Acessibilidade / Reportar erro

OS PARALELISMOS DAS LÍNGUAS EM CONTATO: AS RELAÇÕES INTERLINGUÍSTICAS DO SPANGLISH E DO PORTUNHOL 1 1 A presente pesquisa foi realizada no âmbito do Projeto UNESP/CAPES-PRINT - Tema 1 – Sociedades Plurais - Linguagens e produção de conhecimento Linguagens e produção de conhecimento por meio da Rede Internacional de Pesquisa “As Ciências do Léxico: (inter)conexões”.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo estudar e argumentar uma possível relação existente entre as línguas em contato a partir de um enfoque comparativo entre o Spanglish dos Estados Unidos da América e o portunhol, principalmente na tríplice fronteira Paraguai, Argentina e Brasil. Assim, a partir dessa hipótese, se estudarão e observarão os diferentes recursos e mecanismos linguísticos de cada uma das duas modalidades e as possíveis relações interlinguísticas entre ambas, ou seja, quais processos predominam em cada uma e em que situações aparecem. Já que não existe uma gramática estabelecida sobre ambas as variedades (ENGHELS; VAN BELLEGHEM; VANDE CASTEELE, 2020), nos centraremos, especificamente, em observar a aparição e o funcionamento dos empréstimos léxicos (OTHEGUY, 2009) e as mudanças de código (MONTES-ALCALÁ, 2005; HAMMINK, 2000) no portunhol, baseando a pesquisa nos principais recursos extraídos do Spanglish na classificação de Tugues Rodríguez (2019). Dessa forma, para poder comparar e observar a correlação linguística das duas modalidades híbridas, pretendemos criar um corpus selecionando amostras da obra literária em portunhol Era uma vez en la Fronteira Selvagem (2019) do escritor brasileiro-paraguaio Douglas Diegues. O corpus a ser analisado servirá à coleta de todas aquelas amostras em portunhol e entender melhor todos os recursos e comparar essas amostras com os fundamentos teóricos do Spanglish . Por fim, os resultados da pesquisa responderão quais práticas linguísticas se encontram nas duas modalidades, quais recursos se consideram mais legítimos e argumentará a existência de um continuum de similitude entre o espanhol/português e o inglês/espanhol.

línguas em contacto; linguística comparada; spanglish; portunhol

ABSTRACT

The present work aims to study and analyse the possible relationship in the language-contact sphere based upon a comparative focus between Spanglish, in the United States of America, and Portunhol, mainly in the border comprising Paraguay, Argentina and Brazil. Thus, based on this hypothesis, we will study and observe the different linguistic resources and mechanisms of each of the two varieties and the possible interlinguistic relations between them, or, in other words, which processes predominate in each one and in which situations they appear. Since there is no established grammar on both varieties (ENGHELS; VAN BELLEGHEM; VANDE CASTEELE, 2020), we will focus specifically on observing the appearance and functioning of lexical loans (OTHEGUY, 2009) and code-switching (MONTES-ALCALÁ, 2005; HAMMINK, 2000) in Portunhol, basing the research on the main resources extracted from the Spanglish linguistic classification in Tugues (2019). As a result, so as to compare and observe the linguistic correlation of the two languages, we intend to create a corpus by selecting samples from the literary work in Portunhol called Era uma vez en la Fronteira Selvagem (2019) by the Brazilian-Paraguayan writer Douglas Diegues. This corpus will provide us with all those samples in Portunhol to a better understanding of all the resources and compare these samples with the theoretical foundations of Spanglish. Finally, the results of this research will give us the answers to know which linguistic practices in the two modalities are more recurrent, which resources are considered more legitimate and, more importantly, they will prove the existence of a continuum of similarity between Spanish/ Portuguese and English/Spanish.

language contact; comparative linguistics; Spanglish; Portunhol

O presente artigo foi desenvolvido a partir da análise de línguas como elementos linguísticos híbridos que convivem em contato entre os espaços fronteiriços ou transfronteiriços, focando-nos, por um lado, nas relações do inglês com o espanhol nos Estados Unidos, conhecido popularmente como Spanglish e, por outro, portunhol, formado pelo contato entre espanhol e português, e em menor medida com o guarani, naquelas áreas do continente sul-americano como pode ser a tríplice fronteira Argentina-Brasil-Paraguai.

A principal intenção que mantemos nesta pesquisa é poder comparar e entender os mecanismos pelos quais poderíamos observar elementos linguísticos em comum nas duas modalidades linguísticas estudadas (o Spanglish e o portunhol) ou, contrariamente, comprovar que não existem vínculos linguísticos (ou extralinguísticos) entre a união do inglês e o espanhol junto à do espanhol e o português. Primeiramente, observaremos os conceitos de Spanglish e portunhol, além dos vários significados e conotações que carregam esses termos e assim teremos um maior entendimento para compará-los posteriormente. O segundo ponto terá maior importância, devido a que mostraremos os principais recursos linguísticos, lexicais e morfossintáticos, das duas modalidades já mencionadas, como poderão ser a mudança de códigos ou os empréstimos léxicos e gramaticais, descritos pelos principais pesquisadores dessa temática. No terceiro ponto, a pesquisa estará focada numa aplicação prática desses recursos na esfera literária do portunhol para criar um pequeno corpus lexicográfico e, assim, observar quais fenômenos do Spanglish poderiam se encontrar e se relacionar com o resultado do contato entre o português e o espanhol.

A obra usada para observar os recursos do portunhol consiste num conjunto de contos escrito pelo brasileiro-paraguaio Douglas Diegues, titulada Era uma vez en la fronteira selvagem (2019). Finalmente, na última seção, expomos as conclusões pertinentes, a fim de responder à pergunta sobre a similitude das duas línguas em contato selecionadas.

Introdução

Ao longo da nossa história, é possível encontrarmos espaços geográficos interculturais ou multiculturais, especificamente nas áreas de fronteira, onde duas ou mais línguas se encontram e se misturam, mas nunca dificultando o processo de comunicação efetiva. Assim, é nesses entornos comunicativos naturais onde se concede ou se permite uma maior liberdade para que esses falantes procurem as suas próprias soluções e realizem esse intercâmbio comunicativo. Como resultado, muitos falantes escolhem fazer uso de uma variedade híbrida, produto do encontro de línguas e culturas, até o ponto de se converter numa variedade diária com um discurso multilingue e uns padrões repetidos e estabelecidos. Em algumas ocasiões, essa variedade é criada nos espaços fronteiriços onde convivem duas línguas similares, como o espanhol e o catalão, ou espanhol e o português, ou em outros casos, línguas mais diferentes, como seria o caso do espanhol e o inglês, na fronteira norte-americana.

