Resumo
Esta pesquisa analisa o processo de inclusão e reconhecimento social de migrantes, de diferentes países em uma cidade brasileira, por meio de relato das demandas trazidas por eles no contexto de um projeto anfitrião realizado em uma universidade pública brasileira: (i) de sua inserção no mundo do trabalho, (ii) de sua inserção no ensino superior brasileiro, ressaltando as dificuldades e expressões de sofrimento apresentadas. O delineamento de pesquisa proposto é um estudo documental, a partir da análise de dados qualitativos coletados por cerca de 300 entrevistas e mais de 1000 consultas e atendimentos psicossociais (individuais e em grupo) realizadas com migrantes na cidade de Curitiba- PR. Como referencial teórico adotamos a categoria de “reconhecimento social”, proposta Nancy Fraser (2008a) a partir do debate com Axel Honneth (2009), inspirada na categoria “luta pelo reconhecimento”, exposta por Hegel (2008). Resultados apontam para a inclusão precária de migrantes no mundo do trabalho, evidenciando injustiça social e sofrimento psíquico desses sujeitos.
Palavras-chave:
Deslocamento humano; Refugiados; Migrantes; Reconhecimento social
Abstract
This research analyzes the process of inclusion and social recognition of migrants in a Brazilian city. The study presents a report of the demands from migrants in the context of a host project carried out at a Brazilian public university regarding their insertion in the world of work and in Brazilian higher education, highlighting their difficulties and expressions of suffering. Documentary research was used based on the analysis of qualitative data collected from about 300 interviews and over 1000 individual and group psychosocial consultations carried out with migrants in the city of Curitiba-PR. As a theoretical framework we adopted the category of “social recognition” proposed by Nancy Fraser (2008a) based on the debate with Axel Honneth (2009), and inspired by the category “struggle for recognition,” by Hegel (2008). Results point to the precarious inclusion of migrants in the labor market, with evident social injustice and psychological suffering.
Keywords:
Human displacement; Refugees; Migrants; Social recognition
Resumen
La investigación analiza el proceso de inclusión y reconocimiento social de migrantes de diferentes países en una ciudad brasileña, a través del relato de las cuestiones planteadas por ellos, en el contexto de un proyecto anfitrión llevado a cabo en una universidad pública brasileña, a cerca de: (i) su inserción en el mundo del trabajo, (ii) su inserción en la educación superior brasileña, destacando las dificultades y expresiones de sufrimiento presentadas. El diseño de investigación propuesto es un estudio documental, basado en el análisis de datos cualitativos recopilados en alrededor de 300 entrevistas y más de 1000 consultas psicosociales (individuales y grupales) realizadas con migrantes en la ciudad de Curitiba, PR. Como marco teórico, adoptamos la categoría de “reconocimiento social”, propuesta por Nancy Fraser (2008a) a partir del debate con Axel Honneth (2009), inspirada en la categoría “lucha por el reconocimiento”, expuesta por Hegel (2008). Los resultados indican la inclusión precaria de migrantes en el mundo del trabajo, lo que demuestra la injusticia social y al sufrimiento psicológico de estos sujetos.
Palabras clave:
Desplazamiento humano; Refugiados; Migrantes; Reconocimiento social
INTRODUÇÃO
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), vivemos a maior crise humanitária desde a criação da ONU, em 1945. Estima-se que os migrantes no mundo somem mais de 272 milhões de pessoas. De acordo com dados do The United Nations Refugee Agency (UNHCR), apresentados no relatório Global Trends (2020), até o final do ano de 2019 havia no mundo cerca de 79,5 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar seus países de origem por motivo de guerra, perseguição, conflito ou violência generalizada. Com relação aos refugiados, ou seja, aqueles indivíduos que sofreram fundado temor de perseguição em sua terra originária e se encontram em terras estrangeiras, estima-se que haja cerca de 29,6 milhões de pessoas nessa condição no mundo, sendo que mais 4,2 milhões aguardam o resultado da sua solicitação de refúgio. No Brasil, essas solicitações somaram 80.057 em 2018 (Ministério da Justiça, 2019Ministério da Justiça. (2019). Relatório Refúgio em Números (4a. ed.). Brasília, DF: Author.).
Como signatário da Convenção da ONU de 1951 e seu Protocolo Adicional de 1967, bem como do Tratado de Cartagena de 1984, o Brasil se propõe a conceder a proteção e a garantia a direitos básicos aos estrangeiros que aqui residem (Gediel & Godoy, 2016Gediel, J. A. P., & Godoy, G. G. (2016). Refúgio e Hospitalidade. Curitiba, PR: Kairós Edições.). Com a Nova Lei do Migrante (Lei n° 13.445, 2017Lei Lei n° 13.445 de 24 de maio de 2017. (2017). Brasília, DF: Presidência da República. Retrieved from https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
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), uma pessoa sob qualquer condição de migração - migrante, migrante por condições humanitárias, pessoa refugiada, solicitante de refúgio, apátrida, passou a ter direito de acesso aos sistemas públicos de saúde, de proteção e de trabalho em condição de igualdade com a população nacional (Lei nº 13.445, 2017Lei Lei n° 13.445 de 24 de maio de 2017. (2017). Brasília, DF: Presidência da República. Retrieved from https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
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). Cabe questionar, no entanto, qual o lugar que os migrantes1
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Utilizamos de maneira genérica os conceitos de “migrantes”, “refugiados” e “pessoas deslocadas”. Nosso entendimento é que o que identifica e permite incluir esses conceitos na mesma categoria é a “experiência de deslocamento que os marca. E quando dizemos ‘marcas’, é em um sentido muito concreto. Os corpos deslocados são marcados precisamente pela falta de identidade e reconhecimento” (Chueiri & Câmara, 2010, pp. 160-161). Na terminologia jurídica, para fins da Lei da Migração Brasileira, de 2017, usa-se apenas a palavra “migrante”.
ocupam nas relações de trabalho e nas relações cotidianas da vida, ou seja, como os migrantes são socialmente reconhecidos nas relações de trabalho e no processo de inserção na vida cotidiana no Brasil.
A partir desse questionamento estabelece-se como objetivo desta pesquisa analisar o processo de inclusão e reconhecimento de migrantes de diferentes origens (Haiti, Síria, Venezuela, diversos países africanos, entre outros) em uma cidade brasileira, por meio de relatos das demandas trazidas por eles no contexto de um projeto anfitrião realizado em uma universidade pública brasileira: (i) de sua inserção no mundo do trabalho, (ii) de sua inserção no ensino superior brasileiro, ressaltando as dificuldades e expressões de sofrimento apresentadas.
O desenho de pesquisa aqui proposto é uma análise documental na qual analisamos o registro de cerca de 300 entrevistas realizadas com migrantes que buscam reinserção no ensino superior na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e/ou solicitaram a revalidação de diploma entre os anos de 2015 e 2019 e mais de 1000 consultas e atendimentos psicossociais (individuais e em grupo) realizadas durante esse período com migrantes na cidade de Curitiba-PR. Essas entrevistas, atendimentos e consultas foram conduzidas no âmbito de um Projeto de Extensão do departamento de Psicologia (DEPSI)2 2 Este Projeto de Extensão do DEPSI está vinculado ao Programa Política Migratória e Universidade Brasileira da UFPR, signatário da Cátedra Sergio Vieira de Mello, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR, que tem como objetivo acolher e atender migrantes que necessitam trabalhar e viver na nova terra. O Programa é composto de Projetos de Extensão de 8 cursos distintos: Letras, Direito, Psicologia, Sociologia, Informática, História, Medicina e Comunicação, além de parcerias com outras instituições, compondo uma rede de atendimento a esse público. Aqui analisamos apenas o Projeto de Extensão da Psicologia. , do qual participa uma das autoras deste artigo.
