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Não é estranho o que uma plateia pode fazer? Arranjo interacional na final de RuPaul's Drag Race

Isn't it weird what an audience can do? The interactional arrangement in the final of RuPauls's Drag Race

Resumo

O artigo examina trechos do episódio final da nona temporada do reality show norte-americano RuPaul's Drag Race. Com a intenção de refletir sobre os processos interacionais e as tensões que se estabelecem com as lógicas midiáticas de funcionamento do programa, examinam-se marcas de operações comunicacionais e de efeitos pretendidos pelas performances das competidoras em relação aos demais participantes desse episódio de interação. A análise de Verón (2003) sobre o último debate presidencial brasileiro de 2002 é adotada como orientação metodológica e interpretativa para a exploração do material.

Palavras-Chave
Drag queens ; interação; televisão; performance

Abstract

This paper shows excerpts from the final episode of the ninth season of the American reality show RuPaul's Drag Race. With the intention of reflecting on the interactional processes and tensions that are established with the mediatic logic of the program's operation, marks of communication operations and intended effects in the performances of the competitors in relation to the other participants of this episode of interaction are examined. Verón's (2003) analysis of the last Brazilian presidential debate in 2002 is adopted as a methodological and interpretative guideline for exploring this material.

Keywords
Drag queens; interaction; television; performance

Introdução

“Bem-vindos à grande final de RuPaul’s Drag Race”. Plateia em euforia, luzes preparadas e o elenco de drag queens a postos para ser apresentado, uma a cada vez, no palco do Alex Theatre, Califórnia (EUA). Ao som de Call me mother”1 1 Apresentação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p8ds67qH1D4>. Acesso em: 10 mar. 2022. , aplausos e uma breve apresentação de abertura de RuPaul, apresentadora do programa. Assim foram os primeiros minutos do 14º episódio, que foi ao ar em 23 de junho de 2017, data que encerrava a transmissão da nona temporada do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race (RPDR) na televisão norte-americana.

O episódio, que consistia no ato final da temporada, apresentava algumas novidades em relação às temporadas anteriores do show. A que mais se destacava na montagem do programa era a dinâmica de lip sync for the crown2 2 Dublagem pela coroa (tradução nossa). , até então nova, que basicamente consistia numa batalha de dublagem que determinaria quem seria a vencedora do reality. Isso significa que, diferentemente de finais anteriores, as quatro finalistas — Peppermint, Sasha Velour, Shea Couleé e Trinity Taylor — iriam dublar em pares, e, em seguida, as campeãs de cada disputa se enfrentariam numa batalha direta pela coroa e pelo título de America’s Next Drag Superstar, além do prêmio em dinheiro no valor de cem mil dólares. A plateia3 3 A plateia está presente apenas nas finais ou em episódios com desafios específicos. De modo geral, não faz parte do funcionamento do programa. , elemento até então ausente nas gramáticas do programa, reage com aplausos e um aparente entusiasmo pela novidade ali apresentada.

Aos 20 minutos e 54 segundos, RuPaul gira a roleta que determina quem será a primeira competidora selecionada para dublar. A sorteada é Trinity Taylor, que ganha o direito de indicar a quem quer enfrentar e escolhe Peppermint. A dupla restante, Sasha e Shea, compõe a segunda dublagem da noite. A música a ser dublada na primeira batalha, desta vez sorteada por Peppermint, é “Stronger”4 4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AJWtLf4-WWs>. Acesso em: 10 mar. 2022. , de Britney Spears. A disputa é acirrada, ambas as competidoras elaboram uma performance que em um ou outro momento gera algum tipo de intercambialidade5 5 A noção de intercambialidade é adotada neste texto com base em Culioli (2010) e Fausto Neto (2018). Culioli (2010, p. 102) usa o aforismo “a compreensão é um caso particular de mal-entendido” para se referir à atividade da linguagem não apenas como troca de informações, mas também quanto às modalidades do dizer. A intercambialidade, ou troca, seria uma “situação caracterizada por descontinuidades, por fenômenos de heterogeneidade, e essa impressão de transmissão suave, transindividual, que não criaria problemas, que podemos ter em uma troca, é, na verdade, uma ilusão necessária. De fato, a cada momento estamos operando um jogo de seleção, que nos faz eliminar certos fatores que podem aparecer como fatores de rupturas” (CULIOLI, 2010, p. 53). Fausto Neto (2018, p. 14, apud CULIOLI, 2010) sugere que o processo comunicacional, seja ele interpessoal ou mediado por tecnologias, funciona em aberto, “segundo uma intercambialidade assimétrica e não-determinística”. Orientados por essa perspectiva, notamos que a intercambialidade entre o que se passa no palco e a plateia é um jogo de tentar fazer o outro responder com base em algum ato performático, lidando com a assimetria e o não determinismo da própria comunicação. com a plateia, por meio da surpresa, do aplauso ou da agitação que o elemento cênico-performativo reveal6 6 Reveal é uma espécie de revelação, um elemento surpresa na performance. Pode ser, por exemplo, um novo figurino, uma nova peruca etc. Adiante volto a falar mais sobre essa estratégia. , feito com suas roupas, gera, ao final, muitos aplausos e membros da plateia em pé. Peppermint é declarada por RuPaul como a vencedora da primeira batalha. RuPaul se despede de Trinity, dizendo a ela que “esta não foi a sua vez”.

Sasha e Shea retornam ao palco aos 27 minutos. Era uma disputa esperada pela audiência, porque ambas as competidoras foram amigas próximas durante toda a temporada do programa. Desta vez, não houve sorteio de música, a opção restante era “So emotional”7 7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0YjSHbA6HQQ>. Acesso em: 10 mar. 2022. , de Whitney Houston. Ambas assumem as posições de dublagem. A música começa e Shea assume uma performance com movimentos de dança, coreografia rápida, com vários giros e movimentos de braços. Sasha, por outro lado, envereda por uma dublagem mais teatral, com reveals de pétalas de rosa que vão sendo utilizados ao longo da música, em doses calculadas. Isso cria um ambiente de expectativa na plateia, que a cada reveal de Sasha reage com aplausos e muitos gritos. Por fim, no refrão da música, Sasha chega ao ápice de sua apresentação e tira a peruca ruiva, com pétalas de rosas caindo enquanto ela mantém a dublagem. O público tem uma reação imediata, em êxtase, fica em pé e aplaude. A vitória de Sasha é iminente, tendo em vista a resposta do anfiteatro. Por fim, RuPaul declara Sasha Velour como vencedora.

O programa segue em direção à última dublagem. Peppermint e Sasha dublam “It’s no right, but it’s okay”8 8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6J538b-OLRU>. Acesso em: 10 mar. 2022. , também de Whitney Houston. Ao que parece, a atmosfera da plateia era de já esperar uma performance de Sasha à altura do que havia acontecido poucos minutos antes. Peppermint opta por movimentos já conhecidos e pelo uso de alguns artifícios, como brilhos e elementos do vestido. Sasha, com uma máscara tirada logo no início, parte para uma dublagem mais afeita à interpretação da música e menos ao uso de outros recursos, diferentemente da apresentação anterior. Por fim, Sasha é declarada a vencedora da dublagem, e, portanto, da temporada.

