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Saúde, estética e eficiência: relações entre práticas de consumo de alimentos as mulheres e seus corpos

Salud, estética y eficiencia: relaciones entre prácticas de consumo de alimentos de mujeres y sus cuerpos

Resumo

Pesquisas sobre alimentação e corpo na sociedade de consumo apresentam crescente interesse entre acadêmicos de diversas áreas. O objetivo deste estudo foi compreender as relações entre as práticas de consumo de alimentos de mulheres e seus corpos. Para tanto, os autores utilizam a perspectiva da Teoria de Prática (TP) para acessar os componentes das práticas de consumo de alimentos. Foram realizadas observações e entrevistas em profundidade junto a 20 informantes do sexo feminino, moradoras da região metropolitana do Rio de Janeiro, que apontaram a centralidade do corpo em práticas de consumo de alimentos. Essas práticas são reguladas por regras que levam em consideração a distinção entre o alimento, que nutre, e a comida, que dá prazer, e as estratégias das mulheres para combinar objetivos de curto prazo (prazer) e longo prazo (corpo adequado). O consumo de alimentos envolve engajamento com saúde, associado a aspectos clínicos da alimentação e manutenção do corpo; estética, os quais apresentam a alimentação como forma de moldar o corpo dentro de padrões de beleza; e eficiência, que orienta a alimentação para o desempenho profissional do corpo da mulher.

Palavras-chave:
Consumo de alimentos; Corpo; Teoria de prática

Resumen

Las investigaciones sobre alimentación y cuerpo en la sociedad de consumo presentan un creciente interés de académicos de diversas áreas. El objetivo de este trabajo es comprender las relaciones entre las prácticas de consumo de alimentos de mujeres y sus cuerpos. Para ello, los autores utilizan la perspectiva de la teoría de práctica para acceder a los componentes de las prácticas de consumo de alimentos. Se realizaron observaciones y entrevistas en profundidad con veinte informantes del sexo femenino, habitantes de la región metropolitana de Río de Janeiro, que indicaron la centralidad del cuerpo en prácticas de consumo de alimentos. Esas prácticas están reguladas por reglas que tienen en cuenta la distinción entre el alimento que nutre y la comida que da placer, y las estrategias de las mujeres para combinar objetivos a corto plazo (placer) y a largo plazo (cuerpo adecuado). El consumo de alimentos implica compromiso con la salud, asociado a aspectos clínicos de la alimentación, al mantenimiento del cuerpo y a la estética, que presentan la alimentación como forma de moldear el cuerpo dentro de patrones de belleza; y a la eficiencia, que orienta la alimentación hacia el desempeño profesional del cuerpo de la mujer.

Palabras clave:
Consumo de alimentos; Cuerpo; Teoría de práctica

Abstract

Research on food and body in the consumer society presents an increasing interest from academics in various fields. The aim of this paper is to understand the relationships between women’s food consumption practices and their bodies. The authors use the perspective of the Theory of Practice to access the components of food consumption practices. In-depth interviews were conducted with twenty female informants, residents of the metropolitan region of Rio de Janeiro, who said that their bodies were central in food consumption practices. These practices are regulated by rules that take into account the distinction between nourishment, needed for surviving, and eating, a pleasure action, and women’s strategies in combining short-term (pleasure) and long-term (body) goals. Food consumption involves commitments to health, associated with clinical aspects of food and body maintenance; aesthetics, which present the food as a way of molding the body within patterns of beauty; and efficiency, which orient eating towards the professional performance of the woman’s body.

Keywords:
Food Consumption; Body; Practice Theory

INTRODUÇÃO

Além de uma necessidade biológica humana, a alimentação é um fenômeno coletivo, culturalmente influenciado e vivenciado pelo indivíduo a partir de seu corpo. No suprimento dos alimentos são constituídas relações dos indivíduos entre si e com o ambiente social. Tais interações sofrem transformações em virtude do trabalho humano e das aplicações das tecnologias na produção dos meios de sobrevivência e das trocas subsequentes (CANESQUI, 2005CANESQUI, A. M. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.). O consumo de alimentos tem efeitos diretos no corpo, pois é o corpo responsável pelo processamento deles, mas, além disso, o papel social da alimentação também se baseia no desempenho corporal. A associação entre corpo e alimento, portanto, é permanente e envolve dimensões biológicas, sociais e culturais.

O campo dos estudos de consumo já apresenta preocupação com o consumo de alimentos há algum tempo, como exposto por Warde (1997WARDE, A. Consumption, food and taste. London: Sage , 1997., 2016WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.), Casotti e Thiollent (1997CASOTTI, L.; THIOLLENT, M. Comportamento do consumidor de alimentos: informações e reflexões. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 22., 1997, Angra dos Reis. Anais... Angra dos Reis, RJ: AnPAD, 1997.), Casotti, Ribeiro, Santos et al. (1998)CASOTTI, L. et al. Consumo de alimentos e nutrição: dificuldades práticas e teóricas. Cadernos de Debates, v. 6, p. 26-39, 1998., Hausman (2005HAUSMAN, A. Hedonistic rationality: the duality of food consumption. Advances in Consumer Research, v. 32, n. 1, p.404-405, 2005.) e Fonseca (2008FONSECA, M. Understanding consumer culture: the role of food as an important cultural category. Latin American Advances in Consumer Research, v. 2, p. 28-33, 2008.). Da mesma forma, as relações entre corpo e consumo também já foram exploradas por Thompson e Hirschman (1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.), Featherstone (2010FEATHERSTONE, M. Body, image and affect in consumer culture. Body & Society, v. 16, n. 1, p. 193-221, 2010.), Sauerbronn, Tonini e Lodi (2011SAUERBRONN, J. F. R. et al. Um estudo sobre os significados de consumo associados ao corpo feminino em peças publicitárias de suplementos alimentares. Revista Eletrônica de Administração, v. 17, n. 1, p. 1-25, 2011.), Tonini e Sauerbronn (2013)TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013. e Cheung-Lucchese e Alves (2013)CHEUNG-LUCCHESE, T.; ALVES, C. Percepção do corpo feminino e os comportamentos de consumo de serviços de estética. Organizações em Contexto, v. 9, n. 18, p. 271-294, 2013.. No entanto, as associações entre consumo de alimentos e corpo, mesmo que apontadas em alguns trabalhos, ainda não foram alvo de maior aprofundamento. Assim, com o intuito de oferecer uma contribuição aos estudos do campo, o foco desta pesquisa está direcionado à compreensão das práticas de consumo de alimentos das mulheres e as relações dessas práticas com seus corpos. O corpo feminino é objeto de controle religioso (LE GOFF e TRUONG, 2006LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.), médico (VIEIRA, 2002VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz , 2002.) e social (GOLDENBERG e RAMOS, 2007GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.) e é utilizado na propaganda como estímulo ao desejo de consumir (FALK, 1994FALK, P. The consuming body. London: Sage, 1994.). Como apontam Tonini e Sauerbronn (2013)TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013., as mulheres apresentam preocupações mais explícitas com seus corpos, pois sempre foi importante para elas cuidar da aparência para aumentar suas possibilidades de contrair matrimônio e, mais recentemente, garantir sua empregabilidade.