Como embasamento teórico para refletir sobre o lugar que migrantes têm ocupado nas relações de trabalho e no processo de inserção na vida cotidiana no Brasil adotamos a categoria teórica de “reconhecimento social”, adaptada de Nancy Fraser (2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.) e Honneth (2009Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34.), especialmente em seu clássico debate (Fraser & Honneth, 2003Fraser, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or Recognition? A political philosophical exchange. London, UK: Verso.) sobre a categoria “luta pelo reconhecimento”, proposta por Hegel (2008Hegel, G. F. (2008). Fenomenologia do Espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.). Entende-se que a centralidade do trabalho é um dos fundamentos do reconhecimento social, pois ao incluir os trabalhadores no processo produtivo também podem-se revelar certas condições de trabalho que instituem uma forma de “escravidão remunerada” (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. (2002). Para Além do Capital. São Paulo, SP: Boitempo.). A partir dessa base teórica, discutimos como a condição de reconhecimento de um determinado grupo social não implica sua adesão ao modelo econômico, jurídico-político, social ou cultural que o reconhece.
REFERENCIAL TEÓRICO
O reconhecimento social é fundamental para o entendimento da situação dos migrantes tanto no mundo do trabalho quanto nas relações cotidianas. A categoria “luta pelo reconhecimento”, proposta por Hegel (2008Hegel, G. F. (2008). Fenomenologia do Espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.) desde os chamados “escritos de Jena”, está sendo reatualizada e reintroduzida no debate filosófico e ciências sociais para explicar as origens dos conflitos sociais. O tema do reconhecimento tem ocupado lugar de destaque na filosofia desde que Hegel (2008)Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., ao interpretar o conflito como mecanismo de transformação social na construção de uma sociedade em que as relações sociais são mais estruturadas, introduz a categoria do respeito e do reconhecimento intersubjetivo como o motor destes conflitos.
O sujeito somente existe enquanto reconhecido pelo outro. Neste aspecto, destacam-se, por exemplo, os trabalhos de Lacan (1966Lacan, J. (1966). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J. Lacan(Ed.), Escritos(pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) e Enriquez (1974Enriquez, E. (1974). Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Tempo Brasileiro, 36/37, 53-94.). Lacan (1966)Lacan, J. (1966). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J. Lacan(Ed.), Escritos(pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. é bastante fiel à dialética hegeliana, mais propriamente em sua conferência sobre o estádio do espelho como formador da função do Eu, na qual centra a dramática individual no “desejo do outro”. Enriquez (1974)Enriquez, E. (1974). Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Tempo Brasileiro, 36/37, 53-94. trata do tema do reconhecimento a partir do imaginário social e da relação entre recalcamento e repressão nas organizações.
Esta categoria analítica hegeliana foi retomada com ênfase pela terceira geração da Escola de Frankfurt através do trabalho de Axel Honneth (2009Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34.), que postula uma investigação empírica no campo da sociologia do reconhecimento; de Charles Taylor (2000Taylor, C. (2000). Argumentos Filosóficos. São Paulo, SP: Loyola., 2005Taylor, C. (2005). As Fontes do Self: a construção da identidade moderna (2a ed.). São Paulo, SP: Loyola.), que busca na filosofia histórica as bases do reconhecimento social como o vínculo fundamental entre os sujeitos; e de Nancy Fraser (Fraser & Honneth, 2003Fraser, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or Recognition? A political philosophical exchange. London, UK: Verso.), que se dedica aos estudos dos movimentos sociais e dos conflitos políticos.
Fraser (2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial., 2008bFraser, N. (2002b). Redistribuição ou Reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções, 4(1), 7-32.), especialmente, defende que os conflitos sociais não podem ser explicados apenas a partir da luta pelo reconhecimento social, mas igualmente através da luta pela redistribuição da riqueza material produzida e pela representação paritária nas esferas de decisão. Estas três formas corresponderiam a três dimensões da justiça: cultural (reconhecimento); econômica (redistribuição); política (representação).
Esta luta pelo reconhecimento social se desenrola no interior do sistema político dominante, podendo ser inclusive à sua revelia, quer como resistência, quer como oposição, visando superá-lo. O argumento que se desenvolve aqui recorre àquele proposto por Fraser (2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.), segundo o qual os sujeitos coletivos lutam pelo reconhecimento social como forma de integração plena na sociedade como sujeitos iguais. As demandas expressas por diferentes grupos sociais visando à igualdade dos direitos e condições de vida em sociedade apontam para o declínio da identidade política de classe (declínio da democracia) e do imaginário político por justiça social. No caso específico dos migrantes, essa proposição é expressa na forma de um direito na Nova Lei dos Migrantes (Lei n° 13.445, 2017Lei Lei n° 13.445 de 24 de maio de 2017. (2017). Brasília, DF: Presidência da República. Retrieved from https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
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) quando se refere à “condição de igualdade” do imigrante “com a população” brasileira (Lei nº 13.445, 2017Lei Lei n° 13.445 de 24 de maio de 2017. (2017). Brasília, DF: Presidência da República. Retrieved from https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
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).
Este declínio da identidade tem consequências políticas importantes: no lugar da luta de classes aparecem os grupos sociais delas desvinculados que lutam por seus interesses jurídico-políticos, econômicos e ideológicos, tanto quanto pela dominação cultural. Isto implica na ruptura entre a política econômica e cultural e a política social, com o eclipse desta por aquela (Fraser, 1997Fraser, N. (1997). Justice Interruptus: critical reflections on the “post socialist” condition. New York, NY: Routledge.). Tudo ocorreria como se a luta contra o racismo, o preconceito e a discriminação fossem apenas meramente culturais e não tivessem qualquer relação com a redistribuição da riqueza material, o reconhecimento social, a representação paritária e a autorrealização (Faria, 2017Faria, J. H. (2017). Poder, controle e gestão. Curitiba, PR: Juruá.).
Sugere Fraser (1997Fraser, N. (1997). Justice Interruptus: critical reflections on the “post socialist” condition. New York, NY: Routledge.), não se tratar, igualmente, de ultrapassar a tradicional divisão de classes contemplando questões como gênero, preconceito, desemprego, direitos sociais urbanos, educação, saúde pública, segurança, moradia, infraestrutura urbana e rural, entre outros. É no interior da divisão de classes que se encontram essas questões e que inclui o problema dos migrantes. A centralidade das lutas sociais desloca-se do conflito de classes conduzido historicamente pelos movimentos de trabalhadores estabelecendo uma nova agenda de enfrentamentos. Isto não implica o desaparecimento das classes sociais e dos conflitos fundamentais que possuem existência real no modo de produção capitalista, mas indica que as lutas alcançam outras dimensões cujas particularidades necessitam ser compreendidas em uma perspectiva crítica.
Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: reflective stages in a critical social theory. Cambridge, UK: MIT Press.), recorrendo a Hegel, trata o reconhecimento como uma luta social na qual os conflitos são atribuídos a “impulsos morais” e não a motivos de autoconservação como defendiam Hobbes e Maquiavel. Honneth (2007)Honneth, A. (2007). Sofrimento de Indeterminação. São Paulo, SP: Singular/Esfera Pública. procura reatualizar a filosofia do direito de Hegel, que toma por base no desenvolvimento do tema do reconhecimento. Ao considerar, então, a “luta por reconhecimento” como categoria analítica, Honneth (1991)Honneth, A. (1991). The critique of power: reflective stages in a critical social theory. Cambridge, UK: MIT Press. tenta integrar a teoria do poder de Foucault à teoria da ação comunicativa de Habermas, entendendo que as mesmas são capazes de preencher o “déficit sociológico” contido nas teorias de Adorno e Horkheimer. A intenção de Honneth (1991)Honneth, A. (1991). The critique of power: reflective stages in a critical social theory. Cambridge, UK: MIT Press.é definir um esquema conceitual que permita analisar as “estruturas de dominação social” e como nem as teorias foucaultianas, com suas deficiências normativas, e nem as habermasianas, com seu nível de abstração, preenchem os requisitos de sua definição, Honneth resgata a teoria de Hegel. Entretanto, Honneth (2009)Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34., ao expor as três teses do modelo de Hegel, explicita que o conceito hegeliano possui uma tradição metafísica, um “fundamento meramente especulativo” (Honneth, 2009Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34., p. 121), motivo pelo qual buscará na psicologia social de Mead a base empírica que permita “traduzir a teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica” (Honneth, 2009Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34., p. 123).
