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Michael Snow e o cinema de processos graduais

Michael Snow and the cinema of gradual processes

Resumo

Este artigo pretende propor uma interpretação de Wavelength (1967), de Michael Snow, que privilegie a noção de processo, em detrimento da noção de estrutura, que tem sido o conceito predominante na extensa fortuna crítica do filme. A hipótese aqui apresentada é a de que podemos compreender melhor a proposta e as implicações do filme contextualizando seus procedimentos no debate da música e da arte processual nos anos 1960, a partir de uma genealogia do conceito crítico de processo e do estudo comparativo entre cinema, arte e música.

Palavras-chave
Michael Snow; processo Wavelength; música processual; cinema estrutural

Abstract

This paper proposes an interpretation of Wavelength (1967), by Michael Snow, that privileges the notion of process rather than the notion of structure, which has been a predominant concept in Snow’s extensive critical fortune. The hypothesis presented here is that we can better understand the proposal and implications of the film by contextualizing its procedures in the critical debate on process music and art in the 1960s, through a genealogical and comparative study.

Keywords
Michael Snow; Wavelength process; process music; structural film

Estrutura e processo

No verão de 1969, Michael Snow participou com dois de seus filmes da exposição Anti-Illusion: Procedures/Materials, no Whitney Museum of American Art, Nova York. Os curadores Marcia Tucker e James Monte reuniram trabalhos recentes de artistas como Carl Andre, Robert Morris, Richard Serra, Rafael Ferrer, Bruce Nauman e Eva Hesse, que se caracterizavam por privilegiar “os atos de conceber e situar as obras” em relação à “qualidade de objeto dos trabalhos” (MONTE, 1969MONTE, J.; TUCKER, M. Anti-Illusion: Procedures /Materials. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1969., p.4). O observador que entrasse na exposição encontraria obras frequentemente temporárias e realizadas no próprio espaço do museu, nas quais se conspirava uma consciência particularmente acentuada do seu processo, materiais e condições de produção; trabalhos que são mais bem descritos pelas ações que o constituíram e pela maneira como são posicionados no espaço expositivo do que pelas suas formas resultantes. Os procedimentos postos em cena pelos artistas convidados eram utilizados, afirma um dos curadores, menos para “criar um objeto do que criar um conjunto de condições que experienciamos como arte” (LEIDER apud MONTE, 1969MONTE, J.; TUCKER, M. Anti-Illusion: Procedures /Materials. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1969., p.10). A exposição contava também com a presença de dois músicos, Steve Reich e Philip Glass. O catálogo da exposição consolidava, no discurso crítico da época, a importância da ideia de processo para os artistas do final dos anos 1960, que viria a persistir, como se sabe, como uma das noções constitutivas da arte contemporânea.

A presença de Snow na exposição não deveria ser motivo para nenhum estranhamento. A escolha do artista canadense com residência em Nova York deveria ser bastante natural para os curadores. Os seus dois filmes selecionados, Wavelength (1967) e Back and Forth (1969), eram frequentemente descritos pela crítica pelos seus processos constitutivos, antes que pelas suas formas resultantes: o zoom em Wavelength e a panorâmica em Back and Forth. Wavelength, que é o tema deste artigo, consiste basicamente em um único zoom, filmado do interior de um apartamento, que progride regularmente e de maneira aparentemente ininterrupta do campo mais aberto para o campo mais fechado. A recepção da obra de Snow teve lugar em um momento em que se tornava evidente um grupo de preocupações em comum a um conjunto de artistas de campos distintos, que parecia ignorar a oposição ainda operante entre “artes do tempo” e “artes do espaço”. O grupo tinha na Park Place Gallery um ponto privilegiado de encontro. Primeira galeria de arte estabelecida em downtown, Manhattan, em 1963, a Park Place Gallery promovia exposições de artistas como Andre e Morris e concertos de compositores como Reich e Glass, tornando-se um ponto de convergência para artistas de algum modo oriundos do minimalismo, que estavam interessados em experimentar com processos. Os filmes de Snow partilhavam de uma sensibilidade em comum com os trabalhos dos outros artistas da exposição, porque eles todos constituíam juntos uma rede coerente de interlocutores e colaboradores, que dialogavam sistematicamente e se reconheciam no trabalho dos seus companheiros. A importância do diálogo entre os membros do grupo foi enfatizada por vários dos artistas da exposição (SERRA, 2005SERRA, R. Palestra.[2005]. Palestra proferida por ocasião do MacDowell Medal Award Ceremony for Steve Reich. Disponível em: <https://www.stevereich.com/articles/Richard_Serra.html>. Acesso em: 03 mai. 2020.
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; REICH, 2008______. Questions from Anne Teresa de Keersmaeker & Answers from Steve Reich. Mensagem trocada em 2008. Disponível em: <http://www.stevereich.com/>. Acesso em: 03 mai. 2020.
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).

