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Complicações obstétricas e idade materna no parto são preditores de sintomas de transtornos alimentares em estudantes universitários da área da Saúde

RESUMO

Objetivo

Identificar a associação entre fatores perinatais/neonatais e sintomas de transtornos alimentares entre estudantes universitários.

Métodos

Quatrocentos e oito estudantes universitários (283 mulheres), com idade entre 18 e 23 anos, matriculados no primeiro semestre de cursos de Bacharelado na área das Ciências da Saúde foram incluídos na amostra. Sintomas de transtornos alimentares e de insatisfação com a imagem corporal foram avaliados por meio do Eating Attitudes Test e do Bulimic Investigatoty Test of Edinburgh. Informações sobre o peso ao nascer, aleitamento materno, complicações obstétricas, idade materna no momento do parto, tipo de parto e ordem de nascimento foram relatadas pelos voluntários após consulta com seus pais. A associação entre fatores perinatais/neonatais e sintomas de anorexia nervosa e bulimia nervosa foi avaliada por meio de regressão logística binária ajustada por sexo, idade e índice de massa corporal.

Resultados

A probabilidade de apresentar sintomas de anorexia nervosa foi 0,5 vez mais baixa para os alunos nascidos de mães mais velhas (odds ratio – OR=0,37; intervalo de confiança de 95% – IC 95%=0,17-0,83). Em relação à bulimia nervosa, o risco foi maior entre os estudantes que relataram complicações obstétricas (OR=2,62; IC 95%=1,03-6,67).

Conclusão

Observou-se associação entre fatores perinatais e neonatais com sintomas de transtornos alimentares em estudantes universitários.

Anorexia nervosa; Bulimia nervosa; Transtornos alimentares; Complicações na gravidez; Estudantes

ABSTRACT

Objective

To identify the association between perinatal/neonatal factors and symptoms of eating disorders among college students.

Methods

Four hundred and eight college students (283 women), aged 18 to 23 years old, enrolled in the first semester of a Bachelor of Health Science degree program were included in the sample. Eating disorder symptoms and body image dissatisfaction were assessed with the Eating Attitudes Test and Bulimic Investigatory Test of Edinburgh. Information regarding birth weight, breastfeeding, obstetric complications, mother’s age at delivery, type of delivery, and birth order were self-reported by the volunteers after consulting their parents. Association between perinatal and neonatal factors and symptoms of anorexia nervosa and bulimia nervosa were assessed by binary logistic regression adjusted for sex, age, and body mass index.

Results

The likelihood of presenting with symptoms of anorexia nervosa was 0.5 time lower for those students born from the oldest mothers (odds ratio – OR=0.37; 95% confidence interval – 95%CI: 0.17-0.83). Relative to bulimia nervosa, the risk was higher among students who reported obstetric complications (OR=2.62; 95%CI: 1.03-6.67).

Conclusion

We observed the association between perinatal and neonatal factors with symptoms of eating disorders in college students.

Anorexia nervosa; Bulimia nervosa; Eating disorders; Pregnancy complications; Students

INTRODUÇÃO

No final da década de 1980, Barker et al.(11. Barker DJ, Osmond C, Golding J, Kuh D, Wadsworth ME. Growth in utero, blood pressure in childhood and adult life, and mortality from cardiovascular disease. BMJ. 1989;298(6673):564-7.) foram pioneiros em mostrar que baixo peso ao nascer estava associado a um risco aumentado de morte na vida adulta, e, desde então, existe a hipótese de que o ambiente intrauterino, assim como o período de desenvolvimento inicial, sejam responsáveis pelas respostas de adaptação que poderiam predizer o risco de surgimento de algumas doenças posteriormente. Alguns anos depois, Hales e Barker(22. Hales CN, Barker DJ. Type 2 (non-insulin-dependent) diabetes mellitus: the thrifty phenotype hypothesis. Diabetologia. 1992;35(7):595-601. Review.) desenvolveram a “hipótese do fenótipo poupador”, que atualmente é a essência da teoria das origens de saúde e doença no desenvolvimento (DOHaD, developmental origins of health and disease).(33. Gluckman PD, Hanson MA. Living with the past: evolution, development, and patterns of disease. Science. 2004;305(5691):1733-6. Review.,44. Fleming TP, Velazquez MA, Eckert JJ. Embryos, DOHaD and David Barker. J Dev Orig Health Dis. 2015;6(5):377-83.)

