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Uma nova estratégia para o ensino de física nuclear e radioatividade para o novo ensino médio: auto aprendizagem guiada por aplicativo web

A new strategy for teaching nuclear physics and radioactivity for the new high school: web application guided self-learning

Resumos

O novo ensino médio permite ao estudante, num currículo de vários tópicos, que escolha a área de ciência e tecnologia, onde estão presentes habilidades sobre radiações/radioatividade. Trata-se de um tema que envolve diversas aplicações para a sociedade, como para a área médica, onde é possível diagnosticar e tratar doenças, bem como aplicações industriais e a produção de energia elétrica livre da emissão de gases estufa. No entanto, a forma como a radiação ionizante tem sido tratada pela mídia tende a afastar o jovem estudante do ensino médio dessa área da ciência. Devido à importância do tema, este trabalho traz uma proposta alternativa para o novo ensino médio, onde o ensino vai se dar de uma forma crítica, relativamente aprofundada e não tendenciosa. O material pode ser acessado online através do link https://sites.google.com/unicamp.br/radschool/.

Palavras-chave:
Aplicativo web de ensino; novo ensino médio; física das radiações


The new high school allows the student, in a curriculum of various topics, to choose the area of science and technology, where skills on radiation/radioactivity are present. It is an issue that involves several applications for society, such as for the medical area, where it is possible to diagnose and treat diseases, as well as industrial applications and the production of electricity free from the emission of greenhouse gases. However, the way in which ionizing radiation has been treated by the media tends to drive young high school students away from this area of science. Due to the importance of the theme, this work presents an alternative proposal for the new high school, where teaching will take place in a critical, relatively in-depth and non-biased way. The material can be accessed through the link https://sites.google.com/unicamp.br/radschool/.

Keywords
Web application teaching; new high school; radiation physics


1. Introdução

A estrutura do ensino médio nacional foi remodelada tendo em vista a Lei nº 13.415/2017 [11. BRASIL. Lei nº 13.415/2017, de 13 de fevereiro de 2017, Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm, acessado em 17/07/2021.
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] que alterou, significativamente, a Lei nº 9.394/1996, que estabelecia a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No “novo ensino médio”, o tempo de permanência dos estudantes na escola foi ampliado de 800 horas [22. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm, acessado em 19/07/2021.
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] para 1000 horas anuais (até 2022) e a organização curricular foi redefinida, tornando-se mais flexível. Essa reestruturação é composta por uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por cinco itinerários formativos, que poderão ser escolhidos pelos estudantes [11. BRASIL. Lei nº 13.415/2017, de 13 de fevereiro de 2017, Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm, acessado em 17/07/2021.
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], sendo:

  1. Linguagens e suas tecnologias;

  2. Matemática e suas tecnologias;

  3. Ciências da natureza e suas tecnologias;

  4. Ciências humanas e sociais aplicadas;

  5. Formação técnica e profissional.

Conforme a Lei nº 13.415/2017, os itinerários formativos [11. BRASIL. Lei nº 13.415/2017, de 13 de fevereiro de 2017, Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm, acessado em 17/07/2021.
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]:

“(…) deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”.

O arranjo curricular de física, compreendido no itinerário formativo III, engloba, entre outros aspectos, habilidades essenciais que envolvem radiações ionizantes, como mostrado na Tabela 1:

Tabela 1:
Habilidades essenciais do itinerário formativo de ciências da natureza e suas tecnologias que envolvem radiações/ radioatividade [33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
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, 44. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Ciências da Natureza e suas Tecnologias 2020–2021. São Paulo, 2020., 55. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Física 2020–2021. São Paulo, 2020.].