Porém, esse contato não nasce exclusivamente nos espaços fronteiriços ou transfronteiriços, já que, às vezes, encontramos indivíduos deslocados geograficamente em outros espaços, países ou regiões onde a língua é diferente da materna e se mistura a língua de origem com a língua de acolhida, muitas vezes de forma inconsciente2 2 Nesse caso, também se origina a língua de herança, herdada por pessoas cujos progenitores são falantes de uma língua específica, diferente de aquela falada no espaço onde se situam ou convivem. Para mais informações sobre a língua de herança, veja Heritage languages: In the wild and in the classroom (POLINSKI; KAGAN, 2007). .

É assim que podemos falar de Spanglish ou portunhol. Ambas unidades constituem de alguma maneira dois termos porte-manteau 3 3 Um Porte-manteau , também conhecido como palavra-valise, é um termo linguístico que se refere a uma palavra formada pela fusão de duas palavras. , nascidos da ligação léxica entre as lexias Spanish e English ( Spanglish ) e português e espanhol (portunhol). Contrariamente, e embora pareçam carregar muitas similitudes entre as duas, as noções que existem em cada termo são bem diferentes. Por uma parte, o Spanglish , também conhecido principalmente como espanglés, slanglish, español mixtureado ou pocho (entre muitas mais denominações), designa a mistura e as manifestações interlinguísticas do espanhol e o inglês dentro das comunidades hispanas e/ou fronteiriças nos Estados Unidos. Cabe ressaltar que, mesmo existindo outros encontros da língua espanhola junto à inglesa, como poderia ser o Llanito ou Yanito no território britânico de ultramar de Gibraltar, na Península Ibérica, não poderiam ser considerados Spanglish , devido às conotações culturais das que o termo dispõe, especificamente nos Estados Unidos.

Outras manifestações de Spanglish , as quais não podem ser consideradas como tal, são o Cyber-Spanglish (também denominado ciberspanglish, cyberspanglish ou ciberespanglish ). Este termo foi cunhado por “Yolanda M. Rivas para se referir à modalidade de comunicação dos usuários da rede4 4 Original: “Yolanda M. Rivas para referirse a la modalidad comunicacional de los usuarios de la RED” ( BETTI; SERRA-ALEGRE, 2016 , p. 23). ” ( BETTI; SERRA-ALEGRE, 2016BETTI, S.; SERRA-ALEGRE, E. Nuevas voces sobre el Spanglish: una investigación polifónica. Valencia: Academia Norteamericana de la Lengua Española; Universitat de València, 2016. , p. 23). Mais do que uma variedade, é o aparecimento do Spanglish em relação a palavras de natureza tecnológica e encontradas na internet. Alguns exemplos deles seriam ‘chatear’ (do inglês to chat ), ‘forwardear’ (do inglês to forward ) e ‘el maus’ (do inglês mouse ). Deve-se notar que muitas palavras em Spanglish pertencem a esse tipo de registro digital ou tecnológico.

Por fim, analisamos o termo Mock (brincadeira) ou Junk Spanish (lixo). Como afirma Lipski (2003LIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p. 252): “muitos americanos que não falam espanhol inventam palavras e expressões humorísticas, empregando elementos fictícios juntamente com um conceito aproximado da morfologia do espanhol5 5 Original: “ muchos estadounidenses que no hablan español inventan palabras y expresiones jocosas, empleando elementos ficticios junto a un concepto aproximado de la morfología del español ” ( LIPSKI, 2003 , p. 252). ”. Exemplos disso seriam: no problemo (‘não se preocupe’), cheapo (barato, ‘barato’) e palavras únicas e isoladas, como ‘adiós’ ou ‘cucaracha’.

Diante desse último tipo de ocorrência ( Junk Spanish ), concordamos totalmente com os autores como Lipski em não considerar esses exemplos e usos como parte do Spanglish , pois, para pertencerem ao léxico da variedade híbrida, deveriam ser falados, principalmente, por pessoas que realmente tenham algum conhecimento da língua espanhola.

Por outro lado, em relação ao portunhol, é preciso ressaltar que esse termo, já seja portunhol (em português) ou portuñol (em espanhol) designa uma realidade multilingue e polissêmica. Como argumentou Matesanz:

Ao falar de portunhol é necessário distinguir: (i) se estamos nos referindo a uma das variantes dialetais que se baseiam no espanhol e no português e que são produzidas por um contato entre as línguas; ou, (ii) se nos referimos a interações discursivas entre falantes de espanhol e português em que ocorrem transferências da língua materna, mudanças de código e outros fenômenos típicos da aquisição de uma segunda língua ( Lipski, 2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. ; Corbella e Fajardo, 2007), o que neste estudo chamamos de portunhol instável6 6 Original: “ hablar de portuñol es necesario distinguir: (i) si nos estamos refiriendo a una de las variantes dialectales que tienen como base el español y el portugués y que se producen por un contacto entre las lenguas; o, (ii) si nos referimos a interacciones discursivas entre hablantes de español y portugués en las que se producen transferencia desde la lengua materna, cambios de código y otros fenómenos propios de la adquisición de una segunda lengua ( Lipski, 2006 ; Corbella & Fajardo, 2017), lo que en este estudio hemos denominado portuñol no estable ” ( MATESANZ, 2019, p , p. 82). ( MATESANZ, 2019MATESANZ, M. Conciencia lingüística en la construcción de discursos multilingües: la intercomprensión espontanea del portuñol. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 18, p. 75-96, 2019. , p. 82).

