Acessibilidade / Reportar erro

O papel da tromboelastometria na avaliação e no tratamento da coagulopatia em pacientes submetidos ao transplante hepático

RESUMO

A monitorização perioperatória da coagulação é fundamental para estimar o risco de sangramento, diagnosticar deficiências causadoras de hemorragia e guiar terapias hemostáticas durante procedimentos cirúrgicos de grande porte, como o transplante hepático. Os testes estáticos, comumente usados na prática clínica, são insatisfatórios no intraoperatório, pois demandam tempo e não avaliam a função plaquetária; são determinados no plasma e realizados em temperatura padrão de 37°C. Os métodos que avaliam as propriedades viscoelásticas do sangue total, como o tromboelastograma e a tromboelastometria rotacional, podem suprir as deficiências dos testes estáticos tradicionais, uma vez que permitem avaliar a coagulação de forma rápida e qualitativa, guiando a terapia transfusional de forma adequada. A tromboelastometria rotacional mostrou-se promissora na avaliação e no tratamento de estados de hipercoagulação e hipocoagulação, associados a sangramento no transplante hepático. Estas informações, combinadas com os testes tradicionais e uma avaliação objetiva do campo cirúrgico, promovem um cenário ótimo para guiar as estratégias transfusionais e potencialmente melhorar o desfecho destes pacientes.

Transplante; Transplante de fígado; Coagulação sanguínea; Tromboelastografia; Hemorragia; Transfusão de sangue

ABSTRACT

Perioperative monitoring of coagulation is vital to assess bleeding risks, diagnose deficiencies associated with hemorrhage, and guide hemostatic therapy in major surgical procedures, such as liver transplantation. Routine static tests demand long turnaround time and do not assess platelet function; they are determined on plasma at a standard temperature of 37°C; hence these tests are ill-suited for intraoperative use. In contrast, methods which evaluate the viscoelastic properties of whole blood, such as thromboelastogram and rotational thromboelastometry, provide rapid qualitative coagulation assessment and appropriate guidance for transfusion therapy. These are promising tools for the assessment and treatment of hyper- and hypocoagulable states associated with bleeding in liver transplantation. When combined with traditional tests and objective assessment of the surgical field, this information provides ideal guidance for transfusion strategies, with potential improvement of patient outcomes.

Transplantation; Liver transplantation; Blood coagulation; Thrombelastography; Hemorrhage; Blood transfusion

INTRODUÇÃO

A monitorização perioperatória da coagulação é fundamental para estimar o risco de sangramento, diagnosticar deficiências causadoras de hemorragia e guiar terapias hemostáticas durante procedimentos cirúrgicos de grande porte, como transplante hepático.(11. Society of Thoracic Surgeons Blood Conservation Guideline Task Force, Ferraris VA, Ferraris SP, Saha SP, Hessel EA 2nd, Haan CK, Royston BD, Bridges CR, Higgins RS, Despotis G, Brown JR; Society of Cardiovascular Anesthesiologists Special Task Force on Blood Transfusion., Spiess BD, Shore-Lesserson L, Stafford-Smith M, Mazer CD, Bennett-Guerrero E, Hill SE, Body S. Perioperative blood transfusion and blood conservation in cardiac surgery: the Society of Thoracic Surgeons and The Society of Cardiovascular Anesthesiologists clinical practice guideline. Ann Thorac Surg. 2007;83(5 Suppl):S27-86. Review.) Os testes estáticos comumente usados (tempo de protrombina, razão normalizada internacional, tempo de tromboplastina parcialmente ativada, dosagem de fibrinogênio e plaquetas) são insatisfatórios no contexto dinâmico do intraoperatório,(22. Kozek-Langenecker S. Management of massive operative blood loss. Minerva Anestesiol. 2007;73(7-8):401-15. Review.) pois demandam tempo, não avaliam a função plaquetária, são determinados no plasma (não no sangue completo) e realizados em temperatura de 37°C − situação que muitas vezes não representa a temperatura real do paciente.(22. Kozek-Langenecker S. Management of massive operative blood loss. Minerva Anestesiol. 2007;73(7-8):401-15. Review.) Nos indivíduos cirróticos, os métodos que avaliam as propriedades viscoelásticas do sangue total, como o tromboelastograma (TEG®) e a tromboelastometria rotacional (ROTEM®), podem suprir as deficiências dos testes estáticos tradicionais, pois permitem avaliar a coagulação de forma rápida e qualitativa, guiando a terapia transfusional de forma adequada.(33. Schöchl H, Nienaber U, Hofer G, Voelckel W, Jambor C, Scharbert G, et al. Goal-directed coagulation management of major trauma patients using thromboelastometry (ROTEM) – guided administration of fibrinogen concentrate and prothrombin complex concentrate. Crit Care. 2010;14(2):R55.)