O caso sintetizado acima aponta para um episódio comunicacional em que um conjunto de processos, acionados por diversos atores, interferem diretamente nos modos de funcionamento do programa. Com base no relato e na descrição, este texto explora as condições que constituem esse episódio de interação (BRAGA, 2011______. Dispositivos interacionais. Encontro Anual da Compós, v. 20, p. 1-15, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/2HepIhA>. Acesso em: 12 mar. 2022.
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; 2017BRAGA, J. L. et alli. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande: EDUEPB, 2017.), bem como o modo como atos performativos das competidoras tensionam as gramáticas do reality show. Há, no Brasil, vasta produção acadêmica voltada para os modos de funcionamento da televisão e, nesse sentido, afiliado a esse campo de estudos, este texto objetiva investigar as lógicas do meio televisivo, sobretudo as maneiras como estas se dão em um contexto de midiatização. Com isso, propomo-nos a colaborar com essa biblioteca de pesquisas conforme observamos as dinâmicas de interação afetando as lógicas televisionais em questão. De modo geral, a compreensão do caso tem inspirações metodológicas e interpretativas na análise realizada por Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003. sobre o último debate eleitoral brasileiro de 2002.

A ideia de performance acionada ao longo do artigo tem como base as proposições de Richard Schechner (2003SCHECHNER, R. Performance theory. [S.l.]: Routledge, 2003.; 2010______. Between theater and anthropology. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2010.; 2017)______. Performance studies: an introduction. [S.l.]: Routledge, 2017., Taylor (2013)TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013., Amaral, Soares e Polivanov (2018)AMARAL, A.; SOARES, T.; POLIVANOV, B. Disputas sobre performance nos estudos de Comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 41, p. 63-79, 2018., Soares (2021)SOARES, T. Abordagens teóricas para estudo da teatralidade em performances midiáticas: dramas, roteiros, ações. Alceu, v. 21, n. 43, p. 210-227, 2021.. No sentido proposto por Schechner (2017)______. Performance studies: an introduction. [S.l.]: Routledge, 2017., performances são comportamentos restaurados, que envolvem ensaio e prática: porções de comportamentos culturais apreendidos — da vida cotidiana, ritos até as artes — e que só podem ser pensados por meio da especificidade em que acontecem. Para Schechner (2010______. Between theater and anthropology. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2010.; 2017)______. Performance studies: an introduction. [S.l.]: Routledge, 2017., a única distinção entre uma performance no sentido teatral e uma da vida ordinária seria o enquadramento social na qual ela se dá. De modo geral, essa noção tem como princípio a ideia de performance enquanto ação, interação e relação (SCHECHNER, 2017______. Performance studies: an introduction. [S.l.]: Routledge, 2017., p. 4). Próxima a esse ponto de vista, Diana Taylor sugere que “performances também funcionam como atos de transferência vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social” (2013, p. 27).

As gramáticas televisivas e o dispositivo de distorção nas eleições de 2002

Segundo Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., é após a Segunda Guerra Mundial que a televisão se instala com força na conjuntura social. Fausto Neto (2008)______. Fragmentos de uma analítica da midiatização. Matrizes, São Paulo, USP, v. 1, n. 2, p. 89-105, abr. 2008. lê processos como esse, de estreitamento do vínculo entre o social e o meio televisivo, como algo que integra o que veio a ser notado como uma centralidade dos meios de massa na organização de processos interacionais da sociedade. À percepção de meio, Verón (1997)______. Esquema para el analisis de la mediatización. Diálogos, Lima, n. 48, p. 9-17, 1997. Disponível em: <https://comycult.files.wordpress.com/2014/04/veron_esquema_para_el_analisis_de_la_mediatizacion.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2022.
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já destacava como a condição de acesso plural às mensagens e à economia discursiva do mercado midiático difere do acesso aos sentidos das mensagens.

Na economia discursiva da mídia, propõe Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., a televisão tem uma maneira específica de organização, com sua grade de horários e modos de enunciação. Segundo o autor, “a grade de televisão (organizada a partir dos interesses e características das audiências) é articuladora da instituição televisiva com a cotidianidade da família, pois estrutura a oferta da televisão e do mercado publicitário que a sustenta” (p. 264). E continua: “A televisão converte, assim, ao passo da segunda metade do século XX, em operadora midiática consagratória da sociedade do consumo e da sociologia da família” (VERÓN, 2013______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., p. 264).

Diante da proporção que a midiatização toma enquanto processo interacional de referência (BRAGA, 2006BRAGA, J. L. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, v. 5, n. 2, p. 9-35, 2006.), implicando em um “afetamento social por lógicas midiáticas” (ROSA, 2019ROSA, A. P. da. Imagens em espiral: da circulação à aderência da sombra. Matrizes, v. 13, n. 2, p. 155-177, 2019., p. 156), o que se desenha é um cenário em que Fausto Neto (2010) indica uma complexificação de modos de interação entre meios e tecido social. Nesse sentido, com a popularização da internet muito se falou sobre o “fim da televisão”, mas Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276. considera que:

A explosão da internet provocou — entre muitas outras coisas — uma discussão recente sobre o 'fim da televisão', na qual tive o prazer de participar. No que me diz respeito, a questão do fim deve ser levantada em relação ao que chamo de televisão histórica [...]. Acho que essa configuração específica está fadada à extinção. Não ocorreu a ninguém prever o fim do audiovisual: o que entrou em crise na primeira década do novo século é a televisão tal como a conhecemos ao passo da segunda metade do século passado, a saber, uma instituição (pública e privada) consagrada a produção e ao broadcasting de gêneros audiovisuais destinados a ser consumidos no espaço privado da família, e habilitado não somente a determinar as características da oferta senão, também, através da grade de programas, a definir as condições de consumo

(VERÓN, 2013______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., p. 266).

Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276. elabora três etapas do que chama de televisão histórica, a serem compreendidas como configurações específicas, variando conforme o contexto e a sua inserção nas dinâmicas sociais. A primeira corresponde ao ingresso do dispositivo televisivo no tecido social, sobretudo a partir dos anos 1950. Já na segunda, em meados dos anos 1980, a televisão se constitui como uma instituição interpretante essencial na sociedade (o que tem relação, principalmente, com a sua diversificação de oferta). Por fim, a terceira etapa da televisão histórica seria marcada por “uma configuração complexa de coletivos definidos como exteriores à instituição televisão e atribuídos ao mundo não mediatizado do destinatário” (VERÓN, 2013______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., p. 269).