O objetivo deste estudo foi compreender as relações entre as práticas de consumo de alimentos de mulheres e seus corpos. Para alcançar esse objetivo, os pesquisadores utilizam a perspectiva teórico-epistemológica culturalista da Teoria de Prática (TP) e os componentes das práticas, como proposto por Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.). O corpus de dados é constituído por observações e entrevistas em profundidade, feitas junto a 20 mulheres cisgênero, moradoras da região metropolitana do Rio de Janeiro. A análise de conteúdo dos dados teve por base o quadro teórico-analítico proposto por Warde (2005)WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005. para a compreensão das práticas de consumo.

A exploração dos componentes das práticas femininas de consumo de alimentos realçou a centralidade do corpo para essa prática e, a partir de um diálogo entre dados e teoria, mostrou a distinção entre nutrição e comida e as estratégias utilizadas pelas mulheres para combinar o controle da ingestão de alimentos e o prazer de comer. Além disso, foram observados três tipos diferentes de engajamentos em práticas de consumo de alimentos, ligados à saúde (corpo avaliado clinicamente), à estética (corpo avaliado socialmente) e à eficiência (corpo avaliado profissionalmente). Tais engajamentos se relacionam aos itens de consumo utilizados nas práticas, que incluem compostos nutricionais e remédios - e não apenas os alimentos.

A estrutura do artigo é composta por 7 seções. As duas seções que sucedem esta introdução apresentam explorações teóricas sobre alimentos e corpo que servem como suporte para a compreensão dos dados coletados no campo. A quarta seção traz a proposta de uso da TP, de onde é retirado o quadro teórico-analítico utilizado para análise dos dados e é seguida pela apresentação dos procedimentos metodológicos. A apresentação da análise de dados é feita na sexta seção e, finalmente, as considerações finais encerram o artigo.

CULTURA ALIMENTAR E CONSUMO DE ALIMENTOS

A compreensão a respeito do alimento não se restringe aos aspectos nutricionais, uma vez que está profundamente relacionada a aspectos culturais. Como colocam Maciel e Castro (2013MACIEL, M. E.; CASTRO, H. C. A comida boa para pensar: sobre práticas, gostos e sistemas alimentares a partir de um olhar socioantropológico. Demetra, v. 8, n. 1, p. 321-328, 2013.), a alimentação une aspectos biológicos e fisiológicos a aspectos culturais. Lévi-Strauss (2004)LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2004. mostrou o quanto o estudo do alimento pode contribuir para a compreensão das sociedades. Para Mauss (1974MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp , 1974.), a alimentação configura o “fato social total”, uma vez que envolve vários níveis de realidade e múltiplas dimensões (econômica, política, social, demográfica, cultural).

DaMatta (1984)DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro: Rocco, 1984.apresentou uma compreensão a respeito da alimentação baseada na distinção entre alimento, o que é ingerido para manter o organismo vivo, e comida, o que se come com prazer, em companhia de outras pessoas. Para o autor, a comida define não apenas a substância (alimento), mas também um modo de alimentar-se: “o jeito de comer define não apenas aquilo que é ingerido como também aquele que a ingere” (DAMATTA, 1984DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro: Rocco, 1984., p. 56). A comida está associada aos costumes, às classes sociais e às formas de identificação dos sujeitos.

As escolhas dos alimentos, os modos de prepará-los e as formas de consumi-los estão diretamente ligados à identidade cultural do indivíduo, coletivamente construída e compartilhada (PATRIOTA, 2002PATRIOTA, L. M. Cultura, identidade cultural e globalização. Qualit@s, v. 1, n. 4, p. 1-9, 2002.). Como observado por Casotti, Ribeiro, Santos et al. (1998CASOTTI, L. et al. Consumo de alimentos e nutrição: dificuldades práticas e teóricas. Cadernos de Debates, v. 6, p. 26-39, 1998.), antes do indivíduo ingerir qualquer alimento, ele tem de ser capaz de reconhecê-lo, identificá-lo, entender seu lugar social e classificá-lo como apropriado ou não. Para Câmara Cascudo (1983)CÂMARA CASCUDO, L. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Edusp, 1983., os cardápios se montam e se estabelecem coletivamente e são pouco alterados ao longo do tempo por observações nutricionais ou preocupações a respeito de equilíbrio energético ou proteico. O indivíduo preserva sua alimentação porque está preso a um hábito construído em experiências socioculturais baseadas em sabor, custo, acessibilidade ou conveniência do alimento (CÂMARA CASCUDO, 1983CÂMARA CASCUDO, L. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Edusp, 1983.).

Os hábitos adquiridos ao longo da vida exercem uma influência muito grande sobre as práticas alimentares de cada indivíduo. Comer tem uma ligação intrínseca e direta com aspectos emocionais do indivíduo (CASOTTI e THIOLLENT, 1997CASOTTI, L.; THIOLLENT, M. Comportamento do consumidor de alimentos: informações e reflexões. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 22., 1997, Angra dos Reis. Anais... Angra dos Reis, RJ: AnPAD, 1997.), práticas religiosas e processos de aculturação (ERGIN e KAUFMAN-SCARBOROUGH, 2010ERGIN, E. A.; KAUFMAN-SCARBOROUGH, C. Examining immigrant Turkish household food consumption: consumer insights for food acculturation models. Advances in Consumer Research, v. 10, p. 796-797, 2010.). O consumidor atribui significados ao alimento, que passa a ter a função de auxiliar a autodefinição de sua identidade (HAUSMAN, 2005HAUSMAN, A. Hedonistic rationality: the duality of food consumption. Advances in Consumer Research, v. 32, n. 1, p.404-405, 2005.). A importância de compreender os significados do alimento também foi apontada por Fonseca (2008FONSECA, M. Understanding consumer culture: the role of food as an important cultural category. Latin American Advances in Consumer Research, v. 2, p. 28-33, 2008.). O autor defende que o estudo das aparentemente triviais práticas de consumo de alimentos é relevante para o campo da cultura e consumo, uma vez que essa prática envolve projetos identitários do consumidor e as culturas de mercado, além de padrões sócio-históricos de consumo e ideologias de mercado.

