Acessibilidade / Reportar erro

Dissecando as evidências científicas atuais

A evidência científica tornou-se a base de segurança para as escolhas diagnósticas e terapêuticas que realizamos em nossos pacientes. Não há dúvida de que os avanços metodológicos nas pesquisas tornam a prática clínica muito mais confiável, e quanto mais controlado o estudo, maior a confiabilidade de seus resultados. O pesquisador é o personagem idôneo, observador neutro e que não deve pender à confirmação ou à refutação da hipótese, e que busca elucidação dos fenômenos observados. Esse é o comportamento ético esperado. Contudo, é preciso esclarecer a prática clínica tendo em vista o que se considera avanço científico, bem como as implicações da utilização de populações amostrais na abordagem do indivíduo que tem dor.

Embora o senso comum geral e profissional considere que a ciência busca a verdade, essa não é uma ideia endossada pelas correntes científicas do último século. A propósito, a partir do momento em que a percepção da realidade é condicionada a um eu subjetivo, a partir de Descartes, e que nada mais podemos avaliar do que aparências cujas descobertas se referem a elas mesmas e não à suposta realidade inacessível, como em Kant, é natural a compreensão de que verdade científica não nos é acessível, tornando o desenvolvimento científico um consenso acerca de teorias que são substituídas de tempos em tempos por uma espécie de revolução (Thomas Kuhn). Assim, a evidência não é uma verdade sobre os fatos, mas uma teoria sobre a aparência, aguardando a próxima proposta revolucionária.

Também no último século o positivismo foi um dos fatores que promoveu o forte desenvolvimento tecnológico, apesar de restringir os aspectos que podem ser estudados pela ciência ou não. É possível abordar os fatores psíquicos e espirituais de uma forma científica; mas na prática o que se observa nos consensos internacionais e nos congressos mundialmente reconhecidos é a valorização dos aspectos materialistas e reducionistas até mesmo na abordagem emocional da dor, o que a tornou apenas um comportamento e nada mais. Assim, evoluímos muito sobre o que sabemos sobre as aparências dos fenômenos, mas há fatores considerados inacessíveis que são determinantes nos doentes com dor e que precisam ser aceitos como problemas de pesquisa para o avanço no conhecimento real do que ocorre nos indivíduos.

Necessário é entender o paciente, para tratá-lo de forma individualizada. Entretanto, as pesquisas de maior valor científico são aquelas cujas amostras são maiores, resultando em dados significativos, porém genéricos e nem sempre generalizáveis. Para isso, o cientista precisa utilizar critérios de inclusão e exclusão que tornam aquele grupo pouco representativo da população geral, ou as amostras se tornam mais realísticas quanto poucos forem esses critérios embora a compreensão das associações observadas se complique a tal ponto de colocar em dúvida o achado observado, recorrendo-se então à lógica como recurso. Assim, muito podemos saber de forma generalizada sobre as aparências do que observamos, mas estamos cada vez mais distantes do indivíduo único, singular combinação que se apresenta no consultório.

Discorre-se sobre evidências, e os leitores precisam saber o que elas representam de fato na atualidade. Na prática, muitos caem na crença dogmática das evidências publicadas, que podem ou não ser aceitas no futuro e que poderão muito em breve ser substituídas por alguma outra novidade. Esses cientistas das evidências não são céticos, muito pelo contrário. Permanecem céticos apenas aos conteúdos cuja filosofia materialista reducionista não permite investigar, um reforço retórico e lógico analítico distanciado do fenômeno em si.

Mais além, se o método é idôneo e a hipótese pode ser refutada, como explicar a diferença estatística fortemente significativa entre artigos publicados com resultados positivos (que comprovaram a hipótese) em comparação com a baixíssima frequência de artigos que possuem resultados negativos (que refutaram a hipótese)? O que vemos na prática é o desinteresse das revistas científicas quando os resultados não são os esperados, além da resistência perante resultados de metodologia impecável embora inovadores, o que torna os dados que denominamos evidência científica dignos de uma abordagem metodológica por si mesmos para compreender esses vieses.

O estudo do fenômeno álgico é um campo científico que tem ousado revolucionar essas barreiras ao trazer questões como qualidade de vida, emoções e terapias alternativas para a pesquisa e a evidência. É possível produzir estudos de boa qualidade nessas áreas que permitirão acrescentar conhecimento e benefício clínico futuro.

Silvia Regina Dowgan Tesseroli de Siqueira
Professora Associada, Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo; Coeditora Revista Dor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 cj 2, 04014-012 São Paulo SP Brasil, Tel.: (55 11) 5904 3959, Fax: (55 11) 5904 2881 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br