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Saúde mental de cuidadores de abrigos para adolescentes com transtornos psiquiátricos ou neurológicos

Mental health of caregivers working at shelters for adolescents with psychiatric or neurological disorders

Resumos

Este estudo tem como objetivo analisar como os cuidadores expressam seu sofrimento no trabalho, em abrigos, com adolescentes portadores de transtornos psíquicos ou neurológicos. Os dados derivaram do projeto de pesquisa "Violência, juventude e saúde mental" do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado em 2008/2010, e se basearam em 26 entrevistas e observações de campo com profissionais em uma das unidades de acolhimento pesquisadas. O método empregado nas entrevistas foi o da história oral, utilizando um roteiro semiestruturado. A análise dessas narrativas se fez por meio da teoria da comunicação, que permitiu a definição de categorias. Como resultado, constatou-se que as condições, a organização e os processos do trabalho nas unidades de acolhimento são adversos, gerando riscos à saúde mental dos profissionais, pelo despreparo destes para realizar seu trabalho em especial com aqueles que têm transtornos psiquiátricos ou neurológicos, o que causa grande sofrimento psíquico aos cuidadores. Por fim, verificou-se a necessidade de promover capacitações e supervisões clínicas permanentes nos abrigos tendo como base os princípios da reabilitação psicossocial - da mesma forma, maior integração das tarefas das unidades de acolhimento com as demais redes de proteção especial para esses adolescentes.

rede de acolhimento; cuidadores; adolescentes abrigados; reabilitação psicossocial; sofrimento psíquico


This study aims to analyze how caregivers working at shelters for youth suffering from psychiatric or neurological disorders express their grief. The data come from the research project titled "Violence, Youth, and Mental Health," which was carried out from 2008 to 2010 by the Institute of Psychiatry at the Federal University of Rio de Janeiro, and was based on 26 interviews and field observations made with professionals at one of the surveyed shelters. The study method was that of oral stories using a semi-structured script. These narratives were analyzed based on the theory of communications, which allowed categories to be defined. It was found that the conditions, organization, and work processes at the shelters are adverse and cause risks to the professionals' mental health, since they are unprepared to perform this work, in particular with patients suffering from psychiatric and neurological disorders, conditions that cause great distress among caregivers. Finally, it was fund that there is a need to provide training and permanent clinical supervision at the shelters based on the principles of psychosocial rehabilitation. Additionally, it is also necessary to drive greater integration among the tasks carried out at the shelters and those of the remaining special protection networks created for these adolescents.

shelter network; caregivers; adolescents in shelters; psychosocial rehabilitation; psychic suffering


ARTIGOS

Saúde mental de cuidadores de abrigos para adolescentes com transtornos psiquiátricos ou neurológicos

Mental health of caregivers working at shelters for adolescents with psychiatric or neurological disorders

Mayara Cristina Muniz Bastos Moraes1 1 Graduanda em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (IC-Faperj). ; Adriana Abreu Lemos2 2 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (IC-Faperj). < adriana_ablemos@hotmail.com> ; Daniel Gonçalves Alves3 3 Graduando em Psicologia pelo Centro Universitário Augusto Motta (Unisuam), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic/CNPq). < danielalvesdga@gmail.com> ; Elizabeth Espindola Halpern4 4 Psicóloga. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. < espindolahalpern@yahoo.com.br> ; Ligia Costa Leite5 5 Professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pós-doutora em Comunicação pela Universidade de Montreal, Canadá. < ligia.cleite@gmail.com>

Correspondência Correspondência: Rua Cabo Claudenir de Olinda, 234 CEP 21941-460, Galeão, Ilha do Governador Rio de Janeiro, RJ. < mayacmoraes@gmail.com>

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar como os cuidadores expressam seu sofrimento no trabalho, em abrigos, com adolescentes portadores de transtornos psíquicos ou neurológicos. Os dados derivaram do projeto de pesquisa "Violência, juventude e saúde mental" do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado em 2008/2010, e se basearam em 26 entrevistas e observações de campo com profissionais em uma das unidades de acolhimento pesquisadas. O método empregado nas entrevistas foi o da história oral, utilizando um roteiro semiestruturado. A análise dessas narrativas se fez por meio da teoria da comunicação, que permitiu a definição de categorias. Como resultado, constatou-se que as condições, a organização e os processos do trabalho nas unidades de acolhimento são adversos, gerando riscos à saúde mental dos profissionais, pelo despreparo destes para realizar seu trabalho em especial com aqueles que têm transtornos psiquiátricos ou neurológicos, o que causa grande sofrimento psíquico aos cuidadores. Por fim, verificou-se a necessidade de promover capacitações e supervisões clínicas permanentes nos abrigos tendo como base os princípios da reabilitação psicossocial - da mesma forma, maior integração das tarefas das unidades de acolhimento com as demais redes de proteção especial para esses adolescentes.

Palavras-chave: rede de acolhimento; cuidadores; adolescentes abrigados; reabilitação psicossocial; sofrimento psíquico.

ABSTRACT

This study aims to analyze how caregivers working at shelters for youth suffering from psychiatric or neurological disorders express their grief. The data come from the research project titled "Violence, Youth, and Mental Health," which was carried out from 2008 to 2010 by the Institute of Psychiatry at the Federal University of Rio de Janeiro, and was based on 26 interviews and field observations made with professionals at one of the surveyed shelters. The study method was that of oral stories using a semi-structured script. These narratives were analyzed based on the theory of communications, which allowed categories to be defined. It was found that the conditions, organization, and work processes at the shelters are adverse and cause risks to the professionals' mental health, since they are unprepared to perform this work, in particular with patients suffering from psychiatric and neurological disorders, conditions that cause great distress among caregivers. Finally, it was fund that there is a need to provide training and permanent clinical supervision at the shelters based on the principles of psychosocial rehabilitation. Additionally, it is also necessary to drive greater integration among the tasks carried out at the shelters and those of the remaining special protection networks created for these adolescents.

