ambienta numa China marcada pelo regime comunista, ao mesmo tempo, em que vive a abertura política e a busca por uma nova maneira de estabelecer-se do ponto de vista educacional, cultural e social. As competências individuais, nesse sentido, emergentes nas ações de Minzhi, são uma demonstração da necessidade de adequação a essa realidade diferenciada.
Ampliar as competências individuais, com múltiplos e diferentes conhecimentos, habilidades e atitudes, modos de agir e mobilizar pressupõe uma dimensão que atinge o "ser" e não apenas um novo "fazer", pressupondo revisão de posturas e valores quanto a formas de inserção social.
A necessidade de ampliar e aprofundar os estudos relativos à noção de competências faz-se intensa e este artigo pretendeu contribuir para ampliar as possibilidades de uso de diferentes recursos como estratégias de internalização de conceitos e ampliação dos debates.
Artigo recebido e aceito para publicação em novembro de 2006
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jul 2012 -
Data do Fascículo
Mar 2007
Histórico
-
Recebido
Nov 2006