A herança crítica da obra de Michael Snow, contudo, não parece ter dado suficiente relevância para a noção de processo dentro do entendimento da sua obra cinematográfica. A tradição crítica não ignora, é claro, a importância de sua relação com os outros artistas da exposição, tampouco a pertinência da noção de processo, mas, ainda assim, o conceito parece ter intervindo apenas incidentalmente na discussão de seus filmes1 1 O livro de Elizabeth Legge (2009) sobre Wavelength, por exemplo, que revisita a maioria dos debates que o filme suscitou, nem sequer toca na questão. Intérpretes importantes de sua obra, como Annette Michelson (2015) e Adams Sitney (2002a, 2002b), também passam ao largo do tema em suas leituras. Uma discussão sobre a questão do processo na obra de Snow pode ser encontrada, por sua vez, em R. Bruce Elder (2006). A questão, contudo, é debatida no texto de maneira muito breve e sem contrastar as noções de processo e estrutura, como pretendo fazer neste artigo. . O que se constata, na verdade, é que a recepção dominante de sua obra nos estudos de cinema seguiu um caminho diverso, marcado, sobretudo, por uma outra categoria que em tudo se opõe à de processo: a noção de estrutura. Michael Snow é reconhecido justamente como o grande expoente do cinema estrutural. O conceito de cinema estrutural foi introduzido no debate crítico por Adams Sitney (2000)SITNEY, P. A. Structural Film. In: SITNEY, P. A. (org.). Film Culture Reader. Nova York: Cooper Square Press, 2000., no mesmo ano da exposição Anti-Illusion, em um texto em que comenta detalhadamente seus filmes e estabelece certas diretrizes da recepção do seu trabalho. O cinema estrutural era caracterizado pelo crítico pelo formato (shape) predeterminado e simplificado do todo fílmico, que se diferenciava da estruturação orgânica que ainda era dominante no cinema experimental dos anos 1960. A noção de estrutura era utilizada no texto de maneira intercambiável com a noção de formato. A formulação de Sitney tornou-se bastante controversa na herança crítica e não há quem revisite o debate sem reconhecê-lo. A sua persistência no discurso crítico, contudo, é notável, definindo, em grande medida, os termos da compreensão dominante da obra de Snow. A noção de estrutura, entretanto, sugere um arranjo intencional de partes em um todo, organizado sob princípios composicionais. Os artistas reunidos em Anti-Illusion estavam se esforçando para se desenvencilhar justamente de uma compreensão composicional do fazer da arte. O conceito de estrutura é também um conceito estático, que descreve uma entidade sincronicamente, sem referência ao seu desenrolar no tempo, enquanto processo é um conceito dinâmico, descreve o próprio curso da mudança.

As noções de estrutura e de processo constituíam dois termos antagônicos no horizonte teórico que os participantes da Anti-Illusion: Procedures/Materials estavam situados. A oposição entre a “qualidade de objeto” e a “qualidade de processo” dos trabalhos apresentada no catálogo da exposição era reminiscente do ensaio de 1958 de John Cage, Composition as Process. O texto pretendia reconstruir a transformação por qual passou sua concepção de criação musical a partir justamente da oposição entre processo e estrutura. A noção de estrutura exprimia a procura por princípios de organização capazes de estabelecer a coerência entre as partes e o todo, constituindo a unidade de uma determinada peça musical. A estrutura desaparece na obra de Cage quando as decisões sobre a duração dos sons, das partes e das seções são deixadas indeterminadas na partitura. A partitura é concebida, então, como um texto instrucional, que determina ações cujos resultados sonoros são indeterminados. A atividade de estruturação conservava a música enquanto um objeto temporal, dotado de limites ideais, relações coerentes entre parte e todo. Quando as durações são definidas sem o recurso a um princípio de organização transcendente, os limites simplesmente desaparecem. As peças de música processual não têm inícios, meios e fins: “elas começam em qualquer lugar, duram qualquer intervalo de tempo” (CAGE, 1973CAGE, J. Silence: Lectures and Writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1973., p. 31). As peças “não são deste modo objetos preconcebidos, e aproximar delas como objetos é perder o fio da meada. Elas são ocasiões para a experiência” (Ibidem). O discurso dos curadores de Anti-Illusion recupera, portanto, uma oposição decisiva da estética cageana. A distinção entre “criar um objeto” e “criar um conjunto de condições que experienciamos como arte” (LEIDER apud MONTE, 1969MONTE, J.; TUCKER, M. Anti-Illusion: Procedures /Materials. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1969., p.10) remete, assim, ao ensaio de 1958. O mesmo pode ser dito do privilégio dado aos “atos de conceber e situar as obras”. As obras da exposição frequentemente reconheciam a situação concreta e indeterminada em que eram produzidas no espaço expositivo como uma condição constitutiva do trabalho, como é o caso de Casting, de Serra, realizado in situ a partir de esguichos de chumbo fundido no canto do chão do museu.

O campo da arte recuperou a noção de processo de Cage a partir dos anos 1960. Um dos textos paradigmáticos de uma abordagem processual da arte é o ensaio de Robert Morris Anti Form, publicado na Artforum em 1968. Antigo colaborador de Cage2 2 Sobre a colaboração entre Cage e Morris, ver JOSEPH, 1997. , Morris recupera as ideias do compositor, inscrevendo-as em um novo contexto. A noção de processo é reivindicada diante do desafio de superar o que acreditava ser a maior limitação do minimalismo: o dualismo entre matéria e formato. A escolha de formatos simples pelos artistas minimalistas não possuía uma “relação inerente com a fisicalidade das unidades dadas” (MORRIS, 1969), sendo, portanto, uma escolha arbitrária, que não respondia aos materiais escolhidos. Inspirado pelo trabalho com a materialidade da tinta sob a gravidade de Pollock e Louis, Morris pretendia conceber uma prática artística em que forma e matéria, processo de fabricação e produto fabricado, podiam coincidir sem resto. O artista partilha a recusa da compreensão do fazer da arte como ação teleológica, na qual a forma atua como “um fim prescrito” ideal (Ibidem). A arte por processos possibilitaria a ruptura com a tradição da arte europeia, que é concebida no texto como fundada em uma metafísica hilemórfica, baseada na distinção entre meios materiais passivos e formas mentais ativas. O trabalho do artista, portanto, seria menos o de imprimir uma forma numa matéria dada, do que explorar as “tendências e propriedades inerentes” dos materiais (MORRIS, 1968MORRIS, R. Anti form. Artforum, vol.6, n.8, abril, 1968. Disponível em: <https://www.artforum.com/print/196804/anti-form-36618>. Acesso em: 05 mai. 2020.
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), apoiando-se no processo natural de transformação do mundo para melhor deixar ele seguir seu curso. Os seus trabalhos com feltro do final dos anos 1960 exploram as disposições do material de deformar-se e sustentar-se sob ação da gravidade, tornando-se um exemplo privilegiado de sua proposta.

