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O regime de informação dos Centros de Fusão

The information regime of Fusion Center

Resumo:

O Centro de Fusão é um novo conceito da atividade de inteligência que congrega pessoas e organizações com fins de potencializar o uso da informação para combater o terrorismo e o crime organizado. A pesquisa teve por objetivo analisar se estes Centros representam uma real mudança na obtenção e tratamento dos dados oriundos de múltiplas fontes de informação, bem como para o aperfeiçoamento do fluxo da informação sensível no âmbito do Estado. Foi realizado um estudo de caso explorando vasto material documental e bibliográfico referente à Rede de Centros de Fusão dos Estados Unidos da América. Como aporte teórico-metodológico, o Regime de Informação foi a chave analítica, auxiliando na tarefa de compreender o ecossistema estudado, a partir do olhar da Ciência da Informação. O trabalho revelou o regime informacional dos Centros de Fusão, descrevendo: os atores sociais; os dispositivos; o aparato tecnológico da informação e o fluxo informacional. Foi possível concluir que os Centros representam uma inovação para se alcançar a real fusão da informação, baseando-se no uso da tecnologia aliada ao compartilhamento da informação entre atores relevantes. Esta última, viabilizada com a institucionalização da coleta e do compartilhamento calcados em um redesenho colaborativo. Além disso, uma mudança política, dando ênfase na perspectiva da informação de inteligência como ativo da sociedade, em detrimento da propriedade assumida pelas organizações, individualmente, com fins de consolidação de espaço e poder. Este conjunto de mudanças se apresentou como um caminho concreto para minorar barreiras humanas e organizacionais ao fluxo de informações sensíveis.

Palavras-chave:
regime de informação; Centro de Fusão da informação; fusão da informação; inteligência de estado; tratamento da informação

Abstract:

The Fusion Center is a new concept of intelligence activity that brings together people and organizations in order to enhance the use of information to combat terrorism and organized crime. The research aimed to analyze whether these Centers represent a real change for issues of obtaining and processing data from multiple sources of information, as well as for improving the flow of sensitive information within the government. A case study was conducted, exploring extensive documentary and bibliographic material related to the network of Fusion Centers in the USA. As a theoretical and methodological contribution, the information regime was the analytical key, assisting in the task of understanding the ecosystem studied, from the perspective of Information Science. The study revealed the informational regime of the Fusion Centers, describing: the social actors; technological artifacts; the technological apparatus of information and the informational flow. It was possible to conclude that the Centers represent an innovation to achieve the real fusion of information, based on the use of technology combined with information sharing across relevant actors. The latter was made possible by the institutionalization of collection and sharing based on a collaborative redesign. In addition, a political change, emphasizing the perspective of intelligence information as an asset of society, to the detriment of the ownership assumed by organizations, individually, for the purpose of consolidating space and power. This set of changes presented itself as a concrete way to reduce human and organizational barriers to the flow of sensitive information.

Keywords:
information regime; information Fusion Center; information fusion; state intelligence; information processing

1 Introdução

O Centro de Fusão é um novo conceito empregado na atividade de inteligência governamental que, em síntese, materializa-se em um equipamento capaz de congregar pessoas e organizações em um mesmo espaço físico ou virtual, a fim de potencializar o uso da informação de inteligência para combater, principalmente, o terrorismo e o crime organizado. Pouquíssimo estudado no exterior ( LEWANDOWSKI; CARTER; CAMPBELL, 2017LEWANDOWSKI, Carla; CARTER, Jeremy G.; CAMPBELL, Walter L. The role of people in information-sharing: perceptions from an analytic unit of a regional fusion center. Police Practice and Research, Oxon, v. 18, n. 2, p. 174-193, 2017.), e sem qualquer publicação científica em língua portuguesa presente no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e em fontes abertas 1 1 Por pesquisa em fontes abertas entenda-se pesquisas com livre acesso no Google, Google Acadêmico e demais plataformas disponíveis na internet que não apresentam restrições às buscas. pesquisadas, é ainda um conceito pouco discutido no contexto acadêmico nacional.

Os Centros de Fusão, nos moldes estabelecidos nos EUA, foram forjados a partir de embates e rearranjos ocorridos entre: atores políticos, como os membros do parlamento, que deram início aos trabalhos da Comissão 11/09; grupos focais do Departamento de Segurança Interna (DHS, Department of Homeland Security) e do Departamento de Justiça (DOJ, Department of Justice) dos EUA; chegando até chefes das polícias estaduais e grupos de defesa das liberdades individuais, dentre diversos outros atores estatais e da iniciativa privada. Das discussões, saíram soluções apontando quem lideraria a implementação, que tecnologias, dispositivos e artefatos estariam presentes, além de outras questões que foram decididas em um curto período, entre os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 e a implementação dos primeiros Centros de Fusão, em 2004 ( CARTER et al., 2016CARTER, Jeremy et al. Law enforcement fusion centers: cultivating an information sharing environment while safeguarding privacy. Journal of Police and Criminal Psychology, New York, v. 32, p. 11-27, 2016.; 9/11 COMMISSION, 20049/11 COMMISSION. The 9/11 Comission Report. Washington: U.S. Government Printing Office, 2004.; DOJ, 2006DOJ. Fusion center guidelines: developing and sharing information in a new era. Washington: Department of Homeland Security, 2006.; HOMELAND SECURITY, 2002HOMELAND SECURITY. National strategy for Homeland Security. Washington: National Institute of Justice, 2002. ).

No cenário delineado acima, em que vêm se desenvolvendo os Centros de Fusão, uma simples exploração acrítica do sistema de informação no qual está inserido não seria suficiente pa,ra entendê-lo em toda sua complexidade. E havia uma indagação a ser respondida: Os Centros de Fusão representam uma mudança na obtenção e tratamento dos dados oriundos de múltiplas fontes de informação, bem como para o aperfeiçoamento do compartilhamento da informação sensível no âmbito do Estado?

Na busca por um procedimento que auxiliasse no percurso da investigação, optou-se, no âmbito da Ciência da Informação, pela discussão sobre o regime de informação e a sua utilização enquanto ferramenta metodológica ( BEZERRA, 2019BEZERRA, Arthur C. iKritika: estudos críticos em informação. Rio de Janeiro: Garamond, 2019.). Para tanto, buscou-se entender o regime de informação em que estão inseridos os Centros de Fusão dos Estados Unidos da América (EUA) e definir (1) quais os atores sociais envolvidos; (2) quais os dispositivos presentes; (3) o aparato tecnológico da informação; (4) como se dá o fluxo informacional e como é organizada e utilizada a informação nesse espaço.

Como procedimento metodológico, a partir de exaustiva pesquisa bibliográfica e documental, buscou-se quais seriam as forças políticas e sociais presentes na elaboração do conceito, na implementação do projeto e na sua execução e gerenciamento. Com isso, foi possível entender a participação de atores públicos e privados pertencentes a esse universo, de maneira a perceber as construções sociais que de alguma forma deram suporte à sua concepção e desenvolvimento, e que hoje mantêm a existência e a expansão dos Centros de Fusão. Complementando, observou-se o arcabouço jurídico que sustenta a criação e a existência dos Centros, balizando a condução da política de informação e os limites de atuação dos atores estatais na busca pelos dados. Também foi descrito seu aparato tecnológico, com seus dispositivos de armazenamento e de transmissão da informação, observando os meios físicos pelos quais trafegam os dados e como funciona este mecanismo de distribuição da inteligência, chegando-se assim ao fluxo informacional.