Já está bem estabelecido que os ambientes perinatal e neonatal podem predizer a probabilidade de transtornos psiquiátricos,(55. Seckl JR. Glucocorticoids, developmental ‘programming’ and the risk of affective dysfunction. Prog Brain Res. 2008;167:17-34. Review.

6. Costello EJ, Worthman C, Erkanli A, Angold A. Prediction from low birth weight to female adolescent depression: a test of competing hypotheses. Arch Gen Psychiatry. 2007;64(3):338-44.
-77. Brown AS, Susser ES. Prenatal nutritional deficiency and risk of adult schizophrenia. Schizophr Bull. 2008;34(6):1054-63.)cardiovasculares e doenças metabólicas,(33. Gluckman PD, Hanson MA. Living with the past: evolution, development, and patterns of disease. Science. 2004;305(5691):1733-6. Review.,88. Gluckman PD, Hanson MA, Cooper C, Thornburg KL. Effect of in utero and early-life conditions on adult health and disease. N Engl J Med. 2008; 359(1):61-73. Review.) e que estão envolvidos na etiopatogenia da obesidade.(99. St-Pierre J, Bouchard L, Poirier P. The impact of obesity on cardiovascular structure and function: the fetal programming era. Pediatric Health Med Ther. 2012;3:1-8. Review.) Desta forma, é viável considerar que eles podem ocorrer na etiologia de transtornos alimentares (TA).

Transtornos alimentares são distúrbios psiquiátricos de etiologia complexa e, embora existam muitos dados empíricos sobre o possível papel de uma variedade de supostos fatores de risco, quase nada é conhecido sobre as reais vias de TA. Atualmente, existe alguma evidência de que o ambiente neonatal possa estar envolvido na etiopatogenia de anorexia nervosa e bulimia nervosa.(1010. Cnattingius S, Hultman CM, Dahl M, Sparén P. Very preterm birth, birth trauma, and the risk of anorexia nervosa among girls. Arch Gen Psychiatry. 1999;56(7):634-8.

11. Foley DL, Thacker LR 2nd, Aggen SH, Neale MC, Kendler KS. Pregnancy and perinatal complications associated with risks for common psychiatric disorders in a population-based sample of female twins. Am J Med Genet. 2001;105(5):426-31.

12. Favaro A, Tenconi E, Santonastaso P. Perinatal factors and the risk of developing anorexia nervosa and bulimia nervosa. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(1):82-8.

13. Favaro A, Tenconi E, Santonastaso P. The interaction between perinatal factors and childhood abuse in the risk of developing anorexia nervosa. Psychol Med. 2010;40(4):657-65.

14. Raevuori A, Linna MS, Keski-Rahkonen, A. Prenatal and perinatal factors in eating disorders: a descriptive review. Int J Eat Disord. 2014;47(7):676-85. Review.
-1515. Goodman A, Heshmati A, Malki N, Koupil I. Associations between birth characteristics and eating disorders across the life course: findings from 2 million males and females born in Sweden, 1975-1998. Am J Epidemiol. 2014;179(7):852-63.)

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV (DSM-IV),(1616. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and statistical manual of mental disorders DSM-IV. 4th ed. Washington, DC: Am Psychiatric Association; 1994.) anorexia nervosa caracteriza-se por um intenso medo de ganhar peso ou de engordar, distorção da imagem corporal e amenorreia. Já na bulimia nervosa, ocorrem episódios recorrentes de compulsão alimentar, sentimento de falta de controle sobre a alimentação durante o episódio, comportamento compensatório inapropriado recorrente para ganhar peso, como provocação de vômitos, uso inadequado de laxantes, diuréticos, enemas ou outras medicações.

Apesar da relevância de TA para a Saúde Pública, poucos estudos abordaram a inter-relação entre fatores perinatais/neonatais e TA, e foram realizados em populações clínicas.(99. St-Pierre J, Bouchard L, Poirier P. The impact of obesity on cardiovascular structure and function: the fetal programming era. Pediatric Health Med Ther. 2012;3:1-8. Review.