Keywords: shelter network; caregivers; adolescents in shelters; psychosocial rehabilitation; psychic suffering.

Introdução

As importantes transformações no cenário político, econômico e social (realizadas no Brasil e no mundo, a partir de 1980) aliadas à profunda necessidade de reestruturação legal no que se referiu aos direitos da criança e do adolescente formaram o alicerce para um novo paradigma jurídico: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990). Este rompeu com os modelos legais que até então vigoravam, reformulando a política de recolhimento daqueles considerados problemáticos, segundo os critérios da sociedade, para inaugurar uma era de desinstitucionalização (Cury, Silva e García Mendez, 1992).

O Direito do Menor foi instituído em 1927, com o Código de Menores, conhecido como Código Mello Mattos, visando proteger os menores de 18 anos que se encontravam em situação de abandono moral e material. Esse código estruturou uma nova política social unificando as diversas leis de assistência e proteção, ao mesmo tempo que criou a cadeira de juiz de menores, preenchida pelo autor da lei (Leite, 2009).

Em 1979, um novo Código de Menores substituiu todas as leis anteriores, instituindo a doutrina de 'situação irregular', o que possibilitou o recolhimento de menores de idade em instituições fechadas, sem a necessidade de justificativas legais (Cury, Silva e García Mendez, 1992). Como esses internatos tinham uma proposta educativa repressiva, a reintegração social na vida adulta ficava prejudicada, porque os internos quase sempre eram 'incapazes' de constituir uma identidade e se desenvolver como sujeitos após os 18 anos. No dizer de Pelegrino (1993, p. 19), o processo formador nessas instituições era "educar tentando abolir do sujeito sua diferença e, depois de concluído o processo, lançar este mesmo sujeito num mundo que exigirá dele o exercício de uma diferença para a qual está despreparado".

Rompendo com a lógica da exclusão, o ECA valorizou a perspectiva de infância e adolescência como uma fase peculiar de desenvolvimento físico, psíquico, moral, espiritual e social, que requer assistência e proteção, respeitando a singularidade deles, como sujeitos de direitos, conforme os artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do ECA (Brasil, 1990). Por conseguinte, a infância 'desafiliada' (Castel, 1995)6 6 Segundo Castel, em seu livro publicado na França em 1995, são desafiliados aqueles que vivem em precariedade financeira, e com enorme fragilidade dos laços sociais. Essa precariedade pode levar à 'privação', à 'fragilidade relacional' e ao isolamento, que são os extremos da 'desafiliação'. O autor enfatiza que o termo 'desafiliado' se refere a alguém que nasce 'filiado', cria outros vínculos sociais de ' afiliação' e se, de algum modo, perde posições sociais anteriormente adquiridas, torna-se 'des afiliado'. deixou de ser um caso de polícia e ganhou um lugar de cidadania nas políticas sociais brasileiras. Para tanto, o artigo 98 determinou quais seriam as situações em que deveriam ser aplicadas as medidas de proteção a crianças e adolescentes: em função de qualquer ato que comprometesse a integridade física ou psíquica, cometido pela omissão ou negligência da sociedade, do Estado ou dos pais. Em último caso, a partir dos 14 anos, os adolescentes poderiam ser responsabilizados em razão de sua própria conduta, tendo direito a processo com defesa e acusação.

Desse modo, sempre que os direitos infantojuvenis fossem violados, esses sujeitos eram encaminhados aos abrigos municipais a fim de receberem proteção integral, objetivando acompanhamento social e reinserção familiar. O artigo 101 do ECA definiu o acolhimento institucional como uma ação especializada, em caráter excepcional e temporário, aplicável aos adolescentes em situação de abandono ou pela impossibilidade de os pais ou responsáveis cumprirem sua função de cuidado e proteção. O atendimento personalizado era aplicado a pequenos grupos. Em 2009, o documento produzido pelo Conselho Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (Conanda) enfatizou a importância de os abrigos manterem o convívio dos adolescentes com a comunidade próxima e utilizar os serviços básicos disponíveis pela rede socioassistencial (Brasil, 2009).

A esse respeito, Leite et al. (2011) sintetizaram que é competência de três redes assegurarem a proteção a esse público: a Rede de Defesa e de Direitos (conselhos tutelares, defensorias, promotorias, juizados e polícia); a macrorrede socioassistencial (articulação com as demais políticas públicas de proteção, saúde, educação, esporte e cultura); e a microrrede de assistência social (a de proteção social básica e a de proteção social especial).

A questão dos adolescentes abrigados tem sido bastante discutida, há pelo menos duas décadas, por diversos pesquisadores (Aneci Rosa, Borba e Ebrahim, 1992; Lusk, 1992; Menezes e Brasil, 1998; Rosa, 1999; Paludo e Koller, 2005; Botelho et al., 2008; Saggesse, 2012), mas pouco se investigou a respeito dos cuidadores sociais que acolhem os adolescentes portadores de transtornos psíquicos ou neurológicos (TP/TN) nas unidades de acolhimento (UAs).

Saggese (2012) constatou que grande parte dos transtornos psiquiátricos que acomete os adolescentes pode vir a ser incapacitante, o que justificaria a necessidade de transformar esse grupo etário em alvo prioritário dos investimentos das políticas de saúde mental, com profissionais habilitados em reabilitação psicossocial para atuar com as diversas questões da adolescência, de modo transdisciplinar e interinstitucional, principalmente no que se refere às desordens psiquiátricas e neurológicas.