É na terceira configuração da televisão histórica, segundo o autor, que os reality shows aparecem como um indício de uma tentativa de articulação dos coletivos de receptores aos modos de funcionamento da televisão. Nesse cenário, a televisão se vê numa nova configuração, em que produtores e receptores se contatam com mais facilidade (FAUSTO NETO, 2006______. Midiatização – Prática social, prática de sentido. Trabalho apresentado no GT Políticas e Estratégias de Comunicação. In: Encontro Anual da Compós, 15, 2006, Bauru. Anais [...] Bauru: Unesp, 6 a 9 de junho de 2006. Disponível em: <https://proceedings.science/compos/compos-2006/papers/midiatizacao--pratica-social---pratica-de-sentido>. Acesso em: 11 mar. 2022.
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; 2010______. A circulação além das bordas. In: FAUSTO NETO, A., VALDETTARO, S. (Orgs.). Mediatización, sociedad y sentido, Anais do Coloquio del Proyecto “Mediatización, sociedad y sentido: aproximaciones comparativas de modelos brasileños y argentinos”. Programa de Cooperación Científico-Tecnológico MINCYT-CAPES 2009-2010. Universidad Nacional de Rosario. p. 2. 2010.), sobretudo por meio da internet e de novas dinâmicas de contato entre atores sociais, meios e instituições. Verón (2013, p. 274)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276. sublinha que “nesta terceira fase, o enunciador-televisivo decola da instituição televisão ao coletivo, e o articula ao mundo do receptor: o Big Brother põe em cena uma semiótica do vínculo social cotidiano, extramidiático”.

A noção desenvolvida compreende que a televisão assume certa postura de proximidade em relação aos telespectadores — utilizando o exemplo do reality Big Brother. Também destaca que a televisão incorpora o componente que faltava para o formato dos reality shows: “os interpretantes do receptor vistos a partir da produção” (VERÓN, 2013______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., p. 275). Se alguns especialistas falavam sobre o fim da televisão, Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276. relata essa aproximação com os telespectadores como uma espécie de tática de sobrevivência desse meio (se a questão fosse de fato seu desaparecimento). Nesse sentido, Fausto Neto (2019, p. 41)______. Discurso de posse do novo presidente: vínculos, imaginários e coletivos. In: CASTRO, P. C. (org.). Midiatização e reconfigurações das democracias representativas. Campina Grande: EDUEPB, 2019. aponta que “um dispositivo de mediação como a TV perde papel de protagonista na gestão de vinculante atual entre instituições e atores sociais. A ‘revolução do acesso’ de caráter digital faz emergir novas lógicas e protocolos de contatos”, o que marca, de fato, novas dinâmicas de interação.

O que até aqui vem sendo acionado neste texto como arranjo interacional (BRAGA, 2011______. Dispositivos interacionais. Encontro Anual da Compós, v. 20, p. 1-15, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/2HepIhA>. Acesso em: 12 mar. 2022.
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; 2017______. Circuitos versus campos sociais. In: MATOS, M. A.; JANOTTI JUNIOR, J.; JACKS, N. A. (org.). Mediação e midiatização: Livro Compós 2012. Salvador/Brasília: UFBA/Compós, 2012.) que desloca a gramática de funcionamento do reality tem base na percepção de Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003. sobre o último debate televisionado na corrida eleitoral brasileira de 2002. O autor identifica uma série de operações da mídia de desconstrução da interação entre candidato e eleitor indeciso, responsável por realizar perguntas:

Alucinante dispositivo de distorção da pragmática da conversação, cuja tendência é cortar qualquer ressonância enunciativa que poderia ser produzida entre os atos de comunicação, alienando o enunciador da sua relação com seus próprios enunciados e com os enunciados do outro. Esse dispositivo gerou um tipo de pressão permanente destinada a deixar de fora da situação qualquer fenômeno que pudesse resultar da relação enunciativa entre os participantes

(VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 160).

Apesar disso, ao longo de 1 hora e 50 minutos de duração dos quatro blocos do programa que foi ao ar pela Rede Globo de Televisão, a enunciação toma lugar e os modos de contato previstos pelo dispositivo televisivo (que afastavam a interação entre os interlocutores ali envolvidos) são transgredidos (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003.).

A dinâmica de funcionamento do programa, em que perguntas e respostas pouco ou nada permitiam de intercâmbio entre o público presente e os candidatos à Presidência Lula e Serra, em alguns momentos acabou cedendo à enunciação. Nesse sentido, o quarto bloco do programa é, talvez, o que indique com mais clareza o modo como se dá esse arranjo de interação. A segunda pergunta realizada nesse bloco, por uma senhora de Viamão, Rio Grande do Sul, tem como tema a inflação. Iniciando, Serra em sua resposta “destaca como fator central, a seu ver, para evitar a inflação, a responsabilidade dos governos, e refere-se, sem entrar em detalhes, preparando o enfrentamento que busca, a ‘programas irrealistas’” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 169). Lula, em sua resposta, “lembra a sua luta política como sindicalista contra a inflação e conclui evocando a responsabilidade mostrada pelas prefeituras do PT nesse campo” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 169). Serra, na possibilidade de tréplica, “ataca, mais uma vez, no momento de encerrar o assunto, anunciando uma observação dirigida a Lula ‘com todo o respeito’: o governo do Rio Grande do Sul tem o maior déficit de todos os estados brasileiros em seu orçamento” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 169). Enquanto isso, “vê-se Lula, com papéis na mão, disposto a intervir ante esse novo ataque indireto” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 169). [O mediador] Bonner, interferindo, descreve Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., antecipa que a questão seguinte será sobre o mesmo tema. “Lula recorre então a uma operação de ‘mudança de nível do discurso’” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 169, grifos nossos).

Quanto à questão de saber se os esforços para manter a inflação baixa darão ou não frutos, ele diz, dirigindo-se claramente ao mediador, que esses esforços terão primeiro que dar frutos, porque ‘você, que está acompanhando, sabe que sou a única possibilidade que o Brasil tem de construir um pacto social...’. Diante dessa manobra, Serra é obrigado a deixar de lado a questão sobre baixar as taxas de juros, e em seus 45 segundos de resposta à pergunta de Bonner, limita-se a observar que jamais teria arrogância de dizer que sua candidatura é a ‘única possibilidade’, mas que é ‘a melhor’

(VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 170, grifos nossos).

Essa dinâmica de interações ameaça a lógica do programa, que não previa conversações entre os candidatos. Sair dos enunciados, fechados em suas possibilidades, em direção à enunciação, e, como diria Barthes (1977, p. 20)BARTHES, R. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 1977., na direção de assumir um “halo implicações, de efeitos, de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes” se dá, ao que parece, pelos recursos discursivos utilizados pelos candidatos nesse espaço de enfrentamento. A percepção de Verón (2003, p. 174)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003. sobre o dispositivo de “distorção da comunicação e de deslocamento das articulações entre informação e discurso político” tem a ver com a complexidade do funcionamento da televisão, e nesse caso os modos de enunciação ali operados dão corpo a uma dinâmica interacional na qual a lógica da mídia (BRAGA, 2015______. Lógicas da mídia, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A.; ANSELMINO, N. R.; GINDIN, I. L. (org.). CIM – Relatos de Investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário: UNR Editora, 2015.), que tentava impedir qualquer troca, perde o protagonismo da atividade comunicacional.

