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INTRODUZINDO ARGUMENTOS À ESTRUTURA VERBAL KARITIANA

RESUMO:

O artigo discute o processo de introdução de argumentos adicionais à estrutura básica do verbo na língua Karitiana (língua da família Tupi, subfamília Arikém, localizada em Rondônia, com uma população de 396 indivíduos e 333 falantes). Adota-se, para análise e discussão dos dados, duas propostas teóricas (i) a teoria de estrutura argumental de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. e (ii) a proposta teórica de núcleos aplicativos de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.. Na proposta teórica (i), Karitiana apresenta quatro tipos de verbos (1 - intransitivo, 2 - intransitivo com objeto oblíquo, 3 - transitivo e 4 - bitransitivo), já na segunda proposta, por sua vez, mais econômica, a língua é analisada como tendo apenas dois tipos verbais (1 - intransitivo e 2 - transitivo). Nesta última, o sistema verbal Karitiana apresenta duas estruturas básicas em que argumentos extras são incrementados por meio de núcleos aplicativos e Voice. Este adiciona argumentos altos na estrutura em estruturas causativas. Os aplicativos são de dois tipos, isto é, o alto que insere um argumento extra acima do VP e o baixo que adiciona argumentos extras abaixo ou internamente ao VP.

PALAVRAS-CHAVE:
Estrutura Argumental; Aplicativos; Classes Verbais; Língua Karitiana

ABSTRACT:

This paper investigates how Karitiana (a Tupian language, Arikém branch, located in Rondônia, Brazil; population: 396 people - 333 speakers) introduces additional arguments into the basic verbal structures. In order to analyze and discuss the data, we adopted two theoretical frameworks, i.e., (i) the Hale and Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.'s theory of argument structure and (ii) the theory of applicative heads, elaborated by Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.. In the former proposal, Karitiana displays four verbal classes (intransitive, intransitive with oblique objects, transitive and ditransitive verbs) while, in the latter, the language has only two verbal classes (intransitive and transitive verbs). Adopting Pylkkänen's framework, the Karitiana verbal system exhibits two basic structures in which applicative or voice nuclei add additional arguments. In causatives, the voice nuclei only introduce higher arguments into the structures. However, applicative heads are divided into two types – high and low. The higher head inserts an extra argument above the VP, while the lower one inserts the argument internally into the VP.

KEYWORDS:
Argument Structure; Applicative Heads; Verbal Classes; Karitiana Language

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar teórico e empiricamente a estrutura argumental dos verbos em Karitiana com base em duas teorias de estrutura argumental - Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. e Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.-, mostrando como argumentos são adicionados à estrutura básica do verbo. Apresentar-se-á ainda uma descrição dos verbos e os testes morfossintáticos utilizados na descrição.

O povo Karitiana pertence à família Tupi, subfamília Arikém, localizado no estado de Rondônia, Brasil e, atualmente, conforme o censo realizado em 2016 e 2017 (ROCHA, 2018ROCHA, I. Levantamento da situação sociolinguística da língua Karitiana. In: INVENTÁRIO NACIONAL DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA [INDL/IPHAN/MPEG]. Levantamento regional da situação sociolinguística de 26 etnias indígenas da região de Rondônia. Belém, PA: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2018. p. 1-67.) registrou-se aproximadamente uma população de 396 indivíduos com apenas 333 falantes.

Testes morfossintáticos para identificar classes verbais

Apresentar-se-ão os testes morfossintáticos para identificar valência verbal em Karitiana. Os testes aplicados são: (i) o padrão de concordância, (ii) o padrão de alternância causativo-incoativa, (iii) passivização e (iv) o fato de o núcleo da mini-oração, complemento da cópula, exigir um predicado sintaticamente intransitivo.

O padrão de concordância

Karitiana é uma língua ergativa-absolutiva em que o padrão de concordância1 1 A definição de concordância utilizada é da teoria de ligação (Case Binding theory) que diz que um núcleo funcional concorda com diferentes argumentos em diferentes configurações sintáticas (STORTO, 1999 p. 154; BITTNER; HALE, 1996). no verbo dá-se com o argumento absolutivo, ou seja, o verbo concorda com o objeto em sentenças transitivas ou com o sujeito em intransitivas (LANDIN, 1984LANDIN, D. An outline of the syntactic structure of Karitiana sentences. In: DOOLEY, R. A. Estudos sobre línguas Tupi do Brasil. Brasília: SIL Press, 1984. p. 219-254. (Série Lingüística, 11.).; STORTO, 1999STORTO, L. Aspects of a Karitiana grammar. 1999. Thesis (Ph.D. in Linguistics) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, MA, 1999., 2002STORTO, L. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: ANPOLL. Línguas indígenas brasileiras: fonologia, gramática e história. v.1. Belém: Ed. da UFPA, 2002. p.151-164., 2005STORTO, L. Caso e concordância nas línguas tupi. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 34, p. 59-72, 2005., 2010STORTO, L. Copular constructions in Karitiana: a case against case movement. MIT Occasional Papers in Linguistics, Cambridge, v. 41, p. 205-226, 2010.).

O teste nas tabelas (1) e (2) mostrou que o padrão de concordância constitui um método para identificar classes verbais, uma vez que a marca de concordância é sensível à valência do verbo: verbos transitivos ou bitransitivos concordam com seus objetos enquanto verbos intransitivos fazem concordância com seus únicos argumentos, ou seja, os sujeitos (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; STORTO, 2001STORTO, L. Duas classes de verbos intransitivos em Karitiana (família Arikém, tronco Tupí). In: QUEIXALOS, F. (éd.). Des noms et des verbes en Tupi-Guarani: état de la question. Paris: Lincom-Europa, 2001. p. 163-180.; STORTO; ROCHA, 2015STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42.).

Tabela 1
O verbo transitivo concorda com o objeto (modo declarativo)
Tabela 2
O verbo intransitivo concorda com o sujeito (modo declarativo)

Alternância causativo-incoativa/transitivização

O morfema causativo {m–} é usado em Karitiana para transitivizar um verbo intransitivo. O fato desse morfema poder ser afixado apenas a raízes intransitivas constitui um teste morfossintático para identificar se um verbo é intransitivo ou transitivo, uma vez que ao adicioná-lo a uma raiz transitiva ou bitransitiva, têm-se como resultado uma construção agramatical, de modo que para adicionar outro argumento a um verbo de valência transitiva usa-se uma construção aplicativa alta.

  • (1)

    Causativização de um verbo intransitivo (no modo assertivo)

    1. ø-pyry-som-<y>n asyryty 3-ASSERT-amadurecer-NFUT banana “A banana amadureceu.”

    2. ø-pyry-m-som-<y>n asyryty taso 3-ASSERT-CAUS-amadurecer-NFUT banana homem “O homem amadureceu a banana.”

  • (2)

    Causativização de um verbo intransitivo (no modo assertivo)

    1. y-pyry-tarak-<a>dn yn 1-ASSERT-andar-NFUT eu “Eu andei.”