Segundo o psicólogo educacional Gérard Vergnaud, o desenvolvimento cognitivo começa com a construção gradual de conceitos sobre o conteúdo a ser aprendido [66. G. Vergnaud, Récherche en Didactique des Mathématiques 10, 133 (1990)., 77. M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 43, 2 (2021).]. Para a construção dos conceitos de radiação e radioatividade, são necessários alguns conhecimentos prévios de física moderna/contemporânea, um tema abordado, frequentemente, de maneira superficial [88. T.C.F. Marques, T.C. Martins, A. L. F. Novais, L.M. Gomes, C.M.M. Paschoal, C.S. Fernandes e F.C.L. Ferreira, Scientia Plena 15, 7 (2019).] por professores em sala de aula e que os alunos acabam conhecendo, muitas vezes, através da mídia [99. G.R. Pereira, M.V.B. Filho, M.A. Neves, in: VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Florianópolis, 2009), p. 6.]. Esse conjunto de fatores, associado à ênfase que a mídia dá a eventos negativos relacionados à radioatividade, como as bombas de Hiroshima e Nagasaki e os acidentes de Chernobyl e Fukushima, acaba gerando nos estudantes uma “radiofobia”, isto é, um medo exagerado de radiação e dos seus efeitos. Tal efeito pode ser notado através da nuvem de palavras mostrada na Fig. 1.

Figura 1:
Nuvem de palavras criada após pesquisa anônima com estudantes de diversas escolaridades sobre qual sentimento é despertado neles pela palavra “radioatividade”.

Como consequência, a radiofobia pode induzir comportamentos mais prejudiciais à saúde do que os efeitos da radiação em si [1010. D. Ropeik, Bulletin of the Atomic Scientists 72, 5 (2016).]. Como exemplo desse comportamento está a recusa à realização de um exame diagnóstico com raios X. Além disso, a radiofobia pode dificultar a adesão do aluno à habilidade EF09CI18, que discute, já no primeiro bimestre do novo ensino médio, as radiações e suas aplicações na saúde [55. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Física 2020–2021. São Paulo, 2020.]. Um ponto fundamental ao desenvolver essa habilidade é o entendimento de que as radiações podem tanto ser benéficas, se aplicadas em doses apropriadas, ou prejudiciais se aplicadas em excesso. Por isso, é importante conhecer os seus efeitos sobre a saúde para que se possa diferenciar entre uma e outra. Sua utilização de forma indiscriminada pode ser prejudicial à saúde das pessoas, até mesmo pelo excesso de exames diagnósticos simples [1111. A. Ruano-Ravino e R. Wakeford, Epidemiology 31, 2 (2020).]. Por exemplo, alguns profissionais de áreas de saúde, como odontologia, solicitam exames de imagem de raios X sem considerar o risco-benefício da radiação [1212. M. Cohnen, J. Kemper, O. Möbes, J. Pawelzik e U. Mödder, European radiology 12, 3 (2002).]. Esse uso excessivo acaba por contrariar um princípio de segurança radiológica, em que as doses de radiação devem ser tão baixas quanto razoavelmente exequíveis.

O desconhecimento da radiação leva a dois comportamentos extremos, e ambos equivocados. De um lado, a radiofobia gerada pela forma sensacionalista e parcial como os meios midiáticos levam este tema ao público em geral. De outro, o uso excessivo da radiação por alguns profissionais de saúde se dá pelo seu desconhecimento técnico sobre os efeitos da radiação. Isso mostra que, para o ensino dessas habilidades no novo ensino médio, é necessária uma abordagem crítica, que construa corretamente os conceitos que envolvem radioatividade e radiações. Tal abordagem não está presente nos livros didáticos mais utilizados [1313. L.M. Darroz, C.T.W. Rosa e J.C. Silva, Revista de Educação, Ciências e Matemática 7, 3 (2017).], o que traz a necessidade de um material novo sem os vícios citados. Este trabalho propõe um material teórico-prático, para o novo ensino médio, que visa auxiliar os alunos e os professores das redes públicas de ensino, no tópico sobre radiações.

2. Materiais e Métodos

Para a produção de conteúdo, optou-se pela plataforma google sites na forma de um aplicativo web para se adequar ao perfil do estudante do novo ensino médio. O termo “nativo-digital” foi cunhado por Marc Prensky, especialista em tecnologia e educação da Universidade de Yale, e se refere justamente a esse perfil: alunos que nascem em um mundo imerso em tecnologia e mídias digitais [1414. M. Prensky, Educational leadership 63, 4 (2005).].