O paciente hepatopata apresenta síntese deficiente das proteínas envolvidas no processo da coagulação. Existem mecanismos que contrabalanceiam estas alterações, promovendo um novo estado de equilíbrio na hemostasia destes pacientes.(44. Tripodi A, Mannucci PM. The coagulopathy of chronic liver disease. N Engl J Med. 2011;365(2):147-56. Review.) Entre os principais mecanismos, encontram-se (1) a disfunção e a produção prejudicada de proteínas, que ocorrem tanto nos fatores pró-coagulantes como nos anticoagulantes, de forma que o hepatopata em estado avançado pode apresentar quadros de sangramento ou trombose, bem como um relativo estado de equilíbrio hemostático;(55. De Caterina M, Tarantino G, Farina C, Arena A, di Maro G, Esposito P, et al. Haemostasis unbalance in pugh-scored liver cirrhosis: characteristic changes of plasma levels of protein C versus protein S. Haemostasis. 1993; 23(4):229-35.) e (2) diminuição do número circulante de plaquetas causada por sequestro esplênico, renovação mais rápida, menor meia-vida plaquetária e menor produção (baixos níveis de trombopoetina), quadro este que é antagonizado pelo aumento dos níveis de fator de von Willebrand, um facilitador da adesão plaquetária às superfícies.

O paciente cirrótico apresenta deficiência na síntese dos fatores pró-coagulantes II, V, VII, IX, X e XI. Estas deficiências afetam os exames laboratoriais habitualmente disponíveis, principalmente o tempo de protrombina, a razão normalizada internacional e o tempo de tromboplastina parcialmente ativada. Embora os níveis dos fatores pró-coagulantes estejam diminuídos, o cirrótico pode apresentar capacidade normal de geração de trombina, pois também há uma queda na produção de proteína C, um potente anticoagulante, além de aumento do fator derivado do endotélio (fator VIII).(66. Tripodi A, Primignani M, Chantarangkul V, Dell’Era A, Clerici M, de Franchis R, et al. An imbalance of pro- vs anti-coagulation factors in plasma from patients with cirrhosis. Gastroenterology. 2009;137(6):2105-11.)

MÉTODOS VISCOELÁSTICOS DE AVALIAÇÃO DA COAGULAÇÃO

A tromboelastografia foi descrita em 1948 como um método para avaliar a função hemostática global por meio de uma amostra de sangue. Ao contrário dos testes convencionais, estes são realizados no sangue total e na temperatura do paciente, permitindo avaliar a função plaquetária e sua interação com as hemácias. O TEG® (Haemoscope/Haemonetics®, Niles, Ill) proporciona uma avaliação global dinâmica da coagulação por uma amostra sanguínea colocada em uma cubeta cilíndrica estacionária, que oscila 4o45’ em ciclos de 10 segundos. Após a adição de um ativador da coagulação à amostra, um pino suspenso colocado no sangue monitora a movimentação (Figura 1).