Os dois músicos participantes da exposição Anti-Illusion, Philip Glass e Steve Reich, desenvolveram, por sua vez, uma abordagem processual na qual o processo, ele próprio, torna-se audível. “O que distingue processos musicais”, acreditavam, “é que eles determinam todos os detalhes de nota a nota (som a som) e a forma geral simultaneamente” (REICH, 2002REICH, S. Writings on Music: 1965—2000. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 34). As peças de Cage não permitem que se descubra na escuta as suas regras gerativas. O ouvinte não escuta o processo enquanto ele acontece, apenas o seu resultado final. O conceito de processo de Cage se mantém restrito ao método de composição, enquanto artistas como Reich e Glass estão interessados na audibilidade do procedimento. O que procuram é um “processo composicional e uma música que fossem uma e mesma coisa” (Ibidem, p.35). No método aditivo de Glass, por exemplo, um mesmo grupo de tons é repetido sequencialmente, subtraindo uma nota e recebendo uma nova, a cada vez que ele é iterado, como em Two Pages (1969) e Music in Fifths (1969); no método de faseamento de Reich, como em It’s gonna rain (1965) e Come out (1966), ouvimos duas fontes sonoras que, de início em uníssono, passam gradualmente a sair de fase, produzindo uma série de efeitos psicoacústicos imprevistos. O caráter contínuo do processo produz uma sensação de forma-duração particularmente palpável. Na exposição Anti-Illusion, as apresentações de Reich e Glass, ao lado dos filmes de Snow e de performances de Nauman, eram chamadas de extended time pieces, em função da importância da longa duração para a fruição dos trabalhos.

A maneira como Michael Snow desenvolve sua abordagem da noção de processo é semelhante aos artistas citados. O seu entendimento do que seria a arte processual estava imediatamente vinculado com a possibilidade de o “espectador reviver o processo de feitura do trabalho”, o que era uma de suas preocupações (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 283). Formado na Escola de Arte e Design da Universidade de Ontário, o artista enveredou inicialmente pela pintura, da qual deriva uma parte considerável de seu pensamento. Nos anos 1950, realizou uma série de action paintings, os seus primeiros trabalhos relevantes. A sua trajetória como pintor é reminiscente da de outros artistas processuais, que tiveram como ponto de partida as questões postas historicamente pela pintura gestual. Em trabalhos como Blues in Palace (1960) e Secret Shout (1960) (Fig. 1), procurou “enquadrar e domesticar o gesto” (SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 65), em telas que tornavam evidente as marcas manuais do processo, assim como os efeitos da gravidade sobre o pigmento. A ênfase nos “atos de conceber e situar as obras” em detrimento da “qualidade de objeto” dos trabalhos torna-se central a partir de um grupo de propostas tridimensionais que realizou ainda no final dos anos 1950, proposições que eram “tanto pintura quanto escultura” (Ibidem, p. 65), como Quits e Shunt (Fig. 2), que questionavam a natureza convencional de ambos os gêneros pelo modo como são posicionadas no espaço. Os trabalhos realizados em seguida, como First to Last (1967), Scope (1967) e Blind (1968), são, por sua vez, aparatos óticos que remetem aos dispositivos de enquadramento de Marcel Duchamp. No momento em que realizou Wavelengh, o artista não estava preocupado em investigar, como defendem comentários críticos importantes sobre o cinema estrutural, “a natureza do meio do cinema ela mesma” (KRAUSS, 1999KRAUSS, R. A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition. Londres: Thames & Hudson, 2000., p. 24), tampouco em “estabilizar uma concepção singular do cinema como uma arte moderna propriamente dita” (UROSKIE, 2014UROSKIE, A. Expanded Cinema and Postwar Art. London/Chicago: University of Chicago Press, 2014., p. 235), mas estava envolvido com uma pesquisa sobre os modos de situar as obras no espaço, assim como as maneiras de construir condições específicas de percepção pela restrição do corpo do espectador. A gênese de Wavelength dependeu de uma compreensão da sala de cinema enquanto dispositivo ótico particular, cujas regras de restrição espacial e temporal definem condições extraordinárias de percepção. Como defendeu recentemente Duarte, “o cinema, ao determinar uma extensão temporal fixa para apreensão do espectador e ao restringir o seu movimento e olhar para o quadro, surgia assim como veículo ideal” para a exploração de uma experiência de visão situada (DUARTE, 2017DUARTE, T. C. O Cinema de Vanguarda em Diálogo com as Artes Visuais (1967-1971): contrastes e paralelos em experiências brasileiras e norte-estadunidenses. 2017. 298f. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicação, Universidade de São Paulo. São Paulo: 2017., p. 57).

Figura 1
Secret Shout, Michael Snow, 1960. Óleo sobre tela, 1,32 x 1,9 m. Art Gallery of Ontario, Toronto, Canadá.
Figura 2
Shunt, Michael Snow, 1959. Madeira, tinta a óleo, 274,3 x 17,7 x 33 cm, National Gallery of Canada, Ottawa, Canadá.