CORPO E ALIMENTAÇÃO

O corpo é tema de diversificada bibliografia e objeto de interesse na academia e fora dela (SANTOS, 2008SANTOS, L. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: Ed. UFBA, 2008.). Em seu estudo sobre a corpolatria, Malysse (2007MALYSSE, S. (H)alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record , 2007. p. 79-138.) aponta a construção cultural do corpo e a valorização de certos atributos e comportamentos em detrimento de outros, fazendo com que haja um corpo típico para cada sociedade. Segundo Goldenberg e Ramos (2007GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.), a partir do final da segunda metade do século XX o corpo passou a ser objeto de crescente interesse e exaltação, com maior exibição pública e evidente controle. Essa aparente liberação do corpo foi reforçada pela mídia com a finalidade de criar um processo civilizador do corpo (EISEND e MOLLER, 2006EISEND, M.; MOLLER J. Media consumption and the construction of consumer reality of body images. Asia-Pacific Advances in Consumer Research, v. 7, p. 101-116, 2006.; SCHROEDER e DOBERS, 2007SCHROEDER, J.; DOBERS P. Imagining identity: technology and the body in marketing communications. Advances in Consumer Research, v. 34, p. 229-232, 2007.). A exposição do corpo não exige somente seu controle biológico, mas também o controle de sua aparência física imposta pelos modelos corporais padronizados na mídia (GOLDENBERG e RAMOS, 2007GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.; FEATHERSTONE, 2010FEATHERSTONE, M. Body, image and affect in consumer culture. Body & Society, v. 16, n. 1, p. 193-221, 2010.). O corpo da publicidade, materializado e difundido em diversas linguagens, expressa os significados de uma cultura, pois as representações criadas para o corpo descrevem como gostariam de ser os sujeitos que compõem a sociedade (HOFF, VIDOTTO, MARIANO et al., 2005HOFF, T. M. et al. O corpo imaginado na publicidade. Caderno de Pesquisa ESPM, v. 1, n. 1, p. 23-39, 2005.).

Thompson e Hirschman (1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.) exploraram a socialização do corpo na sociedade de consumo pós-moderna e apontaram para o surgimento de uma ideologia de autocontrole, baseada em processos sociais de normalização e problematização do corpo e na operação de um olhar social disciplinador. Segundo os autores, a construção social do self envolve o enredamento do indivíduo em um sistema de conhecimento que o leva aos processos socioculturais de definição do que é um corpo atraente, saudável ou belo. Nesse sentido, o indivíduo está envolvido em um permanente monitoramento de sua autoimagem e se esforça para adequar seu corpo à norma. Como consequência, o indivíduo separa seu corpo de si e o transforma em um objeto que passa a ter significado em determinado grupo social. O mercado, ao mesmo tempo, interfere nos significados do corpo compartilhados entre indivíduos e oferece produtos e serviços para que os indivíduos sigam disciplinadamente uma ideologia cultural concretamente manifestada por meio da mídia de massa, da propaganda, dos pronunciamentos científicos e do curso dos encontros sociais (THOMPSON e HIRSCHMAN, 1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.).

O corpo passa a ser alvo de investimentos de tempo e dinheiro e o sucesso pessoal passa a ser representado por um corpo em forma (GOLDENBERG e RAMOS, 2007GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.). As revistas e a televisão associam a imagem de atrizes, modelos e personalidades de forma implícita ou explícita à concepção de que as mulheres de sucesso devem ser magras, musculosas, praticantes de atividade física e sempre preocupadas com a alimentação (SABINO, 2007SABINO, C. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido. Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record , 2007. p.139-188.). Tonini e Sauerbronn (2013TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013.) adotam a perspectiva de objetificação do corpo e tomam emprestado a ideia de corpo como capital, proposta por Goldenberg e Ramos (2007GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.). Como consequência, aproximam-se da proposta de Thompson e Hirschman (1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.) e percebem a dominação do corpo por uma estrutura de mercado, que permite pouca ação ao indivíduo e o enquadra dentro de um conjunto de atividades físicas, dietas e cuidados estéticos ofertados como forma de investimento nesse corpo/objeto.

Os mecanismos de responsabilização individual pela aparência do corpo fazem com que surja uma “moralidade da boa forma”, dentro da qual cada indivíduo passa a analisar detalhadamente seu próprio corpo e dedicar atenção às atividades físicas e à alimentação (GIACOMINI, 2004GIACOMINI, S. M. O corpo como cultura e a cultura do corpo: uma explosão de significados. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 14, n. 2, p. 406-416, 2004.). Como já destacado por Witt e Schneider (2011)WITT, J. S.; SCHNEIDER, A. P. Nutrição estética: valorização do corpo e da beleza através do cuidado nutricional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n. 9, p. 3909-3916, 2002., a quantidade de mulheres que vem se submetendo a dietas para controle do peso é crescente. As mudanças de práticas alimentares estão associadas a dois aspectos: saúde e imagem corporal, o que aproxima ainda mais o corpo das práticas alimentares.

As práticas alimentares, portanto, são refletidas no corpo e estão associadas a vigilância e reconstrução de significados. Dessa forma, o corpo não deve ser visto como uma entidade passiva que portamos, mas sim como um sistema de ação (SANTOS, 2008SANTOS, L. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: Ed. UFBA, 2008.), uma vez que é por meio do corpo que as práticas são realizadas. Em alinhamento à proposta da TP, apresentada a seguir, as práticas são atividades corporais rotineiras e, portanto, o social se dá a partir do desempenho corporal (RECKWITZ, 2002RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, v. 5, n. 2, p. 243-263, 2002.). O consumo de alimentos é uma prática corporal especialmente interessante porque é praticada pelo corpo em sentido mais complexo: em sua execução e em seus efeitos diretos.