Este artigo se propôs a compreender a situação da (in)capacitação dos cuidadores para lidar com aqueles portadores de TP/TN, considerando-se a hipótese de que sua relação profissional com o abrigado poderia gerar enormes riscos psicossociais. Para tal, examinou-se o impacto das condições de trabalho na saúde mental dos cuidadores. Não se pretendeu estruturar um perfil desses profissionais em seus aspectos socioantropológicos, nem realizar uma análise institucional na rede de acolhimento, mas dar voz ao sofrimento psíquico desses trabalhadores, no cotidiano laboral.

Enfim, este estudo relatou parte dos resultados do projeto de pesquisa Violência, juventude e saúde mental que integrou o programa de pesquisa de Leite et al. (2005) realizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ), entre os anos de 2008 e 2010. Uma pesquisa que teve como foco trazer à tona o ponto de vista dos agentes principais de atuação dentro de UAs municipais, para propor iniciativas que mediassem as relações entre cuidadores e abrigados. Práticas em reabilitação psicossocial (Pitta, 1996; Saraceno, 1996, 1999) foram empregadas de modo a mediar as diferentes formas de violência que incidiam na saúde mental dos sujeitos ali inseridos.

Procedimentos metodológicos

Em 2009, a pesquisa (Leite et al., 2008) realizou 47 entrevistas em duas UAs da microrrede de assistência social, destinadas a adolescentes na faixa etária entre 14 e 17 anos e 11 meses, que estivessem cumprindo medida de proteção. Para tal, construiu-se um roteiro semiestruturado de entrevista, com o objetivo de conhecer as relações entre os atores ali inseridos. Seus relatos foram gravados e, em seguida, transcritos. Em 2010, foram feitas atividades em grupo que propiciaram observações participantes, registradas em relatórios e cadernos de campo (Brandão, 1981; Minayo, 2006; Minayo, Deslandes e Gomes, 2007).

Este artigo, portanto, dedicou-se a examinar e discutir os dados obtidos em apenas uma das UAs, que naquela ocasião contava com 27 profissionais e abrigava 20 adolescentes, oito deles portadores de TP/TN.

As entrevistas foram realizadas com o diretor, assistentes sociais, psicólogo, educadores sociais, auxiliar de serviços gerais e cozinheiros. A fim de preservar as identidades dos participantes e da UA, foram adotados nomes fictícios. Seus relatos foram transcritos na forma como eles falaram, podendo conter erros gramaticais. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Ipub/UFRJ e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, em 2006.

Para a realização das entrevistas individuais, utilizou-se a história oral, por ser um método capaz de legitimar e contextualizar a memória narrada pelos indivíduos e seu grupo, dentro da instituição, de modo que eles pudessem descrever suas vivências profissionais. Esse método pôde trazer um conteúdo que adveio de fontes inéditas, colocando os profissionais como sujeitos de suas vidas (Lozano, 2006). Ao recordar e narrar a sua história de forma não dirigida, o entrevistado vivenciava um encontro profundo com sua memória e com suas questões subjetivas (Alberti, 2004). Esse caminho permitiria que o 'contar' se transformasse em uma possibilidade de reflexão e ressignificação de acontecimentos passados.

Segundo Thompson (1992), a entrevista oral devolveria a história às pessoas em suas próprias palavras, permitindo, assim, não apenas desenhar o seu passado, como também ajudá-las a caminhar para um futuro construído por elas mesmas. Leite et al. (2005) consideravam que o momento das entrevistas possibilitava reflexão, especialmente para quem narrava suas experiências, e que a fala é o caminho de troca, de entendimento de situações vividas, pouco pensadas. Mesmo sem intenções terapêuticas, esse processo poderia influir na realidade e trazer transformações para os sujeitos.

Para as análises das entrevistas e dos cadernos de campo empregou-se a Teoria da Comunicação, especificamente pelo método da abdução (Boudon, 1998). Diferentemente de outros métodos, este não envolveu categorias preestabelecidas, mas que foram abduzidas das narrativas colhidas no campo. O tratamento dos dados foi iniciado pela definição de uma categoria-base que foi mediatizada por duas metacategorias, uma positiva e outra negativa, para se induzir um tema para cada templum (diagrama-síntese, Figura 1). Com base no tema deduziu-se uma hipótese, e, finalmente, foram abduzidas pistas que serviram como prova. Em continuidade, iria se tecendo uma 'rede de sentidos' que se cruzaria com outras pistas, tornando explícito o que antes estava implícito e revelando novos fatos. Para verificação desses elementos surgiram novos argumentos: tese e antítese, que, por fim, geraram uma síntese, que poderia comprovar ou não a hipótese inicial. Assim, os temas dialogavam entre si e eram analisados por uma alternância argumentativa.


Resultados e discussão

Com base no material analisado, o interesse particular deste artigo foram quatro categorias-base de discussão, sempre pelo aspecto dos riscos psicossociais para a saúde mental dos cuidadores: condições, organização e processos do trabalho; capacitação e supervisão clínica; impactos na saúde física e mental dos cuidadores; e reabilitação psicossocial.