10. Cnattingius S, Hultman CM, Dahl M, Sparén P. Very preterm birth, birth trauma, and the risk of anorexia nervosa among girls. Arch Gen Psychiatry. 1999;56(7):634-8.
-1111. Foley DL, Thacker LR 2nd, Aggen SH, Neale MC, Kendler KS. Pregnancy and perinatal complications associated with risks for common psychiatric disorders in a population-based sample of female twins. Am J Med Genet. 2001;105(5):426-31.) A literatura atual negligencia os indivíduos vulneráveis ao desenvolvimento de TA,(1717. Delinsky SS, Wilson GT. Weight gain, dietary restraint, and disordered eating in the freshman year of college. Eat Behav. 2008;9(1):82-90.) e sabe-se que a fase universitária é um período crítico para o aparecimento desses transtornos.(1818. Martínez-Gonzáles L, Fernández Villa T, Molina de la Torre AJ, Ayán Pérez C, Bueno Cavanillas A, Capelo Álvarez R, et al. [Prevalence of eating disorders in college students and associated factors. uniHcos project]. Nutr Hosp. 2014;30(4):927-34. Spanish.)

OBJETIVO

Identificar a associação entre fatores perinatais/neonatais e sintomas de transtornos alimentares entre estudantes universitários.

MÉTODOS

Participantes

Este estudo transversal foi realizado com 408 universitários matriculados no primeiro semestre de um programa de Bacharel em Ciências da Saúde (Medicina, Nutrição, Educação Física, Fisioterapia, Odontologia, Enfermagem e Terapia Ocupacional) em universidades públicas de Recife (PE), no nordeste do Brasil. Os participantes foram 125 homens e 283 mulheres com idades entre 18 e 23 anos, matriculados no primeiro ano de faculdade. Os critérios de exclusão foram estar inscrito em outros cursos ou semestres de Ciências da Saúde (para evitar conhecimento prévio dos instrumentos), gravidez e adoção (inviabilidade de obter informações pré- e neonatais). Este estudo foi conduzido segundo os princípios da Declaração de Helsinque e foi formalmente aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Federal de Pernambuco CAAE: 0143.0.172.000-10. O Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido de todos os sujeitos.

O tamanho da amostra foi estimado com uma margem de erro de 5% (intervalo de confiança de IC95% - IC95%). Um efeito de delineamento de 1,5 e 50% de prevalência esperada de sintomas de TA foi baseado em estudos anteriores.(1919. Bosi ML, Luiz RR, Uchimura KY, Oliveira FP. Comportamento alimentar e imagem corporal entre estudantes de educação física. J Bras Psiquiatr. 2008; 57(1):28-33.

20. Cenci M, Peres K, Vasconcelos FA. Prevalência de comportamento bulímico e fatores associados em universitárias. Rev Psiquiatr Clín. 2009;36(3):83-8.

21. Alvarenga MS, Scagliusi FB, Philippi ST. Comportamento de risco para transtorno alimentar em universitárias brasileiras. Rev Psiq Clín. 2011; 38(1):3-7.
-2222. Pereira LN, Trevisol FS, Quevedo J, Jornada LK. Eating disorders among health science students at a university in southern Brazil. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2011;33(1):14-9.) O tamanho de amostra estimado foi suficiente para detectar valores de odds ratiosignificantemente ≥1,8, com um poder de 80% e um IC95%.

Medidas

Ao final de um período regular de aulas, os estudantes foram convidados a participar como voluntários após uma explicação sobre os objetivos e os procedimentos da pesquisa. Aqueles que concordaram em participar foram submetidos aos procedimentos de avaliação, que incluíam questionários e medidas antropométricas. As informações a respeito de peso no nascimento, amamentação, complicações obstétricas, idade materna na ocasião do parto, tipo de parto, e ordem de nascimento foram relatadas após consulta com seus pais.