Para melhor expor as ideias, este artigo está doravante estruturado da seguinte forma: no tópico dois serão apresentados o conceito, as características, as funções e a lógica de funcionamento dos Centros de Fusão; no tópico três estará presente a discussão sobre o conceito de regime de informação; no tópico quatro será detalhado o regime de informação dos Centros, apontando os atores sociais, o conjunto normativo, o aparato tecnológico e o fluxo informacional; e por fim, a seção cinco trata das conclusões decorrentes da observação efetuada sobre este novo conceito a partir do olhar da Ciência da Informação.

2 Os Centros de Fusão

Entre as concepções contemporâneas de instrumentos para maximizar a capacidade da inteligência governamental estão os Centros de Fusão. Eles podem ser entendidos como espécies de forças-tarefa multidisciplinares que coletam, analisam e compartilham informações sensíveis. Contam com a participação de autoridades federais, estaduais e locais, setores responsáveis ​​pela infraestrutura crítica, pela segurança de recursos relevantes à sociedade, além de setores da iniciativa privada que detenham dados importantes para a detecção e prevenção de todas as ameaças, todos os crimes e todos os incidentes de risco. ( DOJ, 2006DOJ. Fusion center guidelines: developing and sharing information in a new era. Washington: Department of Homeland Security, 2006.; RIEGLE, 2008RIEGLE, Robert. Baseline capabilities for state and major urban area fusion centers: a supplement to the fusion center guidelines. Washington: U.S. Department of Homeland Security, 2008.; STEWART, 2016STEWART, Chris. Combating terrorism: five things to know about a fusion center. Dayton: Dayton Daily News, 2016.). Para Carter e colaboradores, os Centros de Fusão são entidades físicas compostas por representantes governamentais, principalmente de agências policiais, bem como membros do setor privado e organizações públicas que, em teoria, devido à sua “[...] composição diversificada de organizações está mais bem posicionada para identificar e compreender as ameaças enfrentadas por uma determinada jurisdição ou região.” ( CARTER et al., 2016CARTER, Jeremy et al. Law enforcement fusion centers: cultivating an information sharing environment while safeguarding privacy. Journal of Police and Criminal Psychology, New York, v. 32, p. 11-27, 2016., p. 02, tradução nossa). Newkirk (2010NEWKIRK, Anthony Bolton. The rise of the fusion-intelligence complex: a critique of political surveillance after 9/11. Surveillance & Society, Newclastle, v. 8, n. 1, p. 43-60, 22 jul. 2010. ) avalia que todas as novas iniciativas de segurança de Washington dependem da tecnologia dos Centros de Fusão, o que os coloca como fundamentais para qualquer ação nesta área por parte do Governo Central. Neste sentido, o programa National Strategy for Information Sharing (NSIS) 2 2 A partir do ano de 2007, os Estados Unidos da América passaram a emitir a Estratégia Nacional de Compartilhamento de Informações ( National Strategy for Information Sharing - NSIS) para priorizar e favorecer o compartilhamento de informações relacionadas ao terrorismo. A NSIS visou integrar iniciativas relacionadas ao ISE (ambiente nacional de compartilhamento de informações) e estabelecer o plano nacional para consolidar o progresso feito na melhoria do compartilhamento de informações desde os ataques de 11 de setembro no sentido de estabelecer uma capacidade nacional integrada de compartilhamento de informações. reforça a tendência de utilização dos Centros, pois seu principal objetivo é de identificar comportamentos que sejam ao menos indicativos razoáveis “[...] do planejamento pré-operacional relacionado ao terrorismo ou outra atividade criminosa e coordenar o compartilhamento de informações com o Centro de Fusão apropriado e as Forças-Tarefa Conjuntas de Terrorismo do FBI.” ( NATIONWIDE SUSPICIOUS ACTIVITY REPORTING INITIATIVE, 2010NATIONWIDE SUSPICIOUS ACTIVITY REPORTING INITIATIVE. Final report: information sharing environment (ISE) - suspicious activity reporting (SAR) e valuation environment. Maryland: NSI, 2010.).

São funções de um Centro de Fusão compilar, analisar e divulgar informações criminais, informações de segurança interna, informações relativas a terrorismo e inteligência, informações sobre segurança pública, aplicação da lei, incêndio, saúde pública, serviços sociais e serviços públicos em geral, variando de acordo com as políticas e necessidades de cada localidade (9/11 COMMISSION, 20049/11 COMMISSION. The 9/11 Comission Report. Washington: U.S. Government Printing Office, 2004.). Cada Centro é projetado para cobrir uma área geográfica específica, conectando policiais estaduais e federais, serviços de emergência, serviços de transporte e uma ampla variedade de empresas privadas dentro de sua jurisdição. Atuam assim como um multiplicador de força que aprimora as capacidades analíticas dentro de suas áreas de operação ( SAARI, 2010SAARI, Shane C. Fusion centers securing America’s heartland from threats. Monterey: Naval Postgraduate School, 2010.).

Não obstante, não há exigência de que eles contenham todas estas capacidades, e cada Centro difere de acordo com suas responsabilidades individuais, bem como com a direção fornecida pelo governo local, uma vez que são entidades criadas e em grande parte financiadas pelos estados. Além disso, não há um modelo rígido acerca de como um Centro deve ser estruturado. ( MASSE; O’NEIL; ROLLINS, 2007MASSE, Todd; O’NEIL, Siobhan; ROLLINS, John. A summary of fusion centers: core issues and options for congress. Washington: congressional research service, 2007.). Segundo Regan e Monahan (2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.), tais características intrínsecas da localidade são o reflexo cultural da formação dos operadores de cada um destes equipamentos. Todavia, as Diretrizes dos Centros de Fusão, publicadas pelo Governo Federal, que abordam as características básicas que devem possuir, são normalmente adotadas e respeitadas pelos gestores dos Centros existentes ( SMITH, 2011SMITH, Walter E. Developing a model fusion center to enhance information sharing. Monterey: Naval Postgraduate School , 2011. ).

Os Centros de Fusão funcionam como um instrumento que “populariza” a coleta de dados para a inteligência e maximiza o compartilhamento da informação. Eles servem de pontos focais para instrumentalizar e incentivar a prática da inteligência, tanto por órgãos de segurança já estruturados e com algum setor de inteligência já em funcionamento, como também pelas pequenas delegacias e polícias tribais, que anteriormente não participavam da coleta e do compartilhamento da informação. E essa popularização mostra-se mais evidente quando a coleta de informação alcança entidades que não são do nicho tradicional da inteligência, buscando parcerias na iniciativa privada e em entidades como o corpo de bombeiros, a defesa civil e primeiros socorristas em geral, como forma de maximizar o alcance de informações locais. Estas, por sua vez, encontram nos Centros de Fusão uma via capaz de fazer a informação trafegar até os principais organismos de inteligência federais ( NATIONAL STRATEGY FOR INFORMATION SHARING, 2007NATIONAL STRATEGY FOR INFORMATION SHARING. Successes and challenges in improving terrorism-related information sharing. Washington: Morgan James Publishing, 2007. ).