A incursão de Snow no cinema não partiu de um conhecimento prévio da cultura cinematográfica, tampouco de um interesse particular no meio. Os filmes realizados no final dos anos 1960 e início dos 1970 são menos definidos por uma coerência estilística geral, que por uma consistência conceitual, sustentada por uma atitude experimental que privilegia o trato com procedimentos. A sua postura em filmes como Wavelength, Standard Time, Back and Forth e La Région Centrale define-se pela redução de cada filme a um único processo dominante, que é levado a cabo de maneira atenta e paciente, deixando o filme emergir de sua aplicação sistemática. Os processos, depois de iniciados, seguem o seu respectivo curso, fazendo aparecer uma série de efeitos determinados e indeterminados. Utilizando uma metáfora reminiscente de Cage, Snow diz que seus filmes são como “uma espécie de recipiente que faz com que coisas fortuitas apareçam” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 75)3 3 Os filmes de Michael Snow são processuais e, ao mesmo tempo, cuidadosamente controlados. A indeterminação tem uma função limitada em sua compreensão da processualidade, mas, ainda assim, tem um papel importante. Cito, por exemplo, o caráter indeterminado das panorâmicas multidirecionais de La Région Centrale: “Na locação, eu filmei o total de quatro horas, tendo nunca realmente visto o efeito do movimento de câmera até o laboratório em Montreal retornar para mim o filme revelado” (SNOW, 2015, p. 311). . A redução das principais decisões formais de um filme a uma única proposta conceitual se exprime na forma de um processo cuja condução se apoia menos em escolhas locais, parte a parte, do que na decisão global a respeito do todo, descentrando a importância da montagem que, para a maioria dos cineastas da vanguarda americana, era conduzida compositivamente, com precisão na escala do fotograma. Os procedimentos com que se ocupa são concebidos em função da materialidade com a qual trabalha: os seus processos exploram a luz como “material” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 282), tomando-a como fenômeno físico, como sugere o título do seu filme: Wavelength. O procedimento pretende modular a incidência luminosa de modo a revelar suas propriedades, antes que submetê-la a uma forma. Os processos de feitura de Wavelength e Back and Forth são, contudo, tão conspícuos quanto falseados no filme. A continuidade de seus processos constitutivos o zoom e a panorâmica são construídos na edição, embora sugiram uma tomada única. A experiência do espectador é a de se encontrar, no entanto, durante o seguimento de um processo, que realiza a si mesmo continuamente, sem nunca acelerar ou retardar seu ritmo. Os seus filmes resolvem a seu modo, assim, uma das grandes preocupações da arte processual: mostram o processo antes de toda forma, seguindo seu curso, em seu inacabamento constitutivo.

Processos graduais

A primeira exibição pública de Wavelength aconteceu no festival de cinema de Knokke-le-Zoute, em dezembro de 1967. Em uma declaração sobre o filme dada na ocasião, Michael Snow afirmou a centralidade do trabalho na sua obra como um todo:

Eu queria fazer um somatório do meu sistema nervoso, minhas intuições religiosas e minhas ideias estéticas. Eu estava pensando em projetar um monumento de tempo em que a beleza e a tristeza da equivalência fossem celebradas

(SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 123).

O filme pretendia, ainda, ser uma “declaração definitiva” do tempo e espaço do cinema em estado puro: um “equilíbrio entre ‘ilusão’ e ‘fato’” (Ibidem). A grandeza das ambições se contrasta, contudo, com a simplicidade da descrição do filme: o trabalho consiste em um único “zoom contínuo, que leva 45 minutos para ir do seu campo mais aberto para o mais fechado” (Ibidem). O discurso do cineasta parece sugerir que todas as suas preocupações artísticas poderiam convergir para um único e mesmo ponto: o zoom. O zoom é um procedimento que modifica a distância focal do sistema ótico da câmera. A variação progressiva aumenta a capacidade de convergência dos raios luminosos do sistema. Ele revela a maneira como a luz impressa na película varia pela mudança de um único parâmetro do aparato. O zoom de Wavelength é um processo virtualmente contínuo, que progride lenta e gradualmente, em um ritmo uniforme. O que o filme pretende nos mostrar é, portanto, o zoom em processo: as transformações que se revelam durante o seu desdobrar contínuo.

A câmera encontra-se fixa durante o filme todo, no interior do que parece ser a sala de estar de um apartamento amplo. O que vemos no fundo da imagem são quatro janelas altas, que mostram a rua do outro lado, primeiramente de dia, depois à noite. A descrição mais comum do trabalho é a de que o filme consiste em um longo “movimento adiante” do zoom pelo ambiente (MICHELSON, 2015MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015., p. 183). A descrição, contudo, é imprecisa, porque o progresso do zoom não é, propriamente, um movimento adiante: o zoom não oferece uma experiência visual equivalente ao deslocamento do corpo da câmera pelo espaço físico (WEES, 1981WESS, W. C. Prophecy, Memory and the Zoom: Michael Snow’s Wavelength Re-Viewed. Cine-tracts, no. 14/15, verão-outono, 1981.). A singularidade irredutível do zoom se torna perceptível, por exemplo, quando atentamos para o fato de que a velocidade de aproximação do ponto de vista da câmera é, estranhamente, muito maior que a velocidade de contração das bordas da imagem (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 74). O zoom consiste, na verdade, em uma transformação global do espaço visual, cujas características não possuem um fenômeno correspondente na visão humana4 4 A singularidade irredutível da experiência do zoom estava entre as principais preocupações de Snow: “o que me interessa a respeito do zoom é que ele é uma coisa que a câmera faz que nós não podemos fazer com nossos olhos” (SNOW, 1994, p.74). . O zoom é um processo de mudança de um único fator do sistema ótico da câmera, mas que resulta na variação de ao menos quatro parâmetros diferentes da imagem projetada. Os três primeiros parâmetros são bastante evidentes: o campo de visão da câmera, a proximidade do ponto de vista e as dimensões reais das figuras projetadas na tela. O quarto parâmetro notamos provavelmente apenas durante o progresso do filme: as distâncias relativas entre os objetos no espaço representado. O zoom conduz, assim, respectivamente, quatro transformações distintas, mas integradas, da totalidade da imagem: a abertura contínua do campo de visão, a aproximação progressiva do ponto de vista, a ampliação da escala das figuras e o aplanamento, gradual e contínuo, da imagem como um todo, que contrai, progressivamente, a sua profundidade ilusória. As quatro transformações são aspectos interdependentes de um único e mesmo procedimento, a manifestação de um único processo: o próprio zoom.