Enquanto o termo Spanglish designa, especificamente, a variedade popular do espanhol estadunidense, a palavra portunhol carrega mais significados. Isso se deve à quantidade de encontros do espanhol com o português ao longo da geografia, na Europa em menor medida, e na América do Sul, onde o fenômeno é visivelmente maior. Dessa maneira, precisamos observar o portunhol mediante duas perspectivas. Por um lado, desde o ponto de vista espacial e, por outro, desde uma perspectiva linguística:

Do ponto de vista do espaço, distingue-se o portunhol da Europa, ou em outras palavras, o que se fala na fronteira hispano-portuguesa, do portunhol da América, ou seja, o que se pratica nas múltiplas fronteiras que o Brasil faz com os seus vizinhos de língua espanhola, que são Venezuela, Bolívia, Colômbia, Uruguai, Argentina e Paraguai. Do ponto de vista linguístico, o portunhol divide-se em três grandes grupos, a saber: o portuñol , o dos lusófonos ou portunhol, e o Portunhol Riverense7 7 Original: “ Desde el punto de vista del espacio, se distingue el portuñol de Europa, es decir el que se habla en la frontera hispanoportuguesa, del portuñol de América o sea el que se practica en las múltiples fronteras que comparte Brasil con sus vecinos hispanohablantes, que son Venezuela, Bolivia, Colombia, Uruguay, Argentina y Paraguay. Desde el punto de vista lingüístico, el portuñol se divide en tres grandes grupos, a saber: el portuñol de los hispanohablantes o portuñol, el de los lusohablantes o portunhol y el portuñol riverense de los cuales hablamos ya en líneas anteriores ” ( DAÏROU, 2011, p , p. 31). ( DAÏROU, 2011DAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011. , p. 31).

Entretanto, junto aos diferentes tipos de portunhol já nomeados, merece uma menção especial o conceito de portunhol selvagem ou guaraportunhol. Esta modalidade vem se consolidando desde 1980 numa forma literária encontrada em obras como Mar Paraguayo (1992), do escritor e ativista Wilson Bueno, e numerosos textos e contos de Douglas Diegues. O portunhol selvagem nasce no espaço transfronteiriço vertebrado do Rio de la Plata e a região da tríplice fronteira entre o Paraguai, a Argentina e o Brasil. Nele, observamos o encontro das duas línguas coloniais hegemônicas (espanhol e português) junto à língua própria indígena, ou seja, o guarani.

Depois de conhecer os diferentes tipos de Spanglish e portunhol, no seguinte ponto da pesquisa, consideramos essencial e necessário discorrer sobre algumas visões pejorativas em relação às línguas em contato. Sobre o portunhol, Lipski (2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 2) menciona que, para muitos falantes de espanhol e português, “o portunhol é indesejável, e é o resultado da preguiça, indiferença e falta de respeito para as outras línguas e os falantes delas”. As mesmas conotações existem na esfera do Spanglish , sendo que alguns linguistas o valorizam, e outros o criticam. Infelizmente, esse tipo de pensamento despectivo já se percebe no momento que os falantes (ou a própria linguística) começam a falar e descrever uma língua em contato. Assim, quando em algum lugar do mundo aparecem falantes de uma variedade híbrida, mista ou crioula, existe uma tendência a pôr um nome e definição com diversas conotações negativas. Esta reflexão está bem argumentada na seguinte citação:

Bem ruim é a percepção que as comunidades linguísticas tendem a ter do que supostamente não está de acordo com uma norma ou modelo pré-estabelecido ou socialmente aceitável. Assim, o crioulo espanhol das Filipinas é chamado de chabacano ; à mistura da língua castelhana com catalã e aragonesa, chapurreao ; a mistura de espanhol com línguas africanas e holandês em Aruba, Bonaire e Curaçao, recebe o nome de papiamento ; ao do espanhol com o quíchua no Equador, media lengua . E, nessa mesma lógica, a mistura de espanhol e inglês no sul dos Estados Unidos é chamada de pocho 8 8 Original: “ Así de mala es la percepción que suelen tener las comunidades lingüísticas de aquello que supuestamente no se ajusta a una norma o modelo preestablecido o socialmente aceptable. De esta forma, al español criollo de Filipinas se le dice chabacano; a la mezcla del castellano con el catalán y las hablas aragonesas, chapurreao; a la mezcla del español con lenguas africanas y holandés en Aruba, Bonaire y Curaçao, se le da el nombre de papiamento; a la del español con el quichua en Ecuador, media lengua. Y, en esta misma lógica, a la mezcla del español y el inglés en el sur de los Estados Unidos se le dice pocho ” (MORENO FERNÁNDEZ, 2015, p. 256). ( MORENO-FERNÁNDEZ, 2015MORENO-FERNÁNDEZ, F. La Maravillosa Historia del Español. Barcelona: Instituto Cervantes; Espasa, 2015. , p. 256).

Uma das possíveis razões pelas quais existem esses preconceitos sobre as línguas em contato, e especificamente com o Spanglish e o portunhol, é a falta de estandardização normativa e gramatical. Dessa forma, no caso do Spanglish , existem instituições de grande prestígio como são a Real Academia Española, o Instituto Cervantes ou a Academia Norteamericana de la Lengua Española , que consideram o Spanglish como uma variedade popular (escrita e falada) dentro da variedade normativizada do espanhol estadunidense, mas isso não significaria que o Spanglish está totalmente gramaticalizado. No caso do portunhol, tampouco se dispõe de uma gramática estândar ou de um organismo que o regule oficialmente.

Portanto, uma possível solução, para tornar essas modalidades híbridas ainda mais uniformes e dar aos falantes uma maior consciência comunicativa e linguística, poderia ser por meio da criação de uma gramática oficial ou compêndio de estruturas linguísticas estabelecidas, como Enghels, Van Belleghem e Vande Casteele (2020) apontaram no caso do Spanglish (e aplicável para o portunhol), onde principalmente os fenômenos mais comuns foram coletados, ao mesmo tempo em que alguns regionalismos foram destacados.

Finalmente, é importante salientar que mesmo não dispondo de uma gramática que regule essas variedades na atualidade, as duas variedades estudadas neste artigo se mantêm vivas e em uso devido aos próprios falantes e as emergentes literaturas, tanto em Spanglish quanto em portunhol. É nesses movimentos literários, como o foram a literatura chicana ou o movimento Nuyorican nos Estados Unidos, e a emergente literatura em portunhol selvagem, as que dão forma escrita a uns padrões linguísticos repetidos (e não aleatórios) que podem funcionar como os recursos ou mecanismos da língua para poder preparar o caminho a aquelas formas lexicais e morfossintáticas que trataremos no seguinte ponto.