Foi possível observar ainda que os Centros operam sobre a lógica de máxima obtenção de dados junto à iniciativa privada, tanto a partir de parcerias individuais como pela aquisição de seus sistemas e bancos de dados. Com isso, seriam parte do mecanismo engendrado pelo governo central para driblar as restrições legais aos entes estatais quanto à coleta de dados para a atividade de inteligência doméstica, aproveitando-se da menor regulação sobre empresas privadas. Esse mecanismo ganhou força com a edição da Lei Patriótica 3 3 A Lei Patriótica ( Patriot Act) foi promulgada em 2001 com o apelo de ser uma norma para “Unir e fortalecer a América, fornecendo as ferramentas adequadas para combater o terrorismo” ( USA, 2001). Esta lei removeu barreiras ao compartilhamento de informações entre a atividade policial e a comunidade de inteligência, ao mesmo tempo que cuidou da proteção das liberdades fundamentais do cidadão. Aproveitando o clima de guerra ao terror, propiciado pelos eventos do 11/09, a Lei Patriótica alterou de forma relevante diversos aspectos da legislação americana, promovendo inúmeras alterações nos estatutos existentes relativos à privacidade das comunicações telefônicas e eletrônicas, à lavagem de dinheiro, à imigração, além de definir uma série de novos crimes e aumento das penas para crimes já existentes. , logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que flexibilizou e enfraqueceu de maneira relevante as proteções individuais.

Naquele momento da história estadunidense havia um clima desfavorável aos legisladores e setores da sociedade que lutavam por uma maior regulamentação da captação e uso de dados pessoais por empresas privadas. Isso ajudou a aumentar os efeitos da Lei Patriótica. E esta teria sido a política adotada pelo governo George W. Bush (2001-2009): a lógica de máxima obtenção de dados. E o mecanismo funcionou a partir do uso das empresas privadas de tecnologia estadunidenses, que já possuíam soluções multidimensionais para coletar dados, e uma grande capacidade de armazenamento e mineração. Com isso em mãos, passaram a disponibilizar um conhecimento sem precedentes na história sobre indivíduos em solo americano. Neste arranjo, estava-se reunindo um conjunto de informações que ia muito além daquelas tradicionais, ligadas apenas a elementos pessoais, como os números de identidade, endereços e outros dados cadastrais. Agora, os dados recebidos adentravam o mundo do comportamento, revelando tendências, gostos e vontades dos indivíduos, bem como suas redes de relacionamentos e mapas de calor acerca de onde desenvolvem suas atividades. Neste novo modelo, angariou-se um conhecimento abrangente sobre uma gama considerável dos cidadãos estadunidenses. ( HOOFNAGLE, 2003HOOFNAGLE, Chris J. big brother's little helpers: how choicepoint and other commercial data brokers collect and package your data for law enforcement. North Carolina Journal of International Law, Chapel Hill, v. 29, n. 4, p. 1-46, 2003. ; BALKIN, 2008BALKIN, Jack M. The constitution in the national surveillance State. Minnesota Law Review, Minessota, v. 93, n. 1, 2008. ; MICHAELS, 2008MICHAELS, Jon D. All the president's spies: private-public intelligence partnerships in the war on terror. California Law Review, Berkeley, v. 96, p. 901, 2008.; MONAHAN, 2010MONAHAN, Torin. The future of security? Surveillance operations at homeland security fusion centers. Social Justice, Dordrecht, v. 37, n. 2/3, p. 84-98, 2010. ; NEWKIRK, 2010NEWKIRK, Anthony Bolton. The rise of the fusion-intelligence complex: a critique of political surveillance after 9/11. Surveillance & Society, Newclastle, v. 8, n. 1, p. 43-60, 22 jul. 2010. ; MCCHRYSTAL et al., 2015MCCHRYSTAL, Stanley et al. Team of teams: new rules of engagement for a complex world. New York: Penguin Publishing Group, 2015. ; O'HARROW, 2008O’HARROW, Robert Jr . Centers tap into personal databases. Washington Post, Washington D.C., abr. 2008.; ZUBOFF, 2018ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-69.).

Em dezembro de 2020, segundo a National Fusion Center Association, já estavam em funcionamento cerca de 80 Centros de Fusão nos EUA. Também há Centros em vários países da Europa, Oceania e América do Sul ( VAN DER VEER; BOS; VAN DER HEIDE, 2019VAN DER VEER, Renske; BOS, Walle; VAN DER HEIDE, Liesbeth. Fusion centres in six european countries: emergence, roles and challenges. ICCT Report, The Hague, p. 28, feb. 2019. ). No Brasil foi construído um Centro de Fusão em Foz do Iguaçu que foi inspirado no “modelo norte-americano de Fusion Center”. ( BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública . Portaria n° 264, de 25 de março de 2019. Institui Grupo de Trabalho, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para avaliar a conveniência e oportunidade da redução da tributação de cigarros fabricados no Brasil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 58, 26 mar. 2019. ).

3 Regime de informação

Diante da novidade que é o Centro de Fusão, bem como pela existência de um destes dispositivos em território nacional, mostra-se premente que a comunidade científica tenha conhecimento do que se trata, e venha a contribuir nas discussões sobre a forma de seu uso no Brasil. Para a tarefa de trazer luz a essa inovação, a pesquisa se ancorou no conceito de regime de informação.

O regime de informação é a representação de uma rede, ou sistema, em que a informação flui por canais específicos, de um ponto a outro, mas vai além de uma visão meramente descritiva deste sistema: a modelagem dá-se diante das relações de poder, do embate sobre a política de informação e as diversas interações dos grupos de interesse presentes em dado regime de informação, sendo necessária uma visão analítica para compreender como se chegou àquele modelo. Uma “representação lúcida do regime de informação” é capaz de demonstrar como “[...] se originam e se estabilizam; como determinam as relações sociais, e como as formas de poder específico são exercidas neles e através deles.” ( FROHMANN, 1995FROHMANN, Bernd. Taking information policy beyond Information Science: applying the actor network theory. In: ANUAL CONFERENCE OF THE CANADIAN ASSOCIATION FOR INFORMAITON SCIENCE, 23., 1995, Canadá. Proceedings [...]. Edmonton, Alberta, Canadá, 1995. , tradução nossa). Descrever determinado regime de informação significa, dentre outras tarefas, identificar os atores em conflito, suas disputas e a tentativa de apontar o resultado momentâneo. ( FROHMANN, 1995FROHMANN, Bernd. Taking information policy beyond Information Science: applying the actor network theory. In: ANUAL CONFERENCE OF THE CANADIAN ASSOCIATION FOR INFORMAITON SCIENCE, 23., 1995, Canadá. Proceedings [...]. Edmonton, Alberta, Canadá, 1995. ).

González de Gómez (1999GÓMEZ, Maria Nélida González de. O caráter seletivo das ações de informação. Informare, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 7-31, 1999.) destaca que, ao se observar sistemas de informação pelo prisma do regime de informação, abre-se a perspectiva para além do âmbito estatal: “O conceito de regime de informação, de inspiração foucaultiana, permite-nos falar de política e de poder sem ficarmos restritos ao Estado e às Políticas Públicas.” (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1999GÓMEZ, Maria Nélida González de. O caráter seletivo das ações de informação. Informare, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 7-31, 1999., p. 27). Ou seja, há a presença também do setor privado, com seus grupos de influência. Dentre eles, por exemplo, as grandes corporações da área de tecnologia, como Google e Microsoft, que delineiam, a partir de suas políticas próprias, dispositivos que contribuem na modelagem dos sistemas de informação. Mas não só atores ligados à tecnologia estariam neste grupo de influência, sendo possível colocar também diversos outros participantes que alteram a lógica da utilização e do valor da informação, como aqueles ligados ao sistema financeiro e ao mercado em geral, que têm na informação um bem de alta importância para as respectivas existências.