PROPOSTA DE USO DA TEORIA DE PRÁTICA

Como apresentado por Reckwitz (2002)RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, v. 5, n. 2, p. 243-263, 2002., a TP é uma perspectiva teórica culturalista que apresenta conceituações próprias a respeito do corpo, da mente, das coisas, dos discursos, das estruturas e dos processos dos agentes. Para os teóricos de prática, o espaço social está localizado nas práticas (sentidos e nexos de fazer ou dizer), enquanto que para outras tradições da teoria culturalista este pode se localizar nas estruturas mentais (mentalismo culturalista), nas interações entre indivíduos (intersubjetivismo) ou nos códigos do discurso (textualismo) (RECKWITZ, 2002RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, v. 5, n. 2, p. 243-263, 2002.). Dessa forma, a compreensão de si e do mundo se dá por meio do envolvimento em práticas e a análise está focada nas práticas geradas como resultado das interações entre indivíduos e estruturas sociais (RECKWITZ, 2002RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, v. 5, n. 2, p. 243-263, 2002.). Como apontado por Borelli (2012BORELLI, F. C. A. Practice theory e o estudo do consumo: reforçando o chamado de Alan Warde. In: ENCONTRO DE MARKETING DA ANPAD, 5., 2012, Curitiba. Anais...Curitiba: AnPAD, 2012.), a TP entende os indivíduos como praticantes que realizam, reproduzem, resistem e negociam uma série de práticas diferentes em sua vida cotidiana.

Os estudos de Shove e Pantzar (2005SHOVE, E.; PANTZAR, M. Consumers, producers and practices: understanding the invention and reinvention of Nordic walking. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 1, p. 43-64, 2005.) e Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.) trouxeram o suporte da TP para o campo dos estudos de consumo. A TP está alinhada à perspectiva de compreensão do consumo como atividade social imersa em significados, o que a aproxima do campo dos estudos de consumo. Não há, contudo, uma perspectiva unificada a respeito da aplicação da TP e as formas de operação dessa perspectiva teórico-epistemológica são múltiplas. Neste estudo, utilizamos a perspectiva desenvolvida por Warde (2005)WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005., em função da aproximação desse autor à pesquisa sobre consumo de alimentos (cf. WARDE, 1997WARDE, A. Consumption, food and taste. London: Sage , 1997., 2016WARDE, A. The practice of eating. Cambridge: Polity, 2016.).

Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.) classifica o indivíduo como um portador de práticas, que contêm componentes e conexões. Essas conexões relacionam as práticas do indivíduo às demais, explicando a origem das atividades sociais desse indivíduo, como o consumo. As interconexões entre as práticas dão sentido e significado às atividades praticadas pelos indivíduos. Para Warde (2005)WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005., podemos entender as práticas como um tipo de comportamento rotinizado composto por quatro elementos: entendimentos, procedimentos, engajamento e itens de consumo.

Os entendimentos envolvem as interpretações práticas do que fazer e de como fazer, o conhecimento e o know-how em um sentido amplo (WARDE, 2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.). Nesse caso, o entendimento das práticas nos remete a como fazer algo e compartilhar entendimentos comuns. Os procedimentos são definidos como as instruções, regras e princípios de como realizar a prática. Os procedimentos podem variar, independentemente de um ou outro componente dos nexos, de suas distintas formas de aprendizagem e dos grupos participantes, mas oferecem ordem para as práticas e os processos associados.

Os engajamentos envolvem as orientações emocionais e normativas relacionadas com o que e como fazer. Dentro da proposta analítica de Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.), há uma necessidade de compreender como os nexos são adquiridos conforme o desenvolvimento das práticas. Por fim, os itens de consumo tratam dos modos e conteúdos de apropriações de bens e serviços. Esses quatro componentes das práticas compõem o quadro teórico-analítico deste estudo e são utilizados para a análise de dados, como tratado na próxima seção (cf. Quadro 1).

Quadro 1
Componentes das práticas segundo Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.)

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Dada a proposta culturalista da TP, esta pesquisa foi orientada dentro de um paradigma interpretativista, que prioriza métodos qualitativos de coleta, análise e apresentação dos dados (SAUERBRONN, CERCHIARO, AYROSA et al., 2012SAUERBRONN, J. F. R.; CERCHIARO, I. B.; AYROSA, E.A.T. Uma discussão sobre métodos alternativos em pesquisa acadêmica em marketing. Gestão & Sociedade, v. 5, n. 12, p. 254-269, 2012.). A estratégia de coleta de dados envolveu observação de práticas e entrevistas em profundidade. As observações permitiram que os pesquisadores acessassem as rotinas e os hábitos das informantes e perceber como são realizadas as práticas, enquanto as entrevistas semiestruturadas tornaram possível a compreensão das conexões entre as práticas alimentares das mulheres, os processos de diferenciação social presentes nas formas de escolha, preparo e ingestão do alimento e seus corpos. Esses procedimentos permitiram a construção de uma descrição densa a respeito das práticas de consumo de alimentos.

O corpus de dados foi construído a partir de observações de práticas e de entrevistas em profundidade com 20 mulheres cisgênero com idades entre 23 e 58 anos. A seleção das informantes foi feita a partir da rede de contatos dos pesquisadores e de indicações das próprias informantes e seguiu unicamente o critério de sexo e idade. A escolha por mulheres com idades acima de 23 anos, independentemente de profissão ou classe social, ocorreu em função do perfil etário das pesquisadoras do sexo feminino e por conta da maturidade necessária para que as respondentes realizassem reflexões mais profundas a respeito de seus corpos. A quantidade de informantes foi definida pelo critério de saturação (THIRY-CHERQUES, 2009THIRY-CHERQUES, H. R. Saturação em pesquisa qualitativa: estimativa empírica de dimensionamento. Revista PMKT, v. 3, p. 20-27, 2009.) e a coleta de dados cessou quando o acréscimo de informações já não alterava a compreensão a respeito das relações entre práticas de consumo de alimentos das mulheres e seus corpos.

As entrevistas seguiram roteiro semiestruturado construído com base no quadro teórico-analítico dos componentes da prática e foram realizadas por pesquisadoras do sexo feminino, para que o ambiente fosse o mais confortável possível para as informantes. Os encontros com cada informante tiveram duração variável entre 30 minutos e 2 horas e, em alguns casos, houve mais de um encontro com a mesma informante. Todos os encontros foram gravados em áudio e alguns também foram filmados.

As entrevistas transcritas, imagens coletadas e notas de campo das pesquisadoras foram analisadas a partir da análise de conteúdo. Como proposto por Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Ed. 70, 2011.), a análise de conteúdo também pode ser uma análise de significados e, dessa forma, o material coletado foi organizado e analisado por cada um dos pesquisadores individualmente e depois discutido entre todos. Seguindo essa etapa de pré-análise, os dados foram explorados com base nas categorias pré-determinadas no quadro teórico-analítico dos componentes da prática e foi feita a interpretação e comparação dos dados entre si e com a teoria. Durante a análise de dados, apresentada a seguir, os pesquisadores buscaram um diálogo entre dados e teoria que permitisse a compreensão das práticas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo. Como forma de auxiliar essa apresentação foram incluídos extratos de entrevistas, sendo as informantes identificadas apenas por suas profissões e idades.

