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Treinamento funcional: uma atualização conceitual

Resumo

O treinamento funcional (TF) tem crescido em popularidade, porém tal crescimento ainda ocorre de forma desorganizada e multifacetada. Assim, uma atualização conceitual se faz necessário, especialmente, baseado na maneira como o TF tem sido aplicado na maioria das pesquisas. Nesse contexto, o TF tem sido compreendido como aquele que objetiva o aprimoramento sinérgico, integrado e equilibrado de diferentes capacidades físicas para garantir eficiência e segurança durante o desempenho de tarefas cotidianas, sendo baseado nos princípios do treinamento, sobretudo, no princípio da especificidade. As sessões de TF devem focar no aprimoramento de padrões básicos de movimento, estimular adequadamente a força em diversas situações, a potência muscular e a capacidade cardiorrespiratória, ativar frequentemente músculos estabilizadores e incluir atividades complexas, respeitando critérios de segurança e eficácia.

Palavras-chave
Atividades diárias; Qualidade de vida; Sedentarismo; Treinamento resistido

Abstract

Functional training (FT) has grown in popularity; however, such growth is still disorganized and multifaceted. Thus, a conceptual “update” is necessary, especially based on how FT has been applied in most research. In this context, FT has been understood as the synergistic, integrated and balanced improvement of different physical capacities to ensure efficiency and safety during the daily tasks performance, based on the principles of training, and above all, on the principle of specificity. FT sessions should focus on improving basic movement patterns, adequately stimulating strength in various situations, muscle power, and cardiorespiratory capacity, frequently activating the stabilizing muscles and including complex activities, respecting safety and effectiveness criteria.

Key words
Sedentary lifestyle; Resistance training; Daily activities; Quality of life

INTRODUÇÃO

TREINAMENTO FUNCIONAL: REVENDO O CONCEITO

Desde a publicação do posto de vista “Treinamento funcional: para que e para quem?”11 Da Silva-Grigoletto ME, Brito CJ, Heredia JR. Treinamento funcional: funcional para que e para quem? Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum 2014;16(6):714-19., muitos avanços foram demonstrados em pesquisas envolvendo o treinamento funcional (TF) e novos conceitos foram se solidificando. Definido no referido ponto de vista como a aplicação de exercícios que se assemelham a movimentos realizados no dia-a-dia e que visam o aprimoramento integrado de valências físicas, a fim de garantir autonomia durante o desempenho das funções cotidianas, o TF vem se popularizando, porém de uma maneira ainda bastante multifacetada.

Considerando esse crescimento desordenado na popularização e aplicação do TF, tanto nas pesquisas, como na atuação prática de profissionais de Educação Física e Fisioterapeutas, nosso grupo tem investido esforços na construção de estudos de revisão e opinião que compilem informações relativas ao real conceito do TF, da forma como tem sido abordado na maioria das publicações científicas. Sob essa perspectiva, em publicações mais recentes22 La Scala Teixeira CV, Evangelista AL, Pereira CA, Da Silva-Grigoletto ME. Short roundtable RBCM: treinamento funcional. Rev Bras Cienc Mov 2016;24(1):200-06.

3 La Scala Teixeira CV, Evangelista AL, Novaes JS, Da Silva Grigoletto ME, Behm DG. "You're only as Strong as Your Weakest Link": A Current Opinion about the Concepts and Characteristics of Functional Training. Front Physiol 2017;8:643.
-44 LaScalaTeixeira CV, Evangelista AL, Pereira PEA, DaSilva-Grigoletto ME, Bocalini DS, Behm DG. Complexity: A Novel Load Progression Strategy in Strength Training. Front Physiol 2019;(10):839., definimos o TF como aquele que objetiva o aprimoramento sinérgico, integrado e equilibrado de diferentes capacidades físicas no intuito de garantir eficiência e segurança durante o desempenho de tarefas cotidianas, laborais e/ou esportivas, sendo baseado nos princípios biológicos e metodológicos do treinamento, especialmente, no princípio da especificidade. Para esse objetivo, diferentes ferramentas têm sido utilizadas, mas a literatura destaca o treinamento de força (e técnicas associadas) como ferramenta base55 Thompson WR. Worldwide survey of fitness trends for 2020. ACSMs Health Fit J 2019;23(6):10-18., porém com uma abordagem que enfatiza adaptações multissistêmicas (aprimoramento integrado da força, equilíbrio, coordenação, potência, entre outras) através do uso da complexidade como estratégia primária de progressão44 LaScalaTeixeira CV, Evangelista AL, Pereira PEA, DaSilva-Grigoletto ME, Bocalini DS, Behm DG. Complexity: A Novel Load Progression Strategy in Strength Training. Front Physiol 2019;(10):839..

Assim, apesar da literatura mostrar claramente que todo tipo de treinamento físico gera adaptações funcionais, nem todo programa de treinamento físico pode ser classificado como “treinamento funcional”, uma vez que TF é um conceito de treino mais amplo (vide parágrafo anterior) e que não se limita, simplesmente, à promoção de adaptação funcional.