Diferente de Frohmann (1995FROHMANN, Bernd. Taking information policy beyond Information Science: applying the actor network theory. In: ANUAL CONFERENCE OF THE CANADIAN ASSOCIATION FOR INFORMAITON SCIENCE, 23., 1995, Canadá. Proceedings [...]. Edmonton, Alberta, Canadá, 1995. ), que fala em diversos regimes de informação ao traçar o seu conceito, González de Gómez (2002GÓMEZ, Maria Nélida González de. Novos cenários políticos para a informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 31, n. 1, p. 27- 40, 2002.) privilegia sua visão num todo, em um sistema mais abrangente que, a partir de uma produção informacional dominante, teria o condão de definir demais fatores. Já em um escrito posterior, González de Gómez (2012GÓMEZ, Maria Nélida González de. Regime de informação: construção de um conceito. Informação e Sociedade: estudos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 43-60, set./dez. 2012.) afirma a questão do conflito e das tensões oriundas das dimensões da política e do poder, aponta as regras, as normas, os padrões e os códigos como pontos privilegiados da ocorrência das tensões, colocando como função do regime de informação trazê-los à tona. Com isso, ficaria evidenciado o que determina a forma “a” ou “b” de como teremos acesso à informação, pois ela é dependente de uma miríade de fatores que passam por leis, grupos econômicos e seus mecanismos, aparatos técnicos e outros que são forjados pela interação entre os atores envolvidos. Caso ocorra alteração no ordenamento jurídico, na economia, no grupo político hegemônico, certamente acarretará modificações no regime de informação, demonstrando ser este inseparável das dimensões da política e do poder, dentre outras características que o cercam e o compõem. ( BEZERRA, 2019BEZERRA, Arthur C. iKritika: estudos críticos em informação. Rio de Janeiro: Garamond, 2019.; GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012GÓMEZ, Maria Nélida González de. Regime de informação: construção de um conceito. Informação e Sociedade: estudos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 43-60, set./dez. 2012.).

Unger e Freire (2008UNGER, Roberto José Gervásio; FREIRE, Isa Maria. Regimes de informação na sociedade da informação: uma contribuição para a gestão da informação. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 5, n. 2, p. 87-114, 2008. ) abordam o conceito de regime de informação como modos de produção social, de maneira a contribuir com uma visão crítica dos sistemas de informação, uma vez que procuram sempre destacar o contexto social onde os sistemas de informação estão inseridos. Da forma como interpretam, a extensão do conceito de regime de informação apresenta uma “[...] dupla composição: um meio ambiente físico onde se instalam os artefatos tecnológicos e as políticas informacionais que regulam sua produção e comunicação.” ( UNGER; FREIRE, 2008UNGER, Roberto José Gervásio; FREIRE, Isa Maria. Regimes de informação na sociedade da informação: uma contribuição para a gestão da informação. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 5, n. 2, p. 87-114, 2008. , p. 92). Para os autores, os regimes de informação são compostos fisicamente por: estoques de informação, que se constituem de sistemas de informação; diretrizes políticas que direcionam os conteúdos informacionais abrigados nos sistemas de informação; os seres humanos e suas necessidades informacionais; o ambiente social em que estoques de informação e os seres humanos que os utilizam se inserem; os mecanismos de distribuição do acesso à informação; e os meios físicos que permitem o ir e vir da informação (conectividade) ( UNGER; FREIRE, 2008UNGER, Roberto José Gervásio; FREIRE, Isa Maria. Regimes de informação na sociedade da informação: uma contribuição para a gestão da informação. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 5, n. 2, p. 87-114, 2008. ).

Outras características presentes nos regimes de informação são sua fluidez e dinamicidade no tempo, sendo elas afetadas por mudanças em políticas de informação, surgimento de novas tecnologias e mudanças legislativas. Tais mudanças afetam a estrutura do regime de informação, pois este adquiriu determinada configuração através das disputas de poder envolvendo instituições, pessoas, grupos econômicos e políticos, que são afetados e têm suas capacidades de influência sobre o processo de conformação do regime alterada. Isso contribui para as modificações no decorrer do tempo. Portanto, o regime de informação de um determinado lugar vai ser específico para determinado período temporal, tendo sua conformação modificada a partir de fatos sociais que surjam e tenham força de modificação sobre como a informação é obtida, tratada e distribuída entre os atores sociais integrantes de determinado regime de informação. Nesse sentido, González de Gómez (2003GÓMEZ, Maria Nélida González de. As relações entre ciência, Estado e sociedade: um domínio de visibilidade para as questões da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 32, n. 1, p. 60-76, abr. 2003.) também aponta variáveis que afetam o modo como se estrutura um regime de informação, pois este estaria exposto a condições culturais, políticas e econômicas que teriam expressão e seriam parte constituinte do regime. Além de ser passível de sofrer mutações com o passar do tempo, um regime de informação também varia de acordo com aspectos ligados ao espaço onde está situado, sofrendo interferências advindas da cultura local e da conformação de poder ali existente, sendo resultado da interação dessas variáveis. ( BEZERRA, 2019BEZERRA, Arthur C. iKritika: estudos críticos em informação. Rio de Janeiro: Garamond, 2019.; CHICANEL; GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2008CHICANEL, Marize; GÓMEZ, Maria Nélida Gonzáles. A mudança de regimes de informação e as variações tecnológicas. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 9., São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2008, p. 1-14.).

4 Regime de informação dos Centros de Fusão

Visto o conceito de regime de informação, a proposta deste artigo é aplicar este conhecimento para trazer à tona seus aspectos presentes nos Centros de Fusão. Para realizar esta tarefa, inicialmente será tratada a faceta que diz respeito aos atores sociais, para em seguida analisar, respectivamente, o conjunto normativo, o aparato tecnológico e o fluxo informacional.

4.1 Atores sociais: identificação, localização e atuação

O impulso inicial para o estabelecimento dos Centros foi o Relatório do Congresso dos EUA, The 9/11 Commission Report. Ele indicou diversos dos atores sociais envolvidos no regime dos Centros de Fusão, pois, de sua análise, extraíram-se as correntes atuantes e as entidades que lideraram o início das ações que concretizaram o estabelecimento da rede de Centros de Fusão existente nos EUA.