Recursos linguísticos

Geralmente, ao pensar sobre como são formadas as línguas em contato desde uma perspectiva linguística, a ideia geral, infelizmente, é considerá-las como fenômenos linguísticos aleatórios, um horror vacui de palavras e expressões adaptadas e misturadas sem qualquer critério, junto com a crença de que são um fenômeno um tanto humorístico e sem justificativa ou motivação linguística.

Porém, como se observará nas páginas seguintes, apesar do portunhol e do Spanglish não contarem com um órgão regulador para estabelecer sua própria língua ou uma gramática consagrada, as duas modalidades híbridas dispõem de alguns padrões repetidos e usos linguísticos estudados, bem argumentados e justificados que, na maioria dos casos, fazem desaparecer aquela concepção negativa destas variedades orais e escritas.

Para justificar essa ideia, destacamos as palavras de Lispki (2003, p. 203), afirmando que o mundo das línguas em contato “parece ser um processo caótico desprovido de bases gramaticais, mas uma ampla série de investigações mostrou que o processo é regido por restrições detalhadas, tanto sintáticas quanto pragmáticas9 9 Original: “ Parece ser un proceso caótico y desprovisto de bases gramaticales, pero una amplia serie de investigaciones ha demostrado que el proceso está regido por restricciones detalladas, tanto sintácticas como pragmáticas” ( LIPSKI, 2003, p , p.203). ”. Dessa forma, se as línguas estão gramaticalmente definidas, “então não há razão para estigmatizar esse modo de falar, pois é um comportamento natural em qualquer ambiente bilíngue que não seja aleatório, nem inconstante10 10 Original: “ Then there is no reason to stigmatize this mode of speaking, as it is natural behavior in any bilingual setting which is not random, nor capricious ” ( MONTES-ALCALÁ, 2009, p , p. 109). ” ( MONTES-ALCALÁ, 2009MONTES-ALCALÁ, C. Hispanics in the United States: more than Spanglish. Camino Real, Alcala de Henáres, v.1, p. 97-115, 2009. , p. 109).

Uma vez justificada a originalidade linguística das línguas em contato, mostraremos os diversos fenômenos que derivam do Spanglish e do portunhol e observar a possível similitude intralinguística das duas. Em outras palavras, após entender os mecanismos de cada uma, teremos as ferramentas para poder propor os nossos próprios julgamentos e observar quão similares ou distantes se encontram. Assim, por razões de experiência científica, decidimos começar mostrando os aspectos e recursos usados no âmbito do Spanglish .

Em primeiro lugar, devemos nomear os principais e mais recorrentes recursos que acontecem na esfera do Spanglish , os quais seriam os empréstimos (lexicais ou sintáticos) e as mudanças de código (internacionalmente conhecido como code-switching ). Em relação aos empréstimos, não devem passar despercebidas as pesquisas de Otheguy (2009)OTHEGUY, R. El llamado Espanglish. In: LÓPEZ, H. Enciclopedia del Español en los Estados Unidos. Alcalá de Henares: Instituto Cervantes; Santillana, 2009. p. 222-243. . Em segundo, destacamos os trabalhos sobre mudanças de código no Spanglish de linguísticas como Hammink (2000) e, mais focado na pragmática, a pesquisa de Montes-Alcalá (2005)MONTES-ALCALÁ, C. Mándame un e-mail! Cambio de códigos español- inglés online. In: ORTIZ, L.; LACORTE, M. Contactos y contextos lingüísticos: el español en los Estados Unidos y en contacto con otras lenguas. Madrid: Lingüística Iberoamericana; Vervuert, 2005. p. 173-183. .

Infelizmente, e não sendo o tema da presente pesquisa, existem muitas opiniões válidas à hora de classificar todos os recursos, já que, ao não haver uma gramática estabelecida, cada linguista dispõe da liberdade para criar os seus próprios julgamentos em relação aos recursos das línguas em contato. Em outros termos, existem linguistas que classificam os empréstimos como uma subcategoria das mudanças de código, ou adicionam outras categorias como os decalques ou as criações híbridas.

Como resultado, ante a grande quantidade de propostas sobre os recursos dos que dispõe o Spanglish 11 11 Veja Tugues Rodríguez (2019) . , propomos mostrar uma classificação geral e ampla, a qual recolha todas as propostas mostradas anteriormente e, assim, poder aplicá-la, também, ao estudo do portunhol. Dessa maneira, observemos a classificação proposta por Tugues Rodríguez (2019TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019. , p. 36-37).

Quadro 1
– Recursos linguísticos do Spanglish

Como se pode ver, nessa classificação aplicada aos recursos do Spanglish , observamos duas grandes categorias: empréstimos e as mudanças de código. No primeiro grupo também é possível encontrar quatro subcategorias. 1) Os empréstimos puros seriam aqueles totalmente na língua selecionada; 2) as criações híbridas são elementos criados a partir das duas línguas; 3) por decalques entendemos sintagmas numa língua adaptados de outra língua; 4) finalmente, na extensão semântica podemos englobar todas essas unidades fraseológicas de uma língua adaptadas à outra língua em contato.

No segundo grupo, observamos dois tipos de mudanças de código: as intersentenciais (fora da mesma frase) e as intrasentenciais (dentro da mesma cláusula). Entretanto, também é interessante adicionar mais uma tabela, proposta no estudo realizado por Montes-Alcalá (2005)MONTES-ALCALÁ, C. Mándame un e-mail! Cambio de códigos español- inglés online. In: ORTIZ, L.; LACORTE, M. Contactos y contextos lingüísticos: el español en los Estados Unidos y en contacto con otras lenguas. Madrid: Lingüística Iberoamericana; Vervuert, 2005. p. 173-183. , na qual a pesquisadora mostra alguns fenômenos pragmáticos que motivaram os falantes a mudar o código, principalmente entre espanhol e inglês online e nos e-mails.

Quadro 2
– Fenômenos pragmáticos das mudanças de código

Já focados no portunhol, é possível encontrar uma grande similitude nos recursos linguísticos mostrados anteriormente. Isso está argumentado nas palavras de Daïrou, afirmando que “as principais características da fala portunhola são a ausência de norma, simplificação, hibridação e o decalque12 12 Original: “ las principales características del habla portuñola son la ausencia de norma, la simplificación, la hibridación y el calco ” ( DAÏROU, 2011, p , p. 31). ” ( DAÏROU, 2011DAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011. , p. 31). Na pesquisa de Daïrou (2011)DAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011. encontramos vários exemplos desses recursos linguísticos, em aspectos fônicos ou morfossintáticos, como são a simplificação das consonante duplas -rr- ( irrealizableirealizable ), substituição de -nh- por -ñ- , apócope das palavras terminadas em velar fricativa / x / ( reloj – reló ). Também é possível observar recursos na esfera gramatical, como poderia ser a omissão da preposição a , no paradigma de futuro próximo ou presente continuo no português: Voy ø hablar un lenguagem direito .