Figura 1
Princípio do funcionamento do TEG®

O ROTEM®, por sua vez, adota os mesmos princípios do TEG®, com algumas modificações tecnológicas, como o sinal do pino suspenso no sangue é transmitido por um sistema de detecção óptica, e não por um cabo de torção; e a movimentação é realizada pelo pino, e não pela cuba (Figura 2). Tanto o TEG® como o ROTEM® medem e mostram graficamente as alterações viscoelásticas em todos os estágios da formação, manutenção e destruição do coágulo (Figura 3).

Figura 2
Princípio do funcionamento do ROTEM®

Figura 3
Testes viscoelásticos do sangue total podem ser detectadas pelo ROTEM® (método óptico, linha superior) ou pelo TEG® (método eletromecânico, linha inferior). A coagulação plasmática pode ser detectada por meio do tempo de coagulação ou de reação. A formação inicial do coágulo é mostrada pelo tempo de formação do coágulo ou tempo K e o ângulo a. A viscoelasticidade máxima é definida como firmeza máxima do coágulo ou amplitude máxima. Fibrinólise sistêmica ocorre quando a quebra do coágulo (>15% da amplitude máxima ou firmeza máxima do coágulo) é observada dentro de uma hora. A10: amplitude após 10 minutos do tempo de coagulação

Especificamente no método ROTEM®, os reagentes utilizados permitem avaliações de diferentes aspectos da coagulação, fornecendo um guia para a correção dos potenciais distúrbios,(77. Luddington RJ. Thrombelastography/thromboelastometry. Clin Lab Haematol. 2005;27(2):81-90. Review.) apresentando vantagens sobre o TEG®. Na prática clínica, utilizam-se as seguintes variações do teste para avaliação e tomada de decisão transfusional: (1) EXTEM (reagente: fator tecidual; avalia a via extrínseca da coagulação, permitindo rápido acesso à formação do coágulo e fibrinólise); (2) INTEM (reagente: ativador de contato; avalia a via intrínseca, acessando a formação do coágulo e a polimerização de fibrina); (3) FIBTEM (utiliza fator tecidual associado a um inibidor plaquetário, a citocalasina D; permite uma avaliação qualitativa dos níveis de fibrinogênio); (4) APTEM (utiliza fator tecidual associado à aprotinina; avalia a via da fibrinólise permitindo rápida detecção, quando associado ao EXTEM); e (5) HEPTEM (reagente ativador de contato associado à heparinase; permite a detecção de heparina ou heparinoides na amostra).

Uma vez respeitadas as condições ótimas para que a hemostasia se realize (temperatura, pH sanguíneo e níveis séricos de cálcio normais), e feito o diagnóstico clínico de coagulopatia por meio da avalição do campo cirúrgico, podemos utilizar um método viscoelástico para guiar a reposição de fatores da coagulação ou plaquetas.

MÉTODOS VISCOELÁSTICOS NO TRANSPLANTE HEPÁTICO

Após o transplante, taxas aumentadas de infecção e trombose de artéria hepática têm sido relacionadas à transfusão de hemácias. Todos os hemocomponentes (crioprecipitado, plasma fresco congelado e plaquetas) demonstraram impacto negativo na sobrevida do enxerto em 1 e 5 anos. Ainda, a transfusão de crioprecipitado, plasma fresco congelado e/ou de plaquetas está associada à lesão pulmonar aguda induzida pela transfusão.(88. Vlaar AP, Juffermans NP. Transfusion related acute lung injury: a clinical review. Lancet. 2013;382(9896):984-94. Review.)

Os exames de coagulação convencionais não refletem o real estado hemostático do paciente cirrótico, ao contrário dos testes viscoelásticos, que avaliam o status hemostático real destes pacientes. Como limitação, o ROTEM® é realizado com o sangue fora do endotélio e na ausência de fluxo, não havendo suporte para admitir que um resultado anormal signifique coagulopatia no paciente que não apresenta sangramento evidente.(99. Hartmann M, Szalai C, Saner FH. Hemostasis in liver transplantation: pathophysiology, monitoring, and treatment. World J Gastroenterol. 2016; 22(4):1541-50. Review.)