Consolidando algumas das políticas sugeridas no referido Relatório do Congresso, o ato normativo EUA , 2002, cujo intuito é o de “[...] facilitar os procedimentos de compartilhamento de informações de segurança interna [...]” (USA, 2002USA. Public law 107 - 296 107th congress. To deter and punish terrorist acts in the United States and around the world, to enhance law enforcement investigatory tools, and for other purposes. Washington: United States Congress, 2002. ), empoderou legalmente o Departamento de Segurança Interna (DHS) para iniciar a implementação da organização do fluxo de dados e inteligência para o Governo dos EUA. E uma das suas primeiras ações foi a implantação dos Centros de Fusão, passando a ser o ator central para o seu desenvolvimento, oferecendo pessoal, treinamento, assistência técnica, autorizações de segurança, conectividade aos sistemas federais, tecnologia e financiamento ( REGAN; MONAHAN, 2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.). Na concepção da política geral dos Centros de Fusão, o DHS trabalhou em conjunto com o Departamento de Justiça (DOJ) na produção de manuais de procedimento e, principalmente, das diretrizes que, apesar de não serem impositivas, direcionaram o curso de ação das administrações locais durante a implantação dos Centros, pois a liberação de fundos de financiamento ficou vinculada à atuação das unidades locais naquilo que determinou o órgão central a partir do DHS e do DOJ, sendo uma forma de exercer certo controle ( BRANDSEN; BOOGERS; TOPS, 2006BRANDSEN, Taco; BOOGERS, Marcel; TOPS, Pieter. Soft governance, hard consequences: the ambiguous status of unofficial guidelines. Public Administration Review, Hoboken, v. 66, n. 4, 2006.). E este controle se mostrou ainda maior, pois DHS e DOJ foram os principais fomentadores, no nível do governo federal, das verbas para o funcionamento inicial dos Centros de Fusão. E o papel deles é preponderante até os dias atuais. No entanto, observa-se uma gradual diminuição de suas parcelas de contribuição, com estados e municípios arcando cada vez mais com os custos dos Centros. A contribuição destes dois entes em 2010 significou 39% do total investido, sendo que em 2018 estados e municípios já chegavam ao patamar de 64% do valor total. Já o governo central, que era o principal fomentador, passou de 61% das contribuições em 2010 para apenas 27% em 2018. Essa dinâmica aponta para uma diminuição progressiva da parcela de poder que o governo central exerce sobre os Centros ( REGAN; MONAHAN, 2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.; GARDNER, 2017GARDNER, Jeffrey. A duty to share: the opportunities and obstacles of federal counterterrorism intelligence sharing with nonfederal Fusion Centers. Minneapolis: Walden University, 2017.; DHS, 2018DHS. National network of fusion centers final report. Washington: Department of Homeland Security, 2018.).

Em relação aos atores em posição de comando em cada um dos Centros de Fusão, as agências policiais se tornaram a principal liderança à frente da gerência, sendo ocupado por policiais o principal posto de gestor em 76% dos casos. Também são os policiais que aparecem como maioria dos seus integrantes, com 79% do número total de funcionários ( REGAN; MONAHAN, 2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.; DHS, 2018DHS. National network of fusion centers final report. Washington: Department of Homeland Security, 2018.).

Apesar de o DHS ser um grande financiador dos Centros, bem como ter sido o ator central na fase de sua implantação, Regan e Monahan (2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.) observaram não haver um forte controle gerencial por parte dele sobre os Centros de Fusão. Os referidos pesquisadores identificaram que o tipo de gerenciamento existente seria uma “governança suave” por parte do DHS, que dirigiria as autoridades estaduais e locais sem que ocorresse uma imposição hierárquica. A condução decorria através da implementação de diretrizes não oficiais sobre como deveria ser o procedimento nos Centros. Smith (2011DOJ. Fusion center guidelines: developing and sharing information in a new era. Washington: Department of Homeland Security, 2006.) afirmou que esta lógica estava ocorrendo pelo fato de as diretrizes estabelecidas pelo governo central terem sido adotadas pelos parceiros estaduais e locais, havendo um respeito pelo seu conteúdo e, assim, tornando-as relevantes para a estruturação dos Centros e para a uniformização das práticas internas. Em contraponto à governança suave exercida pelo DHS, e equilibrando a forma de ser e agir dos Centros com os interesses de estados e municípios, havia a composição interna de colaboradores, majoritariamente formada por indivíduos ligados à atividade policial da localidade, que naturalmente condicionava a atuação dos Centros para os problemas do cotidiano de cada região. Este contraponto diminuiu o peso da atividade finalística originária dos Centros, que era o combate ao terrorismo doméstico, e conduziu seu foco para todos os crimes e todos os perigos. A força exercida por estes atores sociais no sentido de que os Centros também se ocupassem dos problemas ordinários de cada localidade foi tão relevante que, no decorrer das discussões, essa tendência passou a ser considerada como essencial para a continuidade dos Centros, uma vez que atenderiam aos anseios da população e das polícias locais e, ao mesmo tempo, continuariam servindo como fonte de dados de difícil acesso pelos atores ligados às agências centrais de inteligência ( BRANDSEN; BOOGERS; TOPS, 2006BRANDSEN, Taco; BOOGERS, Marcel; TOPS, Pieter. Soft governance, hard consequences: the ambiguous status of unofficial guidelines. Public Administration Review, Hoboken, v. 66, n. 4, 2006.; REGAN; MONAHAN, 2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014.).

Em relação aos atores do setor privado, é notória a importância dispensada a estes quanto à sua presença e participação nos Centros de Fusão, sendo incentivado que tenham assento nos corpos diretivos, bem como nos treinamentos e demais eventos, de maneira a aproximar estes atores cada vez mais. Tal fato é importante apesar de, aparentemente, entidades privadas não possuírem grandes poderes de decisão e influência na direção dos Centros, bem como de haver uma limitação de acesso a dados e informações mais sensíveis. Todavia, apesar de na teoria existir este incentivo e o desejo de que o corpo de governança seja multidisciplinar e abrangente em seu espectro concernente à origem dos participantes, na prática o objetivo não estaria sendo verdadeiramente alcançado. “Mas pelo que podemos discernir, os conselhos consultivos raramente se reúnem, e a maioria dos centros de fusão opera diretamente dentro da cultura e limites da comunidade policial.” ( REGAN; MONAHAN, 2014REGAN, Priscilla M.; MONAHAN, Torin. Fusion center accountability and intergovernmental information sharing. Publius, Oxford, v. 44, n. 3, p. 475-498, 2014., p. 490).

Portanto, fica evidenciado que o controle sobre o modo de operar dos Centros de Fusão está sob a influência da comunidade policial que, dentre outras questões, visa à obtenção das verbas destinadas aos Centros, por isso se amoldam, em alguma medida, às exigências dos órgãos federais, como o DHS e o DOJ.

4.2 Conjunto normativo

Dando continuidade à descrição do regime informacional, a pesquisa passou a observar e evidenciar o arcabouço normativo, pois conforme González de Gómez (2012GÓMEZ, Maria Nélida González de. Regime de informação: construção de um conceito. Informação e Sociedade: estudos, João Pessoa, v. 22, n. 3, p. 43-60, set./dez. 2012., p. 56), isso “[...] permitiria associar a ancoragem espaço-temporal e cultural das ações de informação aos contextos regulatórios e tecnológicos que intervêm e perpassam diferentes domínios de atividades, agências e organizações.”.