A metodologia adotada foi a dos três momentos pedagógicos (3MP) [1515. D. Delizoicov, J.A.P. Angotti, M.M. Pernambuco, Ensino de ciências: fundamentos e métodos (Cortez, São Paulo, 2002).], que propõe a construção do conhecimento através da implementação de três etapas. A primeira etapa consiste no momento pedagógico da problematização inicial (PI). Aqui são apresentadas questões envolvidas no tema em estudo, sob a forma de problema no contexto que os alunos vivenciam. Os alunos são desafiados a expor o que pensam sobre o problema para que o professor possa guiar a discussão. Esse momento permite que os estudantes sintam curiosidade ou até mesmo a necessidade de adquirir conhecimentos que ainda não possuem. O segundo momento é conhecido como organização do conhecimento (OC) e consiste no estudo sistemático do conteúdo. Nessa etapa são desenvolvidos conceitos, definições e relações, a fim de instruir os alunos a perceberem a existência de novas explicações para as situações problematizadas. O terceiro e último momento pedagógico é a aplicação do conhecimento (AC), onde a problemática inicial é retomada e discutida com a finalidade de exercitar os conceitos desenvolvidos na etapa anterior. Nesta etapa também podem ser apresentados novos problemas, a fim de que o estudante aplique os conceitos aprendidos [1616. P. Freire, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (Paz e Terra, São Paulo, 2007).].

A metodologia 3MP é combinada com a abordagem freiriana, através da qual se busca associar o conceito a ser ensinado a um elemento histórico, social ou cultural ligado à realidade do estudante [1616. P. Freire, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (Paz e Terra, São Paulo, 2007).]. Isso solidifica o aprendizado, uma vez que aproxima o conceito da realidade do estudante.

3. Resultados e Discussões

A problematização inicial (PI) é global e aborda justamente a questão da radiofobia. O estudante assiste a um vídeo da banda eletrônica Kraftwerk, onde é tocada a música “Radioactivity” e é perguntado sobre qual o sentimento que ele associa ao ouvir/ler o termo “radioatividade”. Em seguida, o conceito de radiofobia é abordado, inclusive exemplificado com elementos da mídia [88. T.C.F. Marques, T.C. Martins, A. L. F. Novais, L.M. Gomes, C.M.M. Paschoal, C.S. Fernandes e F.C.L. Ferreira, Scientia Plena 15, 7 (2019).].

O conhecimento é organizado a partir da PI através de quatro seções chamadas de “trilhas de aprendizagem”. Três delas são teóricas e abordam o contexto histórico, conceitos de radiação e de física nuclear. A última é uma parte prática com vídeos de experimentos gravados e um simulador de detector Geiger. Cada uma das seções é dividida em subseções abordando temas de forma fracionada. Foram adotados elementos da abordagem freiriana ao atrelar alguns conceitos a elementos culturais mais próximos do público. Trata-se de elementos da cultura nerd/geek, envolvendo principalmente, conteúdos de ficção científica amplamente conhecidos, como “Star Wars”, “Os Vingadores” e “Godzilla”.

A aplicação do conhecimento (AC) é feita ao final de cada seção, onde é apresentado um quiz com algumas questões pertinentes. As perguntas são apresentadas em um ambiente com elementos de gamificação, isto é, com elementos de jogos digitais (games) [1717. M.L. Fardo, Renote 11, 1 (2013).] com a finalidade de motivar os alunos [1818. K.M. Kapp, The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education (John Wiley & Sons, San Francisco, 2012).]. O principal elemento utilizado como estratégia de motivação é o sistema de ranking e recompensas após a conclusão das perguntas. A metodologia 3MP é aplicada conforme mostrado no diagrama da Fig. 2.

Figura 2:
Diagrama geral de aplicação da metodologia 3MP ao conteúdo do aplicativo.

Além disso, são apresentadas sugestões ao professor de como o material pode ser aproveitado em sala de aula, destacando as habilidades do novo ensino médio que o conteúdo da seção pode cobrir.

3.1. Trilha de Aprendizagem 1: introdução histórica

A primeira trilha de aprendizagem é dividida em três subseções focadas no desenvolvimento histórico dos conceitos de radioatividade/radiações, como mostrado na Tabela 2. A primeira subseção traz uma linha do tempo, desde o descobrimento da radioatividade por Becquerel em 1895 até o uso bélico durante a Segunda Guerra Mundial e a possibilidade de obtenção de energia.

Tabela 2:
Quadro resumo da “Trilha de Aprendizagem: Introdução Histórica”. São mostradas as subseções, os quiz e as habilidades da BNCC que podem ser auxiliadas pelo conteúdo da trilha.