Sob nossa ótica, esse tipo de “reforço” conceitual se faz necessário, pois, paralelamente ao crescimento do TF nas pesquisas, cresce também o número de trabalhos que exploram outros tipos de treinamento que podem, em algum momento, ser confundidos com o TF, como o treinamento multicomponente (TMC) e o treinamento multimodal (TMM).

Ambos, TMC e TMM, são tipos de treinamento que objetivam o aprimoramento do condicionamento físico geral através de sessões de treino que combinam estímulos direcionados a diferentes capacidades físicas66 Lopez P, Izquierdo M, Radaelli R, Sbruzzi G, Grazioli R, Pinto RS, Cadore EL. Effectiveness of Multimodal Training on Functional Capacity in Frail Older People: A Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials. J Aging Phys Act 2018;26(3):407-418.

7 Cadore EL, Sáez de Asteasu ML, Izquierdo M. Multicomponent exercise and the hallmarks of frailty: Considerations on cognitive impairment and acute hospitalization. Exp Gerontol 2019;15;122:10-14.
-88 Daly RM, Gianoudis J, Kersh ME, Bailey CA, Ebeling PR, Krug R, et al. Effects of a 12-Month Supervised, Community-Based, Multimodal Exercise Program Followed by a 6-Month Research-to-Practice Transition on Bone Mineral Density, Trabecular Microarchitecture, and Physical Function in Older Adults: A Randomized Controlled Trial. J Bone Miner Res 2020;35(3):419-429.. No entanto, diferente do TF, na maior parte dos estudos que envolvem TMC e TMM, modelos mais tradicionais de treino, especialmente, de força (uso de máquinas; exercícios uniplanares, uniarticulares, cíclicos, cadenciados, estáveis) são aplicados, o que confere pouca especificidade. Já no TF, o treinamento de força é aplicado considerando as características das tarefas cotidianas (peso do corpo e pesos livres; exercícios multiplanares, multiarticulares, acíclicos, em alta velocidade, instáveis), ou seja, com elevada especificidade. Assim, sob nossa ótica, todo programa de TF é, por natureza, multicomponente e multimodal, mas nem todo programa de TMC e TMM pode ser classificado como “treinamento funcional”.

TREINAMENTO FUNCIONAL: PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

Como já mencionado, apesar do TF se utilizar de diversas ferramentas, o treinamento de força se apresenta como uma das principais, senão a principal, em grande parte da literatura. Assim, a princípio, pode-se considerar que qualquer intervenção baseada em treinamento de força pode ser considerada TF. Entretanto, a maioria dos protocolos de treinamento de força tradicionais são baseados, predominantemente, em exercícios analíticos com trabalho neuromuscular isolado, tendo como premissa básica a melhora da força máxima e da hipertrofia muscular por meio do estresse em grupos musculares específicos.

Para ser considerado “funcional”, o treinamento deve focar no aprimoramento de padrões de movimentos que, segundo Cook et al.99 Cook G, Burton L, Hoogenboom BJ, Voight ML. Functional movement screening: Fundamental movements as an Assessment of Function? Part 2. Int J Sports Phys Ther 2014;9(4):549-63., são combinações intencionais de segmentos estáveis e móveis trabalhando em harmonia coordenada para produzir sequências de movimentos eficientes. Nessa perspectiva, os exercícios de força devem contemplar padrões de agachar, puxar, empurrar e carregar, sempre com semelhante especificidade neuromuscular e metabólica com as ações diárias do praticante1010 Resende-Neto AG, Da Silva-Grigoletto ME, Santos MS. Treinamento funcional para idosos: uma breve revisão. Rev Bras Cienc Mov 2016; 24(3):167-77.. Cabe destacar que essa especificidade está relacionada à necessidade de se empregar força nas mais diversas situações do dia-a-dia que, em sua maioria, são instáveis e assimétricas, reforçando a demanda multissistêmica.

Por exemplo, uma simples caminhada depende do uso da força em uma situação que demanda certo nível de equilíbrio dinâmico, coordenação motora, flexibilidade e estabilidade postural. Caso mantida por um longo período, resistência muscular e cardiorrespiratória se somam aos componentes anteriormente mencionados. Já em caso de execução rápida (atravessar uma rua), potência, velocidade e agilidade são acrescentadas à demanda1111 Okada T, Huxel KC, Nesser TW. Relationship between core stability, functional movement, and performance. J Strength Cond Res 2011;25(1):252-61..