A herança crítica de Wavelength, na maioria das vezes, reconheceu o zoom como a estrutura formal do filme (SITNEY, 2002______. Visionary Film: the American Avant-garde. New York: Oxford University Press, 2002a.). A divisão do filme em partes é realizada, na verdade, por elementos cênicos, cromáticos e sonoros, que oferecem uma estruturação mínima a um filme que, de outro modo, consistiria apenas na fluência constante e inalterável do zoom. O som é o principal fator estrutural do filme, porque ele é quem divide o trabalho em partes diferenciadas. O epílogo é definido pelo uso contínuo do som direto sincronizado, que depois será parcialmente abandonado. O fim do epílogo é marcado, ainda, pelo som: trata-se do momento de entrada de um drone contínuo, que permanece até o fim do filme. O som manifesta um processo gradual, análogo ao zoom: um inquietante zumbido metálico, que toca progressivamente de 50 hertz a 12000 hertz. O retorno do som direto terá a função de marcar os acontecimentos que têm lugar no apartamento. Os “acontecimentos humanos” do filme (SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 129) são fragmentos de um thriller tão intrigante quanto barato: em uma cena, vemos entrar no apartamento um homem desconhecido, que é assassinado misteriosamente no local; momentos depois, uma das personagens retorna e encontra o corpo, ligando, em seguida, para a polícia; no fim, ouvimos uma sirene tocar no fora de campo, sugerindo que os policiais podem estar a caminho. As ocorrências permitem a inferência de uma narrativa dotada de uma organização causal mínima. As interpretações dos atores, um tanto fora do tom, e o conteúdo paródico das cenas sugerem que os acontecimentos são apenas efeitos de superfície, que o verdadeiro enigma encontra-se, na verdade, em outro lugar. O zoom consiste em um único processo contínuo, que recusa toda divisão em partes diferenciadas. A sua característica mais distintiva é a “isomorfia da parte e do todo” (MICHELSON, 2015MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015., p. 187). Ele é um processo autocontido, que não possui partes distintas de si mesmo: as suas partes são sempre, elas mesmas, um zoom. O zoom, portanto, é um processo que não se desenvolve, na medida em que não progride por etapas heterogêneas; ele apenas cresce, se prolongando indefinidamente.

Uma das características mais marcantes do processo é a sua vetorização: ele é um vetor, que se dirige desde sempre em uma direção determinada, sem nunca receder ou desviar. O seu caráter vetorizado foi, frequentemente, interpretado pela crítica sob a forma da finalidade. O avanço do ponto de vista sugeriria um movimento em direção a “um destino final” (MICHELSON, 2015MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015., p. 182), criando no espectador “um limiar de tensão, de expectativa” (Ibidem); “somos manipuladas em direção a uma finalidade, em direção da resolução” (GIDAL, 1976GIDAL, P. (org.). Structural Film Anthology. Londres: British Film Institute, 1976., p. 48). O espectador se encontraria, então, capturado em um jogo de suspense mínimo, reduzido à interrogação de uma única finalidade pontual. Wavelength apresentaria, assim, “uma metáfora imponente para a forma narrativa” (MICHELSON, 2015MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015., p. 185). A vetorização, no entanto, implica menos em um destino último, que um curso necessário, do qual nunca poderemos divergir. O processo segue o curso decididamente, sem se antecipar, nem se adiantar, em um ritmo inalterável, tomando completamente as rédeas do futuro. A consciência do percurso é mais acentuada que a expectativa diante do destino último: “o espectador tem algo como a clara impressão de onde exatamente ela está em referência ao início e fim do filme: uma experiência profundamente perturbadora” (LAMBERTON apud SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 129). O filme não deveria ser celebrado, portanto, por “reintroduzir a expectativa no núcleo da forma cinematográfica” (MICHELSON, 2015MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015., p. 185), mas por ter dado a ela toda uma outra função. Ele, sem dúvida, institui um jogo de suspense, em que a suposição do espectador a respeito da possível existência de um ponto final tem um papel importante, mas a nossa espera pelo seu desvelamento é suficientemente prolongada para que nossa atenção se desloque do fim para o processo. A revelação final sequer pode ter propriamente a forma de uma surpresa, na medida em que se encontra inscrita desde o início no curso natural do procedimento. O filme nos promove, antes de tudo, uma experiência da cursividade.

Qual o sentido de seguir o curso de um processo gradualmente quando sabemos a sua direção? O gradualismo é uma característica partilhada pelos filmes de Michael Snow e as peças musicais de Steve Reich. Os modos de atuar dos dois artistas se desenvolveram de maneira correlacionada e movida por admiração mútua5 5 Ver a apreciação crítica de Reich de Wavelength em REICH, 2002, p. 36 – 37. , de modo que é oportuno recorrer à formulação de “processo gradual” do compositor para compreender Wavelength. A noção de processo gradual pretende caracterizar, a partir de 1965, seus trabalhos em que o acúmulo contínuo de mudanças graduais conduz a uma transformação qualitativa do material sonoro:

Por ‘gradual’ eu quero dizer extremamente gradual’; um processo acontecendo tão lentamente e gradualmente que escutá-lo se assemelha a assistir ao ponteiro do minuto do relógio você percebe ele se movendo apenas depois de ter estado com ele por um momento

(REICH, 2002REICH, S. Writings on Music: 1965—2000. Oxford: Oxford University Press, 2002., p.36).

A ideia de instaurar processos que se desdobram contínua e gradualmente exprime o esforço em tornar perceptível o movimento de autocriação do próprio processo, que se desvela progressivamente em seus mínimos detalhes, na medida em que se desdobra. O gradualismo implica uma forma de temporalização particular do material cinemático e musical. Os processos graduais persistem e duram no tempo: nos situamos durante seu curso, ouvindo o processo enquanto ele está acontecendo. A gradualidade acentua no ouvinte a consciência de que o processo não deixa nunca de se fazer presente, que ele não se interrompe, nem se apressa. “Ouvir e tocar música de processos graduais se assemelha a […] virar uma ampulheta e assistir a areia lentamente correr em direção ao fundo” (REICH, 2002REICH, S. Writings on Music: 1965—2000. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 35). A música de Reich possui, em geral, um sentido claro na verdade, deliberadamente óbvio — de direção, que encontramos em filmes como Wavelength e Back and Forth.