    2. y-pyry-m-tarak-<a>n yn taso 1-ASSERT-CAUS-andar-NFUT eu homem “O homem me fez andar.”

    3. ø-pyry-m-tarak-<a>n taso yn 3-ASSERT-CAUS-andar-NFUT homem eu “Eu fiz o homem andar.”

  • (3)

    Causativização de um verbo intransitivo com objeto oblíquo (no modo assertivo)

    1. y-py-so'oot-<y>n yn pikom-ty 1-ASSERT-ver-NFUT eu macaco-OBL “Eu vi o macaco.”

    2. y-py-m-so'oot-<y>n yn õwã pikom-ty 1-ASSERT-CAUS-ver-NFUT eu criança macaco-OBL “A criança me fez ver o macaco.”

  • (4)

    Agramaticalidade de um verbo transitivo com {m–} (modo assertivo)

    1. ø-pyr-oky-dn boroja taso 3-ASSERT-matar-NFUT cobra homem “O homem matou a cobra.”

    2. *ø-py-m-oky-dn boroja taso 3-ASSERT-CAUS-matar-NFUT cobra homem “O homem matou a cobra.”

  • (5)

    Agramaticalidade de um verbo bitransitivo com {m–} (modo assertivo)

    1. y-pyry-hit-<y>n boet-<e>ty taso 3-ASSERT-dar-NFUT colar-OBL homem “O homem me deu o colar.”

    2. *y-pyry-m-hit-<y>n boet-<e>ty taso 1-ASSERT-CAUS-dar-NFUT colar-OBL homem

Passivização impessoal com o morfema {a–}

A passivização impessoal {a–} constitui a terceira evidência morfossintática para identificar classes verbais. O morfema de passiva impessoal é usado apenas com verbos sintaticamente transitivos. Verbos intransitivos ficam agramaticais ao serem afixados pelo morfema {a–} (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; STORTO, 2001STORTO, L. Duas classes de verbos intransitivos em Karitiana (família Arikém, tronco Tupí). In: QUEIXALOS, F. (éd.). Des noms et des verbes en Tupi-Guarani: état de la question. Paris: Lincom-Europa, 2001. p. 163-180.; STORTO; ROCHA, 2015STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42.).

  • (6)

    Passivização de verbos transitivos

    1. ø-pyr-oky-dn boroja taso 3-ASSERT-matar-NFUT cobra homem “O homem matou a cobra.”

    2. ø-pyr-a-oky-dn boroja 3-ASSERT-PASV-matar-NFUT cobra “A cobra foi morta.”

  • (7)

    Gramaticalidade de um verbo bitransitivo com {a–} (modo assertivo)

    1. y-pyry-hit-<y>n boet-<e>ty taso 3-ASSERT-dar-NFUT colar-OBL homem “O homem me deu o colar.”

    2. y-pyr-a-hit-<y>n boet-<e>ty 1-ASSERT-PASV-dar-NFUT colar-OBL “Me deram o colar.”

Os exemplos (6a) e (7a) podem ter a redução de valência através do uso do morfema {a-}. O argumento externo do verbo é demovido da estrutura e não pode ser recuperado através de uma by-phrase (como o agente da passiva). O resultado dessa operação pode ser visto nos exemplos (6b) e (7b), respectivamente, em que os verbos foram passivizados/intransitivizados.

  • (8)

    Gramaticalidade de um verbo intransitivo passivizado

    1. ø-pyry-som-<y>n asyryty 3-ASSERT-amadurecer-NFUT banana “A banana amadureceu.”

    2. *ø-pyry-a-som-<y>n asyryty 3-ASSERT-PASV-amadurecer-NFUT banana

  • (9)

    Gramaticalidade de um verbo intransitivo passivizado

    1. y-pyry-tarak-<a>dn yn 1-ASSERT-andar-NFUT eu “Eu andei.”

    2. *y-pyry-a-tarak-<a>dn yn 1-ASSERT-PASV-andar-NFUT eu

  • (10)

    Gramaticalidade de um verbo intransitivo com objeto oblíquo passivizado

    1. y-py-so'oot-<y>n yn pikom-ty 1-ASSERT-ver-NFUT eu macaco-OBL “Eu vi o macaco.”

    2. *y-pyr-a-so'oot-<y>n yn pikom-ty 1-ASSERT-PASV-ver-NFUT eu macaco-OBL

Os exemplos contendo um verbo transitivo em (6-b) ou um verbo bitransitivo em (7-b) podem ser passivizados com o morfema {a–}. Por outro lado, verbos intransitivos não podem receber diretamente o morfema de passiva {a–} (cf. exs. (8-b), (9-b) e (10-b)).

Passivas de verbos intransitivos causativizados

Os exemplos agramaticais em (8-b, 9-b e 10-b) podem receber o morfema de passiva se antes eles forem causativizados por {m–} como em (11–13) (veja também os exemplos (1-b, 2-b e 3-b).

  • (11)

    ø-pyry-a-m-som-<y>n asyryty 3-ASSERT-PASV-CAUS-amadurecer-NFUT banana “Fizeram a banana amadurecer.”

  • (12)

    y-pyry-a-m-tarak-<a>n yn 1-ASSERT-PASV-CAUS-andar-NFUT eu “Me fizeram andar.”

  • (13)

    y-pyr-a-m-so'oot-<y>n yn pikom-ty 1-ASSERT-PASV-CAUS-ver-NFUT eu macaco-OBL “Me fizeram ver o macaco.”

Conforme os exemplos acima, a presença do morfema causativo m- é uma evidência de que as estruturas (11-13) foram transitivizadas de modo que podem permitir a passivização. De fato, todos os verbos intransitivos na língua apresentam o mesmo padrão mostrado em (11-13), como descrito por Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. e Storto e Rocha (2015)STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42., em que um argumento externo só pode ser adicionado a esses verbos através do morfema m-.

Construções de cópula como um teste morfossintático

Storto (2010)STORTO, L. Copular constructions in Karitiana: a case against case movement. MIT Occasional Papers in Linguistics, Cambridge, v. 41, p. 205-226, 2010. demonstrou que o núcleo da mini-oração em uma construção de cópula é sensível à valência verbal, uma vez que sentenças copulares são agramaticais se a mini-oração for nucleada por um verbo sintaticamente transitivo. Testes com construções de cópula constituem o nosso quarto teste morfossintático para identificar classes verbais (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; STORTO, 2001STORTO, L. Duas classes de verbos intransitivos em Karitiana (família Arikém, tronco Tupí). In: QUEIXALOS, F. (éd.). Des noms et des verbes en Tupi-Guarani: état de la question. Paris: Lincom-Europa, 2001. p. 163-180.; STORTO; ROCHA, 2015STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42.).

