Acessibilidade / Reportar erro

Pneumoconiose mista a silicatos e metais duros associada à síndrome de Sjögren primária relacionada com a sílica

Ao Editor:

Descrevemos aqui o caso de um homem de 75 anos que apresentava queixas de dispneia de esforço progressiva (grau II/III pela escala modified Medical Research Council) e tosse seca persistente ao longo dos últimos três anos. Havia trabalhado durante 35 anos como soldador profissional, realizando solda de ligas metálicas, polimento das peças soldadas com jateamento de areia e granalha de aço e prática regular de isolamento de utensílios fixos com fibras de amianto.

Orientado na esfera de cuidados primários durante o primeiro ano, veio a desenvolver lesões cutâneas descamativas cíclicas nos membros, com aspecto de liquenificação/descamação, fenômeno de Raynaud, síndrome sicca e perda ponderal de 5 kg. Ao exame físico mostrava-se eupneico, com SpO2 de 95%, apresentando crepitações inspiratórias basais à auscultação e ausência de hipocratismo digital.

A radiografia de tórax evidenciava alterações intersticiais de tipo reticular. A TC torácica demonstrou adenopatias mediastínicas calcificadas em "casca de ovo", reticulação interlobular, bronquiectasias de tração e espessamento de septos, com áreas em padrão de vidro fosco, consolidação alveolar de distribuição peribroncovascular e zonas de espessamento pleural (Figura 1).

Figura 1
Estudo radiológico inicial. Em A, radiografia de tórax com padrão intersticial reticular de predomínio inferior, já denotando alguma perda de volume. Em B-E, TC com aspectos de espessamento septal com bronquiectasias de tração, com pequenas áreas em vidro fosco e consolidação com distribuição peribroncovascular.

O paciente foi submetido a biópsia cutânea, que mostrou alterações de padrão liquenoide sem especificidade apurável. O lavado broncoalveolar (LBA), realizada ao nível do lobo médio (brônquio direito 4a), revelou celularidade total de 130.000 células/mL, com 40% de linfócitos e 16% de neutrófilos, com estudo microbiológico e citopatológico negativos. A imunofenotipagem mostrou predomínio de linfócitos T CD8 (razão CD4/CD8 = 0,68) e de linfócitos B (20%). A fração inorgânica não revelou corpos de asbesto e foi enviada para doseamento de metais duros e silicatos pela técnica de espectrometria de emissão atômica em plasma indutivamente acoplado. Essa pesquisa mostrou níveis elevados de sílica, cobre, cobalto, cromo, rubídio, molibdênio e zinco.

Analiticamente evidenciava hemoglobina de 11,6 g/dL, parâmetros inflamatórios normais, creatinina de 1,0 mg/dL e sedimento urinário inativo. Apresentava uma β2-microglobulina de 6,56 mg/L, enzima de conversão de angiotensina de 127 U/L, hipergamaglobulinemia policlonal IgG e IgA, e presença de anticorpos antinucleares positivos com títulos elevados de anti-SSA60 e anti-SSB. A xeroftalmia foi comprovada por teste de Schirmer (olho direito, 9 mm; olho esquerdo, 7 mm).

Funcionalmente, apresentava um padrão restritivo moderado (índice de Tiffeneau, 80; VEF1, 70,9%; CVF, 66,8%; CPT, 64,6%; e VR, 68,4%) com diminuição moderada da DLCO (51,2% do previsto) e baixa distância percorrida na prova de marcha com dessaturação de 5%.

A biópsia pulmonar cirúrgica evidenciou focos de proliferação fibroblástica, macrófagos de pigmentação antracótica e partículas birrefringentes sugestivas de silicatos, associados a células gigantes multinucleadas ao longo de eixos broncovasculares e septos interlobulares, com descamação macrofágica alveolar e fibrose pleural difusa generalizada (Figura 2).

