Acessibilidade / Reportar erro

Carcinomatose paquimeníngea: um local incomum de metastização de carcinoma adenoide cístico Como citar este artigo: Pires A, Vieira C, Jácome M, Moreira D, Arantes M. Pachymeningeal carcinomatosis: an unusual location of metastization of adenoid cystic carcinoma. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:489-92.

Introdução

O carcinoma adenoide cístico (CAC) é um tumor raro, com uma incidência anual de 1,4 casos por milhão de habitantes no norte de Portugal.11 RORENO. Registo Oncológico Regional do Norte 2012 Instituto Português de Oncologia do Porto, ed. Porto; 2019. Representa o tumor maligno mais comum das glândulas submandibulares (15%-30%).22 Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53. O CAC afeta mais comumente as glândulas salivares (maiores e menores), mas pode surgir numa ampla variedade de locais anatômicos dentro e fora da região da cabeça e pescoço, como na árvore traqueobrônquica, esôfago, mama, pulmões, próstata, colo uterino e vulva.33 Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61. Histologicamente, há três padrões de crescimento definidos usados para descrever estes tumores: o cribriforme, o tubular e o sólido.22 Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53.

O CAC foi descrito como um tumor que cresce e invade tecidos locais, com alta propensão de infiltração através de invasão perineural, sendo a metastização de linfonodos regionais é considerada rara.22 Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53.,33 Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61. Desta forma, margens cirúrgicas livres não são geralmente alcançadas, apesar da impressão pré-operatória por cirurgiões experientes de que a ressecção completa é possível.33 Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61.

Este comportamento biológico traduz-se no desenvolvimento característico de metástases à distância (MD) tardias, apesar do tratamento ideal com cirurgia combinada com radioterapia (RT), com uma taxa de sobrevida favorável aos 5 anos mas baixa a longo prazo.33 Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61.,44 Shingaki S, Kanemaru S, Oda Y, Niimi K, Mikami T, Funayama A, et al. Distant metastasis and survival of adenoid cystic carcinoma after definitive treatment. J Oral Maxillofac Surg Med Pathol. 2014;26:312-6. O papel da quimioterapia (QTX) ainda é controverso, mas geralmente é recomendada em contexto de tratamento paliativo.33 Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61.

O desenvolvimento frequente de metástases à distância determina os desfechos desfavoráveis. Mesmo quando o controlo locorregional é alcançado, os doentes frequentemente desenvolvem MD vários anos após o diagnóstico inicial.44 Shingaki S, Kanemaru S, Oda Y, Niimi K, Mikami T, Funayama A, et al. Distant metastasis and survival of adenoid cystic carcinoma after definitive treatment. J Oral Maxillofac Surg Med Pathol. 2014;26:312-6. Vários estudos tentaram determinar os fatores que influenciam o seu desenvolvimento, com alguns resultados inconsistentes. De acordo com Shingaki et al.,44 Shingaki S, Kanemaru S, Oda Y, Niimi K, Mikami T, Funayama A, et al. Distant metastasis and survival of adenoid cystic carcinoma after definitive treatment. J Oral Maxillofac Surg Med Pathol. 2014;26:312-6. o status das margens cirúrgicas parece ser o único fator associado. Os mesmos autores relataram que a recorrência local não afeta o risco de metastização à distância. A invasão perineural foi, também, implicada na predisposição para MD em alguns estudos.22 Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53. As MD ocorrem mais frequentemente nos pulmões, seguidas pelos ossos, fígado e, raramente, cérebro. A sobrevida está significativamente associada ao local da metastização e é melhor em doentes com metastização pulmunar em comparação com metastização óssea ou noutros órgãos.22 Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53.

Neste artigo, relatamos o caso de uma doente com CAC que desenvolveu carcinomatose paquimeníngea. Alguns casos de MD hematogênica da dura-máter por CAC estão publicados, porém, que seja de nosso conhecimento, este é o primeiro caso de CAC primário da glândula submandibular.

