Resumo
O objetivo do presente artigo é verificar a legalidade dos fundamentos jurídicos empregados pelo estado de Roraima na Ação Civil Originária (ACO) n. 3.121, cujos pedidos consistem em “impedir que o fluxo migratório desordenado produza efeitos mais devastadores à sociedade brasileira, em específico no Estado de Roraima” e que a União “feche temporariamente a fronteira Brasil-Venezuela” ou “seja compelida a limitar o ingresso de refugiados venezuelanos”. São analisados os autos do processo, bem como a aplicabilidade dos discursos teórico-dogmáticos empregados, especialmente referências ao pós-positivismo e ao Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). Conclui-se que os pedidos de fechamento das fronteiras e de limitação do número de ingresso de refugiados devem ser julgados improcedentes, por violarem obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil, especialmente aquelas de proteção aos refugiados ( ex vi da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e dos arts. 1º, inciso III, e 7º da Lei n. 9.474/1997). Avalia-se, ainda, que as referências ao pós-positivismo e ao ECI são realizadas de forma retórica, visando legitimar a adoção de uma postura ativista pelo Poder Judiciário. Quanto à metodologia, retrata pesquisa pura, qualitativa e descritiva. O método de abordagem é indutivo crítico, de interpretação sistemática e procedimentos técnicos documentais.
Direitos humanos; Estado de Coisas Inconstitucional; pós-positivismo; refugiados; Supremo Tribunal Federal
Abstract
This paper aims to verify the legality of the legal bases used by the State of Roraima in the Original Civil Action n. 3.121, whose requests consist of “preventing the disordered migratory flow from producing more devastating effects on Brazilian’s society, specifically in the State of Roraima”, and that the Federal Union “temporarily close the Brazil-Venezuela border” or “be compelled to limit the entry of Venezuelan refugees”. The case files are analyzed, as well as the applicability of the theoretical-dogmatic discourses used, especially the references to post-positivism and Unconstitutional State of Fairs. The conclusion is that the requests for closure of borders and limitation of the number of refugees must be dismissed, because they directly violate international human rights obligations committed by Brazil, especially those for the protection of refugees ( ex vi of the Geneva Convention of 1951 concerning to the Status of Refugees and article 1, item III and article 7 of Law n. 9.474/1997). It is also noted that references to post-positivism and Unconstitutional State of Fairs are made rhetorically, to legitimize the adoption of an activist stance by the Judicial Power. Regarding the methodology, it is a pure, qualitative and descriptive research. The approach method is critical inductive, with systematic interpretation and documentary technical procedures.
Human rights; Unconstitutional State of Fairs; post-positivism; refugees; Supreme Federal Court
Introdução
O objetivo do presente artigo é verificar a legalidade dos fundamentos jurídicos empregados pelo estado de Roraima na Ação Civil Originária (ACO) n. 3.121, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), cujo pedido consiste em “impedir que o fluxo migratório desordenado produza efeitos mais devastadores à sociedade brasileira, em específico no Estado de Roraima”, bem como que a União “feche temporariamente a fronteira Brasil-Venezuela” ou “seja compelida a limitar o ingresso de refugiados venezuelanos”.
Frisa-se que foge ao âmbito do presente artigo a análise do cabimento da ação, com fundamento nos dispositivos normativos citados. Importa, ao revés, a análise dos discursos jurídicos, especialmente a referência ao Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), que, como se verá adiante, caracteriza-se como uma situação de ofensa massiva e generalizada a direitos fundamentais, marcada pela omissão das autoridades, a exemplo da não implementação de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a ofensa de tais direitos, sendo tão grave que a solução demandaria a intervenção conjunta de órgãos e/ou entidades governamentais com significativos recursos orçamentários, além do cenário de sobrecarga do Poder Judiciário em razão de ações repetitivas acerca das mesmas violações operadas.
A fim de atingir o objetivo proposto, são estudados os autos do processo em epígrafe, bem como a aplicabilidade dos discursos teórico-dogmáticos empregados para fundamentar a ação. Com efeito, o problema de pesquisa consiste na sustentação e viabilidade dos argumentos do estado de Roraima sob o abrigo da Teoria do ECI para obrigar a União a cumprir o seu papel institucional, restringindo o ingresso de refugiados venezuelanos no Brasil. Parte-se da hipótese de que esse pedido apresentado pelo estado de Roraima não pode ser chancelado pelo Supremo Tribunal Federal, na medida em que vai de encontro com a legislação pátria referente aos refugiados, bem como não restam comprovados os requisitos inerentes à Teoria do ECI.
A justificativa quanto à temática abordada desdobra-se em dois aspectos. Primeiro, em razão da complexidade e da gravidade do problema migratório em todo o mundo. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a população global atual de refugiados é de aproximadamente 26 milhões de pessoas ( ACNUR, 2021ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR). Dados sobre refúgio. ACNUR Brasil , 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/. Acesso em: 20 maio 2021.
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). Trata-se do mais alto nível registrado nas duas últimas décadas. Tem-se que refugiados “[s]ão pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados” ( ACNUR, 2019ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR). Refugiados. ACNUR Brasil , 2019. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/. Acesso em: 31 jan. 2019.
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). Trata-se de definição adotada pela Lei n. 9.474/1997. 1
1
Salienta-se que o presente artigo tem como base fática a intensificação do fluxo migratório no estado de Roraima à época do ajuizamento da ACO n. 3.121, dando ênfase à questão dos refugiados. Todavia, não se desconhece a possibilidade de que imigrantes venezuelanos requeiram visto temporário para acolhida humanitária, nos termos da Lei n. 13.445/2017, e não necessariamente o reconhecimento da situação de refugiados.
De outro lado, a análise da legalidade da ACO n. 3.121 adquire relevância quando se tem notícia de que autoridades públicas defendem o fechamento de fronteiras e a expulsão de venezuelanos. O exame da legalidade desse discurso (confrontando-o com a legislação pátria) afigura-se fundamental, sobretudo quando encontra guarida em determinados setores sociais.
Assim, os objetivos específicos da pesquisa podem ser apresentados a partir da estrutura do artigo: (i) descrever a ACO n. 3.121, especialmente os fatos, as provas carreadas aos autos, as normas jurídicas citadas e os fundamentos jurídicos empregados para requerer o fechamento da fronteira e/ou a limitação da entrada de refugiados venezuelanos; (ii) apresentar os principais elementos caracterizadores do ECI, em especial: (ii.i) a origem histórica e os pressupostos de aplicação; (ii.ii) a recepção dessa teoria no âmbito do Supremo Tribunal Federal, por ocasião da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347 ( BRASIL, 2015BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347. Relator: Ministro Marco Aurélio, 27 maio 2015. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560. Acesso em: 31 jan. 2019.
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); (ii.iii) a pertinência da utilização de referida teoria ao caso concreto; e (iii) avaliar as referências do conceito de pós-positivismo empregado pelo estado de Roraima. Na quarta seção do artigo, um derradeiro objetivo específico consiste em verificar a legalidade dos pedidos da ação, diante das obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil, sobretudo aquelas de proteção aos refugiados, nos termos da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (incorporada internamente pelo Decreto n. 50.215, de 28 de janeiro de 1961), e dos arts. 1º, inciso III, e 7º da Lei n. 9.474/1997.
No que tange à metodologia, quanto à natureza é pesquisa pura, visando à compreensão da aplicabilidade da Teoria do ECI, sem recorrer à verificação empírica. Quanto à abordagem do problema, é estudo qualitativo amparado pela interpretação do conjunto de normas e políticas de proteção aos direitos humanos (em especial, dos refugiados) do qual o Brasil faz parte. Quanto aos fins, foi descritiva ao mapear o conjunto das condições jurídicas nacionais relativamente à Teoria do ECI. O método de abordagem foi o indutivo crítico, que, apesar da fragilidade ínsita do indutivismo, permitiu avaliar e rebater progressivamente as razões da ACO n. 3.121. O método de interpretação foi primordialmente sistemático ao se decifrarem as razões do estado de Roraima perante aspectos elementares do ordenamento jurídico pátrio e diretrizes de documentos internacionais com que o país se comprometeu. Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa privilegiou documentos judiciários (com destaque para os autos da ACO n. 3.121), legislação nacional, internacional e doutrina especializada.