Figura 2
Fotomicrografias de cortes histológicos de biópsia pulmonar cirúrgica. Em A, infiltrado inflamatório crônico e reação fibrosante septal (H&E; aumento, 40×). Em B, focos fibroblásticos ativos (HHF35; aumento, 100×). Em C, macrófagos com pigmentação antracótica e partículas birrefringentes de sílica, assim como células gigantes multinucleadas ao longo de eixos broncovasculares e septos interlobulares (HPX; aumento, 400×). Em D, infiltrado inflamatório linfocitário com presença de células T (CD3; aumento, 100×). Em E, focos de células B (CD20+) no infiltrado inflamatório crônico (CD20; aumento, 40×). Em F, predomínio de células T de imunofenótipo CD8 (CD8; aumento, 200×).

Foi firmado o diagnóstico de pneumoconiose mista por sílica, metais duros e asbesto, associada à síndrome de Sjögren (SS) primária com possível envolvimento parenquimatoso pulmonar. Iniciou tratamento com prednisolona 0,5 mg/kg em ciclo de quatro meses com melhoria da dispneia de esforço e remissão completa das lesões cutâneas, embora apenas com tênue melhoria radiológica e da DLCO.

O diagnóstico paralelo da SS primária de início tardio, cumprindo os critérios propostos pelo Grupo de Consenso Euro-Americano, pode ser relacionado com o longo período de exposição à sílica, de acordo com alguns raros casos reportados na literatura.( 11. Puisieux F, Hachulla E, Brouillard M, Hatron PY, Devulder B. Silicosis and primary Gougerot-Sjögren syndrome [Article in French]. Rev Med Interne. 1994;15(9):575-9. http://dx.doi.org/10.1016/S0248-8663(05)82502-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0248-8663(05)...

2. Astudillo L, Sailler L, Ecoiffier M, Giron J, Couret B, Arlet-Suau E. Exposure to silica and primary Sjögren's syndrome in a dental technician. Rheumatology (Oxford). 2003;42(10):1268-9. http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg334PMid:14508049
http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/k...
- 33. Kirwan JR. Out-patient workload. Rheumatology (Oxford). 2003;42(10):1269-70. http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg335PMid:14508050
http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/k...
) De fato, a intensa exposição à sílica mostrou poder conduzir ao desenvolvimento de processos autoimunes numa fração dos trabalhadores expostos, designadamente esclerose sistêmica,( 44. Sanchez-Roman J, Wichmann I, Salaberri J, Varela JM, Nu-ez-Roldan A. Multiple clinical and biological autoimmune manifestations in 50 workers after occupational exposure to silica. Ann Rheum Dis. 1993;52(7):534-8. http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534PMid:8394065 PMCid:PMC1005094
http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534...
) artrite reumatoide( 44. Sanchez-Roman J, Wichmann I, Salaberri J, Varela JM, Nu-ez-Roldan A. Multiple clinical and biological autoimmune manifestations in 50 workers after occupational exposure to silica. Ann Rheum Dis. 1993;52(7):534-8. http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534PMid:8394065 PMCid:PMC1005094
http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534...
) e SS primária. (1-4) Nesse contexto, a linfocitose alveolar foi já correlacionada com o envolvimento pulmonar por SS e conotada com prognóstico desfavorável.( 55. Dalavanga YA, Voulgari PV, Georgiadis AN, Leontaridi C, Katsenos S, Vassiliou M, et al. Lymphocytic alveolitis: A surprising index of poor prognosis in patients with primary Sjogren's syndrome. Rheumatol Int. 2006;26(9):799-804. http://dx.doi.org/10.1007/s00296-005-0092-1PMid:16344933
http://dx.doi.org/10.1007/s00296-005-009...
) No caso em consideração, o achado de infiltração linfocitária peribroncovascular com proporção relevante de linfócitos B pode relacionar-se com infiltração parenquimatosa imputável à SS. A exclusão correta de linfoma foi essencial.