Desta forma, o ROTEM® tem sido usado como guia de reposição de hemocomponentes nos pacientes que apresentam sinais de coagulopatia com sangramento não cirúrgico, desde que temperatura, pH sanguíneo e cálcio sérico estejam dentro das faixas normais de valores.(22. Kozek-Langenecker S. Management of massive operative blood loss. Minerva Anestesiol. 2007;73(7-8):401-15. Review.) O ROTEM® mostrou-se promissor na avaliação e no tratamento de estados de hipercoagulação e hipocoagulação com sangramento em cirurgias de grande porte, como o transplante hepático.(1010. Clevenger B, Mallett SV. Transfusion and coagulation management in liver transplantation. World J Gastroenterol. 2014;20(20):6146-58. Review.)

CONCLUSÃO

O tromboelastograma e a tromboelastometria rotacional acrescentam valiosa informação em tempo real no manejo da coagulopatia perioperatória durante as diferentes fases do transplante hepático. Estas informações combinadas com os testes tradicionais e uma avaliação objetiva do campo cirúrgico promovem um cenário ótimo para guiar as estratégias transfusionais e potencialmente melhorar os desfechos dos pacientes. Estudos futuros devem mostrar os parâmetros adequados a serem avaliados, bem como os gatilhos transfusionais a serem utilizados de forma a garantir o melhor manejo destes pacientes no perioperatório.

REFERENCES

  • 1
    Society of Thoracic Surgeons Blood Conservation Guideline Task Force, Ferraris VA, Ferraris SP, Saha SP, Hessel EA 2nd, Haan CK, Royston BD, Bridges CR, Higgins RS, Despotis G, Brown JR; Society of Cardiovascular Anesthesiologists Special Task Force on Blood Transfusion., Spiess BD, Shore-Lesserson L, Stafford-Smith M, Mazer CD, Bennett-Guerrero E, Hill SE, Body S. Perioperative blood transfusion and blood conservation in cardiac surgery: the Society of Thoracic Surgeons and The Society of Cardiovascular Anesthesiologists clinical practice guideline. Ann Thorac Surg. 2007;83(5 Suppl):S27-86. Review.
  • 2
    Kozek-Langenecker S. Management of massive operative blood loss. Minerva Anestesiol. 2007;73(7-8):401-15. Review.
  • 3
    Schöchl H, Nienaber U, Hofer G, Voelckel W, Jambor C, Scharbert G, et al. Goal-directed coagulation management of major trauma patients using thromboelastometry (ROTEM) – guided administration of fibrinogen concentrate and prothrombin complex concentrate. Crit Care. 2010;14(2):R55.
  • 4
    Tripodi A, Mannucci PM. The coagulopathy of chronic liver disease. N Engl J Med. 2011;365(2):147-56. Review.
  • 5
    De Caterina M, Tarantino G, Farina C, Arena A, di Maro G, Esposito P, et al. Haemostasis unbalance in pugh-scored liver cirrhosis: characteristic changes of plasma levels of protein C versus protein S. Haemostasis. 1993; 23(4):229-35.
  • 6
    Tripodi A, Primignani M, Chantarangkul V, Dell’Era A, Clerici M, de Franchis R, et al. An imbalance of pro- vs anti-coagulation factors in plasma from patients with cirrhosis. Gastroenterology. 2009;137(6):2105-11.
  • 7
    Luddington RJ. Thrombelastography/thromboelastometry. Clin Lab Haematol. 2005;27(2):81-90. Review.
  • 8
    Vlaar AP, Juffermans NP. Transfusion related acute lung injury: a clinical review. Lancet. 2013;382(9896):984-94. Review.
  • 9
    Hartmann M, Szalai C, Saner FH. Hemostasis in liver transplantation: pathophysiology, monitoring, and treatment. World J Gastroenterol. 2016; 22(4):1541-50. Review.
  • 10
    Clevenger B, Mallett SV. Transfusion and coagulation management in liver transplantation. World J Gastroenterol. 2014;20(20):6146-58. Review.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2017
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2016
  • Aceito
    13 Jan 2017
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br