1. Fundamentos jurídicos da Ação Civil Originária n. 3.121 no Supremo Tribunal Federal
Em 13 de abril de 2018, o estado de Roraima ajuizou a Ação Civil Originária n. 3.121. No âmbito da tutela de urgência, requer que a União: (i) atue na área de fronteira Brasil/Venezuela, de modo a impedir que o fluxo migratório desordenado produza efeitos devastadores à sociedade brasileira, bem como promova as medidas administrativas na área de controle policial, saúde e vigilância sanitária; (ii) efetue a imediata transferência de recursos adicionais a fim de suprir os custos suportados pelo estado de Roraima com saúde e educação dos venezuelanos ali estabelecidos; e (iii) feche temporariamente a fronteira Brasil/Venezuela ou limite o ingresso de venezuelanos no país, tendo como parâmetro a capacidade do Estado brasileiro de acolher e prover as necessidades básicas desses estrangeiros. No mérito, requereu a confirmação das tutelas pleiteadas ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Quanto ao cabimento da ação, o estado de Roraima argumentou, com fulcro no art. 102, inciso I, alínea “f”, da Constituição Federal (CF), que a causa apresenta um conflito de interesses substanciais entre as partes, capaz de afetar o vínculo federativo. Aduziu que a situação em análise, decorrente da omissão da União no controle das fronteiras nacionais, teria o condão de “vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege o pacto da Federação”, na medida em que onera indevidamente os demais entes federativos ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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). Reitera-se que ultrapassa o âmbito da pesquisa ora apresentada a análise do cabimento da ação, com fundamento nos dispositivos normativos citados. Importa, ao revés, a análise dos discursos jurídicos, especialmente a referência ao ECI.
Em relação aos fatos que consubstanciam a ação, o estado de Roraima alegou, quando do ajuizamento da ação em 2018, que a crise econômica, política e social que assola a Venezuela ensejou a expansão do fluxo migratório para o Brasil, com a entrada de mais de 50 mil venezuelanos no país por via terrestre. Apresentou, ainda, dados como a intensificação da entrada desordenada de venezuelanos pela cidade de Pacaraima, desde o final de 2015, em razão do suposto déficit operacional da União, bem como o número de venezuelanos estabelecidos em praças e imóveis abandonados na cidade de Boa Vista. Segundo o referido ente federativo, a falta de controle na fronteira Brasil/Venezuela resultou: (i) no aumento da criminalidade; (ii) na elevação quantitativa dos atendimentos nas unidades de saúde do Estado; (iii) no aumento das matrículas e dos gastos para operacionalização do ensino público; (iv) na necessidade da criação de abrigos, até pouco tempo mantidos pelo Estado; e (v) no alastramento de epidemias ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
É importante destacar que o rol de documentos inicialmente juntados pelo estado de Roraima, com o fito de comprovar suas alegações, decorre primordialmente de reportagens publicadas em jornais e sites noticiosos. A ação também promove a juntada do relatório de ações relativas à imigração venezuelana, de março de 2018, elaborado pela Defesa Civil, que apresenta, entre outros, os seguintes dados: (i) aumento de 636 atendimentos médicos a venezuelanos em 2014 para 5.090 até julho de 2017; (ii) aumento no número de matrículas nas redes de ensino municipal e estadual; (iii) aumento do número de crimes envolvendo venezuelanos entre 2011 e 2017; (iv) aumento das solicitações de refúgio realizadas por venezuelanos de 4 em 2014 para 17.130 em 2017. No mais, são apresentados alguns documentos sobre a ocorrência de casos de sarampo na Venezuela e no Brasil e um relatório sintético que inclui tabela com a despesa média total com saúde estimada por imigrante em 2017, que afirma o atendimento de 50.826 venezuelanos na rede pública ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Por fim, quanto aos argumentos de Direito, o estado de Roraima alegou que: (i) a omissão da União tem gerado uma desarmonia quanto à forma federativa, afinal, o arcabouço normativo constitucional e legal corroboraria na constatação da omissão sistematizada da União no que tange à sua atuação no controle efetivo de entrada e instituição de barreiras sanitárias em áreas de fronteira – para tanto, cita os seguintes artigos e diplomas normativos: (i.i) art. 22, I, art. 21, XXII, art. 144, § 1º, III, todos da CF; (i.ii) art. 3º, incisos I a IV, da Lei n. 9.474/1997; (i.iii) Decreto n. 50.215/1961; (i.iv) Lei n. 8.080/1990; (i.v) art. 2º, IV, art. 32, parágrafo único, do Decreto n. 7.508/2011; e (i.vi) Decreto n. 59/1991 –; (ii) há caracterização de um ECI em Roraima, já que a omissão da União quanto ao seu dever federativo criou uma situação de violação sistêmica aos direitos humanos (refugiados) e fundamentais (nacionais); (iii) a intervenção do Poder Judiciário é legítima, já que estaria atuando dentro dos limites permitidos, tendo em vista o cenário de violações patentes à legislação e à Constituição. Além disso, aduziu que “a pretensão deduzida em Juízo é justamente para manter a conformidade estrutural das competências delineadas da Constituição Federal, obrigando a União a cumprir o seu papel institucional” ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em Contestação, a União alegou que: (i) não existe previsão constitucional de competência material exclusiva de nenhum ente federado para custeio integral das despesas necessárias à manutenção de imigrantes e refugiados em território brasileiro; (ii) o acolhimento dos pedidos da exordial acarretaria na aceitação da ideia de que imigrantes e refugiados são meras “despesas” para o país que os recebe, integrando uma categoria “diferenciada” de pessoas não merecedoras de tratamento digno dispensado aos brasileiros e estrangeiros residentes, o que configuraria a violação aos dispositivos e princípios constitucionais vigentes; (iii) a União tem adotado diversas ações que comprovam a inexistência de omissão, tais como a edição da Medida Provisória n. 820/2018, 2
2
Dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária.
do Decreto n. 9.286/2018, 3
3
Define a composição, as competências e as normas de funcionamento do Comitê Federal de Assistência Emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária.
do Decreto n. 9.285/2018, 4
4
Reconhece a situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária na República Bolivariana da Venezuela.
da Medida Provisória n. 823/2018 5
5
Abre crédito extraordinário, em favor do Ministério da Defesa, no valor de R$ 190.000.000,00, para os fins que especifica (Crédito – Refugiados da Venezuela).
e da Portaria Interministerial n. 9/2018; 6
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Dispõe sobre a concessão de autorização de residência ao imigrante que esteja em território brasileiro e seja nacional de país fronteiriço, onde não esteja em vigor o Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e países associados, a fim atender a interesses da política migratória nacional.
(iv) antes mesmo da edição dos atos normativos citados, o Ministério do Desenvolvimento Social já havia repassado valores para acolhimento dos imigrantes; (v) quanto à segurança, o Ministério da Defesa possui operações em execução 7
7
Operação Acolhida (deflagrada para assegurar apoio logístico aos imigrantes) e Operação Controle (que tem como objetivo auxiliar o controle das fronteiras e combater a prática de crimes transfronteiriços, por meio de patrulhamento rotineiro nas cidades de fronteira, bem como a realização de revista dos imigrantes).