A faculdade fundamental do espectador de Wavelength torna-se, antes que a expectativa, a atenção ao que se faz presente: nos termos do músico, uma “atenção contínua” (sustained attention) à atualização do processo (REICH, 2002REICH, S. Writings on Music: 1965—2000. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 35). “Mesmo quando todas as cartas estão na mesa e todo mundo escuta o que está gradualmente acontecendo num processo musical, existe ainda mistérios o bastante para satisfazer a todos” (Ibidem). A previsibilidade do processo não impossibilita o surgimento de acontecimentos imprevisíveis. A sua redundância, na verdade, é o que permite que uma série de variações visuais e sonoras bastante sutis subam à superfície da percepção, realçadas pelo fundo redundante do processo. Os mistérios são, para o compositor, a manifestação de uma ordem “impessoal” (Ibidem), que não pode ser reduzida a decisões composicionais, dotadas de motivação estilística e expressiva. As imagens do ensaio, não por acaso, reforçam a percepção da música enquanto fenômeno natural, comparando-a a processos materiais, como o movimento das ondas do mar: “ouvir a música de processo gradual assemelha-se […] a pôr o pé na areia na orla do mar e assistir, sentir e ouvir as ondas enterrá-los gradualmente” (Ibidem , p. 34). A máxima de Cage de que o compositor deve “imitar a natureza em seu modo de operação” (CAGE, 1973CAGE, J. Silence: Lectures and Writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1973., p. 9) encontra-se viva na poética Reich. As transformações graduais remetem a uma certa imagem da natureza, reforçada pelas figuras de predileção do discurso do compositor: uma natureza concebida sob o signo do contínuo, como aquela imaginada por Leibniz e Darwin, cujas transformações são sempre modificações cumulativas, trajetórias que gradativamente redesenham o rosto do mundo sem nunca romper seu escoamento incessante.

A grande contribuição de Snow em Wavelength foi justamente mostrar como seria possível sustentar o movimento do filme a partir de um princípio impessoal, retirando momentaneamente a ação do artista de cena para que o processo, pela acumulação gradual de transformações diminutas, transmute a imagem radicalmente. O tempo se move, assim, a partir de um princípio gerativo indiferente tanto à ação dos personagens quanto à curiosidade do espectador. A nossa expectativa distensiona-se diante de um futuro que rapidamente aprendemos a dominar as regras, deslocando a atenção do imprevisto para o próprio desvelamento da continuidade, gradual e ininterrupto. A história do cinema tradicionalmente tendeu a enamorar-se do acontecimento, enquanto potência de desfazimento da continuidade: o acontecimento narrativo e dramático é o surgimento de uma segmentação reconhecível do curso do tempo. Ele é o que captura a atenção e o que estrutura a narrativa dramática. A sua irrupção crispa o transcorrer do tempo, tornando-se saliente em relação ao contexto temporal que o cerca. O acontecimento narrativo impõe sua presença no curso do tempo, na medida em que não pode ser inteiramente explicado pelos eventos anteriores, contendo em si uma grande dose de contingência. O cinema de processos graduais concebe o tempo, contudo, a partir da transformação difusa em vez do acontecimento focado, da transição contínua em vez da irrupção do imprevisível.

A beleza da equivalência

A noção de equivalência teve uma presença notável no discurso de Snow sobre o filme no festival Knokke-le-Zoute. O que seria a celebração da “beleza da equivalência” (SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 123)? A procura em atribuir o mesmo “grau de ênfase a todos os elementos” do filme estava entre as principais preocupações artísticas de Snow (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p.90). Em trabalhos como Wavelength, Back and Forth e La Région Central, ele procurava “construir uma espécie de equivalência de todo o campo [visual] de modo que tudo tenha absolutamente igual importância” (Ibidem). O zoom, portanto, pode-se revelar como uma maneira particularmente interessante de responder a um problema cuja origem remete, antes de tudo, à história da pintura. A apresentação de um todo internamente indiferenciado era uma preocupação de artistas próximos de Snow, como Donald Judd, Robert Morris, Frank Stella, Carl Andre e Sol Lewitt, que, como ele, também procuravam responder a certas questões da pintura modernista tardia. A obra de Jackson Pollock representava, para todos eles, um modelo de uma pintura que havia se desfeito das preocupações estruturais e compositivas, em nome de uma forma de abordar a tela enquanto uma arena para a ação gestual contingente. Uma característica marcante da pintura de Pollock, para os artistas da geração de Snow, era a sua integralidade. Como observou Clement Greenberg, o pintor tornava “todo elemento e toda área da pintura equivalente em acentuação e ênfase” (1989GREENBERG, C. Art and Culture: critical essays. Boston: Beacon Press, 1989., p. 156). As pinceladas, manchas e borrões de tinta de Pollock se distribuem sem variação demarcada, de um limite ao outro do retângulo do quadro, repetindo, a cada grão conquistado de espaço, a sua “uniformidade alucinatória” (Ibidem, p. 257). As pinturas de Pollock se apresentavam como um todo aberto internamente uniforme, um contínuo de intensidade que, sem saber como demarcar origens e fins, parecia se expandir em todas as direções, como se não pudesse se conter pelas bordas do quadro. O zoom de Wavelength permite, por sua vez, apresentar um campo igualmente integral. A escolha pelo zoom responde ao problema da distribuição equivalente de acentuação por toda a superfície da imagem. O procedimento responde, de maneira particularmente contundente, ao problema, na medida em que se trata de um processo que não ocorre localmente, mas globalmente, transformando ao mesmo tempo toda a superfície visual, sem estabelecer nenhum ponto privilegiado. O ritmo uniforme do processo apaga as marcas das divisões formais, apresentando o transcorrer no tempo como uma duração incessante, em que todos os acontecimentos parecem vibrar na mesma intensidade.