Apesar da tentativa de Honneth em dar uma inflexão empírica à sua proposta, o grau de abstração que toma conta de sua análise o coloca no mesmo plano metafísico que critica em Hegel. O recurso a Mead não soluciona o problema que apresenta acerca da fundamentação empírica, exatamente porque o resultado de sua elaboração é uma tipologia idealista de padrões de formas de reconhecimento intersubjetivo: amor, direito e solidariedade.
Estes padrões, como se pode deduzir de seus próprios argumentos (Honneth, 2009Honneth, A. (2009). Luta por Reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34., pp. 276-279), estão preenchidos de especulação, seja quando busca na psicanálise winnicottiana o “equilíbrio tenso entre fusão e delimitação do ego” para tratar da individualidade amorosa sem angústia; seja quando estabelece uma relação de dependência entre a autorrealização e o “pressuposto social da autonomia juridicamente assegurada”; seja quando afirma que “o padrão de reconhecimento de uma solidariedade social [...] só pode nascer das finalidades partilhadas em comum (as quais) estão submetidas às limitações normativas”, ou seja, a solidariedade depende da solidariedade normativamente limitada.
Nancy Fraser chega ao tema do reconhecimento social justamente no debate com Honneth (Fraser & Honneth, 2003Fraser, N. (2004, December). Recognition, Redistribution and representation in Capitalist Global Society: an interview. Acta Sociologica, 47(4), 274-382.). Partindo também da discussão com Foucault e Habermas, Fraser critica a ambos: Foucault pela rejeição a padrões normativos, ou seja, às regras que possam estabelecer direções ou encaminhamentos, o que impediria que sua crítica pudesse resultar em uma ação política emancipatória; Habermas, porque ocultaria as relações de dominação ao invés de revelá-las.
A luta pelo reconhecimento, para Fraser (2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial., pp. 11-12) tornou-se a forma paradigmática do conflito político do Século XX. As demandas pelo reconhecimento das diferenças fazem com que as lutas dos grupos sociais se mobilizem sob as bandeiras da nacionalidade, etinicidade, raça, gênero e opção sexual. Nestes conflitos, a identidade de grupos sociais suplanta os interesses de classe como o principal meio de mobilização política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental e o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição socioeconômica como medida de injustiça e objetivo de luta política. A luta pelo reconhecimento, no entanto, ocorre em um mundo de exacerbada desigualdade material o que significa que o desafio de desenvolver uma teoria crítica da sociedade requer o entendimento de que a justiça deve contemplar a articulação entre redistribuição econômica, reconhecimento social e representação política. Para Fraser, portanto, uma política de reconhecimento que falhe no que diz respeito aos direitos humanos, por exemplo, é inaceitável mesmo que promova uma igualdade social. É neste ponto em que se estabelece o confronto entre a concepção tridimensional e a concepção centrada no monismo moral que reside a principal controvérsia entre, respectivamente, Fraser e Honneth (2003)Fraser, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or Recognition? A political philosophical exchange. London, UK: Verso., que mais propriamente interessa ao presente estudo.
Os debates que se seguiram à análise de Fraser, levaram-na a retomar o tema do reconhecimento em outros estudos (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., 2002bFraser, N. (2002b). Redistribuição ou Reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções, 4(1), 7-32.), abandonando a primeira versão em que reconhecimento é tratado de acordo como um modelo de identidade para abordá-lo como status, Fraser adiciona a questão da globalização em suas considerações (Fraser, 2002aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20., 2004Fraser, N. (2004, December). Recognition, Redistribution and representation in Capitalist Global Society: an interview. Acta Sociologica, 47(4), 274-382.).
No modelo de status as dimensões se relacionam a diferentes aspectos da ordem social, de forma que o reconhecimento se refere ao status da sociedade (grupos de status), enquanto a redistribuição refere-se à estrutura econômica (propriedade, mercado, trabalho, riqueza). Embora tenha introduzido a questão da representação no início dos debates (Fraser, 2002Fraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial., 2004Fraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.; Fraser & Honneth, 2003Fraser, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or Recognition? A political philosophical exchange. London, UK: Verso.), é, contudo, em uma análise mais extensa que Fraser (2008a)Fraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20.revisa as suas teorias de reconhecimento e redistribuição e introduz definitivamente este terceiro elemento à sua reflexão da teoria crítica. A representação, para Fraser, corresponde à dimensão política.
Para Fraser, na perspectiva do pluralismo analítico, o reconhecimento social contempla, igualmente, a redistribuição da riqueza material produzida e a representação política no processo de decisão, na medida em que essas são dimensões irredutíveis da justiça e não devem ser subordinadas a uma dimensão superior, que seria a do reconhecimento (Fraser, 1997Fraser, N. (1997). Justice Interruptus: critical reflections on the “post socialist” condition. New York, NY: Routledge., 2008Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120.).
Como observa Silva (2008Silva, J. P. (2008). Trabalho, Cidadania e Reconhecimento. São Paulo, SP: Annablume., p. 118), ainda que as teorias de Fraser, Taylor e Honneth tenham se originado com a finalidade de “articular uma gramática comum para os conflitos sociais associados aos novos movimentos sociais”, é Fraser quem lamenta “o abandono das reivindicações socialistas por igualdade social e sua substituição pela política de diferença”, mudança esta que coincidiu “com o discurso da direita contra os direitos sociais”. Para Fraser (2000)Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., o “modelo da identidade”, que equipara identidade e reconhecimento, é problemático não apenas teórica, como politicamente, na medida em que fortalece a reificação das identidades dos grupos, deslocando para um plano secundário a luta por redistribuição e representação.
A teoria do reconhecimento, ainda que não seja uma negação ou abandono da luta histórica de classe, coloca em evidência particularidades das lutas de grupos sociais. Essa referência é importante para a compreensão da questão que emerge do processo de migração, questionando sobre se os imigrantes, de diferentes categorias sociais, em suas manifestações, se consideram na condição de sujeitos recepcionados e socialmente reconhecidos no país receptor, inobstante os aparatos jurídicos expressarem essa garantia.
PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
Em 2013, um grupo de professores do Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) desenvolveu um Projeto de Extensão a partir de demandas da Prefeitura de Curitiba e da Casa Latino Americana. A proposta era trabalhar o ensino de português brasileiro como língua de acolhimento para migrantes e refugiados (Barbosa & Ruano, 2016Barbosa, L. M. A., & Ruano, B. P. (2016). Acolhimento, Sentidos e Práticas de ensino de português para migrantes e refugiados, na Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Paraná. In J. A. P. Gediel, & G. G. Godoy (Orgs.), Refúgio e Hospitalidade(pp. 321-336). Curitiba, PR: Kairós.). Ao ensinar a língua, os professores se depararam tanto com as dificuldades relativas aos direitos fundamentais e trabalhistas, como também com as dificuldades ligadas ao sofrimento e ao trauma psíquico deste público. Foi assim que, em 2014, o Departamento de Psicologia (DEPSI) foi chamado a contribuir com uma resposta a essa demanda de atendimento psicossocial constituindo o Projeto de Extensão cujos documentos analisamos neste trabalho.