com vistas à amenização dos impactos da imigração venezuelana, bem como a atuação do Departamento da Polícia Federal tem-se intensificado; (vi) quanto à saúde pública, foram repassados valores para financiamento de ações de vigilância em saúde para a Secretaria Estadual de Saúde de Roraima, foram enviadas equipes do Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do SUS, houve um aumento do contingente de médicos participantes do Projeto Mais Médicos para o Brasil, etc.; (vii) foram tomadas medidas a fim de implementar direitos e garantias dos imigrantes venezuelanos; (viii) o art. 1º, III, o art. 3º, IV, o art. 4º, o art. 5º, o art. 23, X, da Constituição Federal, a Lei n. 9.474/1997, a Lei n. 13.445/2017, a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (Decreto n. 50.215/1961), a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Acordo sobre Documentos de Viagem e de Retorno dos Estados Partes do Mercosul e Estados Associados não autorizam o fechamento das fronteiras ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em especial, no que concerne à configuração do ECI, a União alegou que não restaram comprovadas a violação generalizada e sistêmica de direitos constitucionais, a inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura nem a ocorrência de transgressões capazes de exigir a atuação de uma pluralidade de órgãos. Para o referido ente, “a situação dos imigrantes venezuelanos é uma situação específica, circunstancial e na qual não se verifica qualquer atuação estatal violadora de direitos fundamentais”. Outrossim, alegou que a invocação da Teoria do ECI, no caso, visa tão somente permitir que o Poder Judiciário adote postura ativista, fixando as linhas de atuação da União ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
A audiência de conciliação realizada em 8 de junho de 2018 restou infrutífera ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em sua réplica, em relação ao ECI, o estado de Roraima reiterou o argumento de que existe um quadro de violação generalizada de direitos fundamentais. Os brasileiros e residentes no território de Roraima teriam sua dignidade humana afetada pela falta de saúde, controle sanitário e segurança pública. Já os imigrantes estariam desassistidos, sem políticas públicas de recepção e acolhimento. Quanto à omissão da União, o estado de Roraima alegou que “as medidas administrativas foram tomadas apenas no papel”. Por fim, reiterou a necessidade da tomada “de um conjunto de medidas necessárias emanadas por diversos órgãos e instituições públicas” ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em decisão interlocutória, o pedido provisório de fechamento temporário da fronteira com a Venezuela e de limitação do ingresso de refugiados venezuelanos no Brasil foi indeferido, por ausência dos pressupostos mínimos de concessão e contrariedade do pedido aos fundamentos da Constituição de 1988, às leis nacionais e aos tratados ratificados pelo país ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em nova decisão, a pedido da União, o Decreto n. 25.681/2018, do estado de Roraima, foi suspenso cautelarmente, em razão da presença de indícios de que o referido ato normativo interferiria no estado de fato e nos direitos em debate. Tem-se que o decreto em comento fixou medidas alternativas restritivas a estrangeiros, em especial venezuelanos, com vistas à diminuição do fluxo migratório ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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). 8
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O referido decreto foi revogado pelo estado de Roraima em 6 de maio de 2019 ( BRASIL, 2018a ).
Salienta-se, ainda, que foi decretada a intervenção federal no estado de Roraima até 31 de dezembro de 2018, por força do Decreto n. 9.602/2018 ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em decisão monocrática publicada em 2 de dezembro de 2019, um acordo parcial firmado pelas partes foi homologado, relativo à continuidade da Operação Acolhida, à cooperação técnica entre os entes, à continuidade de parcerias com organizações da sociedade civil e à redistribuição dos imigrantes para outros estados ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Concluso para julgamento, no voto da Relatora, Ministra Rosa Weber, publicado em 27 de outubro de 2020, restou consignado que: (i) o pedido do autor, no sentido de obrigar que a ré promovesse medidas administrativas nas áreas de controle policial, saúde e vigilância sanitária na região da fronteira entre o Brasil e a Venezuela, foi objeto do acordo entre as partes, estando devidamente decidido pela decisão homologatória daquele; (ii) o pedido de fechamento temporário das fronteiras e limitação do ingresso de imigrantes venezuelanos no Brasil teria sido decidido anteriormente, com o indeferimento da tutela de urgência e do pedido cautelar, devendo ser julgado improcedente pelas razões anteriormente expostas; e (iii) restaria pendente a apreciação do pedido consistente no repasse de recursos adicionais pela União, a fim de suprir os gastos excedentes decorrentes do fluxo migratório intenso originário da Venezuela ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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). Em relação ao pedido “iii”, propôs o provimento parcial do pedido:
[...] para determinar à União a imediata transferência de recursos adicionais ao Estado de Roraima em quantia correspondente à metade (cinquenta por cento) dos gastos cujo ressarcimento é vindicado pelo autor, conforme se apurar em liquidação, observados como parâmetros máximos os valores documentados nos autos, para assim suprir a metade dos custos que vem suportando com a prestação de serviços públicos aos imigrantes oriundos da Venezuela, ou autorizar a compensação do débito. ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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A parcial procedência teve como fundamentos as seguintes premissas fáticas: (i) existência de provas suficientes nos autos quanto aos gastos extraordinários do estado de Roraima com saúde, educação e segurança pública, decorrentes do aumento do fluxo migratório de venezuelanos; (ii) caráter extraordinário, imprevisível e excepcional do fluxo massivo de venezuelanos na região, facilitado pela posição geográfica do estado de Roraima; (iii) gastos decorrentes da obrigação de abertura de fronteiras, pelo Estado brasileiro, a fim de cumprir os tratados internacionais; (iv) existência de um federalismo de base cooperativa; (v) necessária aplicação do Princípio da Solidariedade às relações entre os entes federados; (vi) tamanho e renda ínfima do estado de Roraima, quando comparado aos demais estados e à União; (vii) existência de precedentes internacionais a favor da responsabilização do Estado federal quanto à parcela de gastos com refugiados; e (viii) necessidade de contribuição financeira da União com os gastos do estado de Roraima para a incrementação de serviços públicos prestados a refugiados ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Em voto divergente, o Ministro Alexandre de Morais sustentou a improcedência do referido pedido:
Nesse contexto, verifica-se que[,] além de ter estabelecido políticas públicas dentro de sua esfera de competência, a União adotou medidas para o cumprimento de seus deveres constitucionais e internacionais de proteção aos refugiados e imigrantes, inclusive mediante repasse financeiro ao Estado Autor. Inexistente, portanto, a obrigação de indenizar da União, sobre a qual se sustenta a pretensão do autor. ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal... )
O voto da Ministra Relatora prevaleceu, vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, sendo julgados:
a) improcedente o pedido de compelir a União a fechar temporariamente a fronteira entre o Brasil e a Venezuela ou limitar o ingresso de imigrantes venezuelanos no Brasil e; b) parcialmente procedente a ação para determinar à União a imediata transferência de recursos adicionais ao Estado de Roraima em quantia correspondente à metade (cinquenta por cento) dos gastos cujo ressarcimento é vindicado pelo autor, conforme se apurar em liquidação, observados como parâmetros máximos os valores documentados nos autos, para assim suprir a metade dos custos que vem suportando com a prestação de serviços públicos aos imigrantes oriundos da Venezuela, ou autorizar a compensação do débito, devendo a transferência se dar sem a submissão ao procedimento do precatório, por se tratar de valor necessário a suplementar gastos imediatos e continuados, dado não cessada a questão migratória massiva e[; c)] por fim, com fundamento no art. 485, VI, do CPC, julgou extinto o pedido incidental feito pela ré quanto ao Decreto Estadual n. 25.681/2018 ante sua superveniente revogação pelo Governo de Roraima, sem condenação em honorários, considerada a solução parcial da demanda (art. 86 do CPC). ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal... )
Opostos embargos de declaração pela União, estes foram rejeitados, com publicação do acórdão no Diário de Justiça Eletrônico em 20 de maio de 2021, com trânsito em julgado em 16 de junho de 2021 ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal...
).
Destaca-se que, embora o pedido do estado de Roraima tenha sido parcialmente provido, a fundamentação não se deu com base na alegação do autor de suposta caracterização do ECI. Ou seja, a questão do ECI não foi o objeto de discussão no acórdão firmado nos autos da ACO n. 3.121.
2. Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional
Como visto, o estado de Roraima utiliza a Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional como base para o pleito de intervenção do Poder Judiciário, especialmente no sentido de que o STF ordene à União medidas administrativas na área do controle policial, saúde e vigilância sanitária, bem como seja determinada a transferência de recursos para suprir os custos já suportados no atendimento aos imigrantes pela referida unidade federativa. Importa, assim, analisar os aspectos centrais do ECI, a fim de verificar a aplicabilidade ao caso da referida teoria.