O peso e altura de pé foram medidos em balança (Filizola, São Paulo (SP), Brasil) até o 0,1kg e 0,5cm mais próximos, respectivamente, como proposto por Jackson e Pollock.(2323. Jackson AS, Pollock ML. Practical assessment of body composition. Phys Sportsmed. 1985;13:76-82.)O índice de massa corporal (IMC) foi calculado pela divisão do peso corpóreo (kg) pelo quadrado da altura (m2).

Os questionários foram aplicados por um psicólogo em uma sala separada e silenciosa, seguindo os procedimentos do instrumento.

Eating Attitudes Test

Traduzido e validado para a população brasileira por Nunes et al.,(2424. Nunes MA, Bagatini LF, Abuchaim AL, Kunz A, Ramos D, Silva JA, et al. Distúrbios da conduta alimentar: considerações sobre o teste de atitudes alimentares (EAT). Rev ABP-APAL. 1994;16(1):7-10.) oEating Attitudes Test (EAT-26) é um instrumento de autorrelato usado na avaliação e identificação de padrões anormais de alimentação. O instrumento é composto por 26 itens, com 6 opções de resposta: “sempre” corresponde a 3 pontos, “muito frequentemente” corresponde a 2 pontos, “frequentemente” corresponde a 1 ponto, e “algumas vezes/raramente/nunca” corresponde a zero ponto. Os escores acima de 20 pontos foram classificados como probabilidade de demonstrar comportamento alimentar anormal e risco de desenvolver anorexia nervosa.(2525. Garner DM, Olmsted MP, Bohr Y, Garfinkel PE. The eating attitudes test: psychometric features and clinical correlates. Psychol Med. 1982;12(4):871-8.)

Bulimic Investigatory Test of Edinburgh

Traduzido e validado para a população brasileira por Cordás e Hochgraf,(2626. Cordás TA, Hochgraf PB. O “BITE”: instrumento para a avaliação da bulimia nervosa - versão para o português. J Bras Psiquiatr. 1993;42(3):141-4.)o Bulimic Investigatory Test of Edinburgh (BITE) é uma medida de 33 itens autorrelatados, para identificar sintomas de bulimia ou compulsão alimentar. O BITE tem duas subescalas: escala de sintomas e escala de gravidade. Os escores da escala de sintomas são subdivididos em três categorias: escores altos (maiores que 20); escores médios (entre 10 e 19); e escores baixos (abaixo de 10). A outra escala mede a gravidade da alimentação compulsiva e comportamento purgativo, definido pela frequência.(2727. Henderson M, Freeman CP. A self-rating scale for bulimia. The ‘BITE’. Br J Psychiatry. 1987;150:18-24.)

No fim, as variáveis foram divididas da seguinte forma: presença ou ausência de sintomas de TA; peso no nascimento maior ou menor que 2.500g; amamentação ou não; complicações obstétricas ou não; idade materna na ocasião do parto maior ou menor que 25 anos; cesariana ou parto normal; e primeiro na ordem de nascimento ou não.

Análise estatística

Todos os dados foram analisados por meio do software Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 10 para Windows. O teste de Komolgorov-Smirnov foi feito para verificar a normalidade dos dados. Já que a distribuição não foi normal, os dados foram expressos por mediana, valor mínimo e valor máximo. As comparações entre os dois grupos foram verificados pelo teste U de Mann-Whitney. Para variáveis categóricas, os dados são apresentados como frequências absoluta e relativa, e as diferenças entre os grupos foram analisadas pelo teste χ2. As associações entre fatores perinatais/neonatais e os sintomas de anorexia nervosa e bulimia nervosa foram avaliadas por regressão logística binária. Os resultados são mostrados como valores de odds ratio não ajustados e ajustados, com IC95% A significância foi estabelecida em p<0,05.

RESULTADOS

A amostra foi composta de 408 universitários, sendo 283 do sexo feminino (69,4%). Apresentaram sintomas de TA 115 (28,2%; IC95%: 23,9%-32,7%) estudantes. A tabela 1 mostra que os estudantes com sintomas de TA tinham mais peso (p<0,001) e maior IMC (p<0,001) que aqueles sem sintomas.