O zoom é uma forma de mediação entre grandezas opostas, uma forma de efetuar a passagem entre duas extremidades, uma maneira abrir uma zona de comunicação entre magnitudes díspares. O processo do filme representa uma espécie de balanceamento entre as suas quatro oposições centrais: a oposição entre o campo mais aberto e o mais fechado; entre a maior distância e a maior proximidade; entre o maior tamanho e o menor tamanho; entre a maior profundidade e a maior planaridade da imagem. O discurso de Snow no festival de Knokke-le-Zoute situa o filme justamente sob o signo do equilíbrio de polaridades6 6 Sobre a noção de equilíbrio no filme, ver a entrevista de Snow com Sitney (SNOW, 1994, p.51). . As quatro oposições são tratadas, naturalmente, de maneira equivalente pelo zoom. O zoom efetua um único processo correlacionado de transmutação, em que as polaridades do filme se aproximam de um ponto de indistinção. A oposição entre profundidade e planaridade, no entanto, parece ter uma importância muito maior no filme. Os dois termos representam uma oposição fundamental do debate crítico da arte moderna. A planaridade era uma qualidade da pintura que ocupou um papel fundacional no debate da crítica de arte. As pinturas de Manet, na formulação influente dada por Greenberg, podiam ser consideradas “as primeiras pinturas modernistas” em virtude justamente da “franqueza com que declaravam as superfícies planas em que estavam pintadas” (GREENBERG, 2001_______. Pintura Modernista. In: COTRIM, C.; FERREIRA, G. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de janeiro: Zahar, 2001., p. 102). A postura de Manet era interpretada como um gesto de reconhecimento das próprias condições de possibilidade da pintura: a “planaridade inelutável da superfície” pictórica (Ibidem). A dominância das qualidades planares na pintura modernista representariam o desejo da arte de investigar abertamente as suas próprias condições materiais, abandonando a dissimulação naturalista dos seus meios de representação. O que interessava a Snow, contudo, não era a recusa da profundidade volumétrica, nem a redução à planaridade, mas um esforço de “balanceamento” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 45). O seu exemplo privilegiado era, curiosamente, um pintor representacional, bastante preocupado com a solidez e o volume das formas: o cineasta encontrava, nas telas de Cézanne, o paradigma de “uma obra que tanto representa quanto é alguma coisa” (Ibidem). O modo como Cézanne dava a ver o pigmento e salientava o formato retangular da tela era uma demonstração da faticidade material do meio, que podia, ainda assim, conservar suas propriedades representacionais, comportando-se, aos olhos de Snow, como um “balanceamento entre matéria e mente” (Ibidem).

A oposição em Wavelength entre a planaridade e a profundidade da imagem podia, assim, vir a representar uma série de oposições correlacionadas: “ilusão” e “fato” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 123), “mente” e “matéria” (Ibidem, p. 14). Wavelength era, a seu modo, uma “metafísica” (Ibidem, p. 45). O que nos é dado a ver no curso do zoom é o esmaecimento progressivo da tridimensionalidade ilusória da imagem. A câmera mostra, inicialmente, uma sala vazia espaçosa, habitada por objetos maciços, uma cadeira amarela, uma estante, um aquecedor. Os personagens são corpos que entram e saem da cena, preenchendo o espaço com seus ruídos. O zoom, contudo, desde sempre, sem que possamos perceber, encontra-se nivelando a cena, achatando a profundidade volumétrica da imagem. O seu progresso é um avanço em direção ao fundo, mas é, ao mesmo tempo, a recessão progressiva da profundidade. A “beleza da equivalência” que Snow pretende celebrar não é redutível, entretanto, apenas à continuidade entre as oposições estruturais do filme. O zoom de Wavelength era uma forma de submeter o princípio de movimento do filme a um fator indiferente, tanto às expectativas do espectador quanto às ações dos personagens, de modo que Snow poderia afirmar, em sua declaração célebre em Knokke-le-Zoute, que “o cenário e a ação que têm lugar nele são cosmicamente equivalentes” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p. 40). A abordagem processual do filme manifesta, assim, uma crítica a uma concepção dramática do mundo, estruturada pelas repartições entre agente, ação, lugar e tempo. A diferença entre os acontecimentos humanos e os não humanos que têm lugar na imagem se esmaece em um único campo, que se metamorfoseia integral e equitativamente na duração.

O zoom tem, como se sabe, uma espécie de final, em que a oposição entre ilusão e fato sofre uma nova torção. Descobrimos, em meio ao fim do filme, que a câmera esteve sempre se movendo em direção a uma fotografia na parede, que apenas tardiamente fomos capazes de notar. A fotografia estava, na verdade, desde sempre se expandido, como um centro inalterável do quadro que, ampliando-se gradualmente, foi aos poucos confundindo-se com o todo. O filme chega a seu desconcertante clímax, quando as bordas da fotografia transcendem as bordas da imagem projetada, reinvertendo o primado do factual sobre o ilusório, do material sobre o mental, que o filme tinha conduzido anteriormente: o ponto de vista da câmera entra, enfim, no espaço virtual da fotografia. O grande triunfo de Wavelength talvez tenha sido o de fazer coincidir um processo contínuo e virtualmente infinito com o desenvolvimento cumulativo e a resolução climática de um suspense. O “drama” se conclui quando finalmente ultrapassamos as margens da fotografia pendurada na parede, torcendo uma outra vez as repartições entre o real e o imaginário, como quem entra, sem o saber, em um sonho dentro de um sonho. O processo do filme, contudo, não deixa de mover-se por isso de maneira independente, seguindo seu curso cegamente. A impressão que o filme de Snow nos deixa é a de que o que vemos poderia muito bem se tratar de um fragmento arbitrário, retirado de um zoom temporalmente ilimitado, que se expandiria infinitamente para ambas as direções do tempo, para o passado e para o futuro, não mais constrangido pelos limites materiais da câmera, das lentes e do espaço filmado. A fotografia pendurada na parede nos revela, não por acaso, o mar aberto: uma certa imagem do interminável.