O ECI é uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional Colombiana (CCC), aplicada originalmente no ano de 1997, em caso envolvendo a falta de filiação de um número significativo de docentes contribuintes em fundos de pensão (Sentença SU-559 de 1997). 9 9 A sentença falava em “ Estado de cosas contrario a la Constitución politica ”. Posteriormente, a técnica foi empregada para a situação de superlotação dos centros penitenciários (Sentença T-153 de 1998), falta de pagamento de salários aos servidores públicos de um município (Sentença T-144 de 1999), entre outras situações ( GARAVITO e FRANCO, 2010GARAVITO, César Rodríguez; FRANCO, Diana Rodríguez. Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó́ el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá́: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad; Dejusticia, 2010. , p. 83).
Juliana Patrício da Paixão (2017PAIXÃO, Juliana Patrício da. Estado de Coisas Inconstitucional: sob a perspectiva da saúde pública e da metáfora da árvore. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. , p. 37) esclarece que “a expressão Estado de Coisas Inconstitucional foi cunhada pela jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana. No entanto, o procedimento com medidas estruturais de transformação do Estado de Coisas Inconstitucional já existia em outros tribunais mundiais independentemente do seu sistema de governo”. Esclarece, ainda, que o precedente relacionado às sentenças estruturais remonta ao caso Brown v. Board of Education of Topeka , no qual a Suprema Corte estadunidense declarou a segregação racial nas escolas do país inconstitucional.
Trata-se de instrumento construído progressivamente, sendo que, em cada fase, foram agregados “pressupostos, fundamentos e técnicas de decisão” ( CAMPOS, 2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 162). Para Luis Ricardo Gómez Pinto ( apudCAMPOS, 2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. ), o desenvolvimento do ECI perante a CCC pode ser dividido em três períodos: (i) etapa do iluminismo constitucional (1997-2000), na qual a Corte instituiu o sentido jurídico, os fundamentos, bem como os pressupostos e os impactos econômicos da teoria; (ii) etapa do tenebrismo judicial (2000-2004), marcada pelo conservadorismo, na medida em que a Corte passa a desconhecer o alcance e o sentido originário do ECI; e (iii) etapa do renascimento (2004-atual), que se inicia com a prolação da Sentencia T-025, retornando ao ativismo judicial.
Na lição de Leonardo Garcia Jaramillo (2015JARAMILLO, Leonardo Garcia.Constitucionalismo deliberativo: estudio sobre el ideal deliberativo de la democracia y la dogmática constitucional del procedimiento parlamentario. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2015. , p. 188), a Teoria do ECI surge como resposta à necessidade de reduzir, em casos determinados, a dramática contradição de um país garantista em suas normas e desigual em sua realidade. O objetivo primordial é o enfrentamento de violações graves e sistemáticas aos direitos fundamentais, cujas causas sejam de natureza estrutural, isto é, decorram de falhas estruturais em políticas públicas adotadas pelo Estado, exigindo atuação conjunta de diversas entidades estatais. Jaramillo (2015)JARAMILLO, Leonardo Garcia.Constitucionalismo deliberativo: estudio sobre el ideal deliberativo de la democracia y la dogmática constitucional del procedimiento parlamentario. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2015. esclarece, porém, que não se trata de uma teoria pronta e acabada, pois subsistem diversos questionamentos sobre as condições de sua declaração, superação e eventual abandono, pois o término do ECI não está regulado normativamente.
Nos termos da doutrina colombiana, o ECI encontra fundamento normativo em diversos dispositivos da Constituição Política da Colômbia, promulgada em 1991, especialmente nos arts. 1º, 2º, 13, 113 e 334, que consagram, respectivamente: (i) art. 1º – modelo de Estado social de direito; (ii) art. 2º – fins essenciais do Estado, particularmente a garantia de efetividade dos princípios, direitos e deveres positivados na Constituição; (iii) art. 13 – obrigação estatal de promoção das condições de igualdade; (iv) art. 113 – obrigação de os órgãos de Estado colaborarem harmonicamente para a consecução de seus fins; (v) art. 334 – direção geral da economia do Estado para cumprir os objetivos do modelo de Estado social e democrático de direito ( DÍAZ, CARLI e SOARES, 2017DÍAZ, Omar Huertas; CARLI, Ana Alice de; SOARES, Bruno de Paula. El estado de cosas inconstitucional como un mecanismo de exigibilidad de respeto y garantía de los derechos humanos en Colombia y su aplicación en Brasil por la Corte Suprema. Revista Direito UFMS , v. 3, n. 1, 2017. ).
De acordo com a Corte Constitucional Colombiana, entre os fatores considerados pelo Tribunal para definir a existência do ECI, destacam-se: (i) a ofensa massiva e generalizada de vários direitos fundamentais que afeta um número significativo de pessoas; (ii) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir esses direitos; (iii) a não realização de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a ofensa dos direitos; (iv) a existência de um problema social cuja solução demanda a intervenção de vários órgãos ou entidades governamentais, requerendo a adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações, com significativos recursos orçamentários; (v) a possibilidade de se sobrecarregar o Poder Judiciário com o julgamento de ações repetitivas acerca das mesmas violações de direitos ( REPÚBLICA DE COLOMBIA, 2004REPÚBLICA DE COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-025/04 , de 22 de janeiro de 2004. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm. Acesso em: 31 jan. 2019.
http://www.corteconstitucional.gov.co/re...
).
Ao constatar o ECI, o Tribunal gera um litígio estrutural. Nos dizeres de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2015)CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o “Estado de Coisas Inconstitucional”? Consultor Jurídico , 15 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-15/ca...
, reconhecido o ECI, “a Corte não desenhará as políticas públicas, e sim afirmará a necessidade urgente [de] que Congresso e Executivo estabeleçam essas políticas, inclusive de natureza orçamentária”. Ato contínuo, formuladas e implementadas as medidas pelos órgãos políticos, a Corte deverá monitorar e avaliar os resultados, mantendo um diálogo contínuo sobre as práticas adotadas, especialmente por meio de audiências públicas ( CAMPOS, 2015CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o “Estado de Coisas Inconstitucional”? Consultor Jurídico , 15 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-15/ca...
). Ensina o referido autor ( CAMPOS, 2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 96) acerca do reconhecimento do ECI:
Trata-se de decisão que busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e as garantias dos direitos fundamentais uma vez que esteja[m] em curso graves violações a esses direitos por omissão dos poderes públicos. O juiz constitucional depara-se com uma realidade social necessitada de transformação urgente e, ao mesmo tempo, com falhas estruturais e impasses políticos que implicam, além do Estado Inconstitucional em si mesmo, a improbabilidade de o governo superar esse estágio de coisas contrário ao sistema de direitos fundamentais, sem que o seja a partir de uma forte e ampla intervenção judicial. [...]. Em face de sistemática omissão estatal, incluída a omissão legislativa, a Corte busca estabelecer um modelo coordenado de ação, que alcança diferentes autores, voltado a reverter o quadro de massiva transgressão de direitos fundamentais. Dessa forma, tanto interfere em escolhas políticas quanto procura assegurar que essas escolhas se concretizem e surtam efeitos reais. Agindo assim, tanto determina como supervisiona as ações públicas.
Em suma, reconhecida a existência de um contexto de ECI, parte-se para uma “construção dialógica” dos atos de poder, na qual os poderes constituídos, a Administração Pública e a Sociedade Civil atuam com vistas à superação do fato inconstitucional ( PAIXÃO, 2017PAIXÃO, Juliana Patrício da. Estado de Coisas Inconstitucional: sob a perspectiva da saúde pública e da metáfora da árvore. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. , p. 51).
Oportunamente, destaca-se a opinião de Breno Baía Magalhães (2019MAGALHÃES, Breno Baía. O Estado de Coisas Inconstitucional na ADPF 347 e a sedução do Direito: o impacto da medida cautelar e a resposta dos poderes políticos. Revista Direito GV , [s. l.], v. 15, n. 2, e1916, set. 2019. ISSN 2317-6172. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/80272/76708. Acesso em: 3 abr. 2020.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 3), no sentido de que, embora a Teoria do ECI se apresente “simbolicamente significativa”, ela não foi capaz de apresentar resultados de cunho estrutural efetivos na Colômbia. Nas palavras do autor (2019, p. 3):
Tomado de empréstimo da Corte Constitucional Colombiana (CCC), o ECI não representou a panaceia para os problemas estruturais daquele país, além de contar com importantes opositores no campo acadêmico e ter falhado na prática, dados os tímidos resultados observados na prática (embora simbolicamente significativos no caso dos deslocados internos).
