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Reflexões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo. Virgínia Fontes. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, 328 p.

RESENHAS

André Silva MartinsI; Daniela Motta de OliveiraII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora <andresilvamartins@globo.com>

IIUniversidade Federal de Juiz de Fora <danimotta@acessa.com>

Reflexões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo. Virgínia Fontes. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, 328 p.

Em Reflexões impertinentes, Virgínia Fontes apresenta um convite á reflexão crítica a partir de uma inquietante abordagem sobre algumas 'certezas' teóricas que explicariam o mundo capitalista contemporâneo e a realidade brasileira.

A '(im)pertinência' da autora revela-se em pelo menos dois planos. No primeiro, a rejeição dos parâmetros convencionais da produção do conhecimento nas ciências humanas, dominado pelos subjetivismos, fragmentações e descontinuidades que impedem uma interpretação densa e efetiva da realidade. No segundo, a defesa do marxismo como referência teórico-metodológica, que não aprisiona o conhecimento e permite compreender, explicar e intervir no mundo, enfrentando as contradições e as formas aparentes do real. É (im)pertinente porque constrói, na contracorrente, um caminho original, denso e rigoroso de análise sobre o capitalismo contemporâneo e a democracia com o objetivo de ampliar as bases do pensamento histórico.

Na primeira parte estão os capítulos mais teóricos, nos quais explora o falso consenso em torno da existência de um novo ambiente sociológico, gerado pelas mutações do mundo contemporâneo e suas repercussões positivas na economia, na política e na cultura. Nesta parte - "Pensar o capitalismo hoje: economia, política, modos de ser" - , desfaz o novo consenso, mostrando que as relações sociais capitalistas contemporâneas não só asseguraram a preservação das leis fundamentais deste modo de produção, como introduziram, sob formas aparentemente inovadoras, o aprofundamento da exploração e da dominação.

A exclusão social é o centro das reflexões de "Capitalismo, exclusões e inclusão forçada". A autora analisa a insuficiência conceitual da categoria 'exclusão social' e os riscos das simplificações e reduções processadas a partir dela nas explicações de problemas da atualidade. Argumenta que a formação social capitalista não permite relações de exterioridade, portanto, de 'exclusão'. O que existe, na verdade, são processos de "inclusão forçada e de exclusão interna", que impossibilitam os homens escaparem das relações sociais capitalistas.

No texto "O trabalho abstrato e a cultura contemporânea, os desafios atuais do pensamento histórico", escrito com Stefano Garroni, há uma análise sobre o processo de subordinação à do trabalho ao capital e a sua fase crítica atual, na qual se instituiu uma nova forma de expropriação, possibilitada pela generalização do trabalho abstrato. A riqueza do texto é ampliada pela ênfase ao desafio teórico e metodológico da produção do conhecimento histórico e de sua relação com o passado. Os autores ensinam que não basta reconhecer que a ligação entre o presente e o passado não se dá de forma fixa e linear, o principal desafio do pensamento histórico consiste em explicar as relações a partir da complexidade do mundo capitalista, superando, assim, as simplificações apresentadas geralmente como 'novidades'.

O capítulo "As condições históricas e sociais da generalização do trabalho abstrato: permanência e transformação das formas de expropriação" parte das possibilidades abertas por Marx para aprofundar as bases sociais capitalistas que incidem sobre o trabalho abstrato na contemporaneidade, mostrando as implicações da generalização e da especificidade do processo de subsunção do trabalho ao capital no mundo contemporâneo.

Em "As expropriações contemporâneas e o papel da política", partindo da compreensão de que a subsunção real do trabalho ao capital tornou-se uma manifestação generalizada, a autora analisa os mecanismos de expropriação como processo histórico e resgata as contradições presentes neste processo para identificar os desafios atuais para as lutas dos trabalhadores. O conceito de Estado ampliado de Gramsci é incorporado para elucidar que a subsunção do trabalho na contemporaneidade se dá também na política e na cultura, além da economia. A análise sobre a expansão mundial das organizações não-governamentais (ONGs) como manifestação desta problemática é precisa, atual e instigante.

A autora apreende as contribuições de Freud para a reflexão do processo histórico em "Historicidade e subjetividade: contradição e conflito, liberdade e determinação". Neste exercício, toma o conceito de conflito como elemento central. Sua hipótese é de que a reflexão do autor

"(...) permite estabelecer um princípio de historicidade radical, e esse princípio se encontra exatamente na forma pela qual os indivíduos são constituídos pelo conflito. Mais ainda, a partir de Freud, a categoria de conflito permite vislumbrar uma radical perspectiva de futuro, característica rara na maioria dos trabalhos científicos voltados para as áreas chamadas de humanas" (p. 120-121).