Mais de uma década separam as gramáticas da televisão dos anos 2000, quando há o debate de Lula e Serra, e as da televisão em que ocorre a final da nona temporada de RPDR. Pedroso (2015)PEDROSO, D. S. Interações entre a televisão e o telespectador na sociedade em vias de midiatização: um estudo de caso do quadro a Empregada mais cheia de charme do Brasil do programa Fantástico. 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Unisinos, São Leopoldo, 2015. Disponível em: <http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/3758>. Acesso em: 7 jul. 2022.
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nota que as novas condições de circulação viabilizam modos autônomos de gestão do que até então era a programação televisiva. As textualidades audiovisuais, para o autor, “escapam da grade e se transformam em discursividades disponíveis, a todo o momento, para o consumidor, num fenômeno que se delineou aos poucos” (PEDROSO, 2015PEDROSO, D. S. Interações entre a televisão e o telespectador na sociedade em vias de midiatização: um estudo de caso do quadro a Empregada mais cheia de charme do Brasil do programa Fantástico. 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Unisinos, São Leopoldo, 2015. Disponível em: <http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/3758>. Acesso em: 7 jul. 2022.
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, p. 112), transformando o tempo que separa a oferta e o consumo. Há aí, segundo o autor, outros modos de interação entre o meio televisivo e seus telespectadores.

Nesse sentido, Pedroso (2015, p. 117)PEDROSO, D. S. Interações entre a televisão e o telespectador na sociedade em vias de midiatização: um estudo de caso do quadro a Empregada mais cheia de charme do Brasil do programa Fantástico. 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Unisinos, São Leopoldo, 2015. Disponível em: <http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/3758>. Acesso em: 7 jul. 2022.
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assinala que além de “transformações dos protocolos enunciativos afetando as rotinas produtivas da televisão, sua identidade, suas regras, suas estratégias e seu trabalho de construção da realidade”, há o aparecimento de um novo tipo de espectador, a partir dos avanços tecnológicos dos sistemas midiáticos e das consequentes mudanças de condições de circulação das textualidades audiovisuais. Essa é uma questão que Massarolo e Mesquita (2016)MASSAROLO; J. C.; MESQUITA D. Vídeo sob demanda: uma nova plataforma televisiva. In: Encontro Anual da CompóS, 25, 2016, Goiânia. Anais [...]. Goiânia: UFG, 2016. Disponível em: <https://proceedings.science/compos/compos-2016/papers/video-sob-demanda--uma-nova-plataforma-televisiva>. Acesso em: 21 jul. 2022.
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, com base na ideia de “cultura sob demanda”, também destacam como modelos de oferta marcados pelo poder de decisão sobre um sistema de ofertas, em grande parte organizado pelas demandas dos próprios usuários. Por outro lado, esse “fluxo sob demanda” também “reconfigura[m] antigos formatos e gêneros televisivos” (MASSAROLO; MESQUITA, 2017______. Fluxos sob demanda nas plataformas televisivas: um estudo do Globo Play. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 26, 2017, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: Faculdade Casper Líbero, 2017. Disponível em: <https://proceedings.science/compos/compos-2017/papers/fluxos-sob-demanda-nas-plataformas-televisivas--um-estudo-do-globo-play>. Acesso em: 21 jul. 2022.
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, p. 19), bem como os modos de valoração simbólica dos produtos audiovisuais dentro e fora do campo de produção artística (BIANCHINI, 2021BIANCHINI, M. Empresas televisivas em disputa no Primetime Emmy Awards: Capital simbólico e consagração no campo de produção de séries ficcionais. In: Encontro Anual da Compós, 30, 2021, São Paulo. Anais eletrônicos... Campinas: Galoá, 2021. Disponível em: <https://bityli.com/LcPDJpB>. Acesso em: 21 jul. 2022.
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).

O funcionamento do RPDR

Desde 2009, RuPaul Charles apresenta o reality show norte-americano ao qual deu seu próprio nome: RuPaul’s Drag Race. Produzido pela World of Wonder e veiculado pelo canal de TV pago norte-americano VH1 (desde a nona temporada)9 9 Além de estar presente em vários serviços de streaming. , o funcionamento do reality não foge muito da lógica do que é comum nesse tipo de produto midiático. Além da versão original do programa, durante os vários anos no ar surgiram variações com ex-participantes, celebridades, especiais de Natal etc.

O reality tem uma variação no número de episódios que compõem cada temporada. Em média, uma temporada é composta de um grupo de 12 a 14 competidoras, que vão sendo eliminadas a cada episódio. Desafios de costura, dança, atuação, humor e improvisação são maneiras de testar e avaliar as concorrentes. O júri, liderado por RuPaul (que ouve as opiniões dos outros avaliadores, mas cuja decisão é sempre tomada de sua própria opinião), é composto de uma equipe fixa — Michelle Visage, Carson Kressley e Ross Matthews (que também vão se alternando) — e jurados convidados, que normalmente são pessoas em evidência na mídia. Além de ser exportado no mesmo formato para outros países, como Espanha, Itália, Tailândia, Canadá e Reino Unido, Drag Race é um dos reality shows com maior número de premiações pelo Emmy.

A carreira multimidiática de RuPaul é um elemento chave na constituição do programa. Por ser vista como uma das drag queens pioneiras na mídia, seja por suas músicas, trabalhos no mundo da moda, na publicidade e por programas de televisão, RuPaul ocupa uma posição central no reality: é uma figura simbólica capaz de julgar as diversas aptidões que uma futura superestrela drag precisa ter. As decisões mais importantes estão sempre nas mãos da própria Ru — quem sai, quem fica, quem ganha e quem perde.

RuPaul consegue mostrar, no decorrer do programa, as diferentes etapas da construção de uma celebridade dentro da indústria do mainstream. As participantes precisam: cantar, dançar, costurar, atuar, entrevistar e, ainda, construir marcas e campanhas publicitárias. Ou seja, as diferentes subindústrias da celebridade são contempladas, ainda que indiretamente, durante a competição (LANG et alli, 2015LANG, P. et alli. A construção de celebridades drags a partir de RuPaul’s Drag Race. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 38, 2015, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2015. Disponível em: <https://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/lista_area_IJ-DT6.htm>. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p. 6).