  • (14)

    Verbos intransitivos nucleando a mini-oração de cópulas

    1. Yn ø-na-aka-t i-tarak-<a>t eu 3-DECL-COP-NFUT PART-andar-ADVZR “Eu andei.”

    2. Yn ø-na-aka-t i-otam-ø eu 3-DECL-COP-NFUT PART-chegar-ADVZR “Eu cheguei.”

    3. Yn ø-na-aka-t i-so'oot-ø pikom-ty eu 3-DECL-COP-NFUT PART-chegar-ADVZR macaco-OBL “Eu vi o macaco.”

  • (15)

    Verbos transitivos nucleando a mini-oração de cópulas

    1. *Yn ø-na-aka-t i-oky-t (boroja) eu 3-DECL-COP-NFUT PART-matar-ADVZR cobra

    2. *Yn ø-na-aka-t i-'y-t (asyryty) eu 3-DECL-COP-NFUT PART-comer-ADVZR banana

    3. *Yn ø-na-aka-t i-hit-ø (asyryty) (pikom-ty) eu 3-DECL-COP-NFUT PART-dar-ADVZR banana macaco-OBL

  • (16)

    Verbos transitivos nucleando a mini-oração de cópulas

    1. boroja ø-na-aka-t i-a-oky-t cobra 3-DECL-COP-NFUT PART-PASV-matar-ADVZR “A cobra foi morta.”

    2. asyryty ø-na-aka-t i-a-'y-ø banana 3-DECL-COP-NFUT PART-PASV-comer-ADVZR “A banana foi comida.”

    3. asyryty ø-na-aka-t i-a-hit-ø (pikom-ty) banana 3-DECL-COP-NFUT PART-PASV-dar-ADVZR macaco-OBL “A banana foi dada para o macaco.”

O grupo de exemplos em (14) mostra verbos intransitivos ocorrendo no núcleo da mini-oração. A agramaticalidade das sentenças no grupo de exemplos em (15), em que verbos transitivos estão nucleando a mini-oração, atesta que somente verbos intransitivos podem ocupar este ambiente sintático. Verbos transitivos não podem ocorrer em construções de cópulas (15) a menos que eles sejam antes passivizados, tornando-se sintaticamente intransitivos conforme os exemplos em (16a-c).

A tabela 5 mostra a valência verbal na primeira coluna; na segunda, apresenta-se o teste 1, ou seja, se o verbo faz concordância com o objeto ou com o sujeito; na terceira coluna, o teste 2 que mostra se o tipo de verbo da coluna 1 aceita ou não a causativização pelo morfema {m–}; na quarta coluna, o teste 3 mostra se o verbo aceita ou não a passivização impessoal com o morfema {a–}; e, por fim, na quinta coluna, apresenta-se o teste 4 em que se mostra qual tipo de verbo pode ocorrer em uma mini-oração em ambiente de cópula.

Tabela 5
Resumo dos testes morfossintáticos

As teorias de estrutura argumental de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. e Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.

Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

Para Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., a possibilidade ou impossibilidade de ocorrência do processo de alternância de valência deve-se ao fato de uma raiz verbal ser ou não ser predicativa - em outras palavras - se essa raiz exige ou não um argumento interno. Desta forma, o comportamento de um verbo no que diz respeito à transitivização é definido pelas propriedades dos elementos, com os quais a estrutura do verbo é composta. As raízes (R) predicativas projetam um argumento interno à estrutura, cuja posição dá-se no especificador de V2 em estruturas de verbos do tipo inacusativos.

  • (17)

    Demonstrando as posições estruturais de um verbo:

Em (17), o complemento do núcleo é a própria raiz (R), o núcleo é um verbalizador (V) e o especificador do núcleo V será rotulado de Spec, ou especificador interno. A noção de especificador interno na estrutura diádica composta é muito importante para esta proposta teórica, uma vez que esse especificador é um elemento pivô na alternância causativo-incoativa.

Versão transitiva pivô Versão intransitiva Someone/something broke the pote . broke.

A operação de conflation é um processo proposto por Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., semelhante ao processo de incorporação em Baker (1988a)BAKER, M. C. Incorporation: A theory of grammatical function changing. Chicago: University of Chicago Press. 1988a.. Esta operação pode ser resumida como um processo de fusão entre dois núcleos em c-comando mútuo ou entre um núcleo e seu complemento. O núcleo ao qual o complemento se funde deve ser vazio ou fonologicamente defectivo (afixal). Este processo é utilizado tanto para a derivação de um verbo a partir de uma raiz (R) quanto para o processo de aumento de valência de um verbo.

Conflation é o processo conforme o qual a matriz fonológica do núcleo de um complemento C é introduzida na matriz fonológica vazia do núcleo que seleciona (e é consequentemente irmão de) C (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., p. 12, tradução nossa)3 3 Original: “Conflation is restricted to the process according to which the phonological matrix of a head of a complement C is introduced into the empty phonological matrix of a head that selects (and is accordingly sister to) C” (HALE; KEYSER, 2002, p.12).

Conflation consiste no processo de copiar a assinatura fonológica do complemento na assinatura fonológica do núcleo; o núcleo deve ser defectivo (HALE; KEYSER 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., p.63, tradução nossa)4 4 Original: “Conflation consists in the process of copying the p-signature of the complement into the p-signature of the head, where the latter is defective.” (HALE; KEYSER 2002, p. 63).

A proposta de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. prevê quatro tipos de projeções que descrevem os verbos de uma dada língua: a monádica, a diádica composta, a diádica básica e uma atômica. Serão discutidas aqui apenas as três primeiras, que são aquelas que descrevem os verbos em Karitiana.

Na estrutura monádica, o núcleo V projeta apenas o complemento, de modo que não há projeção de um especificador. E descreve tanto os verbos transitivos quanto os verbos inergativos5 5 Verbos inergativos não apresentam argumentos internos, e uma vez que eles não projetam argumentos internos não há atribuição de caso nominativo ao argumento externo (BURZIO, 1986). Na proposta de Hale e Keyser (2002), esses verbos não têm um especificador interno em suas estruturas, dado isso, eles não apresentam alternância causativo-incoativa, pois para ocorrer alternância causativa é necessário que haja especificador interno, que funcionará como sujeito em uma versão intransitiva de um verbo inacusativo e como objeto na versão transitiva dos inacusativos. .

A estrutura diádica composta apresenta dois núcleos Vs, um mais alto e o outro mais baixo. Sendo que o mais baixo (V2) é responsável pela derivação da versão intransitiva de um verbo alternante enquanto o núcleo mais alto (V1) deriva a versão transitiva desse mesmo verbo. A raiz (R) presente em verbos alternantes é um predicador que força o núcleo V2 mais baixo a projetar um especificador na estrutura (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.).

A estrutura diádica básica apresenta um núcleo P que projeta um complemento e um especificador, de modo que P é tomado como complemento de uma projeção monádica para tornar-se uma estrutura verbal (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.).

As representações estruturais dizem respeito às relações entre núcleos, especificadores e complementos. São essas relações que permitem compor certas estruturas lexicais (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.).

Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.

