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Miíase cavitária simulando abscesso periamigdaliano

Introdução

Miíase é definida como a infestação de tecidos e órgãos causada pelas larvas de moscas. Mais de 150 espécies de dípteros podem causar miíase em humanos.1Al-Ismaily M, Scully C. Oral myiasis: report of two cases. Int J Paediatr Dent. 1995;5:177-9. Pode ser classificada em cutânea, subcutânea ou cavitária,2Ramalho JRO, Prado EP, Santos FCC, Cintra PPVC, Pinto JA. Miiase nasal: relato de caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 2001;67: 581-8. sendo mais prevalente em indivíduos idosos, deficientes e debilitados, e especialmente em países tropicais.3Ribeiro FAQ, Pereira CSB, Alves A, Marcon MA. Tratamento da miíase humana cavitária com ivermectina oral. Rev Bras Otorrin- olaringol. 2001;67:755-61.

As larvas podem ocasionar necrose e destruição dos tecidos infestados, originando uma grande variedade de sintomas, dependendo dos locais acometidos e da intensidade da infestação. Apesar de muitas vezes o diagnóstico ser evidente, pode ter apresentações clínicas variadas, simulando outras patologias e dificultando seu diagnóstico precoce.

Relato do caso

Paciente, 73 anos, sexo feminino apresentava há uma semana febre, astenia, odinofagia e episódios de epistaxe por fossa nasal esquerda diária de pequeno volume. A paciente negava eliminação de qualquer corpo estranho por cavidade oral ou nasal. Foi atendida em Unidade de Pronto-atendimento e encaminhada ao serviço de otorrinolaringologia de um hospital terciário no dia seguinte. Apresentava cacosmia e eliminação de crostas nasais de odor fétido há três anos. Informou ser diabética e hipertensa, porém, sem controle adequado.

Na admissão, encontrava-se afebril, orientada e cooperativa, com crepitação em bases pulmonares, e à otoscopia evidenciava-se secreção mucopurulenta em conduto auditivo externo esquerdo. Notava-se abaulamento e hiperemia periamigadaliana esquerda que se estendia para o palato mole. Diante da suspeita inicial de abscesso periamigdaliano, foi realizada punção do abaulamento oral, não sendo drenada secreção. Foi hospitalizada e iniciada antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona e clindamicina. No segundo dia intra-hospitalar, foi submetida à nova punção, igualmente sem drenagem, mas sendo evidenciada saída de larvas pela boca e pela narina esquerda minutos após o procedimento.

Evoluiu nas horas seguintes com septicemia, sendo encaminhada para Unidade de Terapia intensiva devido ao rebaixamento do nível de consciência e dessaturação sanguínea, com necessidade de intubação orotraqueal e ventilação mecânica.

Foi aplicado iodofórmio em cavidade oral e fossas nasais e ivermectina via sonda nasoenteral na dose aproximada de 300ug/kg, além de antibioticoterapia de amplo espectro com piperacilina/tazobactam e vancomicina. Diariamente era realizado exame otorrinolaringológico, com retirada de larvas, totalizando cerca de 150 larvas removidas após 72 horas. Foi realizada tomografia computadorizada de nariz e seios paranasais, ossos temporais, crânio e pulmão (fig. 1).

Figura 1
(A) Larva penetrando em cavidade oral através de palato mole. Tomografia computadorizada (TC) de seios paranasais cortes coronal (B) e axial (C) evidenciando redução de volume de conchas inferiores e material com densidade de partes moles em maxilares, etmoides e esfenoide; nota-se material radiopaco consequente à deposição de iodofórmio; (D) TC de pulmão evidenciando opacidade em terços posteriores de ambos os pulmões.

Apesar da completa remoção das larvas em cavidade oral e nasal, a paciente evoluiu para óbito por insuficiência respiratória secundária à pneumonia no trigésimo dia intra-hospitalar.

Discussão

A paciente apresentou um grande número de larvas, o que ocasionou importante destruição de tecidos locais. Devido ao caráter destrutivo e invasor das larvas, a apresentação inicial simulou um abscesso periamigdaliano; contudo, pela história clínica e evolução, o local inicial de infestação parece ter sido em fossa nasal esquerda. Diante da história clínica pregressa, suspeitamos da possibilidade diagnóstica de rinite atrófica, patologia que, por vezes, é associada à miíase nasal.4Zeltser R, Lustmann J. Oral myiasis. Int J Maxillofac Surg. 1988;17:288-9. No entanto, como a paciente procurou atendimento médico apenas durante o quadro de miíase cavitária, tornou-se difícil a conclusão diagnóstica de rinite atrófica.

O objetivo do tratamento foi a remoção de todos os organismos invasores.5Manfrim AM, Cury A, Demeneghi P, Jotz G, Roithmann R. Miíase nasal: relato de caso e revisão da literatura. Arq Int Otorrinolar- ingol. 2007;11:74-9. Nossa paciente foi tratada com medicação tópica e oral, associada à extração mecânica, com eliminação completa das larvas em cerca de cinco dias. A miíase nasal pode apresentar-se com epistaxe, obstrução nasal, rinorreia, cacosmia, dor facial e cefaleia, e é igualmente prevalente em ambos os sexos.6Sharma H, Dayal D, Agrawal SP. Nasal myiasis: review of 10 years experience. J Laryngol Otol. 1989;103:489-91.

Comentários finais

No presente caso, evidenciamos uma apresentação atípica, assemelhando-se inicialmente a abscesso periamigdaliano. Na literatura já foram propostos vários tratamentos para miíase cavitária, que variam desde a extração mecânica até o uso de substâncias tópicas, orais e endovenosas,³ contudo, não existe um consenso sobre a melhor conduta terapêutica para os casos de miíase oral ou nasal. Talvez corroborado pela idade avançada da paciente e pelas comorbidades, a paciente evoluiu para óbito por pneumonia aspirativa.

References

  • 1
    Al-Ismaily M, Scully C. Oral myiasis: report of two cases. Int J Paediatr Dent. 1995;5:177-9.
  • 2
    Ramalho JRO, Prado EP, Santos FCC, Cintra PPVC, Pinto JA. Miiase nasal: relato de caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 2001;67: 581-8.
  • 3
    Ribeiro FAQ, Pereira CSB, Alves A, Marcon MA. Tratamento da miíase humana cavitária com ivermectina oral. Rev Bras Otorrin- olaringol. 2001;67:755-61.
  • 4
    Zeltser R, Lustmann J. Oral myiasis. Int J Maxillofac Surg. 1988;17:288-9.
  • 5
    Manfrim AM, Cury A, Demeneghi P, Jotz G, Roithmann R. Miíase nasal: relato de caso e revisão da literatura. Arq Int Otorrinolar- ingol. 2007;11:74-9.
  • 6
    Sharma H, Dayal D, Agrawal SP. Nasal myiasis: review of 10 years experience. J Laryngol Otol. 1989;103:489-91.
  • Como citar este artigo: Silveira MA, Pinheiro SD, da Silva VC, de Azevedo MA, Correia RO. Cavitary myiasis mimicking peritonsilar abscess. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:336-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2014
  • Aceito
    31 Jan 2015
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