Relato de caso

Relatamos o caso de uma doente de 56 anos que se apresentou com edema indolor na glândula submandibular esquerda. Após biópsia aspirativa compatível com adenoma pleomórfico, foi submetida a submandibulectomia esquerda com esvaziamento ganglionar dos compartimentos adjacentes. O relatório histológico definitivo foi comatível com CAC de alto grau, com padrão sólido presente em mais de 30% (fig. 1); metastização ganglionar estava presente.

Figura 1
Fotomicrografias representativas do tumor submandibular primário: A e B (Hematoxilina e Eosina, 100x e 400x) mostram um carcinoma adenoide cístico de alto grau, com padrões cribriforme e sólido (esse representa mais de 30% do volume tumoral), com áreas de necrose (*); coloração imuno-histoquímica para CK7 (C, 200x), PS100 (D, 200x), AML (E, 200x) e CD117 (F, 200x) demonstra a população de células bifásicas característica desse tumor, composta por células ductais e mioepiteliais.

A doente foi estadiada como pT2N2a (ENE+) R1 (AJCC 8ª edição) e foi proposta para tratamento complementar com RT e QTX radiossensibilizante. Recebeu 50 a 60 Gy na base do crânio e níveis ganglionares IA a IV à esquerda e 66 Gy no leito cirúrgico (em 28 + 3 frações, com técnica VMAT-SIB), com cisplatina concomitante, ficando em vigilância. Após 8 meses, foi diagnosticada metastização vertebral e foi submetida a um procedimento cirúrgico para estabilização vertebral de L3 e D8. Na altura, o FDG-PET/TC objetivava apenas extenso envolvimento ósseo, pelo que foi proposta para RT paliativa a D8 e L3 (20 Gy em 5 frações, técnica 3DRT) e iniciou QTX com carboplatina e paclitaxel e bifosfonatos. Após completar os 6 ciclos, o FDG-PET/TC revelou agravamento da metastização óssea e metastização hepática, e a doente iniciou uma 2ª linha de QTX com gencitabina. Três meses depois, o FDG-PET/TC questionou a existência de envolvimento metastático cerebelar (fig. 2) e a ressonância magnética confirmou carcinomatose paquimeníngea da fossa posterior, região occipital direita e região occipital-temporal esquerda, com envolvimento do osso adjacente e cerebelo (fig. 3).

Figura 2
FDG-PET/TC mostra hipermetabolismo de FDG no hemisfério direito e vermis cerebelar sugestivo de envolvimento secundário.

Figura 3
Imagem sagital (A) e axial (B) de ressonância magnética (RM) ponderada em T1 realçada por contraste mostra espessamento e realce da dura-máter, sugestivos de carcinomatose paquimeníngea (seta). Imagem axial (C) de RM ponderada em T2-FLAIR mostra edema vasogênico no lobo occipital direito e região occipital-temporal esquerda.

O exame neurológico revelou apenas ligeira ataxia e hipoestesia na coxa esquerda. A doente foi proposta para RT holocraniana tendo recebido 30 Gy em 10 frações, e iniciou QTX com doxorrubicina lipossômica peguilada. Nos meses seguintes, manteve tratamento com QTX apresentando-se neurologicamente estável, sem evidências de agravamento clínico intracerebral. A doente morreu por metastização sismética múltipla 4 meses após o término da RT.

Discussão

A frequência geral de invasão intracraniana por CAC tem sido reportada como sendo entre 4% e 22%.55 Alleyne CH, Bakay RA, Costigan D, Thomas B, Joseph GJ. Intracranial adenoid cystic carcinoma: case report and review of the literature. Surg Neurol. 1996;45:265-71. Uma revisão da literatura revelou uma grande variedade de metastização intracraniana por CAC. Em geral, este envolvimento pode ocorrer por uma de três formas: extensão direta, disseminação perineural e disseminação hematogênica.66 Morioka T, Matsushima T, Ikezaki K, Nagata S, Ohta M, Hasuo K, et al. Intracranial adenoid cystic carcinoma mimicking meningioma: report of two cases. Neuroradiology. 1993;35:462-5.