Tabela 1
Dados antropométricos e fatores perinatais/neonatais em universitários com ou sem sintomas de transtornos alimentares

De todos os estudantes com sintomas de TA, 61,7% (IC95%: 51,6-71,1) registravam idade materna no parto ≥25 anos, 11,4% (IC95%: 6,3-18,6) apresentaram complicações obstétricas, 2,9% (IC95%: 0,7-7,6) não tinham sido amamentados, 60,6% (IC95%: 50,5-70,1) nasceram de cesariana e 46,8% (IC95%: 36,9-56,9) foram os primeiros em ordem de nascimento. As complicações obstétricas mais prevalentes foram doenças relacionadas à gestação, como sangramentos, pré-eclâmpsia, diabetes, ameaça de abortos espontâneos e anemia, seguidas de ruptura prematura de membranas, necessidade de oxigênio e ventilação ao nascimento, nó no cordão umbilical ou circular de cordão, e outros não especificados.

A regressão logística multivariada binária mostrou que a probabilidade de apresentar sintomas de anorexia nervosa foi 0,5 vez menor para aqueles estudantes nascidos de mães mais velhas (≥25 anos de idade) (Tabela 2). Relativo à bulimia nervosa, o risco foi 2,6 vezes maior entre estudantes que relataram complicações obstétricas (Tabela 3). Para peso ao nascer, amamentação, tipo de parto, e ordem de nascimento, nenhuma associação foi encontrada.

Tabela 2
Odds ratio para anorexia nervosa, segundo características neonatais em universitários
Tabela 3
Odds ratio para bulimia nervosa, segundo as características neonatais em universitários

DISCUSSÃO

Este é o primeiro estudo feito com uma amostra não clínica, composta de estudantes calouros de cursos de Ciências da Saúde com propósito de explorar a inter-relação entre fatores perinatais/neonatais e sintomas de TA. Já que alguns estudos indicaram que essa população é mais vulnerável ao desenvolvimento de TA,(1717. Delinsky SS, Wilson GT. Weight gain, dietary restraint, and disordered eating in the freshman year of college. Eat Behav. 2008;9(1):82-90.,2828. Juarascio AS, Forman EM, Timko CA, Herbert JD, Butryn M, Lowe M. Implicit internalization of the thin ideal as a predictor of increases in weight, body dissatisfaction, and disordered eating. Eat Behav. 2011;12(3):207-13.) a presente investigação acrescenta dados relevantes ao conhecimento atual sobre os possíveis agentes envolvidos na etiologia desses transtornos. Assim, os principais achados são: (1) complicações obstétricas são positivamente associadas a sintomas de bulimia nervosa e (2) uma idade materna inferior a 25 anos no momento do parto é um fator de risco para sintomas de anorexia nervosa.

Nossos dados mostraram que os sintomas de bulimia nervosa são duas vezes maiores entre estudantes com complicações obstétricas do que entre seus pares que não as apresentaram. Em concordância com nossos resultados, Favaro et al.(1212. Favaro A, Tenconi E, Santonastaso P. Perinatal factors and the risk of developing anorexia nervosa and bulimia nervosa. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(1):82-8.) verificaram o mesmo padrão em mulheres com diagnóstico de anorexia nervosa. Ademais, Kelly et al.(2929. Kelly BD, Feeney L, O’Callaghan E, Browne R, Byrne M, Mulryan N, et al. Obstetric adversity and age at first presentation with schizophrenia: evidence of a dose-response relationship. Am J Psychiatry. 2004;161(5):920-2.) demonstraram que as complicações obstétricas podem estar envolvidas no início da esquizofrenia.