Os profissionais que compunham a equipe técnica (assistentes sociais e psicólogo) eram todos servidores públicos concursados e tinham carga horária de 40 horas semanais. Os educadores sociais eram subdivididos entre os agentes comunitários da Prefeitura, com vínculo de servidor municipal, e os educadores sociais terceirizados e selecionados por organizações não governamentais (ONGs) conveniadas com o município. Essa diferença de contrato provocava desconfortos na equipe, principalmente pelas diferenças salariais, o que se verificou em várias narrativas, pois as ONGs não estavam pagando em dia o salário dos educadores. Vale ressaltar que a remuneração destes não ultrapassava o valor de um salário mínimo na época das entrevistas e que a jornada de trabalho chegava a mais de 12 horas por dia.

Os temas discutidos neste texto se destacaram em razão da precariedade das condições profissionais e da constante exposição do trabalhador a situações de violência, já identificadas por Bottega e Merlo (2010) como capazes de contribuir para a produção do sofrimento psíquico no âmbito laboral. A tarefa de lidar com uma faixa etária complexa, como a adolescência, seria capaz de provocar angústias nos cuidadores por si só. No entanto, as entrevistas demonstraram que acolher aqueles com TP/TN gerava um sofrimento trazendo desafios ainda maiores para os cuidadores, como ilustrado a seguir: "Eu tive garotos aqui com problema de epilepsia. Eu contei 13 ataques consecutivos, direto. Eu tava apavorado com o garoto, ele teve 13 em seguida, eu não sabia se eu segurava o garoto ou chamava socorro" (Educador social 1).

Condições, organização e processos do trabalho

A categoria-base analisada neste item foi a da violência silenciosa em relação às condições, à organização e aos processos do trabalho (Dejours, 2006). Para Leite,

(...) a manifestação silenciosa da violência se expressa em atos sutis que violam a dignidade humana e se associa a aspectos simbólicos, superpondo-se a todas as outras formas, e acaba sendo aceita como um aspecto normal, naturalizado por muitos dos que a vivenciam ou dos que a praticam (Leite et al., 2011, p. 3).

A hipótese emergida desse tema foi a de que essa organização podia gerar maior ou menor sofrimento psíquico nos grupos que se relacionavam no abrigo, em razão das condições do ambiente.

Duas provas foram abduzidas das narrativas: a sobrecarga de trabalho e a dificuldade de assumir responsabilidade em tarefas para as quais os profissionais não se sentiam capacitados. A primeira narrativa descreveu a sobrecarga:

Porque surtou de verdade, foi muito forte, não teve como ficar aqui, teve que ficar internado até se controlar de novo. Dezenove meninos na casa e dois educadores? É muito pouco. Tem dia que saio daqui com as minhas pernas doendo, porque não dá pra ficar sentada dez minutos. E chega em casa, tem que dormir, porque você fica muito cansada, a cabeça fica doendo. O serviço acaba sendo muito pra uma pessoa só (Educador social 2).

Outro entrevistado comentou também seu esgotamento em relação às tensões no local de trabalho:

É verdade que é cansativo e eu acho isso interessante até pra lidar com os meninos que são psiquiátricos, que demandam uma atenção maior, você se esgota muito mais, né? ]falando da rotina[ Você aqui 12 horas, você não tem pra onde ir. Eu até falo: "A gente tinha que ter uma ]fica pensativa[ sala de descompressão assim" (Assistente social 1).

O profissional, muitas vezes, sentia-se exaurido em razão das suas atividades e dos atravessamentos do dia a dia. Com uma série de tarefas para desempenhar durante seu turno, eles relatavam suas dificuldades diante de um quantitativo profissional insuficiente: "Antigamente a gente tinha mais educador e os especiais TP/TN não tinham tanto. Mas a quantidade que a gente tem ]proporção atual[ deixa as pessoas muito exauridas, muito cansadas" (Assistente social 2).

A administração da medicação foi a segunda prova abduzida como um problema no cotidiano; destacou-se não só a questão da responsabilidade envolvida na sua administração, como também a necessidade de haver uma organização eficiente para seu controle:

A gente tem muito adolescente paciente psiquiátrico ou neurológico e, antigamente, a gente tinha muito problema com remédio, porque era remédio demais, passando na mão de muita gente, não estava dando certo. Então, só a Marília, agora, organiza o medicamento (Assistente social 2).

Segundo o ponto de vista da entrevistada, o problema só foi superado quando uma educadora foi incumbida da tarefa de acompanhar os adolescentes aos tratamentos e organizar as dosagens dos remédios, tornando-se responsável por essa atividade. Porém, questionou-se até que ponto a execução dessa tarefa deveria ser de um único responsável, pois eventualmente ele se ausentaria da instituição e deixaria um vácuo na medicação. Além disso, o documento do Conanda (Brasil, 2009) orientava que todos os envolvidos na atividade de abrigamento fossem capacitados constantemente para lidar com as mais diversas situações (o que será aprofundado no próximo tópico).

Os gestores públicos da rede definiram o quantitativo de cuidadores em razão de uma regra genérica de um educador para dez abrigados, independentemente das dificuldades que pudessem encontrar, sem levar em conta que aqueles portadores de necessidades especiais demandavam atenção diferenciada. Como narrado por uma profissional:

Você tem uma ]regra[, colocando como o abrigo deve funcionar ]diretrizes oficiais[. Pra cada 20 meninos, um educador. Se tem menino com transtorno, ou então com problema psiquiátrico, isso cai pra metade ]a proporção educador/adolescente[. Aí o educador tem que ter o apoio ]auxiliar de educador[ e

na lei, aí você não vê isso acontecer (Assistente social 1).

A contra-argumentação (antítese) revelou que a organização era falha, o que provocava sofrimento psíquico nos profissionais e era responsável pelo aumento do número de licenças médicas de toda a ordem para aqueles que pertenciam ao quadro de funcionários municipais e pelo abandono de emprego dos educadores terceirizados, que não tinham as mínimas garantias trabalhistas (insalubridade, periculosidade e assistência à saúde).