Essa trilha foi elaborada para auxiliar no aprendizado da habilidade EF09CI18, do primeiro bimestre do currículo de física, onde o objetivo é investigar “como as ciências e a tecnologia influenciam o modo de vida das pessoas quanto ao acesso, transmissão, captação e distribuição de informações” [55. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Física 2020–2021. São Paulo, 2020.]. O objeto da investigação trazido pelo aplicativo é o uso indiscriminado de elementos radioativos como o rádio (descoberto pela madame Curie em 1896). Aqui a natureza dicotômica da radiação pode ser mostrada aos alunos uma vez que ao mesmo tempo, eles estudam registros de uma sociedade fascinada pelas radiações e são apresentados aos seus efeitos. Um caso usado para mostrar essa dualidade é apresentado na terceira subseção, que trata do caso das “Radium Girls” moças que trabalhavam para fábricas pintando os mostradores de relógios com tintas de rádio. Os perigos do rádio já eram conhecidos nessa época e não foram comunicados às moças. Elas trabalhavam sem equipamentos de segurança individuais (aventais plumbíferos e óculos), além de serem instruídas a afinarem os pincéis com a boca. O resultado foi uma série de casos de envenenamento por rádio pelas funcionárias, que acabavam morrendo. Tais relatos mostram a importância do uso consciente das radiações, e dão ao estudante uma noção do problema sem envolver nenhuma consideração matemática.

3.2. Trilha de Aprendizagem 2: radiações

A segunda trilha de aprendizagem aborda o tema radiação. Ela é dividida em cinco subseções e foi desenvolvida para cobrir as habilidades da BNCC mostradas na Tabela 3.

Tabela 3:
Quadro resumo da “Trilha de Aprendizagem: Radiações”. São mostradas as subseções, os quiz e as habilidades da BNCC que podem ser auxiliadas pelo conteúdo da trilha [33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
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, 44. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Ciências da Natureza e suas Tecnologias 2020–2021. São Paulo, 2020.].

A construção do conhecimento sobre radiação é feita a partir de conceitos, conforme sugere Vergnaud [66. G. Vergnaud, Récherche en Didactique des Mathématiques 10, 133 (1990).]. São usados conceitos básicos mais intuitivos para os alunos, como tempo, massa, velocidade e energia cinética, também compreendidos nas habilidades EM13CNT101 e EM13CNT204. A partir desses conceitos mais básicos, a primeira subseção traz a definição de radiação, bem como suas formas de ocorrência: radiação ondulatória (isto é, ondas eletromagnéticas como raios X e raios gama) e radiação corpuscular (como partículas alfa, elétrons, prótons e nêutrons).

A segunda subseção da trilha, de nome “Radiação faz mal?”, traz o conceito de radiação ionizante em uma abordagem interdisciplinar. A interdisciplinaridade é importante e, segundo Darroz, costuma ser tratada de maneira parcial ou até mesmo superficial pelos livros didáticos de ensino de física nuclear para ensino médio [11. BRASIL. Lei nº 13.415/2017, de 13 de fevereiro de 2017, Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm, acessado em 17/07/2021.
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, 33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
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]. A partir da definição de ionização é possível desenvolver, além das habilidades essenciais de física, algumas habilidades essenciais de química e biologia. A tabela periódica dos elementos é apresentada para discutir brevemente a propriedade “energia de ionização”. Aqui o estudante pode entender como átomos diferentes (inclusive os átomos das moléculas do corpo humano) possuem energias de ionização diferentes. Isso é usado em seguida para desenvolver, de modo parcial, a habilidade EM13CNT103 de biologia, referente aos danos biológicos das radiações ionizantes. Aqui, apresenta-se a constituição química da molécula de DNA e como a ionização ocorre no meio intracelular, através dos efeitos direto e indireto.

A terceira subseção tem o objetivo de introduzir aos alunos uma cultura de segurança, através dos critérios de proteção radiológica. Essa seção é fundamental para desenvolver o pensamento crítico na construção de elementos para avaliar desinformações. É fundamental ressaltar que a existência de risco pela radiação não é negada ou minimizada. O risco também é explicado, juntamente com exemplos de que é possível conviver de maneira segura com as radiações.