O Projeto de Extensão do DEPSI conta com a participação anual de, em média, 20 alunos, 4 professores e 4 psicólogos. Suas atividades consistem em: (i) acolhimento e atendimento psicossocial; (ii) atendimento clínico psicológico; (iii) orientações e oficinas para a inserção de migrantes no mercado de trabalho e na universidade; (iv) acompanhamento e auxílio de migrantes que estudam na UFPR (Programa Tutoria); (v) entrevistas para o ingresso na UFPR e para a revalidação dos diplomas; (vi) acompanhamento de crianças-filhos de migrantes que estudam português na UFPR; (vii) acompanhamento e construção da política migratória na universidade e na cidade. Essas atividades ocorrem sob supervisão e orientação de membros do corpo docente da UFPR. É solicitado aos alunos e voluntários que todas as suas atividades sejam entregues a seus orientadores em forma de relatórios e diários de campo. Deste modo todas as entrevistas e atendimentos realizados são transcritos. Não obstante as limitações de todos os enunciados quanto ao processo de mediação entre a exposição e a realidade exposta, a transcrição dos relatos é confrontada com os entrevistados e assistidos de maneira que seu conteúdo seja fiel ao depoimento. Esses documentos são as fontes de evidência analisadas no presente trabalho.
O delineamento de pesquisa que aqui se propõe é, portanto, uma análise documental (Godoy, 1995Godoy, A. S. (1995). Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas, 35(3), 20-29.) a partir de relatórios de entrevistas, depoimentos e consultas psicossociais, realizadas no âmbito do mencionado Projeto de Extensão. Nesta pesquisa, acessamos as transcrições de cerca de 300 entrevistas semiestruturadas realizadas com migrantes que buscam reingresso no ensino superior na UFPR, e/ou que solicitam revalidação de diploma com isenção de taxa de inscrição entre os anos de 2015 e 2019, bem como os diários de campo e relatórios de mais de 1000 atendimentos psicossociais (individuais e em grupo) realizados neste período.
Os documentos foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo: a partir da análise documental em que se encontram registros de situações concretas e do referencial teórico que aqui se adota, buscamos encontrar os elementos relatados que permitam responder o questionamento sobre se e como migrantes se se consideram socialmente reconhecidos nas relações de trabalho e no processo de inserção na vida cotidiana no Brasil, os documentos foram submetidos à análise a partir, portanto, do critério temático do reconhecimento social segundo problemas ou proposições nucleares (ou chaves) (Bardin, 1979Bardin, L. (1979). Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70.).
O interesse da pesquisa foi verificar como se dá o processo de inclusão e reconhecimento de migrantes de diferentes origens (Haiti, Síria, Venezuela, diversos países africanos, entre outros) por meio da análise de conteúdo dos relatos documentados de maneira a verificar a inserção dos imigrantes no mundo do trabalho, sua inserção no ensino superior, a partir de seu relato das dificuldades encontradas no Brasil (especificamente na cidade de Curitiba - PR), e das expressões de sofrimento psíquico que manifestam e as demandas postas por eles no contexto desse Projeto de Extensão.
A relevância deste estudo e sua originalidade se encontram no fato de que as entrevistas e os atendimentos psicossociais não foram direcionados a partir de uma pré-categoria, mas emergiram da situação real vividas pelos migrantes em seu cotidiano. A questão do reconhecimento aparece em diferentes expressões nos documentos analisados, de maneira que a categoria de análise escolhida foi capaz de sintetizá-la com propriedade. A partir desses relatórios, foi possível identificar que havia um elemento recorrente nos depoimentos e atendimentos, que era a busca pela inserção social pelo trabalho e no sistema educacional. Desta maneira, destacamos a categoria teórica da luta pelo reconhecimento social proposta por Nancy Fraser como um indicativo de análise deste processo. Destaca-se assim a contribuição prática e teórica desta pesquisa, na ampliação da compreensão do fenômeno social da migração e inserção de migrantes no Brasil, bem como para o desenvolvimento da Teoria do Reconhecimento, aplicando-a aqui a um novo campo social de análise, qual seja, a das migrações.
Os resultados obtidos por meio da análise documental permitem identificar diversas características sobre a inserção de migrantes que estão em Curitiba-PR no mundo do trabalho e no ensino superior. Discutiremos como essas características sugerem que estes imigrantes são desqualificados como sujeitos em um processo de não reconhecimento social (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., 2002aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20., 2002bFraser, N. (2002b). Redistribuição ou Reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções, 4(1), 7-32., 2004Fraser, N. (2004, December). Recognition, Redistribution and representation in Capitalist Global Society: an interview. Acta Sociologica, 47(4), 274-382.).
O PERFIL DOS MIGRANTES
A partir da análise de entrevistas e dos diários de campo dos atendimentos e atividades realizadas junto a migrantes, identificamos alguns elementos constitutivos categoriais que recobrem as características desta população: trata-se de homens e mulheres migrantes provenientes em maior número do Haiti; na sequência de países africanos, como Guiné-Bissau, Congo e Benin; em terceiro lugar de países latino-americanos sendo principalmente da Venezuela; finalmente, migrantes da Síria. Este é o perfil geral da população estudada, o que não significa que este é também o perfil dos migrantes residentes em Curitiba e Região Metropolitana (cujos dados não estão disponíveis em sistemas oficiais).
A maioria das pessoas que procura reinserção, revalidação de diploma e atendimento psicossocial na UFPR é formada por homens. Os que buscam atendimento psicossocial possuem de 04 a 67 anos e procuram orientações para ingressar na escola, atendimento psicológico e informações para a organização da vida adulta. A idade dos requerentes de revalidação de diploma varia entre 26 e 60 anos, com a maioria entre 30 e 40 anos, indicando que são profissionais que já possuíam uma profissão no país de origem, consistente com sua formação acadêmica. Por fim, a idade dos candidatos a reingresso na universidade varia entre 20 e 37 anos, sendo a maioria com menos de 25 anos, o que é consistente com a característica etária do público universitário no Brasil, ou seja, um perfil jovem. É interessante observar, no entanto, que cerca de 1/3 dos entrevistados estão em uma categoria etária (26 a 30 anos) ligeiramente acima do perfil do estudante universitário da UFPR, e que nenhuma diferença foi observada no perfil etário por nacionalidade ou por sexo desses migrantes. Essa diferença de idade pode ser uma hipótese para explicar os fatores relacionados às dificuldades de integração com os colegas, que é uma queixa apresentada por alguns migrantes que estudam na UFPR.
Quanto à vinda para o Brasil, esses migrantes que procuraram a UFPR chegaram ao país entre 05 meses a 05 anos, deixando seus países de origem por diferentes razões: (i) situação econômica (desemprego, problemas financeiros, dificuldades para lidar com os custos da educação e custos vida); (ii) situação política (em geral referente à perseguição por divergência política); (iii) violência no país de origem (violência urbana, insegurança na locomoção pela cidade e homofobia); (iv) ocorrência de desastres naturais. Em menos casos, foram relatadas razões relacionadas a problemas pessoais/familiares, como a perda de membros da família, especialmente a perda de membros que pagavam as despesas familiares de manutenção, saúde e educação.