Considerações finais

O primado da noção de processo na interpretação da obra de Snow que propus nesse artigo permitiu que questionemos alguns pressupostos do horizonte de compreensão dominante do seu cinema. A noção de cinema estrutural, como formulado originalmente por Adams Sitney, desenvolveu-se sob uma compreensão formalista da arte, na qual o fazer artístico é concebido como uma atividade essencialmente composicional, que exprimiria uma desejo de dar forma e estrutura a uma determinada matéria. O cinema estrutural cristalizou-se, assim, na herança crítica como um momento em que o cinema desejava se afirmar como uma arte autenticamente modernista, preocupada com a investigação das propriedades formais constitutivas do seu meio. Uma breve investigação da trajetória de Snow como artista e da rede de interlocutores de seu trabalho permitiu, contudo, desenhar uma outra imagem do cineasta, em que a noção de processo apareceu como decisiva para entender algumas de suas preocupações. O debate da arte nos anos 1960, desencadeada a partir do ensaio seminal de John Cage de 1958, tratava processo e estrutura como termos antagônicos, que exprimiam diferentes concepções do fazer artístico que estavam em disputa na década. As ideias de Cage e seus desdobramentos pelos artistas da Anti-Illusion: Procedures/Materials permitiam compreender o fazer artístico como uma atividade de experimentação, antes que como composição. O artista era um instaurador de processos indeterminados, antes que um compositor de formas e estruturas. A obra de arte solicitava, agora, do espectador, menos a contemplação de sua forma que uma certa ocasião para a experiência. O reposicionamento da obra de Snow nos debates artísticos dos anos 1960 permitiu um novo contexto de descrição e interpretação de Wavelength, em que foram valorizados seus aspectos processuais.

A minha investigação sobre a posição histórica de Wavelength nos debates artísticos dos anos 1960 que fomentaram a noção de processo permitiu, ainda, dar uma maior relevância e oferecer uma interpretação a duas características do zoom que não tinham recebido suficiente atenção da herança crítica: a gradualidade e a equivalência. O posicionamento do filme no contexto da música processual permitiu salientar a importância da gradualidade do processo, o que possibilitou inferir a centralidade do que chamei de experiência da cursividade para o filme, em contraposição à ideia de uma expectativa dirigida a um fim, com a qual se entreteve, como afirmei, parte da tradição crítica. O posicionamento do filme dentro do debate da pintura gestual, por sua vez, permitiu compreender a continuidade regular do zoom como uma procura pela distribuição equivalente de importância e intensidade por todo campo visual em transformação, conduzindo a uma nova interpretação da ideia de “beleza da equivalência”, uma das formulações mais conhecidas e enigmáticas do cineasta a respeito de seu filme. Este artigo pretendeu, portanto, contribuir para a renovação do debate crítico a respeito do cinema de Snow e para a revisão das ideias cristalizadas a respeito de seu cinema, por meio da recontextualização histórica de Wavelength.

  • 1
    O livro de Elizabeth Legge (2009)LEGGE, E. Wavelength. Londres: Afterall Books/ MIT Press, 2009. sobre Wavelength, por exemplo, que revisita a maioria dos debates que o filme suscitou, nem sequer toca na questão. Intérpretes importantes de sua obra, como Annette Michelson (2015)MICHELSON, A. Em direção a Snow. In: DUARTE, T.; MOURÃO, P. Cinema Estrutural. Rio de Janeiro: Caixa Cultural do Rio de Janeiro, 2015. e Adams Sitney (2002a______. Visionary Film: the American Avant-garde. New York: Oxford University Press, 2002a., 2002b)______. Michael Snow’s Cinema. In: Digital Snow. Paris: Les Éditions du Centre Pompidou, 2002b. DVD-ROM., também passam ao largo do tema em suas leituras. Uma discussão sobre a questão do processo na obra de Snow pode ser encontrada, por sua vez, em R. Bruce Elder (2006)ELDER, B. R. The Structural Film: Ruptures and Continuities in Avant-Garde Art. In: HOPKINS, D. Neo-Avant-Garde. Amsterdam: Rodopy, 2006.. A questão, contudo, é debatida no texto de maneira muito breve e sem contrastar as noções de processo e estrutura, como pretendo fazer neste artigo.
  • 2
    Sobre a colaboração entre Cage e Morris, ver JOSEPH, 1997JOSEPH, B. W. Robert Morris and John Cage: reconstituting a dialogue. October, no. 81, verão, 1997..
  • 3
    Os filmes de Michael Snow são processuais e, ao mesmo tempo, cuidadosamente controlados. A indeterminação tem uma função limitada em sua compreensão da processualidade, mas, ainda assim, tem um papel importante. Cito, por exemplo, o caráter indeterminado das panorâmicas multidirecionais de La Région Centrale: “Na locação, eu filmei o total de quatro horas, tendo nunca realmente visto o efeito do movimento de câmera até o laboratório em Montreal retornar para mim o filme revelado” (SNOW, 2015______. Sequences: A History of his Art. Barcelona. In: MOURE, G. (org.). Michael Snow – Sequences: A History of his Art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015., p. 311).
  • 4
    A singularidade irredutível da experiência do zoom estava entre as principais preocupações de Snow: “o que me interessa a respeito do zoom é que ele é uma coisa que a câmera faz que nós não podemos fazer com nossos olhos” (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p.74).
  • 5
    Ver a apreciação crítica de Reich de Wavelength em REICH, 2002REICH, S. Writings on Music: 1965—2000. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 36 – 37.
  • 6
    Sobre a noção de equilíbrio no filme, ver a entrevista de Snow com Sitney (SNOW, 1994SNOW, M. The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994., p.51).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2021
  • Aceito
    17 Set 2021
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