ANÁLISE DE DADOS

A análise dos dados foi realizada com base no quadro teórico-analítico dos componentes das práticas exposto anteriormente e apresenta ao leitor os achados da pesquisa a partir das interações entre os dados e as teorias sobre consumo de alimentos, corpo e práticas. Como forma de orientar a apresentação dessa análise, a seção é dividida em quatro subseções, cada uma referente a um dos componentes das práticas.

Entendimentos

Os entendimentos envolvem as interpretações práticas do que fazer e de como fazer, o conhecimento e o know-how em um sentido amplo (WARDE, 2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.). As práticas alimentares não estão restritas exclusivamente ao aspecto nutricional, mas envolvem outras dimensões bastante significativas, tais como história e cultura alimentar dos indivíduos (CASOTTI e THIOLLENT, 1997CASOTTI, L.; THIOLLENT, M. Comportamento do consumidor de alimentos: informações e reflexões. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 22., 1997, Angra dos Reis. Anais... Angra dos Reis, RJ: AnPAD, 1997.). As informantes atribuem o aprendizado a respeito dos alimentos, seus entendimentos e suas formas de preparo às experiências humanas que ocorrem ao longo da vida. A formação da identidade alimentar brasileira é uma das fontes de conhecimento a respeito das práticas de consumo de alimentos. As múltiplas origens dos povos que formaram o Brasil estão contempladas no entendimento das mulheres a respeito dos alimentos.

[...] você aprende a comer bem. Os indígenas, os africanos, os próprios portugueses já nos deixaram essa cultura. Então, o que você sabe que você pode comer é um aprendizado, sim. Por exemplo, a minha família ela é italiana e me faz falta [comer massa]. O feijão, a feijoada veio da contribuição africana, ou seja, você aprende a fazer e comer (Professora, 47 anos).

A regionalidade também é um aspecto cultural presente nas práticas alimentares. As diversas formas de escolher ingredientes e preparar os alimentos resultam em entendimentos diferentes a respeito do consumo de alimentos. Como coloca Patriota (2002PATRIOTA, L. M. Cultura, identidade cultural e globalização. Qualit@s, v. 1, n. 4, p. 1-9, 2002.), a identidade serve para diferenciar o indivíduo dos outros e é baseada na noção de pertencimento a uma cultura. Essa identidade também é uma forma de entendimento, uma interpretação a respeito do que é alimento e de como se alimentar. A alimentação serve como reforço da autoidentidade da mulher, como proposto por Casotti e Thiollent (1997CASOTTI, L.; THIOLLENT, M. Comportamento do consumidor de alimentos: informações e reflexões. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 22., 1997, Angra dos Reis. Anais... Angra dos Reis, RJ: AnPAD, 1997.) e Hausman (2005HAUSMAN, A. Hedonistic rationality: the duality of food consumption. Advances in Consumer Research, v. 32, n. 1, p.404-405, 2005.).

Eu tendo a consumir mais comidas que eu vim aprendendo a comer lá em Minas. [...] Mudou um pouco aqui. Eu gosto de fazer os tipos de comidas de lá. No final de semana eu faço uma polenta que é de Minas. Em Minas, por exemplo, é praticamente todos os dias. Na minha casa a minha mãe faz angu todos os dias (Estudante, 35 anos).

Como apontado por DaMatta (1984)DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro: Rocco, 1984. e Câmara Cascudo (1983)CÂMARA CASCUDO, L. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Edusp, 1983., componentes culturais compartilhados no seio da família influenciam os entendimentos a respeito das práticas alimentares adquiridas. As mulheres carregam consigo as orientações culturais a respeito da alimentação aprendidos desde a infância. As manifestações concretas de práticas e rituais sociais das mulheres tornam-se visíveis nessa categoria de entendimento cultural.

Aquilo que a família tem o costume de comer, o que já vem de outros tempos que a família carrega, acaba influenciando na sua criação e você também vai carregar esse hábito (Pedagoga, 23 anos).

O entendimento a respeito da prática de consumo de alimentos diferencia comer e se alimentar, em consonância com DaMatta (1984)DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro: Rocco, 1984.: alimentar-se é obter nutrientes; comer é buscar prazer por meio do alimento. Em ambos os casos, o corpo tem posição central, pois é o objeto de preocupação no tocante ao funcionamento (alimentar-se) e também necessário para se sentir prazer (comer). A Professora de 35 anos declarou:

Se fosse pesar, eu acho que como mais por prazer do que por necessidade.

A sensação de prazer é corporal e está associada a algumas práticas de consumo de alimentos, que se contrapõem à regra e ao controle consciente por conta de suas consequências no corpo:

Eu acho que quando a gente se alimenta a gente presta atenção no que está comendo, a gente se alimenta com consciência. Quando a gente come, pode ser um fast-food maravilhoso, [...] sanduíche, batata frita, tudo que não deve (Dona de Casa, 43 anos).

No tocante aos entendimentos, o conhecimento a respeito dos alimentos e suas formas de preparação e ingestão se apresentam relacionados aos hábitos adquiridos ao longo da vida. Tais conhecimentos a respeito dos alimentos permanecem com as mulheres na vida adulta e servem como referência para as definições das práticas de consumo de alimentos. A família e as tradições, assim como o contexto social, servem como suporte para o conhecimento a respeito dos alimentos e seus efeitos no corpo. Nesse sentido, a prática de consumo de alimentos se relaciona ao corpo a partir da distinção entre nutrição (alimentação) e sensação (prazer), como apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Entendimentos a respeito das práticas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo

Procedimentos

Procedimentos são definidos como princípios, instruções, regras e formas sociais rotinizadas (WARDE, 2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.). Assim, os procedimentos oferecem ordem para as práticas e os processos associados. Os compartilhamentos de práticas semelhantes podem ser apresentados de formas diferenciadas, dependendo dos nexos de fazeres e discursos.

No caso do consumo de alimentos, os procedimentos estão relacionados ao ordenamento das atividades alimentares em práticas. Há horários específicos para o consumo de alimentos diferentes, que se integram à atividade corporal da mulher ao longo de sua rotina. As práticas rotinizadas de consumo de alimentos estão associadas às praticas de atividades físicas, tanto aquelas com funções laborais como estéticas ou funcionais.

Só tomo café da manhã quando eu chego ao serviço e por volta de 12:00, eu almoço. Quando dá umas 15:00 eu lancho e quando eu vou para casa, janto umas 21:00 (Manicure, 23 anos).