O 11 de setembro desencadeou uma corrida contra o tempo para eliminar as barreiras que separavam as agências de inteligência e dificultavam a troca de informações. Dentre os obstáculos, estavam leis que se sobrepunham, diferentes níveis de autorização de acesso a informações reservadas, capacidades diferentes entre os três níveis de governo e as várias agências que têm algum papel no combate ao terrorismo. Sales (2010SALES, Nathan Alexander. Share and share alike: intelligence agencies and information sharing. George Washington law review, Washington, v. 78, n. 2, 2010.) descreveu algumas dessas restrições legais sobre o compartilhamento de informações, como a Lei de Segurança Nacional de 1947, que proíbe a CIA de funções de segurança interna e de que ela efetue o compartilhamento de determinado tipo de informação com outras agências de inteligência, como o FBI por exemplo. Também a Lei Posse Comitatus, que pode impedir que as Forças Armadas compartilhem informações com as autoridades nacionais. Ele ainda traz outros exemplos, como a Lei de Privacidade, de 1974, voltada à privacidade individual, uma vez que uma interpretação restritiva da referida Lei pode impedir determinadas trocas de informações relevantes. Como exemplo, o impedimento de a agência da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA compartilhar dados sobre a chegada de navios de contêineres com funcionários da Agência de Segurança Nacional (NSA, National Security Agency), quando esta deseja explorá-los para rastrear passageiros clandestinos que tenham ligação com grupos terroristas, dentre outros ( SALES, 2010SALES, Nathan Alexander. Share and share alike: intelligence agencies and information sharing. George Washington law review, Washington, v. 78, n. 2, 2010.).

E essas barreiras exigiram mudanças legislativas, o que implicou em alterações significativas nas competências e obrigações de diversos entes, concentrando poder e distribuindo funções por toda a rede de compartilhamento de informações, empoderando determinados atores em detrimento de outros. Também teve o efeito de causar atrito e desconfiança em setores da sociedade, que passaram a enxergar, na empresa de inteligência que estava em formação, uma ameaça a determinados grupos sociais, que poderiam passar a serem alvos do acompanhamento massivo por parte do Estado, interferindo em suas liberdades e direitos individuais. Todas essas mudanças impactaram e provocaram rearranjos no regime de informação. Visando trazer à tona o referido domínio, buscou-se na página eletrônica da Associação Nacional dos Centros de Fusão aquelas normas que estavam lá elencadas como fundamentais aos Centros de Fusão e ao compartilhamento de dados: The 9/11 Commission Report; National Criminal Intelligence Sharing Plan; Intelligence Reform and Terrorism Prevention Act; Intelligence and Information Sharing Initiative: Homeland Security Intelligence and Information Fusion; The Fusion Center Guidelines Resource; National Strategy for Information Sharing; Baseline Capabilities for State and Major Urban Area Fusion Centers; e o National Strategy for Information Sharing and Safeguarding. Além destes, a citada associação deixou de destacar três normas anteriores ao The 9/11 Commission Report, que tiveram impacto determinante na criação dos Centros e também na esfera da atuação do Estado, com aprofundamento dos poderes para agir em prol da coletividade e com consequente relativização dos direitos e garantias individuais, que seriam o Patriotic Act e a Lei de Segurança Interna de 2002, inclusive esta última tendo criado o DHS, que viria a ser o principal impulsionador da criação dos Centros de Fusão. Junte-se também à lista o Memorando Presidencial de 16 de dezembro de 2005: Guidelines and Requirements in Support of the Information Sharing Environment, que teve sua relevância por haver inaugurado o compartilhamento de informações entre órgãos federais com outros entes, como agências estaduais, locais e tribais, bem como o setor privado. De todo esse arcabouço, foi possível observar que o conjunto de forças que prevaleceu neste momento de fundação e desenvolvimento dos Centros de Fusão, a partir da ancoragem espaço-temporal aos contextos regulatórios, foi aquela que buscou relativizar os direitos individuais em prol da proteção do conjunto da sociedade, com normas voltadas a produzir uma maior facilidade na questão da obtenção e do compartilhamento de informações, com os Centros de Fusão funcionando como parte desta nova lógica do regime informacional em mutação.

4.2.1 O não dito

Complementando a pesquisa acerca da legislação e dos atores sociais, ao se buscar entender o regime de informação dos Centros, uma questão se mostrou bem evidente: além da flexibilização das leis de proteção individual realizadas de maneira formal, ocorreu também um movimento de não regulamentação sobre a coleta massiva e a mineração de dados comerciais realizadas pelas empresas privadas. O ambiente de medo que se instaurou logo após o ataque terrorista às Torres Gêmeas enfraqueceu a luta dos setores sociais e de parlamentares que buscavam uma legislação mais contundente em relação ao tratamento dos dados dos consumidores por parte das empresas de tecnologia privadas. Se aproveitando deste momento de fragilidade, teria havido uma política intencional no sentido de permitir esta atuação privada, pois tornar-se-ia uma importante fonte de informação sobre os gostos, as preferências, as histórias e os comportamentos das pessoas de que, em seguida, os governos poderiam se apropriar através da terceirização de uma atividade governamental observada na ausência de regulação das empresas de tecnologia. E esta arquitetura estaria permitindo cada vez mais a comunidade de inteligência nos EUA a trabalharem com a iniciativa privada. ( BALKIN, 2008BALKIN, Jack M. The constitution in the national surveillance State. Minnesota Law Review, Minessota, v. 93, n. 1, 2008. ). Portanto, conclui-se que passou a ser uma política de estado permitir que empresas privadas tivessem um alcance multidimensional na coleta de dados, com mínima regulação. Desta forma, pouco perceptível pelos cidadãos, as agências de inteligência, em convênio com a iniciativa privada, conseguiram acesso às informações dos indivíduos a partir da coleta e mineração dos dados disponibilizados em redes sociais, compras e demais atividades que são executadas no cotidiano de uma pessoa. Assim, a invasão da privacidade ocorreria sem que produzisse uma reação nas pessoas, como aquela que se observa frente à obtenção ostensiva de dados, realizada a partir de um mandado judicial que determina busca e apreensão, ou ainda uma interceptação telefônica, pois estas têm o poder de causar maior aversão e decorrente reação. ( HOOFNAGLE, 2003HOOFNAGLE, Chris J. big brother's little helpers: how choicepoint and other commercial data brokers collect and package your data for law enforcement. North Carolina Journal of International Law, Chapel Hill, v. 29, n. 4, p. 1-46, 2003. ; BALKIN, 2008BALKIN, Jack M. The constitution in the national surveillance State. Minnesota Law Review, Minessota, v. 93, n. 1, 2008. ; MICHAELS, 2008MICHAELS, Jon D. All the president's spies: private-public intelligence partnerships in the war on terror. California Law Review, Berkeley, v. 96, p. 901, 2008.; ZUBOFF, 2021ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.). Neste novo desenho, o regime informacional, em sua faceta ligada à produção legislativa, emerge diferente a partir da soma de novas leis, autorizando uma maior obtenção e troca de informações entre setores governamentais e, adicionalmente, com uma omissão legislativa proposital, a não regulação, ou uma regulação branda, do setor de tecnologia privado, com a clara intenção de o governo se apropriar em seguida do conteúdo gerado.

4.3 Aparato tecnológico

A perspectiva tecnológica é uma vertente tão importante quanto a informação, [sic] neste trabalho, pois a ideologia dos regimes de informação se estabelece pela forte presença da tecnologia que dá suporte ao regime, sustentando os sistemas de informação e ganhando força e importância no acesso, com as linguagens documentárias ( UNGER; FREIRE, 2008UNGER, Roberto José Gervásio; FREIRE, Isa Maria. Regimes de informação na sociedade da informação: uma contribuição para a gestão da informação. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 5, n. 2, p. 87-114, 2008. , p. 88).