O componente pneumoconiótico, expresso radiologicamente por alterações inflamatórias já com comprometimento fibrótico, é manifestado histologicamente pela reação fibroblástica perisseptal e peribroncovascular, assim como pela presença de macrófagos com pigmento antracótico e partículas birrefringentes. Os aspetos encontrados de descamação alveolar e reação de células gigantes constituem os tipicamente observados na doença pulmonar por metais duros.( 66. van den Eeckhout AV, Verbeken E, Demedts M. Pulmonary pathology due to cobalt and hard metals [Article in French]. Rev Mal Respir. 1989;6(3):201-7. PMid:2662276

7. Rüttner JR, Spycher MA, Stolkin I. Inorganic particulates in pneumoconiotic lungs of hard metal grinders. Br J Ind Med. 1987;44(10):657-60. PMid:3676118 PMCid:PMC1007897
- 88. Kelleher P, Pacheco K, Newman LS. Inorganic dust pneumonias: the metal-related parenchymal disorders. Environ Health Perspect. 2000;108 Suppl 4:685-96. PMid:10931787 PMCid:PMC1637664 ) As áreas de fibrose pleural difusa são relacionáveis com a exposição ao asbesto.

A histologia típica da doença parenquimatosa induzida por metais duros corresponde ao padrão de fibrose intersticial com reação de células gigantes e focos de pneumonia intersticial descamativa com ou sem bronquiolite obliterante. ( 66. van den Eeckhout AV, Verbeken E, Demedts M. Pulmonary pathology due to cobalt and hard metals [Article in French]. Rev Mal Respir. 1989;6(3):201-7. PMid:2662276

7. Rüttner JR, Spycher MA, Stolkin I. Inorganic particulates in pneumoconiotic lungs of hard metal grinders. Br J Ind Med. 1987;44(10):657-60. PMid:3676118 PMCid:PMC1007897
- 88. Kelleher P, Pacheco K, Newman LS. Inorganic dust pneumonias: the metal-related parenchymal disorders. Environ Health Perspect. 2000;108 Suppl 4:685-96. PMid:10931787 PMCid:PMC1637664 ) Pontualmente, poderá haver uma disposição sarcoide ou somente um padrão de pneumoconiose do tipo poeira mista.

A análise mineralógica pulmonar é útil na detecção etiológica de partículas em pneumoconioses.(7) No presente caso, a pesquisa de silicatos e metais duros em LBA foi feita recorrendo a espectrometria de emissão atômica em plasma indutivamente acoplado. Esse tipo de informação permite documentar exposições ocupacionais, muitas vezes mistas, várias décadas após o seu término, auxiliando na determinação etiológica de algumas doenças respiratórias ocupacionais.( 99. Dumortier P, De Vuyst P, Yernault JC. Non-fibrous inorganic particles in human bronchoalveolar lavage fluids. Scanning Microsc. 1989;3(4):1207-16; discussion 1217-8. PMid:2561220 ) Apesar de a análise direta em biópsia/necropsia pulmonar constituir o indicador mais direto para estudos de acumulação de partículas, o LBA apresenta maior simplicidade e boa concordância para com os resultados obtidos de tecido.(9) A biópsia torna-se, contudo, indispensável em casos que imponham a distinção com sarcoidose.

Os metais duros de maior aplicação industrial são carbonetos de tungstênio, de molibdênio e de cromo - sendo o cobalto e o níquel elementos de ligação - e podem induzir tanto respostas imunológicas antígeno-específicas no pulmão como respostas imunes inatas caracterizadas por inflamação, frequentemente desencadeadas por lesão oxidativa.(8) Dos elementos detectados a partir de LBA do paciente, tanto a sílica como o cromo, molibdênio, cobalto e zinco foram já associados à fibrose pulmonar ou pneumoconiose. ( 1010. Selden A, Sahle W, Johansson L, Sorenson S, Persson B. Three cases of dental technician's pneumoconiosis related to cobalt-chromium-molybdenum dust exposure. Chest. 1996;109(3):837-42. http://dx.doi.org/10.1378/chest.109.3.837PMid:8617099
http://dx.doi.org/10.1378/chest.109.3.83...
) Sabe-se, porém, que altas concentrações de partículas em tecidos ou fluidos orgânicos indicam exposição relevante mas não obrigatoriamente doença. No entanto, quando enquadradas em circunstâncias de forte exposição e contexto clínico, radiológico e histológico sugestivos, como no presente caso, as determinações de metais duros são um elemento valioso no diagnóstico e na compreensão patogênica de pneumoconioses menos habituais.( 77. Rüttner JR, Spycher MA, Stolkin I. Inorganic particulates in pneumoconiotic lungs of hard metal grinders. Br J Ind Med. 1987;44(10):657-60. PMid:3676118 PMCid:PMC1007897 )