O formato do programa, no decorrer dos mais de dez anos no ar, precisou ter algumas mudanças para manter um ar de novidade, apesar de a audiência ter crescido continuamente. Uma dessas novidades é o que ocorre na final na nona temporada — a batalha de dublagem pela coroa. Apesar de a batalha de dublagem já ser uma prática integrada às lógicas do programa10 10 As batalhas de dublagens são pontos centrais no programa. As competidoras que não se saem bem nos desafios (geralmente são duas, mas podem ser mais), precisam dublar para continuar no programa. RuPaul é sempre quem decide quem teve a melhor performance. , esse novo formato de episódio final substitui alguma coisa que já não servia às expectativas dos fãs. Até então não havia uma batalha performativa entre as finalistas — a decisão sobre quem é a vencedora sempre esteve única e exclusivamente nas mãos de RuPaul, que julgava com base em performances individuais e do histórico de cada competidora. Essa lógica indicia o público presente como um agente implicado nas decisões do programa (pela sua reação ao que acontece no palco, em relação à apresentação de uma ou outra competidora).

Mudanças desse tipo podem ser encaradas como operações televisivas em direção a uma aproximação dos coletivos de telespectadores, sublinhadas por Verón (2013)______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276.. Isso significa que as gramáticas do programa foram se atualizando na medida em que a ambiência da midiatização (GOMES, 2017GOMES, P. G. Dos meios à midiatização: um conceito em evolução. São Leopoldo: Unisinos, 2017.) tratava de acentuar ainda mais uma aproximação entre os fãs e o próprio reality. Não só pela lógica da indústria, mas também por uma fala social dos fãs de RPDR que chegam ao programa, demandando uma forma específica de reação.

Ato 1: A plateia como resposta

As primeiras imagens são do palco. Ele está organizado com o que parece ser uma passarela no seu centro, que inicia numa boca gigante, com lábios vermelhos (que lembra a feição da própria RuPaul). Molduras de espelhos com glitter estão espalhadas na parte de trás do palco. A gravação começa e todas as participantes desfilam na passarela, enquanto seus nomes são anunciados. Acenam para o público, que reage, com aplausos, num claro reconhecimento das participantes. RuPaul, em sua apresentação inicial, sabe muito bem como lidar com a presença do público. Parada por alguns segundos, encarando a audiência, sabe que os aplausos só vão aumentar. Mantém um olhar de superioridade. A presença de bailarinos, enquanto dubla uma de suas próprias músicas, aumenta a resposta da plateia, com aplausos e clamores.

RuPaul, além de jurada, é apresentadora do episódio final (assim como em todos os outros). Diferentemente dos outros episódios, após cada fala espera algum tipo de reação do público presente, que podem ser aplausos, risos etc. Essa é uma estratégia de lidar com a presença física da audiência, que antes estava do outro lado da tela. É a gramática do programa, em que um fala, outro ouve e reage — e possivelmente leva também a uma reação do primeiro. Ainda que isso seja relativamente novo na configuração do programa11 11 Episódios regulares das temporadas na maioria das vezes não têm plateia, normalmente há apenas em finais ou desafios específicos. , RuPaul não tem dificuldade, afinal, já apresentou programas de televisão e sabe muito bem lidar com a resposta da audiência. Dirigir perguntas para a plateia e saber da temporalidade da resposta, abrir espaço para o riso, entre outras estratégias de conversação, são muito bem dominadas pela apresentadora.

O episódio inicia com rápidas conversas com cada uma das finalistas. Após um breve vídeo de apresentação da participação de cada competidora durante a temporada, a conversa retorna para o que acontece ao palco. Cada apresentação é seguida de uma longa salva de palmas da plateia. As perguntas de RuPaul variam de assuntos pessoais até os desafios enfrentados durante a competição. Mensagens de celebridades que assistem ao programa e torcem por uma ou outra finalista também são exibidas.

Figura 1
Palco e respostas da plateia.

A intercambialidade entre o que acontece no palco e a reação da plateia é testemunhada pelos cortes de câmera e pela captação do áudio do que se passa, sejam aplausos, risos ou brados. É importante manter essa dinâmica, porque a resposta do auditório é central para os enunciadores no palco. De maneira geral, as competidoras entendem e entram nesse jogo com a plateia, por meio de respostas que podem ou não gerar efeitos de sentido, pela surpresa, pela ironia ou pelo humor. Entre uma e outra entrevista com as finalistas, o tom da conversa e a dinâmica de troca se mantêm. A presença do público estabelece uma dinâmica com marcas conversacionais (BRAGA, 2017BRAGA, J. L. et alli. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande: EDUEPB, 2017.).

RuPaul ocupa uma posição fixa nesse momento na composição cênica do palco, sentada, com as mãos no colo, fica frente a frente com cada uma das candidatas. Centrada na sua posição de apresentadora do programa, ela detém, nos termos de Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., um poder de dinamização: é quem começa e encerra as conversas, anuncia participações via gravações fora do palco e também sabe quando se manter em silêncio para a resposta da plateia, que, por sua vez, responde com aplausos, gargalhadas ou silêncio. O jogo de câmeras é responsável por registrar cada uma dessas operações de sentido (VERÓN, 1980VERÓN, E. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix/USP, 1980.), sinalizando que RuPaul é perita (GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.) no que diz respeito à posição que ocupa de lócus de interação entre ela e as finalistas; entre palco e plateia; mas também entre o interior do anfiteatro e o exterior televisionado.

Ato 2: o palco como arena de embate

“Stronger” é uma das canções que compõem a tracklist do segundo álbum de estúdio da carreira de Britney Spears. Depois de Baby one more time, lançado em 1999, o Oops!... I did it again, lançado nos anos 2000, foi, para muitos fãs, um dos responsáveis pela consolidação da carreira da cantora na indústria pop, não só pelas letras e sonoridade, mas também pelos produtos audiovisuais que o acompanharam. Segundo Boll (2020)BOLL, J. 20 anos de “Oops!...I Did It Again”: como o disco de Britney Spears se tornou referência na música pop. GZH Música, 15/05/2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2020/05/20-anos-de-oops-i-did-it-again-como-o-disco-de-britney-spears-se-tornou-referencia-na-musica-pop-cka77k955001j015nzw9moru1.html>. Acesso em: 13 mar. 2022.
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, nas letras, vê-se uma mulher mais madura, mas sem a pretensão de ser um disco que levantasse a causa feminista, “em ‘Stronger’, por exemplo, ela fala sobre a “solidão não incomodar mais tanto, por estar mais forte” (BOLL, 2020BOLL, J. 20 anos de “Oops!...I Did It Again”: como o disco de Britney Spears se tornou referência na música pop. GZH Música, 15/05/2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2020/05/20-anos-de-oops-i-did-it-again-como-o-disco-de-britney-spears-se-tornou-referencia-na-musica-pop-cka77k955001j015nzw9moru1.html>. Acesso em: 13 mar. 2022.
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).

Nos menos de 2 minutos de duração da versão da música editada para a dublagem, Peppermint e Trinity têm modos semelhantes de ocupação do palco. Ambas vão de um lado a outro, mas ocupam a passarela do centro do palco como um espaço para onde retornam em um ou outro momento dramático da letra.