Como foi preconizado nas Orientações técnicas para o serviço de acolhimento para crianças e adolescentes (Brasil, 2009), para o funcionamento adequado das instituições de acolhimento e organização do cotidiano laborativo, a proporcionalidade no número de educadores e abrigados deveria ser de um educador social e um auxiliar de educador, por plantão, para cada dez adolescentes; no caso de haver algum adolescente portador de demandas especiais (gestantes, deficientes físicos, portadores de TP/TN, HIV/Aids), a proporção deveria ser de um educador e um auxiliar para cada oito indivíduos, e no caso de serem dois ou mais com esse perfil, a relação passaria a ser de seis jovens para um educador, mais um auxiliar.

Em síntese, percebeu-se que as condições, a organização e os processos do trabalho eram adversos, destacando-se a sobrecarga, o despreparo dos profissionais para lidar com o problema social e a responsabilidade inerente para educar e reabilitar os adolescentes desafiliados. Ademais, a violência silenciosa se expressava pelo descumprimento das leis (Leite et al., 2011).

Capacitação e supervisão clínica

No decorrer da pesquisa, constatou-se que, no cotidiano laboral, os profissionais eram continuamente expostos a situações delicadas e difíceis, que exigiam certas habilidades. Por isso, o tema da capacitação para o trabalho foi recorrente nas entrevistas.

A categoria-base para essa análise foi o sofrimento psíquico, tendo como metacategorias a presença ou a ausência de capacitação e supervisão clínica para os cuidadores. A hipótese levantada foi a de que a precariedade da capacitação e a ausência de supervisão regular atuavam como facilitadores de riscos psicossociais, em especial por lidarem com adolescentes TP/TN.

As provas abduzidas demonstraram como a precariedade e, em muitos casos, a falta de um preparo para o exercício das atividades laborativas tornavam-se empecilhos marcantes no dia a dia da UA. A assistente social relatou, como prova, que não dominava os conhecimentos sobre a problemática dos adolescentes TP/TN, mas que a equipe buscava organizar um saber coletivo com base na prática e fazia uma crítica a esse método:

Eu não domino isso. Eu tenho essa clareza. Acho que a gente tem tentado construir um conhecimento coletivo a partir da experiência, mas eu acho isso ao mesmo tempo uma irresponsabilidade, porque não dá para ficar apostando o tempo todo se vai dar certo (Assistente social 3).

Um questionamento comum entre os entrevistados referiu-se ao despreparo da UA para dar conta da tarefa de cuidar dos adolescentes com TP/TN, como se viu nas narrativas:

Aqui não é uma casa de saúde mental. A gente não pode ter esse suporte ]para o tratamento[ o dia todo com esses meninos aqui. São seis, são sete, daqui a pouco tem dez, daqui a pouco só tem psiquiátricos (Assistente social 3). Não tem capacitação para isso, o espaço não é para isso, os outros adolescentes não estão preparados para isso, e a gente precisa de um diálogo com a saúde mental. É uma sobrecarga muito grande para uma equipe que não está preparada para isso (Assistente social 3).

O diálogo com a saúde mental e a articulação com a macrorrede socioassistencial seria fundamental para capacitar e supervisionar as equipes das UAs e atender aos princípios da lei n. 10.216 (Brasil, 2001), que estabeleceu os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, sem qualquer forma de discriminação, de modo a receber tratamento, de preferência, em ambiente terapêutico aberto. Somado a isso, destacou-se o descumprimento das orientações técnicas (Brasil, 2009) que determinaram que os cuidadores deveriam ser capacitados e supervisionados constantemente:

Deve-se dar atenção especial à qualidade da prestação de cuidados em serviços de acolhimento, ofertados tanto em serviços de acolhimento em abrigos quanto em Famílias Acolhedoras, particularmente no que se refere à seleção, capacitação e acompanhamento/supervisão (Brasil, 2009, p. 13).

Com base em seus estudos na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, Marcílio (2001, apud Barros e Fiamenghi Jr., 2007) já apontava que o despreparo de cuidadores para a função era um aspecto comum às instituições de abrigamento para adolescentes. Em suma, parecia haver uma distância entre aquilo determinado por lei e o que ocorria na prática diária:

Falta-lhes um mínimo de preparo técnico para a função: atuam com seus próprios recursos pessoais, com sua moral e seus valores, seu humor e sua força física. Em geral dominam os conflitos e os jovens pela cultura da subjugação, com uma rotina de restrições, desprazeres, de controles e maustratos (Marcílio, 2001, apud Barros e Fiamenghi Jr., 2007, p. 1.273).

Considerando o indivíduo como resultado do meio sociocultural onde vive e que esse meio seria capaz de sacramentar sua personalidade de modo negativo (Leite, 1998; Leite et al., 2008, 2009), o senso comum construiu, ao longo do tempo, uma carreira moral baseada em crenças estigmatizantes (Goffman, 1992). Mais complexa era a situação dos adolescentes com TP/TN, pois os profissionais não se sentiam seguros para acolhê-los:

Eu lembro que o Carlos fazia tratamento no Pinel ]hospital psiquiátrico[. Uma vez, ele pegou essas lâmpadas e deu com ela no antigo menino que trabalhou na limpeza. Ele falava umas coisas muito esquisitas quando 'surtava'. Cada dia que ele 'surtava' era diferente. Dava medo (Educador social 3).

Contrariando os marcos legais (Brasil, 1990, 2009), em razão da ausência de capacitação periódica e supervisão regular, restava aos cuidadores o amparo em seus recursos pessoais, uma manifestação sutil da violência silenciosa que incidia sobre os relacionamentos interpessoais no abrigo.