Conforme Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., a maioria das línguas apresenta a estratégia de núcleos aplicativos para adicionar um objeto indireto à estrutura básica de um verbo. Esta possibilidade foi amplamente atestada nas línguas bantas. Na literatura destas línguas, argumentos adicionais são chamados de argumentos aplicados e as construções resultantes chamadas de construções aplicativas.

De acordo com a autora, o inglês (19) e a língua chaga (20) apresentam uma construção de duplo objeto com um argumento benefactivo aplicado, mas somente em chaga é possível adicionar um participante benefactivo a um verbo inergativo, como nos exemplos a seguir:

  • (19)

    Argumentos aplicados em inglês

    a. I baked a cakeeu assar.PAST um bolo “Eu assei um bolo.” b. I baked him a cakeeu assar.PAST ele um bolo“Eu assei um bolo para ele.” c. I raneu correr.PAST d. *I ran himeu correr.PAST ele (Exemplos de Pylkkänen (2008, p.11))

  • (20)

    Verbos inergativos com argumentos aplicados em chaga

    1. N-ä-ï-lì-í-à m-kà k-élyá FOC-1SUB-PRES-comer-APPL-FV C1-esposa C7-comida “Ele está comendo comida por sua esposa.

    2. N-ä-i-zrìc-í-à m-bùyà FOC-1SUB-PRES-correr-APPL-FV C9-amigo “Ele está correndo por um amigo.” (BRESNAN; MOSHI, 1990 apudPYLKKÄNEN, 2008, p.11)

Para a autora, existe apenas uma aparente similaridade semântica entre os benefactivos das línguas chaga e inglês, visto que em chaga, o núcleo aplicativo relaciona um indivíduo ao evento descrito pelo VP, já em inglês, o núcleo aplicativo relaciona um indivíduo ao objeto direto.

A autora argumenta que, translinguisticamente, as construções aplicativas dividem-se em dois tipos, tal como visto pela assimetria em (19) e (20).

Na presente proposta teórica, núcleos sintáticos combinam com seus complementos e especificadores composicionalmente, através das regras de Aplicação Funcional e Modificação de Predicado (PYLKKÄNEN, 2008PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.):

  • (21)

    Estrutura aplicativa alta

O argumento aplicado ‘wife’ na estrutura (21) é benefactivo em relação ao evento de ‘comer’, mas não compartilha nenhuma relação com o objeto do verbo comer. O mesmo raciocínio vale para os aplicativos instrumentais de chichewa em (22), em que ‘faca’ tem uma relação instrumental com o evento de moldar, mas nenhuma relação com ‘cântaro’ (PYLKKÄNEN, 2008PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., p. 12).

Aplicativo instrumental em chichewa

  • (22)

    Mavuto a-na-umb-ir-a mpeni mtsuko Mavuto SP-PAST-moldar-APPL-ASP faca cântaro “Mavuto moldou o cântaro com uma faca.” (BAKER, 1988b, p. 353)

Em inglês, no entanto, é impossível uma interpretação na qual o argumento aplicado não tenha uma relação com o objeto direto em construções de duplo objeto (cf. exemplos 23 e 24).

  • (23)

    He ate the wife food

    ele comer.PAST a esposa comida

  • (24)

    *John held Mary the bag

    John segurar.PAST Mary a bolsa

Nas seções seguintes, apresentam-se as duas análises com base nas duas propostas vistas na seção teórica.

As classes verbais Karitiana analisadas à luz da proposta teórica de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

Os verbos da língua Karitiana podem ser descritos basicamente em 3 classes correlacionadas às 3 estruturas em Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.: (i) verbos intransitivos alternantes – estrutura diádica composta; (ii) transitivos – monádica; e (iii) bitransitivos – diádica básica (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; STORTO, 2001STORTO, L. Duas classes de verbos intransitivos em Karitiana (família Arikém, tronco Tupí). In: QUEIXALOS, F. (éd.). Des noms et des verbes en Tupi-Guarani: état de la question. Paris: Lincom-Europa, 2001. p. 163-180.; STORTO; ROCHA, 2015STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42.). Karitiana não distingue verbos inergativos de inacusativos, posto que os testes morfossintáticos para diferencia-los mostram que todos os verbos intransitivos dessa língua apresentam o mesmo padrão sintático. Diferente de Karitiana, Juruna (outra língua Tupi) realiza, morfossintaticamente, a distinção inergativo-inacusativa, uma vez que ela apresenta dois morfemas causativos {ma-} e {ũ-} para causativizar verbos inacusativos em (25) e inergativos em (27), respectivamente (FARGETTI, 2001FARGETTI, C. M. Estudo fonológico e morfossintático da língua Juruna. 317f. 2001. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.; LIMA, 2008LIMA, S. O. de. A estrutura argumental dos verbos na língua Juruna (Yudja): da formação dos verbos para a análise das estruturas sintáticas. 297f. 2008. Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.).

Inacusativo - alternante

  • (25)

    anïiyu

    3SG.dormir

    “Ele dormiu.”

  • (26)

    Sewaki i-ma-iyu he anu Sewaki 3SG-CAUS-dormir ele ASP “Sewaki o fez dormir.” (Lit. Sewaki o dormiu.)

Inergativo

  • (27)

    tahu apï correr cachorro “Cachorro correu.”

  • (28)

    una apï y-ũ-tahu anu eu cachorro 3SG-CAUS-correr ASP “Eu fiz cachorro correr.”

(FARGETTI, 2001FARGETTI, C. M. Estudo fonológico e morfossintático da língua Juruna. 317f. 2001. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p. 186-190).

Os exemplos em (25-28) evidenciam o fato de Juruna exibir duas estruturas distintas para os verbos intransitivos: monádica para os verbos inergativos e diádica composta para os verbos inacusativos alternantes.

Verbos diádicos compostos: inacusativos

Todos os verbos intransitivos em Karitiana são descritos pela estrutura diádica composta. Em (31), mostra-se a projeção argumental de um verbo inacusativo alternante em que uma raiz predicativa R, como otam ‘chegar’ e terekterek ‘dançar’, requer um especificador (interno), que é projetado pelo núcleo V2, estrutura típica de verbos inacusativos. O especificador é realizado pelo NP taso ‘homem’.

Formação da versão intransitiva dos verbos otam e terekterek

  • (29)

    ø-na-otam-ø taso 3-DECL-chegar-NFUT homem “O homem chegou.”

  • (30)

    ø-na-terek.teregng-ø taso 3-DECL-dançar-NFUT homem “O Homem dançou.”

Pré-conflation

Em (31), apresenta-se a configuração de pré-conflation em que a raiz R está na posição de complemento do núcleo V2 (verbalizador), onde uma raiz do tipo otam ou terekterek projetam seus especificadores internos (o NP taso) através do núcleo de uma estrutura diádica composta.

  • (31)

    Estrutura diádica composta formando verbos inacusativos a partir de R

Primeira operação de conflation

Em (32), ocorre a primeira operação de conflation em que a raiz R funde-se ao núcleo verbalizador V2 para formar a versão intransitiva, gerando os verbos otam em (29) e terekterek em (30).