Dado o largo contingente de trabalhadores envolvidos, a melhor compreensão das repercussões sobre a função pulmonar induzidas por exposição a fumos de soldadura será importante para o desenvolvimento de melhores estratégias de prevenção.

References

  • 1
    Puisieux F, Hachulla E, Brouillard M, Hatron PY, Devulder B. Silicosis and primary Gougerot-Sjögren syndrome [Article in French]. Rev Med Interne. 1994;15(9):575-9. http://dx.doi.org/10.1016/S0248-8663(05)82502-0
    » http://dx.doi.org/10.1016/S0248-8663(05)82502-0
  • 2
    Astudillo L, Sailler L, Ecoiffier M, Giron J, Couret B, Arlet-Suau E. Exposure to silica and primary Sjögren's syndrome in a dental technician. Rheumatology (Oxford). 2003;42(10):1268-9. http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg334PMid:14508049
    » http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg334
  • 3
    Kirwan JR. Out-patient workload. Rheumatology (Oxford). 2003;42(10):1269-70. http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg335PMid:14508050
    » http://dx.doi.org/10.1093/rheumatology/keg335
  • 4
    Sanchez-Roman J, Wichmann I, Salaberri J, Varela JM, Nu-ez-Roldan A. Multiple clinical and biological autoimmune manifestations in 50 workers after occupational exposure to silica. Ann Rheum Dis. 1993;52(7):534-8. http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534PMid:8394065 PMCid:PMC1005094
    » http://dx.doi.org/10.1136/ard.52.7.534
  • 5
    Dalavanga YA, Voulgari PV, Georgiadis AN, Leontaridi C, Katsenos S, Vassiliou M, et al. Lymphocytic alveolitis: A surprising index of poor prognosis in patients with primary Sjogren's syndrome. Rheumatol Int. 2006;26(9):799-804. http://dx.doi.org/10.1007/s00296-005-0092-1PMid:16344933
    » http://dx.doi.org/10.1007/s00296-005-0092-1
  • 6
    van den Eeckhout AV, Verbeken E, Demedts M. Pulmonary pathology due to cobalt and hard metals [Article in French]. Rev Mal Respir. 1989;6(3):201-7. PMid:2662276
  • 7
    Rüttner JR, Spycher MA, Stolkin I. Inorganic particulates in pneumoconiotic lungs of hard metal grinders. Br J Ind Med. 1987;44(10):657-60. PMid:3676118 PMCid:PMC1007897
  • 8
    Kelleher P, Pacheco K, Newman LS. Inorganic dust pneumonias: the metal-related parenchymal disorders. Environ Health Perspect. 2000;108 Suppl 4:685-96. PMid:10931787 PMCid:PMC1637664
  • 9
    Dumortier P, De Vuyst P, Yernault JC. Non-fibrous inorganic particles in human bronchoalveolar lavage fluids. Scanning Microsc. 1989;3(4):1207-16; discussion 1217-8. PMid:2561220
  • 10
    Selden A, Sahle W, Johansson L, Sorenson S, Persson B. Three cases of dental technician's pneumoconiosis related to cobalt-chromium-molybdenum dust exposure. Chest. 1996;109(3):837-42. http://dx.doi.org/10.1378/chest.109.3.837PMid:8617099
    » http://dx.doi.org/10.1378/chest.109.3.837

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    jan-feb 2014
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia SCS Quadra 1, Bl. K salas 203/204, 70398-900 - Brasília - DF - Brasil, Fone/Fax: 0800 61 6218 ramal 211, (55 61)3245-1030/6218 ramal 211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: jbp@sbpt.org.br