Além disso, a hibridação morfológica, também conhecido como criações híbridas, tem uma importante função no portunhol, já que funciona de maneira similar ao Spanglish , fazendo uso de composição e derivação: ( catchorrinho – cachorrinho; perguntita – preguntita ). Outro exemplo bem interessante é o mostrado por Lipski (2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 5), em relação ao uso de terminações verbais em espanhol (com ortografia em português). Segundo Lipski, essas terminações em espanhol mostram “violações claras da restrição de morfema livre de Poplack (1980)POPLACK, S. Sometimes I’ll start a sentence in English y termino en español. Linguistics, Berlin, v.18, n.7-8, p. 581-618, 1980. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/249932906_Sometimes_I%27ll_start_a_sentence_in_Spanish_Y_TERMINO_EN_ESPANOL_toward_a_typology_of_c ode-switching_1. Acesso em: 10 mar. 2022.
https://www.researchgate.net/publication...
, mas, também, comum em outras manifestações de portunhol: yo terê ( tendré espanhol, português terei )”13 13 Original: “ clear violations of the Free morpheme Constraint of Poplack (1980) , bus also common in other portunhol manifestations: yo terê (Spanish tendré, Portuguese terei ) ( LIPSKI, 2006, p , p. 5). .

Observamos oportuno que, junto às considerações anteriores, também merecem uma menção especial as pesquisas de Azevedo (2000)AZEVEDO, M. Un linguaje pintoresco y especial: an early instance of Portuguese-Spanish speech. Revista Portuguesa de Humanidades, Lisboa, n.4, p. 95-109, 2000. e Elizaincín (1979ELIZAINCÍN, A. Algunas precisiones sobre los dialectos portugueses en el Uruguay. Montevideo: Universidad de la República, 1979. , 1992ELIZAINCÍN, A. Dialectos en contacto: español y portugués en España y América. Montevideo: Arca, 1992. ), já que aportam uma maior descrição sobre os aspectos sociolinguísticos e dos recursos em geral.

Assim, depois de observar os exemplos prévios, os quais poderíamos classificar como empréstimos, devemos fazer menção às mudanças de código em portunhol. Como ocorre no Spanglish , o portunhol também conta com os dois tipos principais de mudanças de código: o intrasentencial e o intersentencial. Além disso, existem diversas configurações que estimulam a mudança de uma língua para outra em frases e orações entre o espanhol e o português. Essas combinações foram estudadas em Lipski (2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 12) e seriam as seguintes14 14 Original: 1) Between a pronominal subject and a predicate. 2) Between a pronominal clitic and the verb. 3) Between a sentence-initial interrogative word and the remainder of a sentence. 4) Between an auxiliary verb (especially haber) and the main verb. 5) Adverbs of negation are normally in the same language as the verbs they modify ( LIPSKI, 2006, p , p. 12). :

1) Entre um sujeito pronominal e um predicado:

O que bocês entienden por mierda?

Porque tuyo eh u reinu, y a podé, y a gloria.

2) Entre um pronome clítico e um verbo:

Un senõr sombrio com viestes negronas los sorri suspiendendo el longo chapéu negron, a el lado del funerária.

Me fico mucho felice en saber que hay hermanos rrornalistas que nos ajudan a divulgar el saite de portuñol.

Jo quieres hacer amor con nosotros ou con noí memo?

3) Entre uma partícula interrogativa inicial e um reformulador:

Quém no se olvida de Super Rato, que passaba el cartún en SBT.

Onde que los hijos de puta de la Pepsi hacen una promocíon como esta????

4) Entre um verbo auxiliar (principalmente haber ) e o verbo principal:

Y no noh dexéh cair na tentazón

5) Advérbios de negação que estão na mesma língua do que os verbos que modificam:

As veces podemos até tirar leciones de moral.

Douglas Diegues: “Sabedoria bocê non puede comprar, ni puede bender.”

Como curiosidade, é de grande importância para este estudo comparativo, mostrar que o mesmo linguista expõe outras configurações gramaticais similares que originam a mudança de códigos no Spanglish . Assim, Lipski (2003LIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p. 240) demonstra que existe uma mudança nas seguintes situações15 15 Original: 1) La presencia anticipada de un nombre propio en la otra lengua. 2) Cambios entre una frase principal y una frase subordinada, introducida por un pronombre relativo o un complementador (que, porque, etc.). 3) La presencia de una conjunción de coordinación (y, pero). ( LIPSKI, 2003, p , p. 240). :

1) A presença antecipada de um nome ou substantivo na outra língua:

Escucharon a Lisa López’s latest álbum , una canción titulada... Mezcal va a tocar this coming Friday .

I’m a Jiménez , todos los demás son Torres.

2) Entre uma frase principal e uma subordinada, introduzida por um pronome relativo ou complemento ( que, porque , etc.):

There are are many families on the block que tienen chamaquitos .

No sé porque I never used itsaite de portuñol.

3) A presença de uma conjunção de coordenação ( y, pero ):

They’re still meeting at Ripley house every Thursday night y la gente se está juntando ahí .

Sometimes te pones serio and you know that, you make good points . One more time Ruth, pa que la gente se cuente y they can call you at...

Porém, no caso do Spanglish e na mesma pesquisa, Lipski16 16 Original: “ 1) Entre un sujeto pronominal y el predicado”. 2) Entre el clítico pronominal y el verbo. 3) Entre una palabra interrogativa desplazada a la posición inicial y el resto de la oración. 4) Entre un verbo auxiliar (sobre todo haber) y el verbo principal. ( LIPSKI, 2003, p , p. 243). (2003, p. 243) mostra algumas restrições gramaticais que circunscrevem a mudança de línguas, o que significa que as seguintes mudanças seriam inaceitáveis ou artificiais:

1) Entre um sujeito pronominal e um predicado:

*Él is coming tomorrow.