Por fim, é preciso frisar que a atuação da CCC, ao agir ativamente sobre escolhas e medidas do Poder Executivo e do Poder Legislativo declarando o ECI, não é um “comportamento extravagante”, na medida em que a referida Corte se destaca por atuar continuamente de forma ativista em prol da defesa dos direitos fundamentais. Nesse sentido, destacam-se decisões anteriores da Corte acerca do estado de exceção, da reeleição presidencial, dos direitos dos homossexuais e devedores hipotecários ( CAMPOS, 2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 120).
No próximo tópico, a recepção da Teoria do ECI no Brasil, pelo STF, será abordada.
2.1. A recepção do ECI na jurisprudência do STF
O ECI surge do paradoxo de uma sociedade extremamente desigual, porém titular de amplo rol de direitos sociais, que procura criar as condições de igualdade material mínima. A exemplo do Brasil que, por um lado, prevê uma extensa gama de direitos fundamentais na Constituição Federal, mas, por outro, apresenta um grave quadro de concentração de renda. 10 10 O Brasil está no seleto rol de apenas cinco países – com a África do Sul, a Argentina, a Colômbia e os Estados Unidos – em que o 1% mais rico recebe mais de 15% da renda total ( SOUZA e MEDEIROS, 2017 ). Trata-se de doutrina criada localmente para responder às particularidades de um contexto social desigual, com normas constitucionais progressistas, porém ineficazes, em matéria social.
Dadas as particularidades de surgimento do ECI, não surpreende que a referida teoria venha sendo estudada e citada no Brasil. Reitera-se: o amplo rol de direitos individuais e sociais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a notória desigualdade social brasileira são incontroversas e dispensam maiores considerações. As similaridades entre Brasil e Colômbia, no que tange à ordem constitucional e social, tornam válidas as discussões acerca da eventual aplicabilidade da teoria estrangeira no âmbito do Poder Judiciário brasileiro.
O ECI ingressou definitivamente no horizonte prático brasileiro com o ajuizamento da ADPF n. 347, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Todavia, a ideia do ECI já havia sido referida anteriormente nos votos-vista proferidos pelo Ministro Luís Roberto Barroso, por ocasião das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n. 4.357 e 4.425. A citada ADPF pedia o reconhecimento da violação de direitos fundamentais da população carcerária, bem como que fosse determinada a adoção de diversas providências no tratamento da questão prisional do país.
A petição inicial alegava violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), proibição da tortura e do tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), proibição de sanções cruéis (art. 5º, XLVII, “e”), a imposição do necessário cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII) e o respeito aos direitos dos presos à integridade física e moral (art. 5º, XLIX), bem como a presunção de inocência (art. 5º, LVII).
No dia 9 de setembro de 2015, os ministros deram parcial provimento à medida cautelar e determinaram: (i) aos juízes e tribunais, que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; (ii) aos juízes, que estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; (iii) à União, que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos.
Para Campos (2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 290), “[a] maioria dos ministros reconheceu, expressamente, estar presente um ECI”. O Relator indicou a violação sistemática de direitos fundamentais de presos, um quadro de falhas estruturais, assim como a falência das políticas públicas, ensejando a tomada de medidas estruturais pelo STF. “Do ponto de vista teórico, a decisão valeu como marco inicial de utilização do ECI na jurisdição constitucional brasileira” ( CAMPOS, 2016CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional . Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 290).
Por outro lado, sob o ponto de vista doutrinário, a aprovação da aplicação da teoria pelo STF não foi unânime, recebendo tanto elogios quanto críticas por parte dos estudiosos. Ensina Magalhães (2019MAGALHÃES, Breno Baía. O Estado de Coisas Inconstitucional na ADPF 347 e a sedução do Direito: o impacto da medida cautelar e a resposta dos poderes políticos. Revista Direito GV , [s. l.], v. 15, n. 2, e1916, set. 2019. ISSN 2317-6172. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/80272/76708. Acesso em: 3 abr. 2020.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 2-3):
Muito embora tenha sido saudada como importação bem-vinda por alguns autores ( CAMPOS, 2015CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o “Estado de Coisas Inconstitucional”? Consultor Jurídico , 15 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-15/ca... ; RODRIGUEZ, 2015), outros não pouparam críticas à doutrina do ECI no Direito brasileiro ( STRECK, 2015STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Consultor Jurídico, 24 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-24/ob... ; GLEZER e MACHADO, 2015; DE GIORGI, FARIA e CAMPILONGO, 2015). Entre os autores de direito constitucional, o ECI parece não ter suscitado tantas controvérsias sobre a sua incorporação, com trabalhos que se limitaram em reproduzir o conteúdo daquilo decidido pelo STF (SANTOS et al. , 2015; CALDAS e LASCANE NETO, 2016; ANDRADE e TEIXEIRA, 2016; PEREIRA, 2017); sugerindo sua inserção temática na discussão sobre ativismo judicial (BERNARDI e MEDA, 2016; PENNA, 2017); propondo sua extensão para outros direitos ou apenas reforçando sua importância em nosso atual cenário social (DANTAS, 2016; CARVALHO, OLIVEIRA e SANTOS, 2017; DUARTE e DUARTE NETO, 2016). O traço comum a todos esses trabalhos é a não problematização quanto às consequências jurídicas e políticas da decretação judicial desse estado de coisas.
Vê-se, portanto, que embora não encontre previsão legal, a Teoria do ECI encontra respaldo a partir da jurisprudência do STF, sendo, inclusive, aplaudida por parte da doutrina nacional.
2.2. A pertinência teórica do Estado de Coisas Inconstitucional à questão dos refugiados venezuelanos no estado de Roraima
Uma análise atenta dos pressupostos teóricos torna questionável a aplicabilidade do ECI ao caso dos refugiados venezuelanos. A petição inicial da ACO n. 3.121 cita em diversas oportunidades a ADPF n. 347. Ocorre que a ADPF n. 347 alerta para os riscos do manejo inadequado do ECI. Veja-se o seguinte trecho da petição inicial protocolizada pelo PSOL:
Esta técnica, que não está expressamente prevista na Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo, permite à Corte Constitucional impor aos poderes do Estado a adoção de medidas tendentes à superação de violações graves e massivas de direitos fundamentais, e supervisionar, em seguida, a sua efetiva implementação. Considerando que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional confere ao Tribunal uma ampla latitude de poderes, tem-se entendido que a técnica só deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e generalizada afronta aos direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro enfrentado. São casos em que se identifica um “bloqueio institucional” para a garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção mais ampla sobre o campo das políticas públicas. ( BRASIL, 2015BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347. Relator: Ministro Marco Aurélio, 27 maio 2015. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560. Acesso em: 31 jan. 2019.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal... )
Segundo Lenio Luiz Streck, um crítico da importação da Teoria do ECI para o Brasil, “o objeto do controle de constitucionalidade são normas jurídicas, e não a realidade empírica – vista de forma cindida – sob a qual elas incidem” ( STRECK, 2015STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Consultor Jurídico, 24 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-24/ob...
).
A despeito da inexistência de previsão normativa sobre o ECI (e da competência do STF para a imposição de políticas públicas), os requisitos autorizadores difusamente estabelecidos pela Corte Constitucional Colombiana e sistematizados pela doutrina não se afiguram presentes no caso dos refugiados venezuelanos. Parece difícil sustentar a existência de uma violação maciça e generalizada aos direitos fundamentais da população brasileira residente no estado de Roraima por conta das solicitações de refúgio dos imigrantes venezuelanos, que supostamente autorizaria o fechamento das fronteiras.
De outro lado, caso o foco da preocupação estadual sejam os refugiados venezuelanos, também se apresenta deveras questionável a caracterização de grave e massiva violação aos direitos humanos daqueles. Conforme descreve a própria petição inicial da ACO n. 3.121, o estado de Roraima vem: (i) realizando atendimentos médicos à população venezuelana; (ii) matriculando as crianças na rede pública de ensino; e (iii) prestando assistência aos refugiados nos abrigos de acolhimento (todos já assumidos e custeados pela União atualmente).