Meio-dia em ponto eu saio para almoçar e quando dá uma hora eu já paro e volto para o trabalho e faço tudo normal. Eu lancho as 17:30 e começo a me preparar para ir embora. E segunda, quarta e sexta eu faço zumba de 19:00 às 20:00 (Compradora, 45 anos).

Nos trechos acima temos práticas sociais rotineiras e estruturas sociais consistentes com rotinas. Os horários mencionados por cada informante representam as rotinas, as regras e as formas de representar cada refeição. Por vezes, os efeitos dos alimentos no corpo geram alterações nos procedimentos, como vemos neste trecho:

[...] eu demorava muitas horas entre uma refeição e outra. Ficava muitas horas sem comer, então, eu mudei. Resolvi fazer essa dieta de cápsulas emagrecedoras naturais. Tomava três cápsulas por dia e me alimentava a cada 3 horas. Ganhei uma dieta. Passei a beber muita água, a comer frutas com casca, muita fibra. Então, mudou toda a minha vida. O café da manhã, eu aprendi que é a principal refeição do dia. [...] Entre o café da manhã e o almoço, costumo comer uma fruta ou tomo um copo de suco para não ficar muitas horas sem comer. Almoço, lancho e quando sinto fome, bebo alguma coisa ou como uma fruta (Dona de Casa, 43 anos).

Como vemos, a alteração das práticas de consumo de alimentos apresentadas no trecho anterior tem por objetivo controlar a forma do corpo. A entrevistada procurou auxílio profissional de uma nutricionista e alterou os procedimentos de suas práticas de consumo de alimentos. Houve alteração dos componentes das práticas de consumo de alimentos, uma vez que ela “aprendeu” a respeito da importância do café da manhã (entendimento), alterou as regras para ingestão e escolha de alimentos (procedimentos), adotou outra postura diante dos efeitos da alimentação sobre seu corpo (engajamento) e incorporou novos alimentos e substâncias às suas práticas (itens de consumo).

As mudanças de práticas de consumo de alimentos ocorrem em função da percepção de que o corpo precisa ser alterado, pois não se encaixa em um padrão, como já apontado por Tonini e Sauerbronn (2013TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013.). Indicações presentes na mídia de massa ou compartilhadas entre pessoas do mesmo grupo servem como ponto de partida para a construção de novos procedimentos dentro das práticas de consumo de alimentos, em busca de resultados no corpo, conforme apresentado por Sabino (2007SABINO, C. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido. Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record , 2007. p.139-188.). Os procedimentos mostram as imposições de horários, regras e rotinas, o que caracteriza as instruções, os princípios e as regras para desempenhar cada prática. As mulheres seguem regras e instruções específicas de consumo de alimentos para alcançar determinado objetivo expresso no corpo.

As rotinas, contudo, não são seguidas sem que haja algumas rupturas. O final de semana oferece às mulheres possibilidade de alterar regras de alimentação. A dieta controlada e com horários pré-definidos é abandonada nos finais de semana, em uma negociação entre controle, regras e concessões que configura os procedimentos. Há uma (re)definição da regra, para que os momentos de prazer com a comida façam parte das práticas de consumo de alimentos.

Eu chamo o domingo de “dia do lixo” porque a gente pode comer, a gente abre exceção para comer as comidas gordurosas, pesadas e que não fazem parte da dieta (Estudante, 35 anos).

O “dia do lixo” é uma forma de enquadrar o prazer de comer na regra da alimentação. Dessa forma, a regra incorpora objetivos de curto prazo (prazer), sem sacrificar definitivamente objetivos de longo prazo (forma), o que remete à dualidade do consumo de alimentos abordada por Hausman (2005HAUSMAN, A. Hedonistic rationality: the duality of food consumption. Advances in Consumer Research, v. 32, n. 1, p.404-405, 2005.). Os procedimentos incorporam de modo rotinizado dois padrões de consumo de alimentos: um esforço de alimentação controlada ao longo da semana e uma recompensa com comida que gera prazer nos finais de semana. As relações entre consumo de alimentos e o corpo ajudam a reforçar esses procedimentos, uma vez que as recompensas pela rotina de controle se expressam no corpo, tanto na forma do corpo desejado como no prazer que é experimentado pelo corpo (sabor, quantidade) nos finais de semana (Quadro 3).

Quadro 3
Procedimentos das práticas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo

Engajamentos

Engajamentos envolvem as orientações emocionais e normativas relacionadas com o que e como fazer e proporcionam nexo às práticas. Os dados mostraram que as formas de relação entre o consumo de alimentos e o corpo têm um papel importante nas orientações emocionais e normativas relacionadas às práticas de consumo de alimentos. Foi possível diferenciar três tipos de engajamentos de práticas de consumo de alimentos: saúde; estética; e eficiência.

Os engajamentos pela saúde estão relacionados às práticas de consumo de alimentos saudáveis. Aspectos médicos orientam a alimentação em função da saúde da mulher. Não se tratam de engajamentos focados na apresentação de um corpo com aspecto saudável, mas de um engajamento baseado no funcionamento do corpo. Nesse sentido, os alimentos, os medicamentos e as atividades físicas têm por objetivo manter o corpo vivo.

[...] estou acima do peso, eu tomo remédio para pressão, gastrite... Porque eu tenho uma gastrite nervosa. Eu tenho pré-diabetes e tomo remédio. Esse ano eu estou muito focada em perder peso, porém, eu tenho 47 anos e, por eu ser muito bem resolvida, casada, então, não tenho essa coisa de ficar com o corpinho de garotinha. O importante é a minha saúde, para que eu pare de tomar remédio (Professora, 47 anos).

O engajamento com o corpo saudável se diferencia do modelo de corpo veiculado pela mídia, mas envolve um controle patológico sobre o corpo e o alimento, como discutido por Santos (2008SANTOS, L. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: Ed. UFBA, 2008.). O engajamento pela saúde coloca em evidência a medicalização do corpo, a avaliação de indicadores que não estão à vista dos outros, como níveis de colesterol ou a saúde do aparelho vascular. O profissional de saúde passa a ocupar um papel importante nas definições de práticas de consumo de alimentos. O alimento passa a ser entendido como um composto de nutrientes, vitaminas, carboidratos, gorduras e o corpo passa a ser o local onde as práticas de consumo de alimentos são avaliadas clinicamente.

Outra forma de engajamento percebido foi o engajamento pela estética. Nessa forma de engajamento as orientações emocionais e normativas das mulheres a respeito do que e de como comer estão baseadas na dimensão estética do corpo. As respondentes apontam que há um padrão corporal sendo imposto pela mídia e que o corpo é o primeiro contato delas com o mundo social à sua volta. Nesse contexto, o corpo é socializado (THOMPSON e HIRSCHMAN, 1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.), exposto aos outros e, portanto, objetificado (TONINI e SAUERBRONN, 2013TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013.).