Sobre os motivos que os migrantes que procuraram a UFPR apresentam para ter escolhido vir especificamente para o Brasil, foi possível identificar, agrupar e ordenar sete explicações: (i) acolhimento pessoal no país de destino: escolheram o Brasil porque já tinham familiares ou amigos residentes no país, sendo que de modo geral esses familiares ou amigos compartilharam informações sobre a vida, o trabalho, e o estudo no Brasil, e/ou atuaram acolhendo/recebendo os migrantes em sua chegada ao país; (ii) oportunidade de desenvolvimento educacional: consideravam que no Brasil teriam oportunidade de estudar dada a possibilidade de ensino superior gratuito; (iii) regime político: viam o Brasil como um país democrático; (iv) receptividade de migrantes: mencionam política de migração facilitada no Brasil em relação a migrantes de seu país de origem; (v) idioma: mencionaram terem escolhido o Brasil por ser um país de língua Portuguesa (especialmente mencionado por migrantes de países africanos que também falam português); (vi) localização em relação ao país de origem, especificamente a proximidade geográfica do Brasil com o país de origem (especialmente para migrantes de países latino americanos, relacionando as facilidades em chegar ao país estando no Brasil, de retornar ao país quando possível, trazer familiares quando possível); (vii) em poucos casos o conhecimento prévio da cidade de destino, em que alguns migrantes mencionam que já haviam visitado a cidade de Curitiba - PR e gostaram especificamente das condições de vida que a cidade oferecia.
É possível identificar que diversos migrantes tiveram passagens por outros países antes de vir para o Brasil: mencionam ter morado anteriormente em outros países de acolhimento e não tendo se adaptado buscam o Brasil como uma segunda escolha. Os motivos comumente mencionados para a não adaptação estão relacionados à percepção de que foram vítimas de racismo e xenofobia, ou seja, motivos referentes ao não reconhecimento social (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120.). Também é possível identificar nos documentos que a vinda especificamente à Curitiba-PR não foi uma opção pela cidade, mas algo casual que, na expressão dos migrantes, “foi acontecendo”. Vários migrantes passaram por outras cidades brasileiras, tais como Manaus, Cuiabá, Foz do Iguaçu e São Paulo antes de chegarem especificamente em Curitiba. Aqueles que vieram diretamente para a cidade foram os que tinham familiares, amigos ou conhecidos e que se sentiram mais confortáveis ou abrigados nesta escolha. Não foi percebida relação entre a escolha por Curitiba e possibilidades de trabalho, qualidade de vida, moradia, condições políticas e socioeconômicas e outras expectativas.
Percebe-se, de acordo com os relatos, que o processo de migração no Brasil ocorre: (i) por iniciativa dos migrantes, que procuram oportunidades de trabalho/estudo a partir de informações fornecidas por migrantes que chegaram à cidade antes deles; (ii) por iniciativa de empresas que buscam contratar migrantes e recrutam mão-de-obra em cidades que recebem fluxos maiores de migrantes (tais como de regiões de fronteiras). Neste caso, é importante observar que existem consultorias de Gestão de Recursos Humanos especializadas na intermediação desse recrutamento, tal como identificado por Zeni e Filippim (2014Zeni, K., & Filippim, E. S. (2014). Migração haitiana para o Brasil: acolhimento e políticas públicas. Revista Pretexto, 15(2), 11-27.); (iii) pela presença de políticas públicas com atuação em nível articulado Federal, Estadual, Municipal e em parceria com organizações privadas para integração e emprego de migrante. Esta situação é observada em relatos específicos, como entre os migrantes haitianos que chegaram a Curitiba a partir de 2010 e foram empregados na construção civil, principalmente em obras de construção do Estádio de Futebol do Club Athlético Paranaense para a Copa do Mundo de Futebol de 2014, ocorrida no Brasil.
RESULTADOS E ANÁLISES: O NÃO RECONHECIMENTO SOCIAL E A DESQUALIFICAÇÃO DOS SUJEITOS COMO SUJEITOS
Os relatos analisados indicam que a trama social do não reconhecimento (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., 2002a, 2002b) é percebida pelos indivíduos como um conjunto de condicionantes que regem suas vidas, que são estritamente ordenadas por regras e normas mediadas pela linguagem. Os relatos apontam para a conformidade das condições de vida, que são tais como são, orientando os enfrentamentos. A análise de conteúdo dos documentos, portanto, corrobora um achado de pesquisa já identificado em estudos empíricos a respeito da realidade do acolhimento, proteção e integração de migrantes e refugiados no Brasil, que é a ausência de atuação efetiva do poder público, a qual proporciona a criação de um lugar que vai sendo ocupado por outras organizações de interesse: no caso brasileiro as empresas (muitas vezes com práticas irregulares que levam a uma exploração do trabalho desses migrantes), as igrejas, associações voluntárias e as universidades (Machado, Barros & Martins-Borges, 2019Machado, G. S., Barros, A. F. O., & Martins Borges, L. (2019, abril). A escuta psicológica como ferramenta de integração: práticas clínicas e sociais em um Centro de Referência de Atendimento a Imigrantes em Santa Catarina. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 27(55), 79-96.; Moreira, 2014Moreira, J. B. (2014). Refugiados no Brasil: reflexões acerca do processo de integração local. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 22(43), 85-98.; Moulin, 2011Moulin, C. (2011). Os direitos humanos dos humanos sem direitos: refugiados e a política do protesto. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 26(76), 145-155.). Há relatos, neste caso, em que, por exemplo, engenheiros haitianos com experiência são contratados (no modo terceirizado) como mestres de obras. Portanto, sem reconhecimento de sua condição social.
Segundo Enriquez (1974Enriquez, E. (1974). Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Tempo Brasileiro, 36/37, 53-94., p. 54), na medida em que cada um é levado a procurar seu lugar na estrutura social, “tudo ocorre como se a vida fosse estritamente formalizada e pudesse ser apreendida e controlada”. Neste sentido, o indivíduo não é criador de suas relações, ou seja, a realidade lhe é dada como algo pronto, sem capacidade de transformação ou sua apropriação real. De acordo com o relato dos migrantes, o não reconhecimento social ao mesmo tempo em que afeta o processo de inserção como sujeitos de direito, se apresenta como uma dificuldade naturalizada, para cuja solução basta uma providência aceitável à condição de estrangeiro.
Os documentos analisados, fizeram emergir relatos de dificuldades que os migrantes apontaram em termos de reconhecimento (não reconhecimento) social, entre as quais pode-se destacar: (i) dificuldades financeiras para: o “sustento” individual e da família, pagamento de aluguel, “envio de dinheiro para membros da família” que permaneceram no país de origem, entre outros. Há relatos de migrantes sobre “ficar dias sem comer”, “depender de ajuda”, “depender de caridade”; “ficar devendo favor”; (ii) não conseguir emprego ou não conseguir bons empregos, empregos compatíveis com sua formação e experiência (como o caso de um dentista que possuía uma clínica no país de origem e que presta serviço de garçom em um bar/restaurante); (iii) dificuldades relacionadas à língua portuguesa/comunicação no Brasil, o que se constitui em um impedimento para atividades de formação e de trabalho, além da vida cotidiana; (iv) as dificuldades de socialização, tais como relatos de se r “mal compreendido pelas pessoas”, a “forma com que as pessoas tratam”, “pessoas em Curitiba serem muito fechadas”, “dificuldades em fazer amizade com brasileiros” (amigos restritos à própria nacionalidade), dificuldade em ter boas relações com colegas de curso (na universidade, por exemplo, ocorre o fato de colegas de turma que “não querem fazer trabalhos em grupo”), dificuldade em ter boas relações com colegas de trabalho e chefias (na empresa, por exemplo, o fato de “não falar com ninguém, fazer o trabalho e pronto!”; “prefiro ficar com meus amigos (mesma nacionalidade) no trabalho, os brasileiros são difíceis”), mencionam ainda a ocorrência de racismo (injúria racial) e xenofobia (exemplo: “me mandam voltar para meu país”). (v) Estar longe da família, é uma dificuldade também trazida pelos migrantes atendidos, situação que relacionam com saudade, tristeza, esperança em conseguir trazer seus familiares para junto de si, também de retornar ao país de origem. Finalmente, em menor quantidade são também identificados relatos de dificuldades de adaptação à (v) cultura (mencionados: costumes e comida) e (vi) ao clima.