Concluiu-se que a criação de espaços para supervisão clínica, reuniões em equipe e diálogo sobre os desafios laborais seria uma forma de mediar as situações de tensão e reduzir seu desgaste e sofrimento psíquico por parte do cuidador.

Impactos na saúde física e mental dos cuidadores

A maioria das narrativas analisadas apontou que a relação entre cuidadores e adolescentes portadores de TP/TN aparecia como um dos maiores desafios percebidos na UA. A categoria-base para este tema foi a saúde física e mental dos profissionais, analisando-as em relação à presença e à ausência da supervisão clínica no trabalho. Por isso, estabeleceu-se como hipótese que o despreparo dos cuidadores para lidar com os adolescentes TP/TN, já discutido anteriormente, poderia gerar múltiplos riscos à saúde física e mental dos profissionais.

As provas apontavam que havia uma tendência a naturalizar a angústia provocada pelas situações de tensão vivenciadas na UA. No relato a seguir, a assistente social narrou a existência de três recursos pessoais, utilizados como mecanismos de 'autocapacitação' e de proteção às situações de violência a que estaria exposta diariamente: a banalização; o costume ou naturalização; e a criação de uma 'couraça':

Um menino que tinha lá 'surtou' e começou a agredir. Começou a quebrar tudo e eu, que nem uma louca, pulei em cima do menino, até o Samu ]Serviço de Atendimento Móvel de Urgência[ chegar. Pra ele não se machucar, ele tendo 'delírio', mesmo! "Eu sou isso, sou fulano, vou matar, vou fazer" ]reproduz a fala do menino[. Eu reajo bem a essas situações hoje em dia. No primeiro ano de abrigo, eu comecei a dar umas esquisitices na saúde por conta de lidar com situações de violência. Não sei se eu banalizei, se eu acostumei, ou se eu criei couraça pra história. Antes, eu sairia correndo pra pular o muro com medo do maluco. Dessa vez, eu me joguei em cima dele (Assistente social 2).

Ela disse que o 'surto' dos adolescentes era uma situação de difícil manejo, a ponto de provocar prejuízos à sua própria saúde. Contudo, não esclareceu quais foram essas ocorrências, apenas mencionando as diversas licenças médicas tiradas durante o ano.

O termo 'surto', frequentemente empregado pelos profissionais, não necessariamente correspondia a um episódio do ponto de vista médico. Em geral, era usado para descrever, de forma leiga, cenas de nervosismo ou agressividade, não apenas aquelas observadas nos adolescentes, mas também as experimentadas pelos próprios profissionais, diante de situações complexas e delicadas que irrompiam subitamente e que precisavam enfrentar, sem suporte técnico ou psicológico.

A rede não oferecia ao profissional um espaço de troca para o desenvolvimento dessas habilidades, apesar de ser um desejo marcante em muitas narrativas: "Eu gostaria muito de aprender a lidar com os meninos. Eu tava conversando com a professora do Silvio. Ela tem uma superexperiência com os meninos especiais" (Educador social 4).

A responsável pelo acompanhamento às consultas médicas e pela administração da medicação não se sentia habilitada para lidar com doenças graves: "Eu considero mais complicado é a questão psiquiátrica, porque vai além de saber trabalhar com adolescente. Eu não sei o que fazer, não sei realmente como lidar com isso" (Assistente social 3).

Uma experiência marcante de crise dentro do abrigo foi relatada por um educador que vivenciou grande ansiedade e angústia, tendo que decidir o que fazer, na solidão do seu plantão. Ele delegou a responsabilidade de cuidador aos adolescentes, que assumiram, mesmo que temporariamente, o papel de educadores:

Os meninos especiais, deitados no chão, gritando, 'surtando'. O Silvio é um menino que bate a cabeça no chão o tempo todo. Então, a gente tem que

ali, pra tentar controlar essas quedas dele. E os outros meninos brigando na parte alta da casa, e eu sozinho, tentando segurar os meninos aqui; mas, ao mesmo tempo, com a cabeça lá em cima; e menino no portão, e eu sem ter o que fazer! Eu resolvi, com a ajuda deles! Tentei pegar os que não estavam envolvidos na situação e jogar a responsabilidade: "Hoje você é um educador!" Fui jogando a responsabilidade pra cima de todo mundo! Falei: "Ah, já que eu

sozinho, então eu tenho que ver uma forma deles me ajudarem" (Educador social 5).

A tese, nesta análise, foi a de que recursos próprios, utilizados pelos cuidadores, seriam suficientes para autogerenciarem essas demandas. Em razão da precariedade, muitas vezes eles recorriam a um modo de capacitação informal, conversando ou observando o trabalho dos outros:

A Cláudia segurou o Carlos pra ele se acalmar. Quando o Carlos 'surta', não precisa tacar remédio. É só acalmar, que não precisa dar o medicamento. Aí fez isso: abraçou, ficou conversando com ele. E eu fico muito observando a Cláudia para aprender com ela, ela tem muita experiência. Eu não sei lidar praticamente com nada. Mas, aos poucos, com as vivências do dia a dia aqui, eu vou adquirindo isso (Educador social 4).

A antítese apontou para a necessidade de supervisão clínica para que os cuidadores pudessem dar conta das necessidades dos adolescentes portadores de TP/TN. Esse aspecto poderia ser capaz de minimizar as dificuldades vivenciadas pelos abrigados e profissionais, como Barros e Fiamenghi Jr. (2007) já sinalizaram.