A extensão direta e a disseminação perineural há muito que são reconhecidas como formas de descrever os locais de lesões metastáticas intracranianas. Isso explica porque razão a maioria das metástases intracranianas está localizada na base do crânio, e como resultado da extensão transcraniana a partir das lesões primárias, por via direta ou por via perineural ao longo dos nervos cranianos, para estruturas vizinhas como nasofaringe, seios paranasais e glândula lacrimal. Embora metastização hematogênica para o fígado, pulmão e ossos seja relativamente comum no curso tardio da doença, verdadeira metastização hematogênica para o compartimento intracraniano é rara.55 Alleyne CH, Bakay RA, Costigan D, Thomas B, Joseph GJ. Intracranial adenoid cystic carcinoma: case report and review of the literature. Surg Neurol. 1996;45:265-71.,66 Morioka T, Matsushima T, Ikezaki K, Nagata S, Ohta M, Hasuo K, et al. Intracranial adenoid cystic carcinoma mimicking meningioma: report of two cases. Neuroradiology. 1993;35:462-5.

Apresentamos uma doente com presumíveis metástases hematogênicas extensas para a dura-máter a partir de um CAC da glândula submandibular. Neste caso, a via hematogênica deve ser considerada para explicar a localização da metastização. A lesão, embora parcialmente extra-axial, está numa posição anatômica inconsistente com a disseminação perineural retrógrada do primário na glândula submandibular e, além disso, a ressonância magnética não mostrou evidência de disseminação contígua do tumor para apoiar a extensão direta através da base do crânio.

Os poucos relatos existentes na literatura consistentes com disseminação hematogênica intracraniana são, na maioria, sob a forma de metastização parenquimatosa, de tumores primários da mama,77 Koller M, Ram Z, Findler G, Lipshitz M. Brain metastasis: a rare manifestation of adenoid cystic carcinoma of the breast. Surg Neurol. 1986;26:470-2. da parótida,88 Hammoud MA, Hassenbusch SJ, Fuller GN, Shi W, Leeds NE. Multiple brain metastases: a rare manifestation of adenoid cystic carcinoma of the parotid gland. J Neurooncol. 1996;27:61-4.,99 Kazumoto K, Hayase N, Kurosumi M, Kishi K, Uki J, Takeda F. Multiple brain metastases from adenoid cystic carcinoma of the parotid gland. Case report and review of the literature. Surg Neurol. 1998;50:475-9. do pulmão,1010 Matsumura A, Kuwahara O, Dohi H, Nakagawa Y, Bitoh S. A case report of adenoid cystic carcinoma of the lung with brain metastasis. Gen Thorac Cardiovasc Surg. 1988;41:72-5. da pele,1111 Pozzobon LD, Glikstein R, Laurie SA, Hanagandi P, Michaud J, Purgina B, et al. Primary cutaneous adenoid cystic carcinoma with brain metastases: case report and literature review. J Cutan Pathol. 2016;43:137-41. da glândula de Bartholin1212 Hatiboglu MA, Cosar M, Iplikcioglu AC, Ozcan D. Brain metastasis from an adenoid cystic carcinoma of the Bartholin gland. Case report. J Neurosurg. 2005;102:543-6.,1313 Ramanah R, Allam-Ndoul E, Baeza C, Riethmuller D. Brain and lung metastasis of Bartholin's gland adenoid cystic carcinoma: a case report. J Med Case Rep. 2013;7:208. e de primário desconhecido.1414 Hara H, Tanaka Y, Tsuji T, Momose G, Kobayashi S. Intracranial adenoid cystic carcinoma. A case report. Acta Neurochir (Wien). 1983;69:291-5. Quanto à metastização para a dura-máter, há apenas um caso publicado, da glândula parótida.1515 Gelber ND, Ragland RL, Knorr JR, Smith TW, Stone BB. Intracranial metastatic adenoid cystic carcinoma: presumed hematogenous spread from a primary tumor in the parotid gland. AJR Am J Roentgenol. 1992;158:1163-4.

Conclusão

A metastização hematogênica intracraniana é uma forma particularmente incomum de disseminação do CAC, com uma estreita variedade de locais primários e localizações intracranianas relatadas. Nenhum caso de envolvimento da dura-máter a partir de um tumor primário da glândula sub-mandibular existe reportado na literatura, o que torna este o primeiro relato de envolvimento da dura-máter a partir de um CAC da glândula submandibular.