Estes relatos apontam para uma questão importante no processo de reconhecimento social, que é a identificação social e a idealização das condições de aceitação e inserção dos migrantes como sujeitos sociais, que realmente são. Contudo, nesta idealização, as condições concretas das relações capitalistas de produção são abstraídas em favor do imediato (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120.). Estes processos de identificação e idealização se verificam no âmbito específico das dificuldades relatadas. Para a construção de um projeto comum, no qual os migrantes devem ser inseridos como parte constitutiva, é necessário que as representações sejam não apenas intelectualmente pensadas e efetivamente realizadas, mas afetivamente sentidas. Este sentimento de inclusão não é expresso, prevalecendo o de estrangeiro que espera obter do receptor um “favor”. “Não se trata unicamente de querer coletivamente; trata-se de sentir coletivamente” (Lévy, Nicolaii, Enriquez & Dubost, 1994Lévy, A., Nicolaii, A, Enriquez, E., & Dubost, J. (1994). Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 57). Entretanto, a fonte do comportamento grupal só pode emergir se ligado a um sistema de idealização, fruto de processos conscientes e inconscientes. O processo de idealização é o que dá “consistência, vigor e aura excepcional” tanto ao projeto quanto aos indivíduos, possibilitando-os de partilhar da mesma ilusão (Lévy et al., 1994Lévy, A., Nicolaii, A, Enriquez, E., & Dubost, J. (1994). Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 57). Os relatos não indicam um projeto coletivo que permita o compartilhamento de um vínculo social comum. Os migrantes se defrontam, simultaneamente, com o não reconhecimento da sociedade em que se pretendem inserir e com o não reconhecimento de que eles possuem um vínculo comum.
Inserção no mundo do trabalho
Quanto à sua inserção no mundo do trabalho os relatos permitiram identificar que apenas uma minoria de migrantes está atualmente trabalhando de maneira formal, sendo a dificuldade de encontrar emprego, trabalho ou uma forma de se sustentar a principal dificuldade relatada por eles. Dentre os que estão trabalhando: (i) a maior parte está realizando atividades informais, com rendimentos de até um salário mínimo; (ii) alguns realizam trabalhos formais esporadicamente, por contrato com tempo predeterminado, principalmente na construção civil; (iii) outros relatam o trabalho formal em meio período, principalmente em cargos de operação e limpeza na indústria; (iv) há relatos de trabalho doméstico, como limpeza e faxina, principalmente no caso de mulheres. Estes relatos indicam que a situação de inserção no mundo do trabalho destes migrantes é a de trabalho precário e de baixa remuneração. A formação profissional e a experiência dos migrantes não é levada em conta nos processos de contratação. Os relatos indicam que os migrantes são considerados, nos processos seletivos, como estando na situação mais inferior na hierarquia social.
Os migrantes que estão em melhor situação nas relações de trabalho (a minoria dos casos), realizam um trabalho formal em período integral com remuneração compreendida entre um salário mínimo e R$ 2.000,00 (em valores de dezembro de 2019). Trata-se de empregos na maior parte no setor de serviços. A maioria dos migrantes nesta condição de emprego fala português com nenhuma ou pouca dificuldade, é “branca” (Sírios e Latinos Americanos), tem formação/escolaridade que o qualifica para o cargo que desempenha, bem como experiência em outra área de atuação, geralmente de status socialmente mais valorizado, do que a que está desempenhando. Evidencia-se sua condição de desprofissionalização.
Toda organização social dispõe de uma estrutura de valores e de normas que condicionam seus membros a certa forma de apreensão do mundo e de orientação de suas condutas. O que os relatos mostram é que as relações sociais em que os migrantes estão inseridos pretende ser entendida enquanto uma microssociedade por excelência e consequentemente atravessada pelos mesmos problemas que caracterizam o vínculo social. A análise sugere que os migrantes alimentam uma expectativa de estabelecimento de vínculos não apenas sociais e materiais, mas, sobretudo afetivos e imaginários. Estes vínculos estão na base assertiva do reconhecimento. Neste sentido, a adesão destes migrantes ao projeto social (trabalho, ensino universitário, inserção social, etc.) pode ser o resultado de dois tipos de processos que, na realidade, se apresentam combinados e que são decorrências da produção de um sistema imaginário: (i) os desejos narcísicos de reconhecimento, assegurando a proteção contra quebra da identidade, que o impossibilita de produção autônoma e criativa; (ii) o que Lévy et al. (1994Lévy, A., Nicolaii, A, Enriquez, E., & Dubost, J. (1994). Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis, RJ: Vozes.) denominam de “imaginário motor”, que favorece a criatividade e é capaz de conviver com mudanças e rupturas. Um imaginário que comporta a espontaneidade, a experimentação e o pensamento questionador. Nestes casos, todo projeto de reconhecimento se concentra na inserção.
Inserção no ensino superior
Este processo de inserção se evidencia na busca pela inclusão, por parte destes migrantes, no ensino superior brasileiro. Parte importante dos relatos é de migrantes que buscam revalidação de diploma junto à UFPR ou pleiteando ingresso na universidade para retomar estudos em nível de ensino superior. Esta situação não reflete a condição dos migrantes em geral, já que aqueles que não se encontram nesta condição têm menos motivos para procurar a universidade.
Sobre a tentativa de revalidação do diploma, cabe destacar que o processo de revalidação de um diploma de graduação obtido no exterior é dispendioso para um migrante que está no Brasil. Em 2019, o valor da inscrição para revalidação de diploma pela Plataforma Carolina Bori na UFPR era de R$ 1.500,00. Pela Resolução 02/16-CEPE-UFPR, é possível solicitar o processo especial de revalidação de diplomas de migrantes pagando uma taxa de R$ 550,00 ou solicitando a isenção da taxa de inscrição, uma vez comprovada a condição de vulnerabilidade social e econômica do migrante. A maioria dos migrantes que solicita a isenção da taxa tem remuneração média de um salário mínimo, inviabilizando esse pagamento. Esta cobrança também evidencia que o processo de reconhecimento social dos migrantes por parte da universidade é restritivo, ainda que acessível, especialmente em se tratando de uma instituição pública e gratuita. Sem a revalidação do diploma, no Brasil, os profissionais não podem exercer sua profissão de origem, já que os conselhos profissionais (que se constituem em corporações de ofício) não lhes garantem o registro profissional. O processo de revalidação dos diplomas é não apenas formal e submetido a normas burocráticas, mas igualmente lento, condenando os migrantes a um perverso tempo de espera e incerteza.
Além disso, o processo de avaliação consiste em um teste objetivo de alta dificuldade, um teste prático e uma entrevista, realizados em português. Rosa (2018Rosa, M. (2018). Seleção e ingresso de estudantes refugiados no ensino superior brasileiro: a inserção linguística como condição de hspitalidade. Trabalhos em Linguística Aplicada, 57(3), 1534-1551.) reflete sobre a entrada de estudantes refugiados no ensino superior brasileiro e mostra como a inserção linguística é uma condição de hospitalidade para esses sujeitos. Em outros termos, identificamos a questão linguística como um elemento de não reconhecimento.
Rosa (2018Rosa, M. (2018). Seleção e ingresso de estudantes refugiados no ensino superior brasileiro: a inserção linguística como condição de hspitalidade. Trabalhos em Linguística Aplicada, 57(3), 1534-1551.) destaca o papel desempenhado pela língua portuguesa como a principal restrição que, ao mesmo tempo, torna possível e impossível o acesso dos migrantes à universidade brasileira. Nas suas constatações, Rosa (2018) destaca que as dificuldades que os não falantes de português enfrentam no ingresso em universidades públicas incluem a falta de informação, uma vez que os programas não são divulgados em detalhes, mesmo nas páginas oficiais das universidades que os propõem, bem como os fato de os editais serem divulgados apenas em português. Aqui complementamos com outra dificuldade que identificamos, o fato de o processo de avaliação (provas e entrevistas) serem realizadas exclusivamente em português. A língua portuguesa é não apenas uma barreira ao acesso ao ensino superior, mas aponta para o caráter excludente, regulatório e restritivo do discurso institucional; o não reconhecimento do migrante como sujeito de direito, mas como estrangeiro.
