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Por que o discurso é tão diferente da prática?

Um dos assuntos de maior interesse na Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia é o modelo de assistência à saúde da pessoa idosa. Todos estamos preocupados. A discussão sobre o envelhecimento populacional trazida pela nova realidade epidemiológica e demográfica leva (ou deveria levar) ao desenvolvimento de um modelo resolutivo e eficaz de atenção à saúde do idoso11 Oliveira M, Veras RP, Cordeiro H. Supplementary Health and aging after 19 years of regulation: where are we now?. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2017;20(5):624-33..

A mudança da configuração etária do Brasil, com avanço do segmento da terceira idade, é um fenômeno recente. Por outro lado, já ultrapassamos a fase da novidade e dos clichês bastante conhecidos e atualmente aceitos por todos - até mesmo por aqueles que não os praticam. Falar dos marcos teóricos ou das políticas que têm por objetivo permitir um envelhecimento saudável - que significa manter a capacidade funcional e a autonomia, bem como a qualidade de vida, em consonância com os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e tendo como foco a prevenção de doenças - é algo louvável. Importantes organismos nacionais e internacionais de saúde defendem esse conceito há muitos anos22 Veras RP. Caring Senior: um modelo brasileiro de saúde com ênfase nas instâncias leves de cuidado. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2018;21(3):1-7.. Mas o passo adiante precisa ser dado.

Todo esse discurso é bem recebido por gestores e profissionais de saúde, mas pouco ou nada disso é aplicado. Propomos aqui uma reflexão: se todos debatem esse tema e as soluções já estão presentes nas mesas de decisão, por que a situação permanece inalterada? Por que a teoria não se traduz no dia a dia? Por que líderes e gestores não promovem a mudança? Listamos alguns tópicos que trarão mais elementos para essa discussão.

Para que o setor de saúde - particularmente no segmento dos idosos - se organize, um dos itens a serem considerados é a desconfiança. Hoje a sociedade desconfia do que é ofertado. Nesse clima, qualquer proposta de mudança é vista com reservas. Tudo que é multifatorial e foi construído ao longo de muitos anos é difícil de transformar. Mudar uma cultura não é simples. Consideremos isso.

Outro gargalo é a qualidade assistencial, ainda pouco valorizada. É um tema de enorme importância, que demanda maior conscientização de profissionais de saúde e da sociedade. Discute-se que seria caro aplicar instrumentos de qualificação do atendimento, acreditações e certificações, mas serviços qualificados são mais efetivos em termos de custo, têm menor desperdício e melhores resultados assistenciais para os pacientes. Em alguns países, a acreditação e a avaliação de indicadores de qualidade são requisitos obrigatórios. No Brasil, no entanto, valoriza-se e premia-se o volume, falta uma política de estímulo à qualidade. Os pacientes nem sempre a reconhecem como uma necessidade e tanto a saúde pública como a privada a percebem como um custo adicional.

Outra questão: existe a compreensão geral de que o cuidado ao idoso ultrapassa a saúde. Além do diagnóstico e da prescrição, a participação social, as atividades físicas e mentais são elementos importantíssimos para a manutenção funcional. Mas ainda temos, principalmente na saúde suplementar, muita dificuldade para entender essas ações como parte integrante do cuidado. Existe uma tendência a separar ações “sociais” de ações “curativas”.

Também é de fundamental importância, principalmente nos dias atuais, que as informações de qualidade e os prontuários sejam bem utilizados pelos médicos ou pelos profissionais de saúde, permitindo o monitoramento constante do cliente.

E que tal discutirmos o modelo de remuneração dos profissionais de saúde? Reconhecemos que são mal remunerados, então por que não adotamos o pagamento por desempenho e performance? Associar a discussão de resultado com a forma de remuneração é um poderoso instrumento indutor na busca pelo que é certo. Assim, “pagamento por performance”, “pagamento por resultado” ou “pagamento por desempenho” tornam-se sinônimos na luta pelo alinhamento entre acesso e qualidade assistencial. A mudança do modelo de remuneração a partir desse novo marco de assistência, focado no resultado e não no volume, precisa necessariamente ser um modelo do tipo ganha-ganha, em que todos os envolvidos sejam beneficiados, mas principalmente o próprio paciente.

Para pôr em prática todas as ações necessárias a um envelhecimento saudável e com qualidade de vida, é preciso repensar e redesenhar o cuidado ao idoso, com foco nesse indivíduo e em suas particularidades. Isso trará benefícios, qualidade e sustentabilidade não somente para a população idosa, mas para o sistema de saúde brasileiro como um todo33 Veras RP. Oliveira M. Envelhecer no Brasil: a construção de um modelo de cuidado. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6):1929-36..

Agora que já sabemos o que é preciso, é momento de termos competência para arregimentar esforços que transformem a teoria em um modelo de saúde de qualidade para todos, incluindo os idosos. Não desejamos que o SUS se fragmente ou que aumente o número de falências entre as empresas de assistência médica privada.

Uma certeza todos temos: a cada ano que passa, o custo da saúde aumenta e a qualidade assistencial piora. É hora de pôr em prática o que todos defendem, mas não fazem.

REFERENCES

  • 1
    Oliveira M, Veras RP, Cordeiro H. Supplementary Health and aging after 19 years of regulation: where are we now?. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2017;20(5):624-33.
  • 2
    Veras RP. Caring Senior: um modelo brasileiro de saúde com ênfase nas instâncias leves de cuidado. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2018;21(3):1-7.
  • 3
    Veras RP. Oliveira M. Envelhecer no Brasil: a construção de um modelo de cuidado. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6):1929-36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018
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