O corpo é a primeira coisa a ser vista. A primeira coisa que a gente leva é o corpo e não a palavra, então, eu acho que é o nosso cartão de visita e é uma coisa muito importante (Pedagoga, 23 anos).

A representação do corpo como um cartão de visitas deixa claras as possibilidades de investimento nesse objeto, que serve como posicionamento da mulher na estrutura social. A não adequação do corpo a um padrão socialmente aceito pode gerar a alteração de práticas de consumo de alimentos, a partir de uma mudança no engajamento.

Tal como apontado por Thompson e Hirschman (1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.), fica clara a disciplina do corpo em torno de imagens oferecidas pelo mercado, o que Tonini e Sauerbronn (2013TONINI, K. A. D.; SAUERBRONN, J. F. R. Mulheres cariocas e seus corpos: uma investigação a respeito do valor de consumo do corpo feminino. Revista Brasileira de Marketing, v. 12, n. 3, p. 77-101, 2013.) denominaram corpos virtuais. A mídia e a sociedade apresentam os padrões corporais e os procedimentos que as mulheres devem seguir para alcançá-los.

Eu tenho amigas que buscaram um corpo ideal por conta da cobrança, do convívio de amigos. [...] tinha que ser sarada, tinha que ser definida e buscaram isso e conseguiram. Mas, para mim, isso tudo é uma influência muito grande da mídia e que, às vezes, não é o caminho da felicidade, o caminho da satisfação com o corpo (Pedagoga, 23 anos).

A mídia oferece os subsídios para as orientações emocionais e normativas das mulheres. Os sentimentos das mulheres diante das imagens corporais divulgadas criam conflitos em relação aos princípios e escolhas que cada mulher tem em relação ao seu corpo. Malysse (2007MALYSSE, S. (H)alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record , 2007. p. 79-138.) destaca que o corpo possui papel fundamental nas interações sociais. As informantes percebem a influência da mídia e da sociedade sobre seus corpos e modificam suas práticas de consumo de alimentos como forma de possibilitar suas participações nos grupos sociais desejados.

A mídia mostra muito um corpo perfeito e tal. Se a pessoa deixar se influenciar, [...] acaba levando isso para um lado tão drástico que acaba virando uma doença, né? [...] eu comecei a dieta porque estava me incomodando (Estudante, 35 anos).

Eu me preocupo com a saúde e com a imagem corporal também. Eu procuro não exceder na comida e procuro não exceder na bebida alcoólica também. [...] Porque eu tenho vários amigos que bebem muita cerveja e todos são barrigudos. As mulheres barrigudas [...] Enfim, eu me preocupo muito com isso (Dona de Casa, 43 anos).

O corpo passa a ser ponto central no processo de socialização e o corpo bonito, como veiculado na mídia, passa a ser o corpo desejado. As práticas de consumo de alimentos passam a ter uma função específica de transformar o corpo, seguindo um engajamento orientado pela estética, como declara a Manicure de 23 anos:

Para você ter aquele corpo sarado e definido, envolve as práticas alimentares.

A Professora de 47 anos reforça esse engajamento:

Se você come a coisa certa, o seu corpo vai adquirir o que você está querendo. Sendo assim, você vai moldar o seu corpo de acordo com a sua alimentação.

Assim como o engajamento pela estética, o engajamento pela eficiência objetifica o corpo, mas apresenta finalidade mais específica de fazer com que o corpo seja produtivo. Esse engajamento relaciona o corpo ao mercado de trabalho e orienta as práticas femininas de consumo de alimentos em função da possibilidade de sucesso profissional. As adequações do corpo ao trabalho e à imagem de trabalhador bem-sucedido estão em pauta aqui.

Por exemplo: o corpo é fundamental para você impor sua voz na sala de aula e a alimentação pode influenciar em muitas situações. [...] O que vejo na maioria das salas de professores: nós comemos muita besteira. [...] A questão é por que fazemos isso, sabendo que precisamos do corpo? (Professora, 33 anos).

A Enfermeira de 27 anos também trata das práticas de consumo de alimentos como suporte para sua atividade profissional:

Se eu não tiver comido direito, não aguento o rojão. O corpo fica cansado rápido e o trabalho é longo.

Dessa forma, a disposição do profissional é fundamental. O corpo tem de estar disposto e ser capaz de acompanhar as demandas que surgem no ambiente de trabalho.

Quadro 4
Engajamentos a respeito das práticas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo

Itens de consumo

Os itens de consumo são os modos e conteúdos de apropriação de bens e serviços que acontecem ao longo das práticas de consumo de alimentos. Nesse sentido, os itens de consumo envolvidos nas práticas de consumo de alimentos são basicamente os alimentos. No entanto, as informantes apresentaram alguns itens de consumo diferentes à medida que diferentes engajamentos foram apresentados.

As práticas que são justificadas como saudáveis (engajamentos pela saúde) envolvem o consumo de produtos que seguem orientação médica, tais como remédios para o controle da pressão, dos sintomas da diabetes ou mesmo para controle do peso corporal, mas com a intenção de preservar a saúde da mulher. São apresentadas algumas restrições à ingestão de alguns alimentos, em função da quantidade de carboidratos ou de gordura. Em algumas situações, a inserção de um medicamento (item de consumo) à prática de consumo leva a alterações nos procedimentos de consumo de alimento, como no relato a seguir:

Primeira mudança foi tirar a janta, por eu ter o hábito de me alimentar muito tarde e logo após dormir. O remédio facilitou para que eu comesse pouco e ficasse satisfeita. O café da manhã, eu sempre fiz. O mais radical na dieta foi tirar a janta e diminuir bastante a quantidade que eu comia, principalmente no almoço. A quantidade de carboidratos, eu diminuí. Me acostumei (Pedagoga, 23 anos).