O processo de avaliação se dá sob a responsabilidade de cada curso, que recebe apenas orientações gerais da universidade para sua preparação e, procede em grande parte de acordo com seu próprio entendimento, às vezes, de acordo com uma agenda desta unidade departamental ao estabelecer o conteúdo e o grau de dificuldade das avaliações. Não há uma política de reconhecimento social com resoluções com orientações específicas.
Constatamos, a partir dos documentos, que a taxa de aprovação e revalidação do diploma é inferior a 10% das solicitações. O rigorismo e a pretensão de que a estrutura disciplinar brasileira (e local) é o modelo ideal da formação profissional implica no fracasso dos imigrantes em exercer sua profissão no Brasil, culminando em um extenso período de trabalho desqualificado do ponto de vista da formação acadêmica e um sentimento de frustração e afastamento por tentar exercer sua profissão de escolha.
Contudo, mesmo nos casos em que migrantes revalidaram seus diplomas e puderam exercer sua profissão no Brasil, os relatos apontam para o fato de que no início da atividade profissional eles recebem baixa remuneração e precisam começar na base de sua carreira. Destacamos aqui casos de dentistas, engenheiros e administradores que, mesmo após 3 anos de diploma revalidado, não obtêm remuneração compatível com sua qualificação profissional ou experiência anterior, ou seja, não são reconhecidos socialmente. Esse fracasso, em alguns casos, culmina na decisão de migrar do Brasil.
Outro elemento concreto do (não) reconhecimento social é a busca por reingresso na universidade. Todos os relatos mostram que os migrantes e que pleitearam reingresso se aplicavam para o mesmo curso que cursavam em seu país de origem, ou em curso que consideravam os mais próximos possíveis ao que cursavam dentre os ofertados naquele ano pela UFPR. Como exemplo: há entrevistados que cursavam enfermagem e tentam reingresso em farmácia; cursavam mecânica de avião e tentam engenharia mecânica, cursavam medicina e tentam biomedicina, cursavam antropologia social e tentam história, etc. Os documentos indicam que na maioria dos casos ocorreu uma reopção por um curso que tem um status de reconhecimento social menor do que o que cursavam em seu país de origem, caracterizando uma condição de desprofissionalização desses migrantes. Há situações em que isso ocorre porque o curso requerido não existe na UFPR ou não tem vagas remanescentes para reingresso. Contudo, nos cursos chamados de alta demanda, há uma tendência de rebaixamento do reconhecimento.
A maioria dos relatos refere-se ao pleito pelo primeiro reingresso na universidade, mas há casos em que migrantes e refugiados já aguardavam há anos que a universidade oferecesse opção de entrada em curso de interesse (semelhante ao que já cursava ou próximo ao que já cursava). Os documentos também contêm relatos de migrantes com passagens por outras instituições de ensino no Brasil antes de tentar o reingresso na UFPR. nesses casos, destacam-se (i) passagens por instituições de ensino superior particulares da mesma cidade, casos em que os migrantes interromperam o curso por dificuldades financeiras; (ii) passagens por instituições de ensino superior públicas em outras cidades brasileiras em que os migrantes indicam ter saído devido a insatisfações com “as condições do curso”, “relações interpessoais e institucionais”, etc. Há ainda relatos de migrantes que realizaram tentativas anteriores sem sucesso de reingresso em Universidades públicas de outros estados brasileiros e não foram admitidos (“não passou na prova”).
Verifica-se que o processo de reingresso na universidade é tido como dificultoso pelos migrantes, além dos editais serem divulgados em português, as informações sobre as especificidades dos cursos são dispersas, a oferta de vagas varia ano a ano e as provas exigem conhecimentos mais sobre especificidades disciplinares do que profissionais.
Quando os migrantes conseguem reingressar na universidade, é possível identificar dificuldades que eles relatam enfrentar ao longo do curso, tais como (i) dificuldade de compreensão da linguagem acadêmica; (ii) dificuldade de relacionamento com colegas e professores; (iii) dificuldades pelas questões econômicas (deslocamento, alimentação, materiais para estudos); (iv) discriminação, racismo e xenofobia. Elementos indicativos de um fundamental (não)reconhecimento social (Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., 2002aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20., 2002bFraser, N. (2002b). Redistribuição ou Reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções, 4(1), 7-32.). Numa nota mais positiva, a análise dos documentos permite identificar manifestações por parte dos migrantes de “privilégio em estudar em uma universidade pública”, da “sensação de estar incluído em um ambiente social e cultural brasileiro”, de retomada de projetos de vida e de “esperança com a vida” e o futuro. Pode-se discutir que a inserção no ambiente universitário, ainda que seja fonte de exclusão, ao mesmo tempo resgata para os migrantes uma possibilidade de reconhecimento social, ou seja, de um processo de reconhecimento que projeta a condição de continuar desejando um lugar na relação com o outro. No nível psicossocial do reconhecimento, encontra-se a explicação para o movimento de vinculação entre os sujeitos concretos, que é essencial para o reconhecimento dos interesses em comum e condição essencial para as relações sociais e de trabalho. Por apresentar uma dinâmica dialética, em que polos antagônicos (prazer e angústia, alienação e reconhecimento, repetição e superação) estão em jogo, entende-se que esse nível de análise representa uma peça importante para a compreensão das relações reconhecimento social.
CONCLUSÃO
De acordo com o referencial teórico adotado, o reconhecimento social contempla a redistribuição da riqueza material produzida e a representação política no processo de tomada de decisão, na medida em que são dimensões irredutíveis da justiça e não devem estar subordinadas a uma categoria superior de reconhecimento (Fraser, 1997Fraser, N. (1997). Justice Interruptus: critical reflections on the “post socialist” condition. New York, NY: Routledge., 2008aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20.), entendemos, portanto, que a justiça social em relação aos migrantes não pode ser explicada apenas a partir da luta pelo reconhecimento social, mas também deve ser entendida através da luta pela redistribuição da riqueza material produzida e pela igual representação em esferas de tomada de decisão. Essas três formas de luta correspondem a três dimensões da justiça: cultural (reconhecimento), política (representação) e econômica (redistribuição) (Fraser, 2008aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20.). O presente estudo, portanto, é apenas uma parte de um tripé que precisa ainda ser melhor investigado.
Os resultados encontrados nesta pesquisa, quando analisados à luz da teoria do reconhecimento social (Faria, 2017Faria, J. H. (2017). Poder, controle e gestão. Curitiba, PR: Juruá.; Fraser, 2000Fraser, N. (2000). Rethinking Recognition. New Left Review, 3, 107-120., 2002aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20., 2002bFraser, N. (2008b). Adding Insult to Injury. London, UK: Verso., 2004Fraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial., 2008aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20., 2008bFraser, N. (2002b). Redistribuição ou Reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções, 4(1), 7-32.; Fraser & Honneth, 2003Fraser, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or Recognition? A political philosophical exchange. London, UK: Verso.), indicam um processo de inclusão e reconhecimento de migrantes na sociedade brasileira que, em certa medida, é frágil e não garante a esses indivíduos e grupos sociais, esse sujeito coletivo, acesso à riqueza material produzida socialmente. O processo de reconhecimento é uma das condições de inclusão social ao abrigo dos critérios de justiça (Faria, 2017Fraser, N. (1997). Justice Interruptus: critical reflections on the “post socialist” condition. New York, NY: Routledge.; Fraser, 2008aFraser, N. A(2002a, outubro). Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20.).