*He viene mañana

2) Entre um pronome clítico e um verbo:

Juan lo said*.

Juan quiere decir it*.

3) Entre uma palavra interrogativa deslocada à posição inicial e o resto da oração

Cuándo will you come ? *¿ When vas a hacerlo?

4) Entre um verbo auxiliar (principalmente haber ) e o verbo principal:

* María ha finished the job . * We had acabado de comer.

Dessa forma, um aspecto que nos chama verdadeiramente a atenção é a similitude destas últimas restrições nas mudanças de código do Spanglish com as permissões ou configurações possíveis no portunhol. Mesmo sendo as mesmas configurações, existe uma permissão ou um uso maior no portunhol, enquanto ficaria como violação ou proibição no uso geral do Spanglish .

Finalmente, independentemente de contar com algumas diferenças em relação às configurações nas mudanças de código, podemos afirmar que existe certo paralelismo e similitude entre os processos e recursos linguísticos tanto do Spanglish quanto do portunhol nos empréstimos e nas mudanças de código. Por isso, gostaríamos de poder observar essas similitudes desde uma perspectiva mais prática e mediante uma análise de amostras extraídas da obra literária já mencionada na introdução do presente texto: Era uma vez en la Fronteira Selvagem (2019), do Douglas Diegues. A obra mencionada consiste em um conjunto de contos alegóricos sobre animais e personagens fictícios ou mágicos na região da Triple Fronteira brasileira, argentina e paraguaia. A escolha se deve, em primeiro lugar, ao fato de ser ele um texto atual e contemporâneo, permitindo-nos, assim, observar o portunhol desde uma linha temporal atual e recente. Em segundo, pela linguagem textual que oferece. Nos contos encontramos amostras de espanhol, português e portunhol, os três juntos. Aliás, apareceram alguns elementos léxicos próprios do guarani (na variedade paraguaia) e até neologismos em portunhol criados pelo próprio autor.

Metodologia da análise e recursos em portunhol extraídos da obra

No desenvolvimento da presente pesquisa usamos amostras do portunhol extraídas dos contos escritos por Douglas Diegues. É de grande importância ressaltar que a obra pertence ao movimento ou estilo literário conhecido como portunhol selvagem, isto é, aquele que mistura elementos linguísticos do espanhol, do português e do guarani.

Concretamente, analisaremos e marcaremos aquelas amostras que têm maior importância e que possam ser reconhecidas dentro da classificação de Tugues Rodríguez (2019)TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019. .

Assim, classificamos todos os exemplos recolhidos em tabelas divididas entre empréstimos (e as subcategorias como empréstimo puro, decalque, criação híbrida e extensões semânticas) e mudanças de código (intersentencial e intrasentencial).

Em cada uma, disporemos de uma seção com a unidade dentro do contexto, outra onde apareça o tipo de fenômeno e, finalmente, mais uma parte com as observações linguísticas pertinentes17 17 Unicamente incluiremos as amostras que se possam relacionar com a classificação de Tugues Rodríguez (2019) e rejeitaremos repetições e tudo o que não consideremos oportuno. .

Quadro 3
– Empréstimos extraídos da obra de Douglas Diegues18

Quadro 4
– Mudanças de código

Considerações finais

Como podemos observar, na obra de Douglas Diegues é possível encontrar elementos linguísticos em portunhol classificáveis dentro da lista elaborada por Tugues Rodríguez (2019)TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019. . Apesar de existirem muitas amostras na totalidade da leitura, decidimos mostrar só aquelas mais relevantes aos processos previamente mencionados.

Assim, destacamos, em primeiro lugar, a aparição de empréstimos. A principal surpresa foi poder encontrar exemplos das principais subcategorias de empréstimos já mencionados: empréstimos puros, criações híbridas e extensões semânticas e fraseológicas. No entanto, não foi possível encontrar nenhuma amostra de decalque gramatical ou morfossintático.

De qualquer forma, a aparição de empréstimos puros foi um dos principais recursos usados pelo autor, que aportou empréstimos das três línguas que formam o portunhol selvagem: espanhol, português e guarani. Aliás, é imprescindível mencionar que, em diversas situações, foi difícil chegar a uma conclusão em relação à escolha de uma palavra como um empréstimo em português ou espanhol, já que ambas as línguas aparecem misturadas e compartilham um paradigma sintático similar e muitos elementos léxicos. Tal contexto já foi estudado por Lipski (2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 14), afirmando que:

A gama de combinações sintáticas que surgem durante a hibridização espanhol-português não se enquadra facilmente em nenhuma das tipologias teóricas aceitas, principalmente por causa do alto grau de congruência sintática e lexical entre espanhol e português19 19 Original: “ the range of syntactic combinations arising during Spanish-Portuguese hybridization does not fit easily into any of the accepted theoretical typologies, primarily because of the high degree of syntactic and lexical congruence between Spanish and Portuguese” . ( LIPSKI, 2006, p , p. 14). .

Contrariamente, um recurso que apareceu com uma maior recorrência foi a criação híbrida entre elementos do português e do espanhol. Assim, encontramos criações, como o exemplo de ‘crianzas’, originadas pela substituição da grafia -ç-, inexistente em espanhol, por uma -z-, mais comum em ambas as línguas. Também encontramos criações formadas por pronomes do tipo artigos determinantes como ‘nel’, unindo a contração do português ‘no’ à forma em espanhol ‘el’. Outros exemplos foram advérbios do mesmo tipo em ambas as línguas: ‘non’, ‘nim’, ‘entón’. Finalmente, foi possível observar uma criação híbrida, seguindo padrões fonéticos. O exemplo foi a palavra ‘catchorrinho’, criada para ser pronunciada com o fonema do espanhol /tʃ/.

Em segundo lugar, em que ocorrem as mudanças de código, foi interessante observar que, no livro de contos, predominou fortemente a aparição de mudanças de código do tipo intrasentencial, isto é, aquelas mudanças realizadas dentro da mesma frase ou cláusula. Principalmente, estas mudanças apareceram tanto em espanhol como em português de maneira ininterrompida ao longo do texto. Em alguns casos, a mudança compreendia palavras isoladas na oração: “diziam que la iluminación non estava bem, porque las imágenes apareciam desfocadas em la tela gigante, lo que dificultaba bastante la leitura de las legendas”. Porém, em outros casos, a mudança funcionava como uma cláusula própria dentro da mesma frase: “entonces los índios inventaron unos tambores para marcar el ritmo enquanto imitavam los passos y los saltos del viejo Tamanduá”. De qualquer forma, nenhum dos exemplos mostrados anteriormente poderiam ser entendidos como mudanças intersentenciais, já que tudo se dispõe dentro da mesma oração.