Nos casos do engajamento com a estética e do engajamento com a eficiência são promovidas composições de itens de consumo semelhantes ao engajamento com a saúde. No entanto, não há necessariamente um acompanhamento profissional especializado que sirva como fonte para a escolha de itens de consumo, uma vez que o mercado (via propaganda) serve como orientador (SAUERBRONN, TONINI e LODI, 2011SAUERBRONN, J. F. R. et al. Um estudo sobre os significados de consumo associados ao corpo feminino em peças publicitárias de suplementos alimentares. Revista Eletrônica de Administração, v. 17, n. 1, p. 1-25, 2011.). O “corpo virtual” (TONINI E SAUERBRONN, 2013) é definido e controlado pelo mercado, que oferece produtos e serviços que possibilitem à mulher manter a disciplina do corpo, como proposto por Thompson e Hirschman (1995THOMPSON, C. J.; HIRSCHMAN, E. C. Understanding the socialized body: a poststructuralist analysis of consumers’ self-conceptions, body images, and self-care practices. Journal of Consumer Research, v. 22, n. 2, p. 139-153, 1995.). Da mesma forma, o corpo eficiente e preparado para qualquer demanda organizacional também demanda itens de consumo que possibilitam a capacidade de ação e promovem a imagem de um corpo bem-sucedido. A preocupação com o sobrepeso e com a aptidão física também fazem com que as mulheres incluam em suas práticas alimentares alimentos light e diet, preparados (shakes), chás herbais e medicamentos para controle do apetite.

De noite eu tomo um shake [...], eu estou nesse período. Ou eu faço um lanche porque pode um misto light. E eu não janto porque nesse momento eu estou fazendo dieta e também porque a gente não tem muito movimento a noite (Professora, 47 anos).

Na minha dieta eu como de três em três horas, eu não almoço, eu faço um shake e tomo junto com dois chás e faço uma nutrição saudável. Quando chega umas 15:00 eu como uma ou duas frutas e 17:30 eu como um biscoitinho. E gosto sempre de jantar, e esse é o meu único defeito, que eu gosto de jantar (Compradora, 45 anos).

Os itens de consumo ofertados pelo mercado permitem que refeições sejam trocadas pelo consumo de um preparado. A procura por um corpo mais saudável, mais bonito ou mais adequado para o trabalho (os engajamentos) definem os itens de consumo das práticas de consumo de alimentos. Mais uma vez, o corpo é elemento central na definição dessas práticas.

Quadro 5
Itens de consumo das práticas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, as práticas femininas de consumo de alimentos e suas relações com o corpo foram exploradas com o intuito de proporcionar uma compreensão mais profunda a respeito delas. A proposta de Warde (2005WARDE, A. Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, v. 5, n. 2, p. 131-153, 2005.) trouxe os componentes analíticos para essa exploração e permitiu que fossem entendidos os nexos das práticas de consumo de alimentos e deixou claro que as práticas de consumo de alimentos estão fundadas nos resultados expressos no corpo.

A reconstrução das práticas femininas de consumo de alimentos observadas nessa pesquisa a partir de seus componentes permite compreendermos as relações entre essas práticas e o corpo da mulher. Analisando os entendimentos, ficou claro que as origens das práticas de consumo de alimentos estão eminentemente ligadas à família e às tradições, que servem de referência para a escolha de alimentos. Além disso, vimos que a distinção entre nutrição e prazer forma a relação entre os entendimentos e o corpo da mulher. Essa distinção, já apontada por DaMatta (1984)DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro: Rocco, 1984., é central para a compreensão das práticas de consumo de alimentos e coloca o corpo em posição de destaque, uma vez que a nutrição mantém o corpo e é o corpo que sente prazer com a comida. Não é surpreendente que a distinção entre nutrição e prazer seja referência para os demais componentes das práticas femininas de consumo de alimentos. No caso dos procedimentos, há uma estratégia de composição de regras que valem para os dias úteis, mas que são revogadas durante o final de semana. Esses procedimentos fazem parte de uma negociação de objetivos de curto prazo (prazer) e longo prazo (corpo ideal), como discutido por Hausman (2005HAUSMAN, A. Hedonistic rationality: the duality of food consumption. Advances in Consumer Research, v. 32, n. 1, p.404-405, 2005.). Os procedimentos também mostram o quanto as práticas femininas de consumo de alimentos são integradas às atividades corporais que ocorrem ao longo do dia e que as rotinas de ingestão de alimentos podem ser alteradas em função de seus efeitos sobre o corpo.

A análise dos engajamentos trouxe mais subsídios para a compreensão das práticas femininas de consumo de alimentos e suas relações com seus corpos. Foram identificados três tipos de engajamentos entre as informantes: engajamento pela saúde, baseado na compreensão do consumo de alimentos em função dos efeitos destes na saúde do corpo; o engajamento pela estética, quando o alimento serve para moldar o corpo à semelhança de ideais oferecidos pelo mercado; e o engajamento pela eficiência, quando o consumo de alimentos é centrado na capacidade da mulher ser eficiente e competitiva no ambiente de trabalho. Os engajamentos têm efeitos diretos sobre os itens de consumo, que são orientados pelos primeiros. A ingestão de remédios passa a ser associada ao consumo de alimentos, tanto para manter a saúde da mulher (engajamento pela saúde) como para fazer com que ela obtenha resultados estéticos a partir do uso de inibidores de apetite. Os preparados nutricionais (shakes, chás herbais) são utilizados para substituir alimentos em algumas refeições durante dietas de controle de peso e também compõem os itens de consumo.

Do ponto de vista mais específico do estudo das práticas de consumo de alimentos, esta pesquisa pode ser expandida a partir de análises mais dedicadas aos momentos de escolha de alimentos no ponto de venda ou de observações mais profundas a respeito das formas de preparação dos alimentos, assim como das maneiras como os alimentos são servidos e compartilhados. Esses passos de pesquisa dependem obrigatoriamente do abandono da análise das práticas exclusivamente femininas de consumo de alimentos e demandam maior investimento na coleta de dados. Ainda dentro da perspectiva das teorias de prática, uma investigação das práticas de consumo de alimentos que inclua de forma mais expressiva a preocupação com classes sociais carece de suporte teórico, mas também pode ser objeto de futuras pesquisas.

Esta pesquisa oferece alguns subsídios para os profissionais de marketing que pretendem atuar na comercialização de alimentos, mas também almeja servir para que os consumidoras compreendam um pouco mais a respeito do consumo de alimentos e tornem-se mais conscientes de suas escolhas.

Certamente, há espaço, ainda, para a ampliação da compreensão do consumo de alimentos, que pode ser desenvolvida em estudos futuros que tratem mais profundamente das relações entre propagandas e práticas de consumo de alimentos. Ainda há espaço para ampliar a compreensão a respeito das práticas de consumo de alimentos a partir da análise das estruturas de produção de alimentos e das formas de regulação desse consumo. Tais estudos poderiam aproximar a área de marketing e o campo dos estudos de consumo aos interesses da sociedade e servir como base para discussões acerca de políticas públicas e marketing também na academia. Os autores deste artigo esperam ter estimulado outros pesquisadores a seguir esses caminhos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    12 Mar 2018
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