Já que o ambiente perinatal e o período inicial de desenvolvimento são capazes de produzir alterações de longa duração na estrutura cerebral e plasticidade em neonatos,(3030. Lopes de Souza S, Orozco-Solis R, Grit I, Manhães de Castro R, Bolaños-Jiménez F. Perinatal protein restriction reduces the inhibitory action of serotonin on food intake. Eur J Neurosci. 2008;27(6):1400-8.) assim como afetar a organogênese e o perfil epigenético em recém-nascidos,(3131. Bouchard L, Thibault S, Guay SP, Santure M, Monpetit A, St-Pierre J, et al. Leptin gene epigenetic adaptation to impaired glucose metabolism during pregnancy. Diabetes Care. 2010;33(11):2436-41.) os possíveis mecanismos subjacentes aos efeitos deletérios de complicações obstétricas podem ser mediados por hipóxia, que causa dano ao desenvolvimento neurológico do recém-nascido.(3232. Zornberg GL, Buka SL, Tsuang MT. Hypoxic-ischemia-related fetal/neonatal complications and risk of schizophrenia and other nonaffective psychoses: a 19-year longitudinal study. Am J Psychiatry. 2000;157(2):196-202.)Além disso, a desnutrição durante a gravidez e no período pós-natal parece influenciar no controle central do gasto de energia e apetite na vida adulta.(3333. Strauss RS. Effects of the intrauterine environment on childhood growth. Br Med Bull. 1997;53(1):81-95. Review.) É importante notar que os diferentes tipos de complicações obstétricas têm implicações diversas para o risco de desenvolvimento de doença psiquiátrica.(3434. Cannon TD, Rosso IM, Hollister JM, Bearden CE, Sanchez LE, Hadley T. A prospective cohort study of genetic and perinatal influences in the etiology of schizophrenia. Schizophr Bull. 2000;26(2):351-66.)

Um resultado surpreendente do presente estudo foi a menor incidência de sintomas de anorexia nervosa naqueles estudantes nascidos de mães com mais de 25 anos de idade; infelizmente, não há dados disponíveis a respeito desse tópico que nos ajudem a traçar hipóteses para essa questão. Porém esse fato intrigante deve ser investigado em futuros estudos para melhor elucidar essa possível associação.

Nosso estudo indica que o peso ao nascer, a amamentação, o tipo de parto e a ordem de nascimento não influenciam na probabilidade de sintomatologia de TA. Em concordância com nossos dados, Nicholls e Viner,(3535. Nicholls DE, Viner RM. Childhood risk factors for lifetime anorexia nervosa by age 30 years in a national birth cohort. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2009;48(8):791-9.) em uma coorte nacional prospectiva de nascimentos, não identificaram relação de dose-resposta entre baixo peso ao nascer e risco de AN. Favaro et al.(1212. Favaro A, Tenconi E, Santonastaso P. Perinatal factors and the risk of developing anorexia nervosa and bulimia nervosa. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(1):82-8.) em um estudo longitudinal com coorte em uma população clínica com anorexia e bulimia nervosa não encontraram nenhuma associação com baixo peso de nascimento e ordem de nascimento como fator de risco para o desenvolvimento de TA.

O presente estudo tem algumas limitações que devem de ser consideradas. A medida autorrelatada de períodos perinatal e neonatal pode ter influenciado nos desfechos avaliados. Em função da vasta gama de complicações obstétricas relatadas no presente estudo, não fomos capazes de analisar a associação isolada de cada complicação obstétrica com os sintomas de TA. Por causa dessas limitações, a interpretação dos dados precisa ser feita com cautela. Dessa forma, futuros estudos realizados com maiores amostras, que analisem os fatores singulares e agrupados neonatais e perinatais podem elucidar e realçar nossa compreensão a respeito desse tópico relevante em Saúde Pública.

Os pontos fortes do presente estudo são as características dos voluntários: calouros de cursos de Ciências da Saúde, a inclusão de homens na amostra, e o ajuste da análise para sexo e IMC.

CONCLUSÃO

Fatores perinatais e neonatais são importantes na patogênese de transtorno alimentar entre universitários. Da mesma forma, vigilância cuidadosa é necessária para evitar o aumento da incidência de transtorno alimentar nessa população. Sugerimos que as universidades prestem mais atenção a essa questão, ofereçam suporte psicológico aos alunos desde o início do curso; e deem informações sobre prevenção de transtorno alimentar durante as aulas iniciais para calouros de cursos de Ciências da Saúde, para evitar futuras complicações na próxima geração de profissionais de saúde. Mais estudos devem focar nos mecanismos subjacentes que correlacionam fatores neonatais aos transtornos alimentares.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2015
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    2 Abr 2015
  • Aceito
    24 Jun 2015
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