A sutileza e a criatividade do texto estão em recuperar aspectos fundamentais para o pensamento histórico a partir de um intelectual que não refletiu sobre a história, mas que teve a história em torno de sua reflexão. Virgínia Fontes se revela não só como historiadora, mas como cientista social, transitando com facilidade pela teoria freudiana.

Na segunda parte - "Brasil contemporâneo: nação, poder e cultura" - , o tema democracia e os desafios do pensamento histórico ganham forma em análises sobre o caso brasileiro.

"A nação hierárquica - um ensaio sobre o Brasil no século XIX" apresenta um balanço sobre a formação da nação e a questão democrática, recolocando em seu lugar a relação sociedade e Estado para explicar as raízes do processo de hierarquização predominantes em nossa cultura. A autora desafia o pensamento liberal ao defender o Estado como relação histórica, mais precisamente, como a síntese dos conflitos e das lutas sociais mediadas pela exploração do trabalho.

O capítulo "Ampliação do estado e coerção no Brasil: democracia e nacionalização truncada (o DIP e o modelo da violência seletiva)" analisa a redefinição das relações de poder do pós-30 e suas repercussões políticas, econômicas e ideológicas sobre a reorganização do Estado brasileiro e sobre os processos de dominação. Mostra o papel da comunicação na sociedade de classes refletindo sobre o Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão fundamental para a organização da repressão e do consenso no Estado Novo. Apresentando o conceito de 'nacionalização truncada' para explicar as bases coercitivas e autoritárias de formação do Estado brasileiro, defende que as experiências dominantes no Estado Novo repercutiram além do que tradicionalmente se imagina, deixando marcas nos períodos subseqüentes.

Em "Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil", a autora analisa o sentido das utilizações do conceito de hegemonia de Gramsci nas interpretações sobre a relação entre Estado e sociedade civil e em que medida estas utilizações apontam, de fato, para a ampliação da reflexão histórica. Diante deste desafio, Virgínia Fontes analisa a idéia de crise de hegemonia no Brasil e sua relação com o Estado, e na última seção do texto avalia a contribuição de três autores que estudaram o caso brasileiro, concluindo, ao final, que existem trajetórias interpretativas diferenciadas sobre o papel do Estado a partir do conceito em questão. De um lado, localiza as elaborações de Carlos Nelson Coutinho e Sônia Mendonça, que muito contribuem para a superação da noção de Estado como sujeito do processo histórico. De outro, identifica o trabalho de Marco Aurélio Nogueira, que, mesmo trabalhando com o aporte gramsciano, defende a tese de que a autonomização do Estado teria estatizado as relações sociais no Brasil e que, portanto, o Estado teria sido o definidor da vida social, o principal sujeito do processo histórico, como advoga o pensamento dominante. Conclui, então, que as formulações de Coutinho e Mendonça oferecem substratos para a análise histórica concreta, redimensionando a possibilidade de uma compreensão crítica sobre o caso brasileiro a partir da ampliação do conceito de hegemonia sem deturpá-lo de sua concepção teórica original.

A relação entre cultura e democracia constitui-se na temática de "Música popular e política no Brasil: Chico Buarque de Hollanda, poesia e política". Compreendendo que a arte é uma das formas de se tomar consciência do mundo, a autora considera que a construção da vontade coletiva nacional-popular rumo a uma reforma superior da civilização, de acordo com a acepção gramsciana, passa necessariamente pelas expressões artísticas. Neste exercício, reafirma de maneira criativa que é possível ampliar as bases do pensamento histórico a partir de campos que, em princípio, não sugerem tal possibilidade.

"A política e a arte da desqualificação" encerra Reflexões impertinentes. Partindo da criação e trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), seu (re)posicionamento nas lutas sociais travadas recentemente no Brasil e suas repercussões no campo sindical e, mais amplamente, na democracia, a autora observa que o PT tornou-se "um partido exatamente como os demais, adotando celeremente as práticas da desqualificação da política que, até então, ele próprio denunciara e procurara requalificar" (p. 315). Entretanto, o processo histórico, particularmente no que diz respeito organização e luta da classe trabalhadora, não se encerra no PT. Isso significa que, apesar da desqualificação da política, as contradições que envolvem a maioria da população brasileira não foram apagadas como também não o foram as possibilidades de compreensão crítica dessas contradições. É neste movimento que identifica a possibilidade de surgir novas experiências que apontem para a requalificação da política sem os dogmas e ilusões que cercam o pensamento e a ação política do PT.

Gramsci escreveu que a grande conquista do pensamento moderno, representado pelo que ele denominava filosofia da práxis, é exatamente a historicização concreta da filosofia e a sua identificação com a história. Este pensamento, na sua maior radicalidade, encontra nas reflexões impertinentes de Virgínia Fontes a sua expressão e firmeza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Jul 2007
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