Nós acreditamos que a intenção do autor de usar esses tipos de mudanças de código intrasentenciais caracteriza-se como puramente estilística, já que ele escreve uma obra infantil com a pretensão de dar visibilidade ao portunhol selvagem por meio de intensificar aqueles pontos mais significativos ou chamativos dessa hibridez linguística e cultural.

Por último, após as análises das amostras podemos concluir que, efetivamente, o portunhol compartilha, de alguma forma, os recursos linguísticos propostos, em primeiro lugar, para o Spanglish . A experiência desta pesquisa mostrou-nos que é possível usar empréstimos e mudanças de código, mas com algumas particularidades próprias das duas modalidades em contato. No caso do inglês e do espanhol, a similitude de paradigmas gramaticais e léxicos não é maior devido ao distanciamento linguístico. Contrariamente, no caso do espanhol e do português, a linha que separa as duas línguas é menor, criando um maior espaço interlinguístico onde seria difícil delimitar se uma palavra seria própria do espanhol ou do português.

REFERÊNCIAS

  • AZEVEDO, M. Un linguaje pintoresco y especial: an early instance of Portuguese-Spanish speech. Revista Portuguesa de Humanidades, Lisboa, n.4, p. 95-109, 2000.
  • BETTI, S.; SERRA-ALEGRE, E. Nuevas voces sobre el Spanglish: una investigación polifónica. Valencia: Academia Norteamericana de la Lengua Española; Universitat de València, 2016.
  • DAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011.
  • DIEGUES, D. Era Uma Vez en la Frontera Selvagem. São Paulo: Edições Barbatana, 2019.
  • ELIZAINCÍN, A. Dialectos en contacto: español y portugués en España y América. Montevideo: Arca, 1992.
  • ELIZAINCÍN, A. Algunas precisiones sobre los dialectos portugueses en el Uruguay. Montevideo: Universidad de la República, 1979.
  • ENGHELS, R.; VAN BELLEGUEM. L.; VANDE CASTEELE, A. ¿Existe una gramática del Spanglish?: Estudio de caso de la posición del adjetivo en Killer Crónicas (2004). In: BETTI, S.; ENGHELS, R. El inglés y el español en contacto en los Estados Unidos: Reflexiones acerca de los retos, dilemas y complejidad de la situación lingüística estadounidense. Roma: Aracne Editice, 2020. p.57-81.
  • HAMMINCK, J.E. A Comparison of the Code Switching Behaviour and Knowledge of Adults and Children. 2000. Disponível em: https://hamminkj.tripod.com/hamminkCS.pdf Acesso em: 10 mar. 2022.
    » https://hamminkj.tripod.com/hamminkCS.pdf
  • LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22.
  • LIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003.
  • MATESANZ, M. Conciencia lingüística en la construcción de discursos multilingües: la intercomprensión espontanea del portuñol. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 18, p. 75-96, 2019.
  • MONTES-ALCALÁ, C. Hispanics in the United States: more than Spanglish. Camino Real, Alcala de Henáres, v.1, p. 97-115, 2009.
  • MONTES-ALCALÁ, C. Mándame un e-mail! Cambio de códigos español- inglés online. In: ORTIZ, L.; LACORTE, M. Contactos y contextos lingüísticos: el español en los Estados Unidos y en contacto con otras lenguas. Madrid: Lingüística Iberoamericana; Vervuert, 2005. p. 173-183.
  • MORENO-FERNÁNDEZ, F. La Maravillosa Historia del Español. Barcelona: Instituto Cervantes; Espasa, 2015.
  • OTHEGUY, R. El llamado Espanglish. In: LÓPEZ, H. Enciclopedia del Español en los Estados Unidos. Alcalá de Henares: Instituto Cervantes; Santillana, 2009. p. 222-243.
  • POLINSKI, M.; KAGAN. O. Heritage languages: In the ‘wild’ and in the classroom. Language and Linguistics Compass, Chichester, v.1, n.5, p.368-395, 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1111/j.1749-818x.2007.00022.x Acesso em: 10 mar. 2022.
    » http://dx.doi.org/10.1111/j.1749-818x.2007.00022.x
  • POPLACK, S. Sometimes I’ll start a sentence in English y termino en español. Linguistics, Berlin, v.18, n.7-8, p. 581-618, 1980. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/249932906_Sometimes_I%27ll_start_a_sentence_in_Spanish_Y_TERMINO_EN_ESPANOL_toward_a_typology_of_c ode-switching_1 Acesso em: 10 mar. 2022.
    » https://www.researchgate.net/publication/249932906_Sometimes_I%27ll_start_a_sentence_in_Spanish_Y_TERMINO_EN_ESPANOL_toward_a_typology_of_c ode-switching_1
  • TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019.
  • 1
    A presente pesquisa foi realizada no âmbito do Projeto UNESP/CAPES-PRINT - Tema 1 – Sociedades Plurais - Linguagens e produção de conhecimento Linguagens e produção de conhecimento por meio da Rede Internacional de Pesquisa “As Ciências do Léxico: (inter)conexões”.
  • 2
    Nesse caso, também se origina a língua de herança, herdada por pessoas cujos progenitores são falantes de uma língua específica, diferente de aquela falada no espaço onde se situam ou convivem. Para mais informações sobre a língua de herança, veja Heritage languages: In the wild and in the classroom (POLINSKI; KAGAN, 2007).
  • 3
    Um Porte-manteau , também conhecido como palavra-valise, é um termo linguístico que se refere a uma palavra formada pela fusão de duas palavras.
  • 4
    Original: “Yolanda M. Rivas para referirse a la modalidad comunicacional de los usuarios de la RED” ( BETTI; SERRA-ALEGRE, 2016BETTI, S.; SERRA-ALEGRE, E. Nuevas voces sobre el Spanglish: una investigación polifónica. Valencia: Academia Norteamericana de la Lengua Española; Universitat de València, 2016. , p. 23).
  • 5
    Original: “ muchos estadounidenses que no hablan español inventan palabras y expresiones jocosas, empleando elementos ficticios junto a un concepto aproximado de la morfología del español ” ( LIPSKI, 2003LIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p. 252).
  • 6