Do ponto de vista cultural, no que se refere ao reconhecimento social (Fraser, 2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.), os resultados apontam para um lugar de exclusão, discriminação e racismo para esses migrantes. Identificamos preconceitos quanto à condição física (cor) e xenofobia em relação aos aspectos culturais e discutimos como a linguagem é, nessa dinâmica, um instrumento de não reconhecimento e dominação. É importante entender que o preconceito e a discriminação não são meramente culturais, como se nada tivessem a ver com a redistribuição da riqueza material, o reconhecimento social, a representação igualitária e as possibilidades desses sujeitos de autorrealização.
De uma perspectiva política, em relação à representação igualitária nas esferas de tomada de decisão (Fraser, 2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.), os resultados apontam também para exclusão. Discutimos como os migrantes são reconhecidos como trabalhadores (força de trabalho barata), mas não como cidadãos, isto é, embora atualmente no Brasil possam usar serviços públicos (saúde, educação) gratuitamente, como ocorre com a população nacional, o próprio idioma é barreira para eles realmente usufruírem desses serviços, além disso, no que tange sua participação em decisões que lhes dizem respeito, não há possibilidade de representação. Os direitos econômicos, sociais e culturais dos migrantes e refugiados não estão expressos em leie não têm direito a voto, sendo que, somente após 2017, com a Lei dos Migrantes, explicitou-se seu direito de participarem de movimentos sociais sem serem criminalizados. No caso de migrantes na cidade de Curitiba, há escassos sinais de organização coletiva com o objetivo de representação de seus próprios interesses, identificamos apenas uma associação específica de alunos haitianos, fundada pelos próprios, com apoio nos procedimentos jurídicos de um Professor do Curso de Direito da UFPR. Existem instituições brasileiras, como a Universidade, igrejas, ONGs que trabalham para garantir os direitos dessa população, mas seus serviços, em geral, são assistencialistas e, mesmo nessas esferas, há pouco ou nenhum espaço para os próprios migrantes tomarem parte das decisões sobre como as atividades dessas instituições serão desenvolvidas, tendo lugar apenas como usuários desses serviços. Concluímos a partir dos relatos constantes dos documentos analisados que algumas destas organizações de recepção dos migrantes se dedicam ao monopólio da sedução e ao sequestro da subjetividade (Faria, 2017Faria, J. H. (2017). Poder, controle e gestão. Curitiba, PR: Juruá.).
De uma perspectiva econômica, em relação à redistribuição da riqueza material (Fraser, 2008aFraser, N. (2008a). Escalas de Justicia. Barcelona, España: Herder Editorial.), os resultados apontam mais uma vez para exclusão. A principal dificuldade mencionada pelos migrantes e refugiados é econômica. Relatam o quão difícil é trabalhar, encontrar empregos e bons empregos. Os empregos que encontram são principalmente informais e precários, desenvolvendo atividades que exigem baixa qualificação. Mesmo no caso de migrantes com qualificações (treinamento e experiência) entrar no mundo do trabalho é difícil. Esta pesquisa identificou obstáculos institucionais e burocráticos para que os migrantes fossem reconhecidos como profissionais no Brasil, como obstáculos na revalidação de diplomas, reentrada na universidade, lentidão dos processos, não aceitação da sua documentação para o contrato de trabalho, entre outros.
Ainda que o acesso à universidade seja uma forma de garantia de direitos aos migrantes e de conquista de certo um reconhecimento social (Gediel, Friedrich & Balotin, 2019Gediel, J. A. P., Friedric, T. S., & Balotin, F. (2019). Public Education and the Welcoming of Migrants and Refugees in a Brazilian University. Widening Participation and Lifelong Learning Review, 21, 235-244.), esta pesquisa sinaliza que este ingresso não é suficiente para transpor os obstáculos que se constituem para a reprodução das desigualdades e a da exclusão dessa população.
Os resultados deste estudo apontam para a inclusão precária de migrantes e refugiados no mundo do trabalho, evidenciando processos de injustiça social e sofrimento psíquico desses sujeitos. É identificada a oferta de uma massa de trabalhadores disponíveis para exploração internacional, que são levados a renunciar às conquistas históricas da classe trabalhadora. A formação especializada de migrantes é “substituída por uma aprendizagem flexibilizada, em que importa mais a adaptabilidade e capacidade de submeter-se ao novo do que a qualificação prévia” (Vendramini, 2018Vendramini, C. R. (2018). A categoria migração na perspectiva do materialismo histórico e dialético. Revista Katálysis, 21(2), 239-260., p. 245).
No processo de deslocamento de uma terra para outra, referências concretas e subjetivas estão em suspensão (outra cultura, outra língua, outra maneira de compartilhar elementos simbólicos e se relacionar com o outro é experimentada). O que é experimentado no campo da cultura, ou na relação ao outro (Lacan, 1966Lacan, J. (1966). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J. Lacan(Ed.), Escritos(pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), não encontra referência no campo subjetivo. É, portanto, um deslocamento não apenas geográfico, mas também psíquico, uma identidade posta à prova na cultura do outro, uma cultura que nem sempre é inclusiva, nem sempre acolhedora. A ausência de referências no campo do outro reafirma para o sujeito psíquico sua condição de vulnerabilidade, não apenas social ou concreta, mas também psíquica. Vulnerabilidade que potencializa o sofrimento e em seus extremos rompe com a condição de organizar sua vida concreta e subjetiva. É apenas o reconhecimento das experiências concretas e subjetivas da vida que permitem uma leitura humana e justa da condição dos migrantes, deslocados forçados e refugiados.
Nas discussões atuais sobre a teoria do reconhecimento, indica-se que a luta pelo reconhecimento não deve partir da reivindicação de grupos minoritários ou excluídos, mas deve entender os processos de exclusão e segregação da classe trabalhadora. A luta pelo reconhecimento ocorre em um mundo de desigualdade material exacerbada, o que significa que o desafio de desenvolver uma teoria crítica da sociedade exige um entendimento de que a justiça deve contemplar a articulação entre redistribuição econômica, reconhecimento social e representação política.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Gabriela Loires Diniz Trujillo pela revisão qualificada do artigo em inglês.
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Utilizamos de maneira genérica os conceitos de “migrantes”, “refugiados” e “pessoas deslocadas”. Nosso entendimento é que o que identifica e permite incluir esses conceitos na mesma categoria é a “experiência de deslocamento que os marca. E quando dizemos ‘marcas’, é em um sentido muito concreto. Os corpos deslocados são marcados precisamente pela falta de identidade e reconhecimento” (Chueiri & Câmara, 2010, pp. 160-161). Na terminologia jurídica, para fins da Lei da Migração Brasileira, de 2017, usa-se apenas a palavra “migrante”.
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Este Projeto de Extensão do DEPSI está vinculado ao Programa Política Migratória e Universidade Brasileira da UFPR, signatário da Cátedra Sergio Vieira de Mello, do Alto Comissariado das Nações UnidasAlto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. (2018). Relatórios de atividades 2018. Brasília, DF: Cátedra Sérgio Vieira de Mello. para Refugiados - ACNUR, que tem como objetivo acolher e atender migrantes que necessitam trabalhar e viver na nova terra. O Programa é composto de Projetos de Extensão de 8 cursos distintos: Letras, Direito, Psicologia, Sociologia, Informática, História, Medicina e Comunicação, além de parcerias com outras instituições, compondo uma rede de atendimento a esse público. Aqui analisamos apenas o Projeto de Extensão da Psicologia.
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[Versão traduzida]
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jun 2021 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2021
Histórico
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Recebido
20 Jan 2020 -
Aceito
11 Set 2020