A quarta subseção trata das aplicações de radiação. Ela pode ajudar no desenvolvimento da habilidade EM13CNT103, que visa mostrar ao estudante, a partir do conhecimento sobre as radiações e suas origens, como avaliar as potencialidades e os riscos de sua aplicação em equipamentos de uso cotidiano na saúde, no ambiente, na indústria, na agricultura e na geração de energia elétrica. A produção de energia é enfatizada e são mostradas vantagens e desvantagens da energia nuclear em relação às demais fontes de energia, como hidrelétrica, eólica e termelétrica (discutidas também na habilidade EM13CNT106) [33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
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].

A última subseção, “RadMarketing”, retoma a habilidade EF09CI18 trazendo exemplos de produtos com materiais radioativos que já foram vendidos. Esses produtos são usados para reforçar os conceitos de proteção radiológica, dando ao aluno argumentos para que ele avalie criticamente se o uso de determinado produto é conveniente ou não. Espera-se com isso dar uma sólida base crítica ao aluno sobre o uso inadequado das radiações.

3.3. Trilha de Aprendizagem 3: física nuclear

A última trilha de aprendizagem teórica aborda alguns conceitos de física nuclear e foi estruturada, em cinco subseções, para cobrir as habilidades da BNCC conforme mostra a Tabela 4.

Tabela 4:
Quadro resumo da “Trilha de Aprendizagem: Física nuclear”. São mostradas as subseções, os quiz e as habilidades da BNCC que podem ser auxiliadas pelo conteúdo da trilha [33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
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, 44. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Ciências da Natureza e suas Tecnologias 2020–2021. São Paulo, 2020.].

A primeira subseção traz todo o desenvolvimento da teoria dos modelos atômicos do modelo de Demócrito até a quantização de Bohr. A seção destaca as principais alterações de um modelo para o outro, compreendendo o conteúdo da habilidade EM13CNT201 que, embora seja da disciplina de química, fornece uma base para o desenvolvimento da física nuclear.

A segunda subseção foca no núcleo atômico e na razão pela qual alguns núcleos são instáveis. Aqui é possível desenvolver a habilidade EM13CNT209, uma vez que o modelo padrão é introduzido, bem como partículas elementares tais como quarks e glúons. A força nuclear forte é comparada com a força elétrica (habilidade EM13CNT107) para explicar, de forma intuitiva, a instabilidade nuclear.

Os decaimentos radioativos, objeto de estudo da habilidade EM13CNT304, são explicados na terceira subseção. Nela são mostrados os decaimentos alfa, beta (mais e menos) e gama, bem como a fissão nuclear induzida. Esta seção foca na explicação da fissão nuclear (desenvolvida pelas habilidades EM13CNT104 e EM13CNT209), explica adicionalmente o funcionamento de um reator nuclear e também relata o acidente nuclear de Chernobyl em 1986 (habilidade EM13CNT306). As causas do acidente são detalhadas para que o estudante possa se posicionar frente a algum conteúdo midiático sobre acidentes nucleares.

A quarta subseção apresenta a lei do decaimento radioativo, através do desenvolvimento da equação a partir do cenário do crescimento populacional e de conceitos de logaritmo. Embora esse conteúdo corresponda à habilidade EM13MAT305 do currículo de matemática, ele emerge de uma situação física: o decaimento de um núcleo radioativo. Essa abordagem é muito presente nos famosos “Lectures on Physics” de Richard Feynman. A noção de matemática como pré-requisito para a física é evitada sempre que possível [1919. R. Karam, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, 3 (2018).], de modo a aproximar o estudante do conteúdo.

Por fim, a quinta e última subseção apresenta os conceitos de meia vida, vida média e atividade. Esses conceitos são usados para explicar o acidente radioativo de Goiânia em 1987, e a questão dos resíduos das usinas nucleares. Além dos acidentes nucleares, os resíduos radioativos são frequentemente abordados pela mídia quando se discute o assunto energia nuclear. Por esse motivo, também são apresentadas alternativas para o “tratamento” do resíduo nuclear, de modo que o estudante não se limite aos velhos argumentos.

3.4. Parte prática: detector Geiger

A última trilha de aprendizagem mostra uma parte prática que foi estruturada para dar ao aluno uma primeira intuição do que são medidas de radiação em um laboratório de ensino. A estrutura da trilha, seu número de subseções e as habilidades da BNCC que ela auxilia são mostradas na Tabela 5.