  • Como citar este artigo: Pires A, Vieira C, Jácome M, Moreira D, Arantes M. Pachymeningeal carcinomatosis: an unusual location of metastization of adenoid cystic carcinoma. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:489-92.
  • A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial.

References

  • 1
    RORENO. Registo Oncológico Regional do Norte 2012 Instituto Português de Oncologia do Porto, ed. Porto; 2019.
  • 2
    Bradley PJ. Adenoid cystic carcinoma evaluation and management: progress with optimism!. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;25:147-53.
  • 3
    Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Bradley PJ, Vander Poorten V, Triantafyllou A, Hunt JL, et al. Adenoid cystic carcinoma of the head and neck — an update. Oral Oncol. 2015;51:652-61.
  • 4
    Shingaki S, Kanemaru S, Oda Y, Niimi K, Mikami T, Funayama A, et al. Distant metastasis and survival of adenoid cystic carcinoma after definitive treatment. J Oral Maxillofac Surg Med Pathol. 2014;26:312-6.
  • 5
    Alleyne CH, Bakay RA, Costigan D, Thomas B, Joseph GJ. Intracranial adenoid cystic carcinoma: case report and review of the literature. Surg Neurol. 1996;45:265-71.
  • 6
    Morioka T, Matsushima T, Ikezaki K, Nagata S, Ohta M, Hasuo K, et al. Intracranial adenoid cystic carcinoma mimicking meningioma: report of two cases. Neuroradiology. 1993;35:462-5.
  • 7
    Koller M, Ram Z, Findler G, Lipshitz M. Brain metastasis: a rare manifestation of adenoid cystic carcinoma of the breast. Surg Neurol. 1986;26:470-2.
  • 8
    Hammoud MA, Hassenbusch SJ, Fuller GN, Shi W, Leeds NE. Multiple brain metastases: a rare manifestation of adenoid cystic carcinoma of the parotid gland. J Neurooncol. 1996;27:61-4.
  • 9
    Kazumoto K, Hayase N, Kurosumi M, Kishi K, Uki J, Takeda F. Multiple brain metastases from adenoid cystic carcinoma of the parotid gland. Case report and review of the literature. Surg Neurol. 1998;50:475-9.
  • 10
    Matsumura A, Kuwahara O, Dohi H, Nakagawa Y, Bitoh S. A case report of adenoid cystic carcinoma of the lung with brain metastasis. Gen Thorac Cardiovasc Surg. 1988;41:72-5.
  • 11
    Pozzobon LD, Glikstein R, Laurie SA, Hanagandi P, Michaud J, Purgina B, et al. Primary cutaneous adenoid cystic carcinoma with brain metastases: case report and literature review. J Cutan Pathol. 2016;43:137-41.
  • 12
    Hatiboglu MA, Cosar M, Iplikcioglu AC, Ozcan D. Brain metastasis from an adenoid cystic carcinoma of the Bartholin gland. Case report. J Neurosurg. 2005;102:543-6.
  • 13
    Ramanah R, Allam-Ndoul E, Baeza C, Riethmuller D. Brain and lung metastasis of Bartholin's gland adenoid cystic carcinoma: a case report. J Med Case Rep. 2013;7:208.
  • 14
    Hara H, Tanaka Y, Tsuji T, Momose G, Kobayashi S. Intracranial adenoid cystic carcinoma. A case report. Acta Neurochir (Wien). 1983;69:291-5.
  • 15
    Gelber ND, Ragland RL, Knorr JR, Smith TW, Stone BB. Intracranial metastatic adenoid cystic carcinoma: presumed hematogenous spread from a primary tumor in the parotid gland. AJR Am J Roentgenol. 1992;158:1163-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    8 Out 2020
  • Aceito
    26 Out 2020
  • Publicado
    23 Nov 2020
Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial. Sede da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial, Av. Indianópolia, 1287, 04063-002 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (0xx11) 5053-7500, Fax: (0xx11) 5053-7512 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@aborlccf.org.br