Mângia et al. (2003) ressaltaram que, para o trabalho com adolescentes portadores de TP/TN, outros setores de assistência precisariam ser convocados:

Os casos mais críticos, quando há algum transtorno mental associado, devem receber atenção em saúde mental que os proteja dos processos de internação. Torna-se evidente a necessidade de um trabalho intersetorial especialmente com as instituições que oferecem abrigo. Os trabalhadores dos abrigos encontram-se pouco instrumentalizados para lidarem com as crianças e adolescentes abandonados e com o impacto emocional trazido por suas histórias de vida (Mângia et al., 2003, p. 129).

Pôde-se concluir pela necessidade de um trabalho integrado com outras instâncias da macrorrede, dada a peculiaridade das demandas desse grupo, o que contribuiria para que a UA propiciasse a reabilitação psicossocial do adolescente que protege.

Reabilitação psicossocial

Toda a prática de assistência envolve uma relação interpessoal que requer atenção pelos inúmeros e sutis aspectos abrangidos. Trata-se de um amparo que é, intrinsecamente, marcado pela dimensão do invisível e imensurável. De fato, a ação do cuidar deve ser uma experiência humanizada visando à valorização e ao estímulo para que os envolvidos tenham uma participação ativa nesse processo (Pitta, 1996).

O objetivo final da pesquisa que orientou este artigo era atuar do ponto de vista do cuidador para a recuperação da cidadania dos adolescentes abrigados, usando a reabilitação psicossocial para mediação dos diferentes conflitos ali vivenciados. Por essa visão, o adolescente não se encaixaria em modelos pré-fabricados, e o profissional precisaria se desapegar de seus valores pessoais para entendê-los. Buscou-se ajudá-lo a explorar o seu potencial, permitindo que ele conseguisse abordar o abrigado para poder constituir, com ele, um projeto de vida de acordo com os desejos, limitações e reais possibilidades dos adolescentes.

Primeiramente, para melhor compreensão dessa categoria, adotou-se a acepção de reabilitação psicossocial, aplicada ao trabalho com adolescentes abrigados, seguindo Pitta (1996), que citou a definição de 1985 da Associação Mundial para Reabilitação Psicossocial:

É um processo de facilitar ao indivíduo com limitações a restauração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na comunidade (...); enfatiza as partes mais sadias e totalidade de potenciais do indivíduo, mediante uma abordagem compreensiva e um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, ajustados às demandas singulares de cada indivíduo de modo pormenorizado (Pitta, 1996, p. 19-20).

Já Saraceno (1996) afirmou que a reabilitação psicossocial não é a estratégia de habilitar o 'desabilitado', tornando forte o que é fraco, mas sim um processo que aponta para realizar mudanças, a fim de se criarem possibilidades de vida e de se construir a cidadania plena.

Por isso, este tópico visou discutir os desafios que surgiam na relação do adolescente com seu cuidador e que bloqueavam os objetivos da reabilitação. Contudo, para ser possível a utilização das abordagens da reabilitação psicossocial, era preciso haver um relacionamento que permitisse as trocas necessárias entre esses atores.

Assim, a hipótese formulada para a análise dessa categoria foi a de que o desconhecimento de quem era o adolescente, de suas características como sujeito, a falta de capacitação e de supervisão clínica resultavam no uso de estratégias pessoais de lidar com os conflitos e, em consequência, criavam um desgaste na relação adolescente-cuidador, inviabilizando a reabilitação psicossocial.

As provas abduzidas descreveram como as dificuldades laborais contribuíram para a criação de sentimentos ambíguos que oscilavam entre afeto, satisfação, tristeza, pena, impaciência, frustração, raiva e impotência. Um exemplo foi a oposição entre o dever de cumprir as tarefas relacionadas aos adolescentes portadores de TP/TN e, ao mesmo tempo, a impaciência diante do seu comportamento repetitivo:

A situação do Lucio me entristece muito. O que eu vou fazer com ele? Toda vez que o Lucio vai falar, eu fico de 'saco cheio' dele: "Lucio, vai jantar, não 'enche meu saco'" ]reproduz o que diz para ele[. Mas aquilo me dá uma angústia (Assistente social 2).

Alguns profissionais informaram que desconheciam que entre o público com o qual iriam trabalhar incluíam-se aqueles com TP/TN, o que exigia muita habilidade no trato cotidiano:

Eu posso falar por todos, o que eles precisam ter: paciência, muita paciência. Porque não é fácil! Você

acostumado com um tipo de menino e, de repente, vai deparar com um menino totalmente diferente que você não sabe como lidar (Educador social 6).

O medo também era um sentimento comum, como relatou uma educadora social: "Normalmente, eu ficava com medo, eu ficava sempre à parte, mas, agora, eu vou lá. Você já vai se adaptando à situação e você vai perdendo aquele medo" (Educadora social 4).

Os profissionais se davam conta, na prática, dos numerosos obstáculos que existiam no processo de cuidar, acolher, educar e assistir os adolescentes para que eles pudessem construir um 'projeto de vida', especialmente aqueles com TP/TN:

O que é que eu faço com esse garoto? ]referindo-se ao futuro de um adolescente psicótico[ Que vai ser da vida dele, se não tiver gente pra tomar conta? Esses meninos que não têm perspectiva nenhuma? Isso bagunça a minha cabeça, mas eu tento não ficar bagunçada, senão, eu deprimo junto e me mato. Mas eu me sinto muito impotente na situação de Lucio. Ele vai fazer 18 anos em fevereiro. E o que é que eu vou fazer com ele? "Arrume suas coisas, tome e vá caçar seu rumo." É isso que eu faço? (Assistente social 2).