Considerando essa perspectiva, Distefano et al.1212 Distefano LJ, Distefano MJ, Frank BS, Clark MA, Padua DA. Comparison of integrated and isolated training on performance measures and neuromuscular control. J Strength Cond Res 2013;27(4):1083-90., a partir de uma intervenção de dois meses, concluíram que programas de treinamento de força que incorporam exercícios com elevada demanda de flexibilidade, agilidade, equilíbrio, estabilidade central e potência foram mais eficazes que o treinamento tradicional na melhora de medidas de desempenho funcional em adultos jovens. Outros estudos com intervenções semelhantes (elevada demanda simultânea de várias capacidades físicas) também demonstraram melhores resultados desse tipo de intervenção em relação ao treinamento tradicional em idosos 1313 Resende-Neto AG, Santos MS, Silva RJS, De Santana JM and Da Silva-Grigoletto ME. Effects of different neuromuscular training protocols on the functional capacity of elderly women. Rev Bras Med Esporte 2018; 24:140-144.,1414 Resende-Neto AG, Nascimento MA, De Sá CA, Ribeiro AS, De Santana JM and Da Silva-Grigoletto ME. Comparison between functional and traditional resistance training on joint mobility, determinants of walking and muscle strength in older women. J Sports Med Phys Fitness 2019; 59(10):1659-1668..

Assim, com base na análise das características presentes em diversos estudos, sintetizamos no Quadro 1 as estratégias que podem ser utilizadas nos exercícios de força aplicados no TF com o objetivo de aumentar a demanda simultânea de outras capacidades físicas44 LaScalaTeixeira CV, Evangelista AL, Pereira PEA, DaSilva-Grigoletto ME, Bocalini DS, Behm DG. Complexity: A Novel Load Progression Strategy in Strength Training. Front Physiol 2019;(10):839..

Quadro 1
Estratégias aplicadas aos exercícios de força com o objetivo de elevar a demanda de outras capacidades físicas

TREINAMENTO FUNCIONAL: ESTRUTURA DA SESSÃO DE TREINO

Como o TF tem um enfoque sobre os padrões de movimento e o estímulo simultâneo a diferentes valências físicas, a preparação para o movimento ganha posição de destaque nesse tipo de treino, tanto para garantir o máximo de proveito dos estímulos, como para assegurar integridade física dos praticantes durante a realização de tarefas mais complexas com ou sem a mobilização de sobrecargas (treinamento de força).

Ademais, como o condicionamento cardiorrespiratório apresenta íntima relação com a aptidão física geral e com diversos parâmetros de saúde, as sessões de TF também objetivam estimular essa capacidade em níveis maiores do que os habitualmente observados em sessões tradicionais de treinamento de força.

Assim, considerando as necessidades e características supramencionadas, nosso grupo de pesquisas desenvolveu um modelo estrutural de sessões de TF que vem sendo aplicado em diversos estudos (figura 1). Na nossa visão, esse modelo pode auxiliar profissionais e pesquisadores na elaboração de programas de TF, uma vez que demonstrou resultados interessantes relacionados a adaptações multisistêmicas em vários estudos publicados1414 Resende-Neto AG, Nascimento MA, De Sá CA, Ribeiro AS, De Santana JM and Da Silva-Grigoletto ME. Comparison between functional and traditional resistance training on joint mobility, determinants of walking and muscle strength in older women. J Sports Med Phys Fitness 2019; 59(10):1659-1668.,1515 Resende-Neto AG, Oliveira Andrade BC, Cyrino ES, Behm DG, De-Santana JM, DaSilva-Grigoletto ME. Effects of functional and traditional training in body composition and muscle strength components in older women: A randomized controlled trial. Arch Gerontol Geriatr 2019; 84:103902..

Figura 1
Modelo estrutural de sessão de treinamento funcional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo treinamento funcional parece sugestivo e adequado para uma sistematização que objetiva o aprimoramento sinérgico, integrado e equilibrado de diferentes capacidades físicas no intuito de garantir eficiência e segurança durante o desempenho de tarefas cotidianas, laborais e/ou esportivas, sendo baseado nos princípios biológicos e metodológicos do treinamento, notadamente, no princípio da especificidade. Ademais, as sessões devem focar no aprimoramento de padrões básicos de movimento, estimular adequadamente a força em situações instáveis e assimétricas, a potência muscular e a capacidade cardiorrespiratória, ativar frequentemente músculos estabilizadores e incluir atividades complexas, respeitando critérios de segurança e eficácia.

CONFORMIDADE COM PADRÕES ÉTICOS

  • Financiamento

    Essa pesquisa não recebeu nenhum tipo de financiamento. Os autores financiaram essa pesquisa.
  • Aprovação Ética

    A pesquisa foi escrita conforme as recomendações da Declaração de Helsinki

Como citar esse artigo

REFERENCES

  • 1
    Da Silva-Grigoletto ME, Brito CJ, Heredia JR. Treinamento funcional: funcional para que e para quem? Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum 2014;16(6):714-19.
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  • 3
    La Scala Teixeira CV, Evangelista AL, Novaes JS, Da Silva Grigoletto ME, Behm DG. "You're only as Strong as Your Weakest Link": A Current Opinion about the Concepts and Characteristics of Functional Training. Front Physiol 2017;8:643.
  • 4
    LaScalaTeixeira CV, Evangelista AL, Pereira PEA, DaSilva-Grigoletto ME, Bocalini DS, Behm DG. Complexity: A Novel Load Progression Strategy in Strength Training. Front Physiol 2019;(10):839.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2020
  • Aceito
    19 Abr 2020
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