  • (32)

    Formação de verbos inacusativos

Os exemplos a seguir exibem as contrapartes transitivas dos dados em (29) e (30), respectivamente.

Formação da versão transitiva dos verbos otam e terekterek

  • (33)

    Maria ø-na-mb-otam-ø João Maria 3-DECL-CAUS-chegar-NFUT João “A Maria fez o João chegar.” (Lit. A Maria chegou o João)

  • (34)

    Yn ø-na-m-terekteregng-ø taso eu 3-DECL-CAUS-dançar-NFUT homem “Eu fiz o homem dançar.” (Lit. Eu dancei o homem.”)

Segunda operação de conflation

Em (35a, b), ocorre a segunda operação de conflation para formar a versão transitiva dos verbos otam e terekterek através da fusão dos núcleos verbalizadores V1 e V2. Nesta instância do processo, introduz-se o morfema causativo {m-} para transitivizar os verbos intransitivos.

  • (35)

    Formação da versão transitiva

A operação da fusão dos núcleos V1 com V2 forma a versão causativa de verbos inacusativos como em (33) e (34) a partir de (29) e (30), respectivamente.

Verbos diádicos compostos com objeto oblíquo

Dentre os verbos inacusativos alternantes em Karitiana, há uma subclasse que pode projetar um objeto indireto opcional. Morfossintaticamente, essa subclasse de intransitivos passa pelos mesmos testes aplicados aos verbos otam e terekterek. Os verbos analisados nessa subclasse até o momento são: a´ak ‘gostar sexualmente’; hõroj ‘mentir’; kãrã ‘ter ciume’; koro´op pasap ‘ter saudade’; opihok ‘escutar’; opiso ‘ouvir’; paket ‘ter nojo’; pasadn ‘amar’; pi ‘temer (ter medo de)’; pypyyt ‘saber (ter a habilidade de fazer algo)’; pyso ‘tocar com a mão/ tatear’; pytim okokit ‘enjoar’; pyting ‘querer, desejar algo’; so´oot ‘ver’; sondyp ‘saber’ (de algo)'; e tirira ‘tremer’ (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.). Adotar-se-á o verbo so'oot como sendo um verbo prototípico dessa subclasse, e ao longo do texto será mencionado como o verbo tipo-so'oot.

Em (36), apresentar-se-á o paradigma do verbo do tipo-so´oot em uma sentença assertiva, cuja ordem de constituinte é sempre verbo-inicial VS (com a possibilidade de adicionar um objeto oblíquo). Além disso, é possível a ordem V(Objeto oblíquo) S. Já no caso de uma sentença transitiva, as ordens são VOS e VSO. As propriedades sintático-semânticas desse tipo de verbo são distinguidas daqueles do tipo otam e terekterek, ou seja, so'oot apresenta (i) um objeto oblíquo e (ii) o sujeito com papel semântico experienciador (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.).

  • (36)

    ø-py-so'oot-yn (pykom-ty) õwã 3-ASSERT-ver-NFUT (macaco-OBL) criançã. “A criança viu o macaco.”

  • (37)

    *ø-pyr-a-so'oot-yn õwã (boet-<e>ty) 3-ASSERT-PASV-ver-NFUT criança (colar-OBL)

Os verbos do tipo-so´oot não permitem a formação de passiva impessoal pelo morfema de passiva {a-}, como mostra o exemplo agramatical em (37), obedecendo o mesmo padrão dos verbos otam e terekterek.

  • (38)

    y-py-m-so'oot-yn õwã yn (pikom-ty) 1-ASSERT-CAUS-ver-NFUT criança eu (macaco-OBL) “A criança me fez ver o macaco.”

O exemplo (38) mostra o verbo so'oot sendo causativizado pelo morfema {m-} como um verbo inacusativo. Além disso, a marca de concordância absolutiva {y-} é realizada com o pronome yn ‘eu’, que está funcionando como objeto.

  • (39)

    y-pyr-a-m-so´oot-<y>n yn (boet-<e>ty) 1-ASSERT-PASV-CAUS-ver-NFUT eu colar-OBL “Me fizeram ver o colar.”

Em (37), o verbo so'oot não pode ser passivizado diretamente pelo morfema {a-}. No entanto, a construção seria gramatical se antes o verbo for causativizado por {m-} como em (38), introduzindo um argumento externo – causa ou agente – para licenciar o uso da passiva em (39).

  • (40)

    õwã Ø-na-aka-t i-so'oot-Ø (pikom-ty) criança 3-DECL-COP-NFUT PART-ver-ADVZR macaco-OBL “A criança viu o macaco.”

O exemplo (40) mostra que um verbo do tipo so'oot pode nuclear a mini-oração, complemento de cópula, ambiente restrito a verbos sintaticamente intransitivos.

Adotar uma estrutura para descrever os fatos observados em verbos do tipo so´oot em (36)–(40) é relativamente complexo, visto que a abordagem teórica adotada apresenta as três estruturas verbais básicas: diádica composta, diádica básica e monádica.

O verbo do tipo so'oot apresenta a estrutura de um verbo diádico composto, visto que o tipo de alternância e o ambiente sintático em que ele ocorre é o mesmo em que ocorre otam e terekterek, exceto pelo fato de exigir semanticamente um objeto, que, sintaticamente, aparece oblíquo, que pode ser demovido. Contudo, a estrutura diádica composta não descreve o fato de ter um complemento oblíquo. Por outro lado, poderíamos considerar a estrutura diádica básica, que daria conta deste complemento oblíquo, mas ela não seria sensível à propriedade alternante desse tipo de verbo, já que a estrutura diádica básica é uma estrutura monádica que pega um sintagma (pré-)posposicionado como seu complemento (doravante P-complemento).

Tendo isto em vista, Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. adotou uma estrutura derivada de uma diádica composta, que é prevista em Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., que, nesse caso, ao invés de ter uma raiz (R) como complemento do núcleo verbal mais baixo (V2), tem-se um P-complemento. Assim, descrevemos a alternância do verbo em questão, pois ao mesmo tempo em que a estrutura permite a alternância causativo-incoativa permite a projeção do objeto oblíquo (41).

  • (41)

    Estrutura diádica composta com um P-complemento (versão intransitiva)

  • (42)

    Estrutura diádica composta com um P-complemento (versão transitiva)

A estrutura diádica básica com um P-complemento deve descrever a alternância que verbos do tipo-so'oot fazem ao mesmo tempo em que a estrutura capta o objeto oblíquo.

Verbos transitivos: estrutura monádica

Quanto aos verbos transitivos, a análise proposta por Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. é de que os verbos transitivos podem ser descritos pela estrutura monádica. A seguir, apresentar-se-á um paradigma verbal de um verbo do tipo transitivo (43)–(47); os exemplos são retirados de Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011..