A argumentação dava a entender que, pela falta de suporte aos cuidadores, as ações dirigidas aos adolescentes seriam guiadas pelas percepções subjetivas dos dois grupos; e a antítese contra-argumentava que a ambiguidade presente na relação geraria mais tensões na UA, com conflitos difíceis de serem mediados. Verificou-se que o ambiente institucional e os atos de seus profissionais eram capazes de produzir efeitos adversos, acirrando sentimentos contraditórios entre eles e que não podiam ser superados sem uma supervisão clínica e uma qualificação continuada, em parceria com a saúde metal. Esse quadro dificultava a formação de vínculos que pudessem gerar atitudes compreensivas, centradas na complexa e delicada tarefa de perceber as demandas singulares desses adolescentes "vulneráveis aos modos de sociabilidade habituais e que necessitam de cuidado, igualmente complexos e delicados" (Pitta, 1996, p. 21).

Um suporte institucional agiria como um minimizador das angústias dos cuidadores, aspecto já constatado por Mângia et al.:

Há situações evidentes de sofrimento psíquico, presentes nos dois lados: o trabalhador não consegue cumprir sua tarefa de cuidar ou educar, e o adolescente não forma vínculo, sente-se ameaçado ou abandonado pelos cuidadores ou pela escola. Tais situações deveriam ser administradas conjuntamente, por todos os envolvidos no cuidado ou na educação ao adolescente, e não focalizadas apenas nas queixas comportamentais (Mângia et al., 2003, p. 129).

Em síntese, uma supervisão clínica constante poderia amparar o cuidador na elaboração de tensões e conflitos advindos do ambiente de trabalho. Ela também poderia propiciar a prática dos níveis de habilitação possíveis em cada sujeito e a capacidade contratual em razão da rede social existente (Saraceno, 1999). Além disso, fazia-se necessária maior comunicação entre a macrorrede socioassistencial e a microrrede de assistência social, tornando o trabalho mais integrado e respeitando as diretrizes oficiais, que preveem uma atenção que priorize a intersetorialidade dos serviços, como definido nas Orientações técnicas para os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (Brasil, 2009):

(...) especializações só devem ocorrer em situações excepcionais, nas quais o quadro clínico da criança ou adolescente indique a necessidade de atendimento em ambiente diferenciado, para a preservação da sua saúde. Nas demais situações, a atenção especializada, quando necessária, deverá ser proporcionada por meio da articulação com a rede de serviços, a qual poderá contribuir, inclusive, na capacitação específica dos cuidadores (Brasil, 2009, p. 8).

Assim procedendo, as chances de sucesso de um trabalho em reabilitação psicossocial com esses adolescentes se tornariam maiores.

Considerações finais

Diante de todos os elementos discutidos, é importante ressaltar a relevância desse tema, dada a sua inovação para o campo do saber psicossocial. Espera-se que os resultados desta pesquisa sirvam de incentivo para que novos estudos e intervenções venham a ser realizados, especialmente no que se refere às relações cuidadores e adolescentes sob medida de proteção especial.

A comunicação permanente entre esses dois grupos salvaguarda a existência de um espaço simbólico de mediação e construção de subjetividade, assim como de redução dos riscos psicossociais em ambos. O acolhimento não é um fim em si mesmo; acolher e ser acolhido são o resultado da escuta que cada um faz do outro. Dessa forma, deve-se dar espaço para que desejos, expectativas, valores, regras e motivações inconscientes do cuidador se unam aos do adolescente, e assim eles produzam o vínculo que servirá de caminho para a elaboração do projeto de vir a ser do adolescente, com uma possível autonomia para a verdadeira reafiliação em sociedade. Essa atitude de conferir ao outro o direito de ser sujeito se transforma na peça fundamental para a reabilitação psicossocial. A mentalidade que precisa ser desenvolvida se ancora no respeito pelas diferenças individuais.

De modo a alavancar as potencialidades de cada adolescente com liberdade e responsabilidade, é preciso que cuidadores percorram juntos com os acolhidos um caminho que é único, singular. Em outras palavras, não se trata de seguir uma cartografia de uso geral, mas espera-se que cada um aprenda a traçar e trilhar seus próprios rumos à cidadania possível.

Nota do editor

Este artigo é parte dos resultados da pesquisa Violência, juventude e saúde mental, realizada pelo Instituto de Psiquiatria (Ipub) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre 2008 e 2010, com suporte financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Notas

Recebido em 27/01/2012

Aprovado em 11/06/2012

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  • 1
    Graduanda em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (IC-Faperj).
  • 2
    Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (IC-Faperj). <
  • 3
    Graduando em Psicologia pelo Centro Universitário Augusto Motta (Unisuam), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic/CNPq). <
  • 4
    Psicóloga. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. <
  • 5
    Professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pós-doutora em Comunicação pela Universidade de Montreal, Canadá. <
  • 6
    Segundo Castel, em seu livro publicado na França em 1995, são desafiliados aqueles que vivem em precariedade financeira, e com enorme fragilidade dos laços sociais. Essa precariedade pode levar à 'privação', à 'fragilidade relacional' e ao isolamento, que são os extremos da 'desafiliação'. O autor enfatiza que o termo 'desafiliado' se refere a alguém que nasce 'filiado', cria outros vínculos sociais de '
    afiliação' e se, de algum modo, perde posições sociais anteriormente adquiridas, torna-se 'des
    afiliado'.
  • Correspondência:
    Rua Cabo Claudenir de Olinda, 234
    CEP 21941-460, Galeão, Ilha do Governador
    Rio de Janeiro, RJ. <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Jan 2012
    • Aceito
      11 Jun 2012
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