    Original: “ hablar de portuñol es necesario distinguir: (i) si nos estamos refiriendo a una de las variantes dialectales que tienen como base el español y el portugués y que se producen por un contacto entre las lenguas; o, (ii) si nos referimos a interacciones discursivas entre hablantes de español y portugués en las que se producen transferencia desde la lengua materna, cambios de código y otros fenómenos propios de la adquisición de una segunda lengua ( Lipski, 2006LIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. ; Corbella & Fajardo, 2017), lo que en este estudio hemos denominado portuñol no estable ” ( MATESANZ, 2019, pMATESANZ, M. Conciencia lingüística en la construcción de discursos multilingües: la intercomprensión espontanea del portuñol. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 18, p. 75-96, 2019. , p. 82).
  • 7
    Original: “ Desde el punto de vista del espacio, se distingue el portuñol de Europa, es decir el que se habla en la frontera hispanoportuguesa, del portuñol de América o sea el que se practica en las múltiples fronteras que comparte Brasil con sus vecinos hispanohablantes, que son Venezuela, Bolivia, Colombia, Uruguay, Argentina y Paraguay. Desde el punto de vista lingüístico, el portuñol se divide en tres grandes grupos, a saber: el portuñol de los hispanohablantes o portuñol, el de los lusohablantes o portunhol y el portuñol riverense de los cuales hablamos ya en líneas anteriores ” ( DAÏROU, 2011, pDAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011. , p. 31).
  • 8
    Original: “ Así de mala es la percepción que suelen tener las comunidades lingüísticas de aquello que supuestamente no se ajusta a una norma o modelo preestablecido o socialmente aceptable. De esta forma, al español criollo de Filipinas se le dice chabacano; a la mezcla del castellano con el catalán y las hablas aragonesas, chapurreao; a la mezcla del español con lenguas africanas y holandés en Aruba, Bonaire y Curaçao, se le da el nombre de papiamento; a la del español con el quichua en Ecuador, media lengua. Y, en esta misma lógica, a la mezcla del español y el inglés en el sur de los Estados Unidos se le dice pocho ” (MORENO FERNÁNDEZ, 2015, p. 256).
  • 9
    Original: “ Parece ser un proceso caótico y desprovisto de bases gramaticales, pero una amplia serie de investigaciones ha demostrado que el proceso está regido por restricciones detalladas, tanto sintácticas como pragmáticas” ( LIPSKI, 2003, pLIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p.203).
  • 10
    Original: “ Then there is no reason to stigmatize this mode of speaking, as it is natural behavior in any bilingual setting which is not random, nor capricious ” ( MONTES-ALCALÁ, 2009, pMONTES-ALCALÁ, C. Hispanics in the United States: more than Spanglish. Camino Real, Alcala de Henáres, v.1, p. 97-115, 2009. , p. 109).
  • 11
    Veja Tugues Rodríguez (2019)TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019. .
  • 12
    Original: “ las principales características del habla portuñola son la ausencia de norma, la simplificación, la hibridación y el calco ” ( DAÏROU, 2011, pDAÏROU, Y. El portuñol: hacia una clasificación del concepto. Archipiélago, Barcelona, v. 20, n. 74, p. 30-33, 2011. , p. 31).
  • 13
    Original: “ clear violations of the Free morpheme Constraint of Poplack (1980)POPLACK, S. Sometimes I’ll start a sentence in English y termino en español. Linguistics, Berlin, v.18, n.7-8, p. 581-618, 1980. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/249932906_Sometimes_I%27ll_start_a_sentence_in_Spanish_Y_TERMINO_EN_ESPANOL_toward_a_typology_of_c ode-switching_1. Acesso em: 10 mar. 2022.
    https://www.researchgate.net/publication...
    , bus also common in other portunhol manifestations: yo terê (Spanish tendré, Portuguese terei
    ) ( LIPSKI, 2006, pLIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 5).
  • 14
    Original: 1) Between a pronominal subject and a predicate. 2) Between a pronominal clitic and the verb. 3) Between a sentence-initial interrogative word and the remainder of a sentence. 4) Between an auxiliary verb (especially haber) and the main verb. 5) Adverbs of negation are normally in the same language as the verbs they modify ( LIPSKI, 2006, pLIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 12).
  • 15
    Original: 1) La presencia anticipada de un nombre propio en la otra lengua. 2) Cambios entre una frase principal y una frase subordinada, introducida por un pronombre relativo o un complementador (que, porque, etc.). 3) La presencia de una conjunción de coordinación (y, pero). ( LIPSKI, 2003, pLIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p. 240).
  • 16
    Original: “ 1) Entre un sujeto pronominal y el predicado”. 2) Entre el clítico pronominal y el verbo. 3) Entre una palabra interrogativa desplazada a la posición inicial y el resto de la oración. 4) Entre un verbo auxiliar (sobre todo haber) y el verbo principal. ( LIPSKI, 2003, pLIPSKI, J. La lengua española en los Estados Unidos: avanza a la vez que retrocede, Revista Española de Lingüística, Madrid, v. 22, n. 2, p. 231-260, 2003. , p. 243).
  • 17
    Unicamente incluiremos as amostras que se possam relacionar com a classificação de Tugues Rodríguez (2019)TUGUES RODRÍGUEZ, C. Los recursos lingüísticos del Spanglish en los Estados Unidos de América: un análisis de la colección poética de Tato Laviera. Valencia: Edelex Editorial Colección Estudios, 2019. e rejeitaremos repetições e tudo o que não consideremos oportuno.
  • 18
    Ordena-se tudo por ocorrência no texto original.
  • 19
    Original: “ the range of syntactic combinations arising during Spanish-Portuguese hybridization does not fit easily into any of the accepted theoretical typologies, primarily because of the high degree of syntactic and lexical congruence between Spanish and Portuguese” . ( LIPSKI, 2006, pLIPSKI, J. Too Close for Comfort? The Genesis of Portunhol/Portuñol. In: HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 8., 2006, Somerville. Proceedings [...], Somerville, 2006. p. 1-22. , p. 14).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    27 Abr 2021
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Rua Quirino de Andrade, 215, 01049-010 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 5627-0233 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: alfa@unesp.br