Verbo transitivo no modo assertivo (VSO)

  • (43)

    Ø-pyry-'y-dn taso asyryty 3-ASSERT-comer-NFUT homem banana “O homem comeu a banana.”

Verbo transitivo sendo passivizado via {a-} no modo assertivo (VS)

  • (44)

    Ø-pyr-a-'y-dn asyryty 3-ASSERT-PASV-comer-NFUT banana “A banana foi comida.'

Verbo transitivo com o morfema {m-} no modo assertivo

  • (45)

    *Ø-pyry-m-'y-dn asyryty taso 3-ASSERT-CAUS-comer-NFUT banana homem

Verbos transitivos não podem ser causativizados via {m–} como atestado em (45). O dado em (46) é agramatical pelo fato de ocorrer o morfema {m-} e não pela passivização com {a-}

  • (46)

    *Ø-pyr-a-m-'y-dn asyryty 3-ASSERT-PASV-CAUS-comer-NFUT banana

Construção de cópula com verbo transitivo no núcleo da mini-oração

  • (47)

    *asyryty Ø-na-aka-t i-'y-t banana 3-DECL-COP-NFUT PART-comer-ADVZR

O dado em (47) mostra a restrição de um verbo transitivo ocorrer como núcleo da mini-oração complemento de cópula.

  • (48)

    Estrutura monádica – verbo transitivo

A estrutura (48) descreve os verbos transitivos. Esses verbos, em termos de estrutura argumental, projetam um complemento, visto pelo NP asyryty 'banana', e não projetam um especificador como é previsto na teoria adotada (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.).

Verbos diádicos básicos: bitransitivos

Os verbos bitransitivos são: hit ‘dar’, hit'it ‘emprestar’ e oigng ‘presentear’. Todos eles apresentam o mesmo padrão morfossintático como se pode ver em (49) – (53). Observe que a concordância dá-se com o argumento interno não posposicionado em (49). O argumento com papel semântico TEMA recebe a marca de oblíquo (-ty). Assim, como os transitivos, os verbos bitransitivos podem ser passivizados diretamente pelo morfema de passiva {a-} em (50); não aceitam a causativização com {m-}, como mostra o exemplo (51), nem mesmo após terem sido passivizados como em (52), bem como não podem nuclear a mini-oração em ambiente de cópula (53).

Verbo bitransitivo oigng ‘presentear’ no modo assertivo

  • (49)

    y-pyr-oigng-<a>n õwã boet-<e>ty 1-ASSERT-presentear-NFUT criança colar-OBL “A criança me presenteou com um colar.”

Verbo bitransitivo no modo assertivo passivizado via {a-}

  • (50)

    Ø-pyr-a-oigng-<a>n õwã boet-<e>ty 3-ASSERT-PASV-presentear-NFUT criança colar-OBL “Presentearam a criança com um colar.”

Verbo bitransitivo no modo assertivo com o morfema causativo {m-}

  • (51)

    *y-py-m-oigng-<a>n õwã boet-<e>ty 1-ASSERT-CAUS-presentear-NFUT criança colar-OBL

Verbo bitransitivo no modo assertivo com os morfemas {a-} e {m-}

  • (52)

    *Ø-pyr-a-m-oigng-<a>n õwã boet-<e>ty 3-ASSERT-PASV-CAUS-presentear-NFUT criança colar-OBL

Verbo bitransitivo no núcleo da mini-oração em construções de cópula

  • (53)

    *taso Ø-na-aka-t i-oigng-<a>t boet-<e>ty homem 3-DECL-COP-NFUT PART-presentear-ADVZR colar-OBL

Os verbos bitransitivos, além de apresentarem um padrão morfossintático comparável aos transitivos, compartilham de características sintáticas e semânticas dos verbos intransitivos com objetos oblíquos, que é, nesse caso, o argumento oblíquo opcional com papel semântico tema. Assim, de maneira análoga aos verbos intransitivos com objeto oblíquo que são sintaticamente intransitivos e semanticamente transitivos, os bitransitivos são sintaticamente transitivos e semanticamente bitransitivos (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; STORTO; ROCHA, 2015STORTO, L.; ROCHA, I. Estrutura argumental da língua Karitiana. In: STORTO, L.; FRANCHETTO, B.; LIMA, S. (ed.). Sintaxe e semântica do verbo em línguas indígenas do Brazil. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-42.).

Conforme os fatos apresentados em (49)–(53), os verbos bitransitivos têm o argumento ALVO mais alto na estrutura e o TEMA mais baixo. Este último recebe a marca de {-ty}. Diante dos fatos, a estrutura que melhor descreve o comportamento desses verbos é a estrutura diádica básica em (54).

  • (54)

    Derivação de verbos diádicos básicos: bitransitivos

A estrutura (54) pode ser decomposta da seguinte maneira: uma estrutura monádica toma como complemento um núcleo P que projeta o argumento ALVO no seu especificador e um argumento TEMA na sua posição de complemento ((54)-b) (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.). Assim, a estrutura (54) descreve a transitividade do verbo, além de representar e descrever os fatos de os verbos bitransitivos mostrarem o argumento tema mais baixo na estrutura, tal como verbos de duplo objeto do inglês. Só que em Karitiana, o argumento com papel semântico tema é introduzido por uma posposição devido à restrição de argumentos nucleares.

Adicionando argumentos

Nesta seção, analisam-se como argumentos extras são adicionados aos verbos intransitivos, bitransitivos e transitivos em Karitiana com base na proposta teórica de núcleos aplicativos em Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.. A autora assume que verbos têm uma estrutura básica e um núcleo funcional que permite a introdução de um argumento adicional; a autora trata esse núcleo funcional como núcleo aplicativo; o argumento adicionado é, portanto, chamado de argumento aplicado.

Segundo a proposta de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., os núcleos voice e aplicativos (alto e baixo) introduzem um argumento não-nuclear6 6 Entende-se por argumento nuclear um argumento que é exigido e introduzido diretamente pelo verbo sem o auxílio de um núcleo funcional, por exemplo, o objeto direto de um verbo transitivo. à estrutura sintática básica do verbo. Assim, o núcleo Voice introduz um argumento externo ao VP enquanto o aplicativo alto adiciona um argumento extra acima do VP, relacionando o argumento externo ao evento descrito pelo VP; já o aplicativo baixo adiciona um argumento internamente ao VP, relacionando os dois argumentos internos do verbo.

Baseando-se na proposta teórica de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., Karitiana apresenta apenas duas classes de verbos: uma transitiva e outra intransitiva. Deste modo, os argumentos adicionais são introduzidos via núcleos aplicativos altos e baixos. Assim, tanto verbos como oky 'matar' quanto hit 'dar' apresentam a mesma estrutura argumental básica, sendo que ao verbo hit pode-se adicionar um argumento aplicado. Os verbos intransitivos como otam 'chegar' e so'oot 'ver' compartilham a mesma estrutura básica entre si; contudo, a estrutura de verbos como so'oot recebe um argumento sintaticamente adicional, introduzido por um núcleo aplicativo baixo.