Figura 2
Configuração do palco.

O palco não tem um elemento fixo. Nele, as drag queens se movimentam livremente, de acordo com a sua performance. Assim como no caso de Lula e Serra, em que a posição do mediador jornalista era um ponto de referência no espaço de debate (VERÓN, 1997______. Esquema para el analisis de la mediatización. Diálogos, Lima, n. 48, p. 9-17, 1997. Disponível em: <https://comycult.files.wordpress.com/2014/04/veron_esquema_para_el_analisis_de_la_mediatizacion.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2022.
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), talvez um ponto fixo que não esteja no palco, mas sirva de orientação para as artistas, seja a posição central de RuPaul, que está sentada em frente ao centro do palco, junto da plateia. Talvez por isso esse seja o lugar para onde o olhar é mais atraído.

Trinity utiliza o recurso do reveal antes dos primeiros trinta e cinco segundos de apresentação, junto do primeiro refrão da música. Ela tira uma parte da roupa, revelando outra peça por baixo da saia. Peppermint, por outro lado, escolhe esperar até o segundo refrão para revelar um vestido longo por baixo da saia curta que usava, quando já passou mais de 1 minuto de apresentação. Quando ela o faz, a plateia levanta e aparenta ter uma resposta mais intensa do que a de Trinity, que naquele momento já havia sido ofuscada, porque a apresentação estava terminando e a plateia ainda estava reagindo à estratégia de Peppermint. Sabemos disso porque após o segundo refrão há uma grande resposta da plateia, e a versão editada da música vai chegando ao fim — pela semelhança com o término da música em sua versão original. Pode parecer simples, mas a temporalidade das estratégias cênicas na ocupação do palco gera efeitos de sentido no público em momentos distintos, e a resposta da plateia indica qual delas foi mais efetiva em termos dramáticos e performativos. Em outras palavras, isso significa que a plateia, reagindo em maior ou menor grau, tem o poder de ali se manifestar sobre qual competidora se saiu melhor, diferentemente de quando acompanha o programa de casa, pela televisão. Fazer um reveal cedo demais pode ser uma estratégia falha. Peppermint é a vencedora.

A performance de Sasha e Shea dura cerca de 2 minutos. “So emotional”, de Whitney Houston, foi lançada em 1987 e é o terceiro single do segundo álbum da cantora12 12 “So emotional”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/So_Emotional>. Acesso em: 13 mar. 2022. . Na versão original, é uma música que dura mais de 4 minutos, mas nessa apresentação é editada para durar menos da metade. Em termos gerais, é uma música que fala sobre amor. Na letra, Whitney pergunta “não é estranho o que o amor pode fazer?”.

Shea veste uma roupa preta que lembra couro, com botas cano alto, que de certa forma facilitam seus movimentos de dança. Sasha opta por um vestido floral vermelho com luvas douradas, e traz uma rosa nas mãos. Ambas utilizam táticas de ocupação do palco semelhantes, mas em lados opostos. Enquanto Shea vai do centro ao lado direito, Sasha vai do centro para o lado esquerdo. Logo nos primeiros segundos da música, Sasha tira as pétalas de rosa que segurava, o que é explorado até o primeiro refrão da música, quando faz seu primeiro reveal e joga mais pétalas de rosa para cima, retiradas de sua luva. A plateia responde com aplausos, sinalizando que alguma coisa do que aconteceu no palco gerou algum efeito — há uma interação ali, ainda que os sentidos da performance não possam ser controlados totalmente por Sasha (VERÓN, 1980VERÓN, E. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix/USP, 1980.).

Shea opta por não fazer reveals. Já conhecida na temporada pelas suas aptidões de dança, mantém uma interpretação rica em passos de coreografia. Sasha faz um segundo reveal, retirando a segunda luva, com o mesmo movimento, antes ainda do segundo refrão. Esses movimentos de Sasha criam certa tensão, porque o segundo refrão está chegando e ela até esse ponto contou uma história: fez dois reveals, com o mesmo objeto — pétalas de rosa. O ponto alto da performance (e talvez do episódio como um todo) é o segundo refrão da música, quando Sasha, inesperadamente, faz um terceiro reveal, e tira sua peruca ruiva, enquanto rosas caem e ela dubla o enunciado “I get so emotional baby”, na voz de Whitney.

A plateia imediatamente responde ao que se passa no palco. A potência performativa do reveal de Sasha gera uma espécie de incredulidade em quem está assistindo. Há uma massa de som indecifrável, uma mistura de aplausos, vozes e protestos, sinalizando que o que Sasha ofertou performaticamente no palco em alguma medida foi compreendido pela plateia, que não mais do outro lado da tela, como foi durante toda a temporada, agora pode se manifestar.

Figura 3
Reveal de Sasha em “So emotional”.

Em outros episódios do reality, quando não há plateia, RuPaul e a bancada de jurados são os únicos a ofertar algum tipo de resposta13 13 Olhares, sorrisos, palmas etc. são algumas das respostas de RuPaul às dublagens no programa. , positiva ou negativa, à apresentação das competidoras que dublam no palco do estúdio de gravação. Independentemente do que os outros juízes na bancada acham, RuPaul é a única responsável pela decisão de quem ganha ou perde. Diferentemente disso, a reação do anfiteatro em relação à performance de Sasha (e antes dela, de Peppermint e Trinity) indicia uma tentativa das artistas de fazer o público interagir, e não uma expectativa sobre a decisão de RuPaul. Nota-se que a gramática do programa sobre quem tem o poder de decisão é deslocada pela dinâmica de interação do que se passa entre o palco e o público presente.

A terceira e última dublagem do episódio tem como trilha sonora a música “It’s no right, but it’s okay”, de Whitney Houston. Originalmente ela dura 4 minutos e 52 segundos, mas nesse caso foi editada para durar menos de 2 minutos. Lançada em 1999, ela fez parte do álbum My love is your love e recebeu, em geral, uma recepção positiva do público14 14 CARVALHO, L. “8 grandes sucessos da carreira de Whitney Houston”. In: Exame, 11/9/ 2012. Disponível em: <https://exame.com/casual/8-grandes-sucessos-da-carreira-de-whitney-houston/>. Acesso em: 13 mar. 2022. .

Sasha inicia a apresentação retirando um adereço que cobria sua boca, enquanto Peppermint ocupa o lado direito do palco, gestualizando e interpretando a música. Em menos de um minuto, Sasha retira outro adereço que cobria parte de seus olhos, e imediatamente o público reage. Via de regra, nenhuma das finalistas fazem reveals nessa última disputa pela vitória. O jogo de câmeras trata de variar entre uma e outra drag queen, mas também mostra as expressões do público em relação ao que se passa no palco, especialmente no que talvez seja o ponto principal, em que há uma espécie de pausa na música. A trilha finaliza e ambas se encontram no centro, de frente com RuPaul e com o público.