Ou seja, o estado confessa expressamente que vem implementando uma série de políticas públicas no sentido de aplacar a autodenominada “crise migratória”. Se o estado de Roraima vem atuando nas áreas da saúde, educação e assistência social, não se mostra preenchido o requisito da “prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir direitos”. Ainda que os direitos dos refugiados venezuelanos não sejam atendidos a contento, o déficit de concretização não pode ser confundido com omissão de prestações positivas, sob pena de banalização do instituto do ECI. A realização parcial dos direitos não significa inexistência deles na agenda política. Ao contrário, apesar dos problemas, o tema dos refugiados conta com disposição política e social. Nessas áreas, há programas públicos voltados à concretização e à racionalização dos atendimentos.
Não obstante, a crítica de Sampaio e Jarochinski Silva (2018SAMPAIO, Cyntia; JAROCHINSKI SILVA, João Carlos. Complexidade x Singularidade – A Necessidade de Outras Soluções Duradouras. In: BAENINGER, Rosana; JAROCHINSKI SILVA, João Carlos (coord.). Migrações venezuelanas . Campinas: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” – Nepo: Unicamp, 2018. p. 391-393. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/migracoes_venezuelanas.pdf. Acesso em: 23 maio 2021.
https://brazil.unfpa.org/sites/default/f...
, p. 391-392) merece destaque:
Devido às questões objetivas apresentadas pela descoordenação entre os entes federativos para a construção de respostas articuladas ao fluxo em 2017, reconhece-se, em 2018, o trabalho necessário e eficiente das entidades à frente da acolhida emergencial das pessoas migrantes visando promover a regularização migratória por meio de acesso [a] documentação, abrigamento provisório e alimentação. Não obstante, a existência destas respostas iniciais não tem avançado para o estágio seguinte, naturalmente esperado, de promoção ativa da integração local na região de fronteira àquelas pessoas migrantes que assim desejarem.
Frise-se que o estado de Roraima age corretamente ao prestar assistência aos refugiados venezuelanos. A despeito de o art. 5º, caput , CF, assegurar direitos fundamentais aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, é certo que o Brasil se comprometeu, por meio de tratados, a assegurar tais direitos a todas as pessoas, sem distinção de qualquer espécie. Convém assinalar que a União, estados, Distrito Federal e municípios têm competência material comum relativamente a saúde, educação e assistência social (arts. 23 e 204, CF). Inexiste dispositivo normativo que atribua à União competência material exclusiva para o custeio de despesas de imigrantes e refugiados. Nos termos do art. 22, XV, a União possui apenas competência para legislar sobre “emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros”. Dessa forma, os entes estatais devem prestar serviços públicos aos estrangeiros, já que a Constituição Federal outorga a eles a condição de titulares de direitos fundamentais.
No mesmo sentido, o ECI pressupõe a “não realização de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a vulneração dos direitos”. Ocorre que a União editou a Medida Provisória n. 820/2018 e o Decreto n. 9.285/2018, que reconhecem a situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório provocado pela crise humanitária na Venezuela, e o Decreto n. 9.286/2018, que instituiu o Comitê Federal de Assistência Emergencial, responsável pelas ações de assistência e acolhimento dos imigrantes. É, portanto, bastante questionável defender a inexistência de medidas legislativas e administrativas para contornar eventuais problemas decorrentes do aumento da imigração venezuelana.
Nesse cenário, merece destaque a atuação do Governo Federal por meio da Operação Acolhida, já citada anteriormente, que atua em três frentes: (i) no ordenamento das fronteiras, em ações relacionadas a documentação, vacinação e operação de controle do Exército brasileiro; (ii) no acolhimento, ofertando abrigo, alimentação e atendimento à saúde; e (iii) na interiorização, consistente no deslocamento voluntário de venezuelanos a outros estados brasileiros, com o objetivo de fomentar a inclusão econômica daqueles ( BRASIL, 2021aBRASIL. Acolhida. Histórico . 2021a. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida. Acesso em: 11 fev. 2022.
https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolh...
).
A Operação Acolhida foi criada em 2018, com o objetivo de receber migrantes e refugiados venezuelanos de forma digna, considerando a situação de Roraima como principal porta de entrada de venezuelanos no Brasil. Executada e coordenada pelo Governo Federal, contando com apoio da ONU e de mais de cem entidades da sociedade civil, a operação atua prestando assistência por meio de medidas, já citadas, de acolhimento, interiorização e ordenamento da fronteira. Segundo o Governo Federal, até 27 de abril de 2021, mais de 265 mil venezuelanos (migrantes e refugiados) solicitaram regularização migratória, sendo realizados mais de 890 mil atendimentos na fronteira, mais de 217 mil atendimentos sociais e emitidos mais de 255 mil CPFs, além de contar com quase 130 mil solicitantes de residência. Foram administradas também cerca de 400 mil doses de vacina. No mesmo período, mais de 50.400 migrantes e refugiados venezuelanos foram interiorizados, em mais de 400 cidades brasileiras ( BRASIL, 2021aREPÚBLICA DE COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-025/04 , de 22 de janeiro de 2004. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm. Acesso em: 31 jan. 2019.
http://www.corteconstitucional.gov.co/re...
).
Um outro critério traçado pela Corte Constitucional Colombiana merece consideração: a possibilidade de sobrecarga do Poder Judiciário na análise de ações repetitivas sobre as mesmas violações de direitos. Ocorre que inexiste notícia sobre uma enxurrada de ações judiciais, protocolizadas por brasileiros, questionando o Poder Judiciário sobre eventuais violações de direitos fundamentais decorrentes do ingresso de refugiados no Brasil. A ação ajuizada pela Procuradoria-Geral do Estado de Roraima não sustenta nada nesse sentido. Igualmente, não se tem qualquer comprovação de ações judiciais repetitivas intentadas por venezuelanos, questionando as condições de tratamento que lhes são dispensadas no Brasil.
Ao contrário do que sustenta o estado de Roraima, haverá violação sistemática e institucionalizada aos direitos humanos na hipótese de o estado brasileiro simplesmente negar a entrada dos refugiados venezuelanos no país, como forma de “solucionar” a questão migratória. Eventual conduta do estado brasileiro nesse sentido feriria com gravidade: (i) numa perspectiva política, a tradição de política externa latino-americana de abertura aos vizinhos; e, (ii) numa perspectiva jurídica, os direitos humanos consagrados na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, na Lei n. 9.474/1997 e na Lei n. 13.445/2017, que institui o visto temporário para acolhida humanitária (art. 14, inciso III). Tal questão foi, inclusive, alegada pela União em sua contestação.
O Quadro 1 , a seguir, sintetiza os critérios inerentes à caracterização do ECI e a situação fática dos refugiados venezuelanos no estado de Roraima quando do ajuizamento da referida ACO.
Finalmente, embora não seja esse o objeto do presente artigo, convém problematizar a adoção do ECI em um país periférico e de modernidade tardia, que vem sofrendo fortemente com o ativismo do Judiciário, especialmente a falta de racionalidade decisória por parte do STF. Streck (2015)STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Consultor Jurídico, 24 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo. Acesso em: 15 jul. 2018.
https://www.conjur.com.br/2015-out-24/ob...
sintetiza os riscos, os paradoxos e as dúvidas conceituais acerca do ECI:
[...] não se pode declarar a inconstitucionalidade de coisas, mesmo que as chamemos de “estado de ou das coisas”. E nem se tem como definir o que é um “estado dessas coisas” que sejam inconstitucionais no entremeio de milhares de outras situações ou coisas inconstitucionais. Do contrário, poder-se-ia declarar inconstitucional o estado de coisas da desigualdade social e assim por diante.
Em que pese o discurso progressista usualmente atrelado ao ECI, a sua adoção indubitavelmente coloca em pauta a discussão sobre a legitimidade democrática de juízes e cortes, a possibilidade de violação à separação de poderes, o fim das fronteiras entre Direito e Política, para além de ampliar o risco de subjetivismo e arbítrio judicial ( CAMPOS, 2015CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o “Estado de Coisas Inconstitucional”? Consultor Jurídico , 15 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em: 15 jul. 2018.