Um dos principais impeditivos para a troca de informações está relacionado ao fato de cada agência operar seus próprios sistemas de tecnologia da informação, impedindo que possam acessar os dados umas das outras. Em 2010, o ex-Diretor de Inteligência Nacional, James Clapper, em audiência perante o Senado dos EUA, teria afirmado estar “horrorizado” por não haver um banco de dados comum, com uma capacidade de pesquisa robusta, atendendo às várias agências de inteligência do país. Ao invés disso, o que havia era cinquenta bancos de dados com diferentes níveis de sofisticação, fator que dificultaria a comunicação e troca de informações ( AMBINDER, 2010AMBINDER, Marc. Clapper promises to be tough, but on What? The Atlantic, Boston, july 20, 2010. ).

Para superar esta deficiência, no que concerne ao aparato tecnológico presente nos Centros de Fusão, a política estadunidense, em geral, não se prestou a apontar determinado software ou hardware que se apresentasse como melhor solução e que figurasse como principal responsável pelo processo de fusão da informação. Nem impôs qualquer solução tecnológica padronizada capaz de criar um ecossistema inteligente e responsivo que pudesse integrar vários fluxos de dados em uma única imagem coesa, permitindo que os usuários avaliassem uma situação em tempo real e tomassem decisões mais acertadas. Também não há, de forma expressa, na documentação oriunda do governo central, um direcionamento para determinado grupo de softwares voltados a resolver o problema da interoperabilidade ou que venha a realizar alguma inteligência artificial, apontando tendências ou outros aspectos que viessem auxiliar o trabalho interno de análise e tomada de decisão. Gardner (2017GARDNER, Jeffrey. A duty to share: the opportunities and obstacles of federal counterterrorism intelligence sharing with nonfederal Fusion Centers. Minneapolis: Walden University, 2017.), mesmo reconhecendo que ocorreram grandes melhorias na área desde o 11 de setembro, afirmou não ter observado a implementação de nenhum mecanismo tecnológico ideal para o compartilhamento de inteligência.

Em 2006 ocorreu uma tentativa de se realizar a padronização técnica e de negócios dos Centros de Fusão através de um programa conjunto entre o DHS e o DOJ. A partir desta iniciativa foi elaborado o relatório técnico intitulado Defining Fusion Center Technology Business Processes: A Tool for Planning. Todavia, já no início dos trabalhos, constatou-se que não era viável se exigir uma uniformização devido às variações de infraestrutura técnica, ferramentas, capacidades e metodologias que já estariam em uso nos Centros de Fusão ( DOJ, 2009DOJ. Defining fusion center technology business processes: a tool for planning. Washington: Department of Homeland Security, 2009. ). Diante disso, optou-se por uma via diferente: capacitar os gestores para identificar as necessidades e ter um conhecimento mínimo na hora de optar pela melhor tecnologia para o Centro. E a diretriz emanada do governo central se deu no sentido de que os processos de negócios relacionados deveriam ser previamente identificados para em seguida serem compradas, ou desenvolvidas, a tecnologia da informação, a infraestrutura de comunicações e os sistemas ou equipamentos para lidar com esses processos ( DOJ, 2009DOJ. Defining fusion center technology business processes: a tool for planning. Washington: Department of Homeland Security, 2009. ).

De tudo que foi pesquisado acerca do aparato tecnológico presente no regime de informação, foi possível concluir que há uma diretriz geral incentivando e premiando aqueles que aderem a certas arquiteturas tecnológicas que propiciam a interoperabilidade de banco de dados e sistemas, sempre voltados a permitir a maior troca de informações entre os participantes da empresa de inteligência. Há também um incentivo à aquisição de soluções tecnológicas disponibilizadas pelo setor privado, desde bancos de dados até programas de busca e mineração de dados em sistemas privados e redes sociais, mas sem uma padronização ou imposição de determinado tipo ou marca, sendo uma escolha autônoma por cada Centro de Fusão participante. Todavia, mesmo que não impositiva, a atuação do governo central no direcionamento das escolhas fica latente a partir da sua capacidade de financiamento dos programas de aquisição de tecnologia e de treinamento, o que ajuda na padronização e melhoria da interoperabilidade buscada.

4.4 Fluxo Informacional

Partindo das fontes locais, o Centro de Fusão coletaria e disseminaria dados, informações e produtos de inteligência com as polícias estadual e local (municipal), serviços de emergência, setores da iniciativa privada e cidadãos comuns. Ao receber, por exemplo, o Relatório de Incidente, o gestor do Centro de Fusão encaminha para o setor interno responsável pelas análises. Neste setor, o analista terá à sua disposição os diversos bancos de dados locais e os parceiros presentes fisicamente no Centro para as devidas consultas e colaborações. Feita a análise, o fluxo segue, sendo o produto de inteligência compartilhado com a agência policial que originou o relatório. Caso o Centro de Fusão identifique padrões ou outros fatores que demonstrem conexão com outro caso de que tenha conhecimento, efetuará o envio do produto de inteligência àqueles parceiros que estão trabalhando em assuntos próximos ou que a questão tenha repercussão na sua esfera de atuação. Em caso de a análise concluir haver qualquer conexão com atividade terrorista, faz-se o compartilhamento imediato para os integrantes do ISE ( Information Sharing Environment, ambiente nacional de compartilhamento de informações dos EUA), em especial o DHS e a JTTF ( Joint Terrorism Task Forces, força tarefa do FBI). Já para o caso de a análise do Centro de Fusão demonstrar alguma relação com qualquer assunto referente às infraestruturas críticas, o fluxo deve seguir também para as entidades participantes do ISE que tenham atribuições neste contexto. Como exemplo, apresenta-se, na Figura 01, o caminho percorrido pela informação quando um Centro recebe um Relatório de Incidente qualquer de uma unidade policial. ( BUSTRIA; SHENOUDA; MCDANIEL, 2008BUSTRIA, John; SHENOUDA, Emad; MCDANIEL, Michael. The functional desks as collaborative mechanisms in the Michigan Intelligence Operations Center. In: PROCEEDINGS OF THE 2008 CENTER FOR HOMELAND DEFENSE AND SECURITY ANNUAL CONFERENCE, 2., Monterey. Proceedings [...]. Monterey: CHDS, 2008. p. 1-18., online; GARDNER, 2017GARDNER, Jeffrey. A duty to share: the opportunities and obstacles of federal counterterrorism intelligence sharing with nonfederal Fusion Centers. Minneapolis: Walden University, 2017.).

Figura 1 -
Fluxo informacional: Agências Policiais x Centros de Fusão

O fluxo informacional também ocorre entre Centros de Fusão que estão situados em um mesmo estado, fluindo dos Centros “reconhecidos” para os Centros “designados”, sendo estes últimos os que funcionam como hub da Rede Nacional de Centros de Fusão ( Figura 02). A partir dos Centros designados, ocorre o fluxo nacional de informações entre Centros de Fusão. Esse fluxo ocorre a partir de diversos sistemas, que variam de Centro a Centro, mas, preferencialmente, os Centros se utilizam do RISS. Em nível federal, também através do RISS, os Centros de Fusão encaminham e recebem dados das várias agências policiais federais: o Federal Bureau of Investigation’s (FBI), a Drug Enforcement Administration (DEA, agência antidrogas), a Immigration and Customs Enforcement (ICE, agência que controla a passagem de pessoas e bens pelas fronteiras internacionais), a Customs and Border Protection (CBP, que também atua na fronteira) e a Alcohol, Tobacco and Firearms (ATF, agência responsável pela investigação e prevenção de crimes federais envolvendo o uso ilegal, fabricação e posse de armas de fogo e explosivos e tráfico ilegal de produtos de álcool e tabaco).