As construções analisadas como causativização analítica (ROCHA, 2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., 2014ROCHA, I. Causativization in karitiana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 1, p. 183-197, 2014.) ou perifrástica (EVERETT, 2006EVERETT, C. Gestural, perceptual and conceptual patterns in karitiana. Houston: Rice University Press, 2006.) são reanalisadas aqui como construções aplicativas altas.

Assim, os núcleos introdutores de argumentos são:

  1. Voice: introduz o argumento externo aos verbos intransitivos inacusativos via morfema causativo {m–}, transitivizando-os;

  2. Aplicativo alto: introduz um argumento com semântica instrumental aos verbos transitivos ou transitivizados via typoong;

  3. Aplicativo baixo: introduz um argumento aplicado aos verbos intransitivos como so'oot ou hit via {ø}.

Construção aplicativa alta

Karitiana apresenta uma construção com um núcleo funcional realizado por typoong em que há uma leitura instrumental (56). Essas construções têm sido analisadas como construções causativas analíticas por Everett (2006)EVERETT, C. Gestural, perceptual and conceptual patterns in karitiana. Houston: Rice University Press, 2006. e ROCHA (2011ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., 2014ROCHA, I. Causativization in karitiana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 1, p. 183-197, 2014.).

A seguir oferecemos exemplos que demonstram a adição de um argumento aplicado a uma construção transitiva:

  • (55)

    õwã ø-na-okop-ø ot'ep criança 3-DECL-quebrar-NFUT arco “A criança quebrou o arco.”

  • (56)

    taso ø-na-okop-ø typoong ot'ep õwã-ty homem 3-DECL-quebrar-NFUT APPL.A arco criança-OBL “O homem quebrou o arco através da criança.”

Compara-se os exemplos (55) e (56) e veja-se que, no primeiro, o sujeito õwã causa uma ação sobre o objeto NP ot'ep diretamente. No segundo, õwã ainda é o participante que faz a ação de “quebrar o arco”, mas ele funciona apenas como um instrumento de taso (o sujeito sintático da oração) para “quebrar o arco”.

  • (57)

    *taso ø-na-okop-ø ot'ep typoong õwã-ty homem 3-DECL-quebrar-NFUT arco APPL.A criança-OBL “O homem quebrou o arco através da criança.”

A agramaticalidade do exemplo (57) mostra que typoong forma uma unidade sintática com o verbo, posto que não se pode colocar o objeto entre o verbo e typoong.

  • (58)

    yn a-taka-mĩ-t typoong an i-ty eu 2-DECL-bater-NFUT APPL.A você ele-OBL “Eu bati em você através de/com/usando ele.” (EVERETT, 2006, p. 442)

O exemplo (58) é usado para atestar que o argumento que aparece após typoong é o objeto, já que a concordância no verbo {a-} dá-se com o argumento absolutivo, an.

  • (59)

    atykiri ø-na-otam-ø João então 3-DECL-chegar-NFUT João “Então o João chegou.”

  • (60)

    *atykiri (João) ø-na-otam-ø (João) typoong (João) taso-ty então (João) 3-DECL-chegar-NFUT (João) APPL.A (João) homem-OBL

  • (61)

    Renato ø-na-mb-otam-ø õwã Renato 3-DECL-CAUS-chegar-NFUT criança “Renato fez a criança chegar.”

  • (62)

    Renato ø-na-mb-otam-ø typoong õwã João-ty Renato 3-DECL-CAUS-chegar-NFUT APPL.A criança João-OBL “Renato fez a criança chegar através do João.”

O exemplo (59) é uma estrutura com um verbo intransitivo que ao adicionar (typoong) à estrutura, como em (60), tem-se como resultado uma construção agramatical. A fim de garantir que a agramaticalidade não tenha sido causada devido à posição sintática do sujeito, realizou-se o teste com o sujeito ocupando diferentes posições. Contudo, se a estrutura (59) for antes causativizada via {m-}, adicionando um argumento externo, a construção aplicativa é permitida como se pode ver em (62).

Apresentamos a estrutura sintática de um núcleo aplicativo alto que descreve as construções apresentadas em (56), (58) e (62). Para a estrutura (63), considera-se o exemplo (58).

  • (63)

    Estrutura aplicativa alta

A estrutura (63) de Pylkkänen (2008PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., p.14) capta o fato de o argumento aplicado ter semântica instrumental. É fato que o argumento com função de sujeito yn não afeta diretamente o objeto an, mas pelo contrário, o evento de “bater em você” é realizado pelo participante que, aqui, está sendo analisado como argumento aplicado i-ty 'ele-oblíquo'.

Construções aplicativas baixas

Nesta seção, mostra-se uma análise de núcleos aplicativos baixos para os verbos do tipo hit e so'oot, 'dar' e 'ver', respectivamente. Embora tratam-se os dois tipos de verbos, como envolvendo construções aplicativas baixas, é válido mencionar que estes verbos em ((64)-(66)) apresentam estruturas básicas transitivas, enquanto a construção em (68) apresenta a estrutura básica intransitiva.

  • (64)

    taso ø-naka-hit-ø õwã boet-<e>ty homem 3-DECL-dar-NFUT criança colar-OBL “O homem deu o colar para a criança.”

  • (65)

    taso ø-naka-hit-ø boet-<e>ty homem 3-DECL-dar-NFUT colar-OBL “O homem deu o colar.”

  • (66)

    taso ø-naka-hit-ø õwã homem 3-DECL-dar-NFUT criança “O homem deu (algo) para a criança.”

  • (67)

    y-py-so'oot-<y>n yn pikom-ty 1-ASSERT-ver-NFUT eu macaco-OBL. “Eu vi o macaco.”

  • (68)

    y-py-m-so'oot-<y>n õwã pikom-ty 1-ASSERT-CAUS-ver-NFUT criança macaco-OBL “A criança me fez ver o macaco.”

Estrutura para o verbo hit

Antes de apresentar a estrutura que descreve o verbo hit em Karitiana (64), faz-se uma relação desse tipo de verbo com os verbos em construções de duplo objeto do inglês (69), verificando que ambos apresentam estruturas similares, de modo que o argumento com papel semântico ALVO c-comanda o TEMA, que está mais baixo na estrutura, conforme a representação arbórea em (70). Diferentemente do inglês, nota-se que o argumento TEMA recebe uma marcação oblíqua em Karitiana que aparece realizado pelo sufixo {–ty}. Na presente análise, esse argumento é introduzido pelo núcleo aplicativo baixo.

  • (69)

    I gave Mary a book. “Eu dei um livro para a Mary.”