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).
Nesse cenário, é preciso discutir ainda o argumento do pós-positivismo, arguido na petição inicial pelo estado de Roraima, a fim de justificar a atuação do STF tendo como aspectos centrais de decisão juízos políticos e sociais.
3. O argumento do pós-positivismo como instrumento para flexibilização do Direito
A ação proposta pelo estado de Roraima também é pródiga na citação ao pós-positivismo. Segundo a Procuradoria do Estado ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal...
), “apesar de saber dos filtros indicados pelas Leis n. 8.437/1992, 12.016/2009 e 9.494/1997, o Magistrado deve fazer outro filtro à luz da Constituição sob a perspectiva do novo eixo-hermenêutico pós-positivista, de modo a não tornar letra morta os mandamentos de otimização da Constituição da República [...]”.
Não obstante a inexistência de maiores explicações sobre o conceito de pós-positivismo empregado, a expressão parece ser utilizada para legitimar teoricamente uma decisão não calcada em normas jurídicas preexistentes, mas que deveria ser “criada” segundo critérios políticos e de poder social. O termo “pós-positivismo” parece apontar para uma necessária alforria do operador do Direito em relação ao texto das normas jurídicas.
No caso em exame, emerge a crítica de Dimitri Dimoulis (2006DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. , p. 61) acerca do pós-positivismo na sua vertente nacional:
Manifesta o desejo do operador do Direito de se libertar dos vínculos impostos pelas normas jurídicas vigentes. Recorre-se, para tanto, às mais variadas construções teóricas, referindo-se a fatos sociais, a valores de justiça e equidade, a mudanças sociais e políticas, a formas alternativas de aplicação do direito, a círculos hermenêuticos e a jogos linguísticos que impossibilitariam a aplicação fiel da norma. E a conclusão é sempre a mesma: “produzir soluções adequadas, sem a necessidade de se recorrer aos limites ( sic ) rigorosos de um texto normativo”.
A petição inicial da ACO n. 3.121 com o uso da expressão pós-positivismo parece querer flexibilizar a aplicação do Direito, introduzindo juízos políticos e sociais como aspectos centrais da decisão, colocando em segundo plano as normas jurídicas positivadas, especialmente o princípio da separação dos poderes.
4. Fechamento de fronteiras e a Convenção de Genebra relativa ao estatuto dos refugiados de 1951 e a Lei n. 9.474/1997
Por derradeiro, cumpre apresentar os números concretos dos pedidos de refúgio realizados no estado de Roraima, contemporaneamente ao ajuizamento da ACO. Em 2017, aproximadamente 18 mil venezuelanos pediram refúgio ao Estado brasileiro devido à crise político-econômica no país vizinho ( BRASIL, 2018bBRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Refúgio em números – 3ª edição. 2018b. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/anexos/refasgio-em-nasmeros_1104.pdf. Acesso em: 22 dez. 2021.
https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seu...
). Especificamente em Roraima, foram solicitados 15.955 pedidos de refúgio em 2017, segundo dados oficiais da Polícia Federal ( BRASIL, 2018bBRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Refúgio em números – 3ª edição. 2018b. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/anexos/refasgio-em-nasmeros_1104.pdf. Acesso em: 22 dez. 2021.
https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seu...
). Numa evolução histórica, segundo dados do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o número de solicitações foi cinco vezes superior ao registrado em 2016, período no qual 3.354 venezuelanos requisitaram refúgio ( RODRIGUES, 2018RODRIGUES, Alex. Conselho de Direitos Humanos avalia situação de imigrantes venezuelanos no Norte. Agência Brasil , 26 jan. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-01/conselho-de-direitos-humanos-checam-situacao-de-imigrantes-venezuelanos-no. Acesso em: 5 abr. 2020.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
).
Em 2018, no Brasil, foram cerca de 61.681 solicitações de reconhecimento da condição de refugiados de origem venezuelana. Dessas solicitações, 81% foram realizadas no estado de Roraima ( BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Refúgio em números – 4ª edição. 2019. Disponível em: www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/anexos/RefgioemNmeros_2018.pdf. Acesso em: 28 dez. 2021.
www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direit...
). Já no ano de 2019, foram realizadas 53.713 solicitações de reconhecimento da situação de refugiados por venezuelanos, sendo que, no mesmo ano, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) analisou 28.133 processos de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado de pessoas de nacionalidade venezuelana, sendo deferidos 20.902 pedidos. Ainda, tem-se que “[...] 66,8% do total de pessoas venezuelanas solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado, cujos processos foram apreciados pelo Conare, em 2019, solicitaram refúgio em Roraima [...]” ( BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Refúgio em números – 5ª edição. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/anexos/resumoexecutivo_refgioemnmeros.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022.
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).
Diante dos números colocados, parece improvável que os refugiados venezuelanos sejam capazes de promover o colapso de direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Todavia, ainda que assim não fosse, o pedido de fechamento das fronteiras e/ou de limitação do número de refugiados encontra óbices na Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (incorporada internamente pelo Decreto n. 50.215, de 28 de janeiro de 1961) e na Lei n. 9.474/1997.
O artigo 1º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 28 de julho de 1951 considera refugiado aquele que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e, em virtude de perseguição ou fundado temor de perseguição baseada em sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertença a certo grupo social, não pudesse retornar ao país de sua residência. Refugiado é aquele que tem fundados temores de perseguição por motivos odiosos. Acerca da instituição de normativas internacionais sobre apátridas e refugiados, dissertam Jubilut e Apolinário (2010JUBILUT, Liliana Lyra; APOLINÁRIO, Silvia Menicucci. O. S. A necessidade de proteção internacional no âmbito da migração. Revista Direito GV , [s. l.], v. 6, n. 1, p. 275-294, jan. 2010. ISSN 2317-6172. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/24228/22991. Acesso em: 3 abr. 2020.
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, p. 278):
[…] A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, gerou um enorme fluxo de pessoas deslocadas e apátridas, as quais ficaram sem condições de retornar a seu local de origem, tendo sido consideradas como refugiados.
Diante do desafio, a sociedade internacional iniciou um processo de institucionalização, a fim de conferir proteção a estas pessoas – os refugiados e apátridas – por meio do estabelecimento do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e da adoção de tratados, tais como a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 sobre o status de refugiados, [...] e as convenções de 1954 e 1961 sobre a apatridia.
A Lei brasileira n. 9.474/1997, por outro lado, considera refugiado todo indivíduo que, devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país, ou aquele que não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função da perseguição odiosa já mencionada. O artigo 1º, III, dispõe que será considerado refugiado pelo Brasil todo aquele que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. Percebe-se, pois, que a legislação nacional adotou a definição ampla de refugiado ( RAMOS, RODRIGUES e ALMEIDA, 2011RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de. 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: CL-A Cultural, 2011. , p. 27-28).
O arcabouço legal vigente no Brasil consagra o princípio do non-refoulement , o qual obsta a devolução do refugiado ou solicitante do refúgio ao país que deu origem às violações ou receio de violação dos seus direitos humanos. O art. 33 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 determina que “nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”. No mesmo sentido, o art. 7º, § 1º, da Lei n. 9.474/1997 estabelece que o estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível, sendo que em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.
Conforme ensinam Jubilut e Apolinário (2010JUBILUT, Liliana Lyra; APOLINÁRIO, Silvia Menicucci. O. S. A necessidade de proteção internacional no âmbito da migração. Revista Direito GV , [s. l.], v. 6, n. 1, p. 275-294, jan. 2010. ISSN 2317-6172. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/24228/22991. Acesso em: 3 abr. 2020.
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, p. 284): “A Convenção de 1951 e seu Protocolo fornecem aos Estados-partes a base jurídica da proteção, destacando-se o princípio do non-refoulement , ou seja, da impossibilidade de devolução do solicitante de refúgio (enquanto pendente a sua solicitação) e do refugiado a um país em que haja risco de perseguição”. Outrossim, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ( ACNUR, 2008ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR). Nota de orientação sobre extradição e proteção internacional de refugiados . Genebra, abr. 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_do_ACNUR/Diretrizes_e_politicas_do_ACNUR/Extradicao/Nota_de_orientacao_sobre_extradicao_de_refugiados.pdf. Acesso em: 26 jan. 2022.