Figura 4
Reação do público na última performance.

Nos três casos, o palco se transforma num espaço de embate performativo. Em alguma medida, as três dublagens têm marcas de um exercício tentativo de interação com a plateia, o que significa dizer que os espectadores na plateia estavam envolvidos numa dinâmica com as artistas. O aplauso, ou o silêncio, comunicam, são respostas do público em relação ao que se passa no palco. O palco, assim, é estendido para todo o teatro, afinal, a plateia é tão protagonista quanto as próprias artistas.

A montagem do programa quanto ao que se passa nesse espaço é um elemento importante porque é resultado das lógicas da mídia (BRAGA, 2015______. Lógicas da mídia, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A.; ANSELMINO, N. R.; GINDIN, I. L. (org.). CIM – Relatos de Investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário: UNR Editora, 2015.). Se em outros episódios da temporada (gravados em estúdio) as câmeras focam as reações de RuPaul sobre as dublagens, nesse caso a construção do ponto de vista do programa não pode desconsiderar a reação da plateia ali presente. A gramática televisual (FAUSTO NETO, 2019______. Discurso de posse do novo presidente: vínculos, imaginários e coletivos. In: CASTRO, P. C. (org.). Midiatização e reconfigurações das democracias representativas. Campina Grande: EDUEPB, 2019.) se vê afetada pelo gesto conversacional das apresentações, que querem do público uma reação.

Ato 3: RuPaul junto da plateia

Pouco se sabe sobre a disposição do estúdio em que acontecem as gravações dos demais episódios do programa. Em algumas passagens é possível perceber que a bancada de jurados fica numa lateral do palco, para que a imagem central possa ser capturada pelas câmeras. No estúdio, RuPaul é acompanhada apenas pelos outros jurados que compõem a bancada. Já no episódio final, RuPaul senta-se junto da plateia (ainda que destacada). Atrás dela, há um grande número de pessoas. É como se a bancada, agora, tivesse centenas de jurados.

Figura 5
RuPaul posicionada no estúdio e no episódio final com a plateia.

O conselho de RuPaul que antecede a dublagem das competidoras é o mesmo de todo episódio: “Good luck and don’t fuck it up”15 15 Boa sorte e não estrague tudo (tradução nossa). . Enquanto a plateia observa atenta, reage e se manifesta sobre o que está se passando diante de seus olhos, RuPaul permanece indissolúvel ao que acontece à sua volta. É preciso manter o olhar vigilante e a postura de analista, capaz de julgar as aptidões das competidoras e não ceder ao que a plateia comunica sobre o que acontece no palco. Essa é uma performance da apresentadora que difere de quando não há a presença da plateia. Sem o público, Ru Paul não economiza reações sobre as dublagens. Com a plateia, mantém-se inexpressiva.

Ato 4: performance, reveals e a interação com o público

Como já sinalizado no texto até aqui, os reveals são estratégias performativas que buscam gerar algum tipo de efeito na plateia, normalmente de surpresa, espanto ou drama. É a repercussão dessa estratégia teatral que é o interessante: fazer o outro agir. Nos termos de Taylor (2013)TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013., pode-se dizer que esse seja um exemplo de “ato de transferência”, exatamente pela sua capacidade de transmitir. Essa é uma estratégia que muitas drag queens que trabalham em casas noturnas, bares e espaços de presencialidade sabem que isso mobiliza uma reação — quem assiste, ao ser surpreendido por uma revelação, aplaude, sorri, ri, protesta… enfim, age.

Nesse sentido, a surpresa nesse elemento performativo é o que talvez tenha deslocado o contrato de sentido (FAUSTO NETO, 1995FAUSTO NETO, A. A deflagração do sentido. Estratégias de produção e de captura da recepção. In: SOUSA, M. W. de (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995.) do programa com a plateia, afinal, o público reage. E é com essa reação que as artistas jogam. Para quem está no palco, é isso o que as câmeras precisam registrar do momento da performance. Essa lógica interacional é basicamente a transferência de ação entre artista e plateia; já as câmeras servem como um testemunho desse modo de operar das performances das artistas.

É possível identificar também que o roteiro performático (TAYLOR, 2013TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.) de Sasha, Peppermint, Shea e Trinity é encenado não só para a plateia, mas também para as câmeras. Há aí uma camada de encenação preparada para a mídia. Refletindo sobre essas questões, alguns autores enfatizam que a lógica da mídia também constitui uma camada performática, sugerindo que, nesse agenciamento, estão “mobilizados modos específicos de agir, olhar, interagir e valorar” (AMARAL, SOARES, POLIVANOV, 2018AMARAL, A.; SOARES, T.; POLIVANOV, B. Disputas sobre performance nos estudos de Comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 41, p. 63-79, 2018.; SOARES, 2021SOARES, T. Abordagens teóricas para estudo da teatralidade em performances midiáticas: dramas, roteiros, ações. Alceu, v. 21, n. 43, p. 210-227, 2021., p. 223).

O arranjo interacional (BRAGA, 2011______. Dispositivos interacionais. Encontro Anual da Compós, v. 20, p. 1-15, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/2HepIhA>. Acesso em: 12 mar. 2022.
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; 2017) entre artistas e plateia evidencia um deslocamento das regras e dos códigos do programa. De uma posição de espectadores, o público assume um papel colaborativo nas apresentações, porque o reveal, na sua temporalidade, só atinge o ápice se houver uma reação da plateia. Se RuPaul era a encarregada de decidir quem iria vencer, o que se desloca nesse episódio de interação é o seu poder de decisão, tendo em vista a reação do anfiteatro.

Comentários finais

No momento em que Lula, no último debate, interpela o mediador do programa e diz que “você, que está acompanhando, sabe que sou a única possibilidade que o Brasil tem de construir um pacto social [...]” (VERÓN, 2003______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003., p. 170), ele joga com as lógicas (restritivas) do dispositivo de contato televisivo, melhor dizendo, desloca-as. José Serra, tragado pela “força centrífuga de deslizamento para a enunciação” (VERÓN, 2013______. Seguimos en contacto? In: VERÓN, E. La semiosis social 2. Ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 261-276., p. 160), precisa responder o oponente, o que, até então, o programa tentava evitar — era preciso se ater aos enunciados, apenas. O elemento interacional nesse episódio põe em xeque as regras que faziam funcionar o dispositivo de contato televisivo, exatamente porque não previa o que Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003. assinala como uma passagem dos enunciados à enunciação.