  • (70)

    O ALVO mais alto do que o TEMA

A estrutura (71) descreve uma construção aplicativa baixa, descrevendo verbos do tipo hit em Karitiana. Para a representação arbórea (71), considera-se o exemplo apresentado em (64):

  • (71)

    Estrutura aplicativa baixa para verbos do tipo hit em Karitiana

Em (71), o núcleo aplicativo seleciona três argumentos: (i) o NP õwã, (ii) e o NP boet com a posposição -ty. Já (iii) é o próprio verbo hit que funciona como o terceiro argumento. Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. descrevem as construções de duplo objeto como sendo a estrutura diádica básica, que em termos de posição argumental, a construção de duplo objeto tem a configuração das estruturas with-construction. Assim, em termos configuracionais, as estruturas with-construction e duplo objeto são semelhantes entre si, sendo que a primeira apresenta um núcleo P realizado enquanto a segunda não. Essas duas estruturas diferem da estrutura to-dative em que o ALVO se posiciona abaixo do TEMA.

Ressalta-se que na análise frente à proposta teórica em Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., verbos como hit em Karitiana e give em inglês são depreposicionais enquanto em uma análise com base na proposta de núcleos aplicativos de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008., essas construções são geradas por meio de um núcleo funcional associado ao verbo para projetar o argumento adicional na estrutura.

Estruturas para os verbos do tipo so'oot

Karitiana apresenta um tipo de verbo intransitivo com a projeção de um objeto oblíquo, analisado por Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. como verbos diádicos composto com um P-complemento na posição da raiz (R) como complemento do núcleo V2 (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.). Neste trabalho, serão reanalisados como construções aplicativas baixas usando a proposta teórica de núcleos aplicativos de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.. Além do argumento oblíquo, verbos desse tipo apresentam um sujeito com papel semântico experienciador.

A proposta de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008. para núcleos aplicativos prevê que o núcleo aplicativo baixo pegue 3 argumentos: os objetos direto, indireto e o verbo. Pareceria contra-intuitivo dizer que um verbo do tipo so'oot 'ver' tenha dois argumentos internos; contudo, não é contra-intuitivo pelo seguinte fato: esses verbos são do tipo inacusativo em que o sujeito intransitivo é gerado como argumento interno do verbo. Além disso, pode-se ver que o sujeito da versão intransitiva corresponde ao objeto da versão transitiva (compare o par de exemplos (67 e 68)).

  • (73)

    Estrutura de núcleo aplicativo baixo para verbos do tipo so'oot

Pelo fato de o verbo so'oot poder alternar-se entre uma versão transitiva e intransitiva, a estrutura que descreve esse tipo de verbo deve ter um slot para tal alternância. A teoria adotada prevê que argumentos externos sejam introduzidos por um núcleo voice, o que motivou a projetar o núcleo voice na estrutura para descrever a causativização {m–} em Karitiana.

Considerações finais

O presente trabalho ofereceu um estudo da estrutura argumental da língua Karitiana em que se mostram os testes aplicados para identificar classes verbais (1.1), apresentando a análise descritiva e teórica dada por Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. 220f. 2011. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. sobre a estrutura argumental com base na proposta de teoria de estrutura argumental de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., onde foram descritas 3 classes verbais: (i) transitiva (monádica), (ii) bitransitiva (diádica básica) e (iii) intransitivas subdividida em 2 subclasses que são os (a) inacusativos 'comuns' (diádica composta) e (b) os verbos inacusativos que apresentam um objeto oblíquo (diádica composta com objeto oblíquo). Mostrou-se uma reanálise dos verbos em Karitiana, utilizando a proposta teórica de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing arguments. Cambridge, MA: MIT Press, 2008. em que argumentos adicionais são introduzidos via núcleos aplicativos altos e baixos. Na atual proposta, Karitiana apresenta apenas duas classes verbais: uma transitiva e outra intransitiva, sendo que argumentos oblíquos desses verbos são introduzidos via núcleos funcionais: objetos com {–ty} dos verbos hit 'dar' e so'oot 'ver' são adicionados via núcleo aplicativo baixo, já os argumento adicionais como em estruturas com typoong são permitidos através do núcleo aplicativo alto.

  • 1
    A definição de concordância utilizada é da teoria de ligação (Case Binding theory) que diz que um núcleo funcional concorda com diferentes argumentos em diferentes configurações sintáticas (STORTO, 1999STORTO, L. Aspects of a Karitiana grammar. 1999. Thesis (Ph.D. in Linguistics) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, MA, 1999. p. 154; BITTNER; HALE, 1996BITTNER, M.; HALE, K. L. The structural determination of case and agreement. Linguistic Inquiry, Cambridge, MA, v.27, n.1, p. 1-68, 1996.).
  • 2
    GLOSAS: 1, 2, 3: concordância de primeira, segunda e terceira pessoas; DECL: modo declarativo; NFUT: não-futuro; ASSERT: modo assertivo; CAUS: causativizador; OBL: oblíquo; PASV: passivizador; COP: cópula; PART: particípio/nominalizador; ADVZR: adverbializador; PAST: passado; FOC: foco; 1/2/3SG: primeira, segunda e terceira pessoa do singular; PRES: presente; APPL: morfema aplicativo; FV: vogal final (final vowel); C1/C7/C9: classes 1, 7 e 9; ASP: aspecto; SP: prefixo de concordância de sujeito; SUB: sujeito.
  • 3
    Original: “Conflation is restricted to the process according to which the phonological matrix of a head of a complement C is introduced into the empty phonological matrix of a head that selects (and is accordingly sister to) C” (HALE; KEYSER, 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., p.12).
  • 4
    Original: “Conflation consists in the process of copying the p-signature of the complement into the p-signature of the head, where the latter is defective.” (HALE; KEYSER 2002HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., p. 63).
  • 5
    Verbos inergativos não apresentam argumentos internos, e uma vez que eles não projetam argumentos internos não há atribuição de caso nominativo ao argumento externo (BURZIO, 1986BURZIO, L. Italian syntax: A government-binding approach. Berlin: Springer Science & Business Media, 1986.). Na proposta de Hale e Keyser (2002)HALE, K. L.; KEYSER, S. J. Prolegomenon to a theory of argument structure. Cambridge, MA: MIT Press, 2002., esses verbos não têm um especificador interno em suas estruturas, dado isso, eles não apresentam alternância causativo-incoativa, pois para ocorrer alternância causativa é necessário que haja especificador interno, que funcionará como sujeito em uma versão intransitiva de um verbo inacusativo e como objeto na versão transitiva dos inacusativos.
  • 6
    Entende-se por argumento nuclear um argumento que é exigido e introduzido diretamente pelo verbo sem o auxílio de um núcleo funcional, por exemplo, o objeto direto de um verbo transitivo.

Agradecimentos

Esta pesquisa foi realizada durante o doutorado financiado pela FAPESP, sob o processo de número (2012/06769-7), e BEPE, sob o processo de número (2014/14044-2). Agradeço também ao MCTIC/CNPq/PCI processo institucional (444338/2018-7) e processo individual (300667/2019-1) pela bolsa do Programa de Capacitação Institucional (PCI) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Especialmente agradeço à comunidade Karitiana pela colaboração e permissão para realizar o presente trabalho.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2018
  • Aceito
    21 Fev 2019
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