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), a extradição mostra-se como um processo formal para entrega de uma pessoa pelo Estado X às autoridades de outro Estado Y, para fins de submissão a processo penal ou execução de sentença. Entretanto, tem-se que o princípio da não devolução mostra-se como pedra angular do regime internacional relativo aos refugiados, os quais não devem ser forçados ao retorno ao Estado de origem ou outros Estados, quando há risco de perseguição nesses locais. Ainda, sob o aspecto do direito internacional dos direitos humanos, a extradição encontra óbice nos casos em que a entrega da pessoa a coloca em risco de tortura ou outras violações graves aos direitos humanos. Segundo o ACNUR (2008)ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR). Nota de orientação sobre extradição e proteção internacional de refugiados . Genebra, abr. 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_do_ACNUR/Diretrizes_e_politicas_do_ACNUR/Extradicao/Nota_de_orientacao_sobre_extradicao_de_refugiados.pdf. Acesso em: 26 jan. 2022.
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, a proteção dos direitos humanos e dos refugiados, nesses casos, deve prevalecer, inclusive, em detrimento de acordos ou tratados de extradição.
Apesar de o estado de Roraima não pleitear a devolução dos solicitantes de refúgio estabelecidos no Brasil, a mera possibilidade de fechamento da fronteira afigura-se ilegal. Conforme sustenta a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), admitida como amicus curiae na ACO n. 3.121, “o fechamento das fronteiras do Brasil com a Venezuela pode ser considerado uma afronta ao non-refoulement às avessas, uma vez que ao impedir o ingresso dos migrantes, obriga-os a permanecerem no seu país de origem, onde estão sofrendo com violações de direitos humanos” ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).
Destaca-se, ainda, que em 2019 o Comitê Nacional para os Refugiados decidiu que:
[...] há, na Venezuela, a existência de grave e generalizada violação de direitos humanos. Essa decisão tem como base no inciso III do artigo 1° da Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997, e facilita o processo de determinação da condição de refugiado de nacionais venezuelanos. O fundamento da decisão analisa elementos da Declaração de Cartagena de 1984, da qual o Brasil é signatário, e leva em consideração toda a situação fática na Venezuela de grave ofensa aos direitos humanos de seus nacionais e residentes em seu território. Para o sistema de refúgio brasileiro, a decisão tem efeitos práticos importantes. O primeiro deles é que, a partir dessa decisão, o Brasil passa a aplicar o critério objetivo de reconhecimento da condição de refugiado para venezuelanos – baseado na grave e generalizada violação de direitos humanos. Ou seja, se até então um nacional venezuelano precisava demonstrar liame subjetivo e com nexo causal entre o fundado temor de perseguição e sua pessoa, bem como estar relacionado a um dos 5 critérios da Lei n. 9.474, de 1997 (religião, raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política), agora a existência dessa relação direta e subjetiva fica dispensada. ( BRASIL, 2021bBRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Especificidades – Haiti e Venezuela . 2021b. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/refugio/especificidade#violacaode_direitos. Acesso em: 20 maio 2021.
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Finalmente, parece bastante contraditório, sob o prisma constitucional e dos direitos humanos, o estado de Roraima expressamente reconhecer a condição de refugiados dos venezuelanos que cruzam a fronteira (conforme se denota da petição inicial na ACO n. 3.121) e, ainda assim, requerer seu fechamento.
Conclusões
Ainda que se admita que o ECI possa servir à proteção de minorias vulneráveis e à solução de problemas estruturais que impliquem a violação aos direitos fundamentais, o atendimento aos requisitos autorizadores deve estar claramente caracterizado, sob pena de arbítrio judicial, subjetivismo e demais formas de ativismo.
O exame atento da experiência colombiana, citada expressamente pelo estado de Roraima na ACO n. 3.121, permite concluir que não será qualquer violação de direitos que justificará o manejo da técnica, mas apenas aquela que, de forma objetiva, se manifestar generalizada e sistemática, bem como decorrer de um estado permanente de inércia estatal e flagrante incapacidade institucional.
No caso concreto, considerando o cenário fático contemporâneo ao ajuizamento da ação em comento, não se sustenta o argumento de realidade manifesta de violação massiva e sistemática de diferentes direitos fundamentais, seja da população de Roraima, seja dos refugiados que ingressaram e se estabeleceram na referida unidade federativa. Igualmente, é no mínimo controversa a existência de situação inconstitucional decorrente de ações e omissões estatais sistêmicas. Ao contrário, a realidade fática aponta para a existência de políticas públicas em relação aos refugiados, a despeito de eventuais falhas no grau de qualidade dos serviços prestados.
As referências ao pós-positivismo e ao ECI são realizadas de forma retórica, com o escopo de legitimar a adoção de postura ativista por parte do Supremo Tribunal Federal. O foco da insatisfação do estado parece residir em outros fatores, como ausência de repasse do crédito extraordinário para assistência emergencial e acolhimento humanitário de pessoas advindas da República Bolivariana da Venezuela, bem como o desejo de ressarcimento pelas despesas já efetuadas.
Finalmente, os pedidos de fechamento das fronteiras ou, subsidiariamente, de limitação do número de ingresso de refugiados violam frontalmente as obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil, especialmente aquelas de proteção aos refugiados, nos termos da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e dos arts. 1º, inciso III, e 7º da Lei n. 9.474/1997.
Referências
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» http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560 - BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155 Acesso em: 22 nov. 2021.
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» https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo
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1
Salienta-se que o presente artigo tem como base fática a intensificação do fluxo migratório no estado de Roraima à época do ajuizamento da ACO n. 3.121, dando ênfase à questão dos refugiados. Todavia, não se desconhece a possibilidade de que imigrantes venezuelanos requeiram visto temporário para acolhida humanitária, nos termos da Lei n. 13.445/2017, e não necessariamente o reconhecimento da situação de refugiados.
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2
Dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária.
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3
Define a composição, as competências e as normas de funcionamento do Comitê Federal de Assistência Emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária.
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4
Reconhece a situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária na República Bolivariana da Venezuela.
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5
Abre crédito extraordinário, em favor do Ministério da Defesa, no valor de R$ 190.000.000,00, para os fins que especifica (Crédito – Refugiados da Venezuela).
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6
Dispõe sobre a concessão de autorização de residência ao imigrante que esteja em território brasileiro e seja nacional de país fronteiriço, onde não esteja em vigor o Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e países associados, a fim atender a interesses da política migratória nacional.
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7
Operação Acolhida (deflagrada para assegurar apoio logístico aos imigrantes) e Operação Controle (que tem como objetivo auxiliar o controle das fronteiras e combater a prática de crimes transfronteiriços, por meio de patrulhamento rotineiro nas cidades de fronteira, bem como a realização de revista dos imigrantes).
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8
O referido decreto foi revogado pelo estado de Roraima em 6 de maio de 2019 ( BRASIL, 2018aBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora: Ministra Rosa Weber, 13 abr. 2018a. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 22 nov. 2021.
http://portal.stf.jus.br/processos/detal... ). -
9
A sentença falava em “ Estado de cosas contrario a la Constitución politica ”.
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10
O Brasil está no seleto rol de apenas cinco países – com a África do Sul, a Argentina, a Colômbia e os Estados Unidos – em que o 1% mais rico recebe mais de 15% da renda total ( SOUZA e MEDEIROS, 2017SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de; MEDEIROS, Marcelo. A concentração de renda no topo no Brasil, 2006-2014. International Policy Centre for Inclusive Growth , nov. 2017. Disponível em: http://www.ipcig.org/pub/port/OP370PT_A_concentracao_de_renda_no_topo_no_Brasil.pdf. Acesso em: 31 jan. 2019.
http://www.ipcig.org/pub/port/OP370PT_A_... ).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Mar 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
05 Abr 2020 -
Aceito
25 Nov 2021