Figura 2 -
Fluxo informacional interno e externo de um Centro de Fusão

Ainda em nível federal, o fluxo ocorre dos Centros de Fusão para o DHS e para o Centro Nacional de Combate ao Terrorismo (NCTC), no que se poderia considerar o principal fluxo de dados protagonizado pelos Centros de Fusão, pois leva a inteligência de todas as fontes, principalmente das periferias e pequenas localidades, até o governo central, função precípua para que os Centros foram criados.

Também há um fluxo de informação interno, que ocorre entre os participantes de determinado Centro de Fusão. A informação chegaria a partir do diretor do Centro, que é sua entidade máxima. O diretor encaminha a informação para até três vias, a depender de o assunto ter ou não conexão com terrorismo ou alguma outra atividade criminosa importante. Para o caso de não haver relação com terrorismo, a informação flui para o Analista Sênior do Centro, que remete ao núcleo de inteligência adequado dentro do Centro de Fusão. De posse da informação, o Analista responsável pelo caso troca dados com as agências policiais sediadas no Centro, com os outros núcleos de análise de inteligência presentes no Centro, com o Analista Sênior, bem como solicita informações de vários parceiros e bancos de dados externos. Concluído seu trabalho, a informação retorna ao Analista Sênior que, a encaminha ao Diretor do Centro ou devolve ao Analista Responsável com novo requerimento de inteligência. Caso o diretor avalie que a informação está completa, atua no sentido de fazê-la fluir para os parceiros externos competentes a receber o produto de inteligência.

5 Conclusão

De todo o conhecimento gerado, ficaram evidenciadas questões relativas a cada faceta do Regime de Informação. No aspecto relativo aos atores sociais, emergiu que o controle e a gerência ocorrem com forte viés da atividade policial e com maior foco em coletar dados referentes aos problemas cotidianos da comunidade local. Todavia, estes atores moldam os Centros também para a busca de dados relacionados ao terrorismo, uma vez que este tipo de informação é o que viabiliza o repasse de verbas feito por organismos ligados ao governo central, explicitando assim a influência exercida por estes. Sob a ótica do conjunto normativo, a prática legislativa que prevaleceu foi aquela que buscou relativizar os direitos individuais tendo como argumento que isto possibilitaria uma maior proteção ao conjunto da sociedade, produzindo facilidades na obtenção e no compartilhamento de informações. Adicionalmente, uma proposital omissão com fins de não regular a coleta e tratamento de dados pelo setor comercial de tecnologia, para permitir que o governo possa se apropriar do conteúdo ali gerado. Reforçando esta linha, mas agora dentro da faceta referente ao aparato tecnológico, foi possível concluir que há uma diretriz governamental estimulando a aquisição de soluções junto ao setor privado, como bancos de dados e sistemas de mineração e buscas em redes sociais. Além disso, o direcionamento pelo governo central das escolhas feitas pelos Centros fica latente a partir da capacidade de financiamento daquele através de programas de aquisição de equipamentos e de treinamentos, fator que ajuda na melhoria da interoperabilidade buscada entre os entes da atividade de inteligência. Já na faceta referente ao fluxo informacional, uma nova concepção sobre a propriedade da informação estatal, que agora deve ser compartilhada, deixando de ser um ativo de cada uma das agências de inteligência, que escolhiam qual conteúdo deveria ser compartilhado ou não. Também um maior fluxo entre as agências municipais, estaduais e federais, bem como aquelas situadas em mesmo nível hierárquico.

Diante de todos os achados, foi possível entender os Centros de Fusão e concluir tratar-se de uma inovação no tratamento e uso da informação em um novo contexto, no qual se têm uma apropriação multidimensional dos dados da população, a partir da combinação da coleta em fontes públicas e privadas com uso massivo da tecnologia. Também uma novidade positiva na questão do tratamento da informação de inteligência, pois patrocina a quebra de barreiras ao compartilhamento entre agências, potencializa a coleta de dados e propicia a difusão do conhecimento entre os diversos níveis do governo, dando maior dinamicidade e eficiência à empresa de inteligência como um todo, possibilitando que a informação transite também horizontalmente e não apenas aos órgãos em escalões superiores.

Como principal ponto negativo, a capacidade de construir dossiês sobre determinados indivíduos com informações sobre sua rede de relacionamentos, gostos, tendências políticas, opiniões, locais em que transita dentre outros dados íntimos que deveriam ser coletados apenas para casos de pessoas que sejam suspeitas da prática de atos ilícitos. No entanto, não é isto que ocorre quando se está em um ambiente de flexibilização das proteções às liberdades individuais, deixando evidente o conflito entre a eficiência na proteção da vida dos cidadãos e o respeito aos seus direitos fundamentais e à inviolabilidade de sua intimidade e de seus dados pessoais.

Portanto, apesar de ser um avanço em termos de proteção contra o terrorismo e o crime organizado, há a necessidade de uma forte política voltada à regulação e fiscalização da atividade, de maneira a construir balizas que permitam a correta utilização de uma ferramenta informacional tão relevante à segurança da população.

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  • 1
    Por pesquisa em fontes abertas entenda-se pesquisas com livre acesso no Google, Google Acadêmico e demais plataformas disponíveis na internet que não apresentam restrições às buscas.
  • 2
    A partir do ano de 2007, os Estados Unidos da América passaram a emitir a Estratégia Nacional de Compartilhamento de Informações ( National Strategy for Information Sharing - NSIS) para priorizar e favorecer o compartilhamento de informações relacionadas ao terrorismo. A NSIS visou integrar iniciativas relacionadas ao ISE (ambiente nacional de compartilhamento de informações) e estabelecer o plano nacional para consolidar o progresso feito na melhoria do compartilhamento de informações desde os ataques de 11 de setembro no sentido de estabelecer uma capacidade nacional integrada de compartilhamento de informações.
  • 3
    A Lei Patriótica ( Patriot Act) foi promulgada em 2001 com o apelo de ser uma norma para “Unir e fortalecer a América, fornecendo as ferramentas adequadas para combater o terrorismo” ( USA, 2001USA. Public law 107- 56- oct. 26, 2001. Uniting and strengthening America by providing appropriate tools required to intercept and obstruct terrorism act (USA PATRIOT ACT). Washington: United States Congress , 2001. ). Esta lei removeu barreiras ao compartilhamento de informações entre a atividade policial e a comunidade de inteligência, ao mesmo tempo que cuidou da proteção das liberdades fundamentais do cidadão. Aproveitando o clima de guerra ao terror, propiciado pelos eventos do 11/09, a Lei Patriótica alterou de forma relevante diversos aspectos da legislação americana, promovendo inúmeras alterações nos estatutos existentes relativos à privacidade das comunicações telefônicas e eletrônicas, à lavagem de dinheiro, à imigração, além de definir uma série de novos crimes e aumento das penas para crimes já existentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2021
  • Aceito
    21 Maio 2022
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