A percepção de Verón (2003)______. O último debate: meditação sobre três desencontros. In: Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. Orgs. Antônio Fausto Neto, Antonio Canelas Rubim e Eliseo Verón. São Paulo: Hacker. São Leopoldo/RS, 2003. orienta o que se analisou no episódio comunicacional da final de RPDR. Quando, por exemplo, Sasha Velour gera um ambiente de tensão ao longo da sua performance na segunda dublagem, sobretudo pelos reveals, ela vai em direção às possibilidades infinitas de idas e vindas dos sentidos nas trocas com a plateia. Há ali um espaço em que se dão “jogos complexos de oferta e reconhecimento” (FAUSTO NETO, 2010______. A circulação além das bordas. In: FAUSTO NETO, A., VALDETTARO, S. (Orgs.). Mediatización, sociedad y sentido, Anais do Coloquio del Proyecto “Mediatización, sociedad y sentido: aproximaciones comparativas de modelos brasileños y argentinos”. Programa de Cooperación Científico-Tecnológico MINCYT-CAPES 2009-2010. Universidad Nacional de Rosario. p. 2. 2010., p. 11).

Soares (2021, p. 214)SOARES, T. Abordagens teóricas para estudo da teatralidade em performances midiáticas: dramas, roteiros, ações. Alceu, v. 21, n. 43, p. 210-227, 2021. propõe pensar a teatralidade como uma prática voltada para a ação, destacando que é o “gesto da atividade que vai desencadear um processo de comunicação por meio do qual se construirão diversas formas de engajamento”. No caso analisado, a resposta do público, incentivada pela própria apresentadora e pelas táticas performativas das drag queens, não era exatamente algo fora das gramáticas do programa. O que talvez não tenha sido previsto, no entanto, era a intensidade de resposta do público. Reação de tamanha expressividade altera a cena interacional do programa e deixa a apresentadora sujeita à cadência da situação: se antes RuPaul era a única a decidir quem venceria ou não, nesse momento ela é interpelada a concordar com a resposta do público ali presente, o que significa que o modo de operar do espetáculo é diretamente afetado pela dinâmica de interação. RuPaul poderia declarar Shea vencedora? Poderia. Mas se o fizesse, a reação do público certamente denunciaria uma artificialidade nessa decisão. Escapou à previsão do programa o modo “não determinístico de intercambialidade” (FAUSTO NETO, 2018______. Circulação: trajetos conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018.) entre artistas e plateia, que, nesse caso, se evidenciou pela força retórica (LANGDON, 2006LANGDON, E. J. Performance e sua diversidade como paradigma analítico: a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1, 2, p. 162-183, 2006.) da resposta dos que até então ali ocupavam papéis de espectadores e/ou coadjuvantes em relação àquilo que se passava no palco.

As percepções elaboradas foram guiadas pelas especificidades dos processos de interação desse micro episódio (BRAGA, 2017BRAGA, J. L. et alli. Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade. Campina Grande: EDUEPB, 2017.). Porém, sabe-se que ele mesmo se insere num processo amplo de circulação de sentidos, o que exige outros movimentos observacionais, tendo em vista a complexidade dessa questão outra. Para muitos fãs do programa, essa final de RPDR é uma virada, porque acaba influenciando outras finais do reality que acontecem depois de 2017, o que indicia que a lógica da indústria, percebendo os efeitos nos coletivos de telespectadores, trata de emoldurar esse formato de final na perspectiva de nutrir o interesse, e o amor dos fãs, pelo programa. Como canta Whitney: “não é chocante o que o amor pode fazer?”.

  • 1
    Apresentação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p8ds67qH1D4>. Acesso em: 10 mar. 2022.
  • 2
    Dublagem pela coroa (tradução nossa).
  • 3
    A plateia está presente apenas nas finais ou em episódios com desafios específicos. De modo geral, não faz parte do funcionamento do programa.
  • 4
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AJWtLf4-WWs>. Acesso em: 10 mar. 2022.
  • 5
    A noção de intercambialidade é adotada neste texto com base em Culioli (2010)CULIOLI, A. Escritos: compilado por Sophie Fischer e Eliseo Verón. Buenos Aires: Santigo Arcos, 2010. e Fausto Neto (2018)______. Circulação: trajetos conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018.. Culioli (2010, p. 102)CULIOLI, A. Escritos: compilado por Sophie Fischer e Eliseo Verón. Buenos Aires: Santigo Arcos, 2010. usa o aforismo “a compreensão é um caso particular de mal-entendido” para se referir à atividade da linguagem não apenas como troca de informações, mas também quanto às modalidades do dizer. A intercambialidade, ou troca, seria uma “situação caracterizada por descontinuidades, por fenômenos de heterogeneidade, e essa impressão de transmissão suave, transindividual, que não criaria problemas, que podemos ter em uma troca, é, na verdade, uma ilusão necessária. De fato, a cada momento estamos operando um jogo de seleção, que nos faz eliminar certos fatores que podem aparecer como fatores de rupturas” (CULIOLI, 2010CULIOLI, A. Escritos: compilado por Sophie Fischer e Eliseo Verón. Buenos Aires: Santigo Arcos, 2010., p. 53). Fausto Neto (2018______. Circulação: trajetos conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 8-40, 2018., p. 14, apud CULIOLI, 2010CULIOLI, A. Escritos: compilado por Sophie Fischer e Eliseo Verón. Buenos Aires: Santigo Arcos, 2010.) sugere que o processo comunicacional, seja ele interpessoal ou mediado por tecnologias, funciona em aberto, “segundo uma intercambialidade assimétrica e não-determinística”. Orientados por essa perspectiva, notamos que a intercambialidade entre o que se passa no palco e a plateia é um jogo de tentar fazer o outro responder com base em algum ato performático, lidando com a assimetria e o não determinismo da própria comunicação.
  • 6
    Reveal é uma espécie de revelação, um elemento surpresa na performance. Pode ser, por exemplo, um novo figurino, uma nova peruca etc. Adiante volto a falar mais sobre essa estratégia.
  • 7
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0YjSHbA6HQQ>. Acesso em: 10 mar. 2022.
  • 8
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6J538b-OLRU>. Acesso em: 10 mar. 2022.
  • 9
    Além de estar presente em vários serviços de streaming.
  • 10
    As batalhas de dublagens são pontos centrais no programa. As competidoras que não se saem bem nos desafios (geralmente são duas, mas podem ser mais), precisam dublar para continuar no programa. RuPaul é sempre quem decide quem teve a melhor performance.
  • 11
    Episódios regulares das temporadas na maioria das vezes não têm plateia, normalmente há apenas em finais ou desafios específicos.
  • 12
    “So emotional”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/So_Emotional>. Acesso em: 13 mar. 2022.
  • 13
    Olhares, sorrisos, palmas etc. são algumas das respostas de RuPaul às dublagens no programa.
  • 14
    CARVALHO, L. “8 grandes sucessos da carreira de Whitney Houston”. In: Exame, 11/9/ 2012. Disponível em: <https://exame.com/casual/8-grandes-sucessos-da-carreira-de-whitney-houston/>. Acesso em: 13 mar. 2022.
  • 15
    Boa sorte e não estrague tudo (tradução nossa).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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