Tabela 5:
Quadro resumo da “Trilha de Aprendizagem: Detector Geiger”. São mostradas as subseções, os quiz e as habilidades da BNCC que podem ser auxiliadas pelo conteúdo da trilha [33. SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. Brasília, 2020. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/2020/08/CURR%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf.
https://efape.educacao.sp.gov.br/curricu...
, 44. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Ciências da Natureza e suas Tecnologias 2020–2021. São Paulo, 2020.].

A primeira subseção explica o funcionamento de um detector Geiger, a partir dos conceitos de ionização já apresentados nas demais trilhas. Essa subseção também contribui com a habilidade EM13CNT107, do quarto bimestre do primeiro ano, que trata, entre outros conteúdos, da “corrente elétrica, resistores, equipamentos de medição elétrica e circuitos elétricos” [44. SÃO PAULO. Habilidades Essenciais de Ciências da Natureza e suas Tecnologias 2020–2021. São Paulo, 2020.].

A segunda subseção apresenta um experimento guiado, onde são realizadas algumas medidas de radiação com um detector Geiger, gravadas no laboratório do grupo de Cronologia, no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O experimento consiste em realizar a leitura de uma fonte de radiação natural (apatita) com e sem atenuadores de alumínio. O objetivo é mostrar que o Geiger não consegue identificar a natureza das radiações (partícula alfa, partícula beta ou raio gama). Cada etapa do experimento é explicada em detalhe e aspectos estatísticos das medidas também são comentados.

A última subseção apresenta um simulador de detector Geiger, escrito em Javascript (Fig. 3). Considerando que o decaimento radioativo segue a distribuição de Poisson, é possível simular a detecção a partir da escolha de um valor de meia-vida para um tempo de contagem variado. O simulador apresenta três modos de leitura: dois modos automáticos de 10 e 30 segundos e um modo manual, sem limite de tempo. Esses modos podem ser aplicados à leitura de três atividades pré-programadas, que funcionam como três fontes radioativas diferentes:

Figura 3:
Tela do simulador Geiger; (1): cronômetro; (2): contagens [s]; (3) taxa de dose [uSv/h]; (4): modos de leitura; (5) fonte de radiação.
  • Radiação de fundo;

  • Atividade 10 vezes maior que a radiação de fundo;

  • Atividade 40 vezes maior que a radiação de fundo;

Um experimento simples consiste em comparar o número de contagens de cada fonte para um mesmo tempo. É possível, para uma mesma fonte, repetir uma leitura várias vezes. Isso permite desenvolver conceitos de estatística, como medidas de tendência central que fazem parte das habilidades (EM13MAT101, EM13MAT102, EM13MAT103 e EM13MAT106). Com os valores obtidos, o aluno pode plotar o gráfico, de modo a ser possível e introduzir a distribuição estatística de Poisson.

4. Conclusões

Este trabalho apresenta um aplicativo web para auxiliar alunos e professores a se adequarem ao conteúdo de radiações da BNCC. A escolha da ferramenta baseou-se no perfil dos alunos e na acessibilidade. Conforme Prensky, os alunos do novo ensino médio são “nativos-digitais”, e precisam de um material que esteja imerso em sua realidade digital [1515. D. Delizoicov, J.A.P. Angotti, M.M. Pernambuco, Ensino de ciências: fundamentos e métodos (Cortez, São Paulo, 2002).]. A acessibilidade é importante para que o material seja amplamente difundido. A plataforma escolhida para o desenvolvimento do aplicativo web foi o Google sites, de modo que não é necessário nenhum requisito de sistema para o acesso ao conteúdo, basta apenas um dispositivo móvel (smartphone, computador ou tablet), com acesso à internet.

O conteúdo inclui diversas habilidades da BNCC, abordando diversas vertentes do tema de radiações, das disciplinas de física, química, biologia e até mesmo matemática. O aplicativo pode ser usado como um guia de aula para os professores bem como um material de apoio para os estudantes. O uso do aplicativo se adequa também à modalidade de ensino-híbrido (presencial/online) e pode ser aplicado como base para elaboração de trabalhos, sejam de caráter individual ou em grupo pelos estudantes.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2021
  • Aceito
    20 Set 2021
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