Acessibilidade / Reportar erro

O turismo é uma dádiva? Uma “etnografia das trocas” e a oferta da experiência “chamada” Turismo de Base Comunitária em Anã/Santarém/Pará

Resumo

Este artigo objetiva mostrar que a experiência de turismo desenvolvida na comunidade de Anã/Santarém/Pará envolve várias relações de troca e reciprocidade, conforme a concepção de Mauss (1925/2017). Para esse autor, a dádiva é ambivalente, pois é simultaneamente, interessada e desinteressada, voluntária e obrigatória. O caráter ambivalente da dádiva foi compreendido pela noção de interesse postulada por Bourdieu (2011). A pesquisa de campo seguiu os pressupostos da pesquisa etnográfica antropológica, e o caminho metodológico foi construído a partir da concepção de Lanna (2000) sobre a “etnografia da troca”. Os dados foram coletados por observação direta e entrevistas, em dois períodos: agosto de 2016 e janeiro de 2017. Destacamos como principais resultados: a observação de cinco relações de troca entre os agentes internos e externos à comunidade de Anã, que envolvem vários tipos de “prestações”, como define Mauss (1925/2017); a interpretação do turismo como uma dádiva em ambientes sociais que ele promova a troca de bens e de sua espiritualidade de forma ambivalente; a constatação de que a comunidade não possui autonomia sobre a gestão do turismo em seu território. Consideramos que a experiência de turismo em Anã não alcançou, ainda, a condição requerida para ser considerada, de fato, de base comunitária.

Palavras-chave:
Turismo de Base Comunitária; Dádiva; Etnografia da troca

Abstract

This article intends to show that the tourism experience developed in the community of Anã /Santarém /Pará involves several relations of exchange and reciprocity, according to Mauss's conception (1925/2017). For this author, the gift is ambivalent, because it is both interested and disinterested, voluntary, and obligatory. The ambivalent character of the gift was understood by the notion of interest postulated by Bourdieu (2011). Field research followed the assumptions of anthropological ethnographic research and the methodological path was constructed from the conception of Lanna (2000) on the “ethnography of exchange”. The data were collected by direct observation and interviews, in two periods: August 2016 and January 2017. We highlight the main results: the observation of five exchange relationships between the internal and external agents from the Anã community, involving several types of “services” as defined by Mauss (1925/2017); the interpretation of tourism as a gift in social environments that it promotes the exchange of goods and spirituality in an ambivalent way; the finding that the community does not have autonomy over the management of tourism in its territory. We consider that the enterprise in Anã has not yet reached the condition required to be considered, in fact, community-based tourism.

Keywords:
Community-Based Tourism; Gift; Ethnography of exchange

Resumen

Este artículo tiene por objetivo mostrar que la experiencia de turismo desarrollada en la comunidad de Anã/Santarém/Pará involucra varias relaciones de intercambio y reciprocidad, conforme a la concepción de Mauss (1925/2017). Para este autor, el don es ambivalente, pues, es a la vez, interesada y desinteresada, voluntaria y obligatoria. El carácter ambivalente de la dádiva fue comprendido por la noción de interés postulada por Bourdieu (2011). La investigación de campo siguió los presupuestos de la investigación etnográfica antropológica, y el camino metodológico fue construido a partir de la concepción de Lanna (2000) sobre la “etnografía del cambio”. Los datos fueron recogidos por observación directa y entrevistas, en dos períodos: agosto de 2016 y enero de 2017. Destacamos como principales resultados: la observación de cinco relaciones de intercambio entre los agentes internos y externos a la comunidad de Anã, que involucran varios tipos de “prestaciones”, como define Mauss (1925/2017); la interpretación del turismo como una dádiva en ambientes sociales que promueve el intercambio de bienes y de su espiritualidad de forma ambivalente; la constatación de que la comunidad no posee autonomía sobre la gestión del turismo en su territorio. Consideramos que la experiencia de turismo desarrollada en Anã no alcanzó, aún, la condición requerida para ser considerada, de hecho, de base comunitaria.

Palabras clave:
Turismo de Base Comunitaria; Don; Etnografía del cambio

1 INTRODUÇÃO

A comunidade de Anã/Santarém/Pará está localizada na área territorial da Reserva Extrativista (RESEX) Tapajós-Arapiuns, à margem direita do Rio Arapiuns (afluente do Rio Tapajós), no município de Santarém, oeste do Estado do Pará. Desde 2008/2009, essa comunidade é anfitriã de uma experiência de turismo idealizada pela Organização Não Governamental “Projeto Saúde e Alegria” (PSA) e desenvolve várias relações de trocas/dádivas, por meio das quais estabelece alianças entre diferentes agentes sociais internos e externos à comunidade. Essas alianças criam, por sua vez, “esferas sociais” (Mauss, 1925/2017) que constituem e orientam a dinâmica social em Anã.

Importante desde logo afirmar que os agentes comunitários não têm autonomia na gestão da atividade turística em seu território. Desse modo, o turismo desenvolvido em Anã não é considerado pelos autores deste artigo como uma experiência de Turismo de Base Comunitária (TBC), embora seja divulgado como referência de turismo comunitário na Amazônia pela organização não governamental responsável por sua comercialização no mercado de viagens. Esse foi o motivo pelo qual utilizamos no título deste trabalho, a palavra “chamada”, entre aspas, para ressaltar que a experiência de turismo desenvolvida em Anã, não alcançou, ainda, a condição requerida para ser considerada, de fato, de base comunitária. Doravante, e por já termos apresentado uma justificativa preliminar para não nos referirmos à Anã como uma experiência de TBC, utilizaremos a expressão “experiência de turismo na comunidade de Anã/Santarém/Pará” todas as vezes que precisarmos citar a experiência turística desenvolvida em Anã.

Identificamos, por meio da pesquisa de campo, que algumas relações de troca estão pautadas em interesses que ultrapassam a perspectiva econômica, situando-se no plano do simbólico. Esse caráter ora interessado economicamente, ora desinteressado é o que denota a ambivalência das dádivas, pois segundo Mauss (1925/2017), embora pressuponha a ideia de um ato desprovido de interesses, o ato de doar nunca é totalmente desinteressado. Nesse sentido, como interpretamos as relações de trocas observadas no campo de pesquisa como dádivas, na perspectiva teórica de Mauss (1925/2017), utilizamos a noção de interesse elaborada por Bourdieu na “Teoria da Prática” (Rodrigues Guimarães, 2013Rodrigues Guimarães, A. C. (2013) ¿Será Bourdieu utilitarista?. Trabajo y Sociedad, 20, Verano, Santiago del Estero, Argentina. ) como aporte teórico suplementar para compreendermos, como os atos humanos podem ser interessados, e, simultaneamente, desinteressados, e quais as condições que os determinam.

Ressaltamos que o diálogo teórico com Bourdieu (2011) e os conceitos que lhe são caros de habitus e campo, nos possibilitou perceber que o estabelecimento de relações de dádivas provocadas pelo “campo” social do turismo originou a Rede Social do Turismo em Anã/Santarém/Pará.

Desse modo, definimos a experiência de turismo na Comunidade de Anã/Santarém/Pará como objeto empírico deste artigo. Os dados coletados foram interpretados a partir de um caminho metodológico elaborado pelos autores com base na concepção de Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
) sobre a “etnografia da troca”.

No escopo desse artigo, analisamos as relações de troca categorizadas em cinco ambientes: a) 1º ambiente de troca - ONG, Grupo Local Gestor de Turismo (G.L.G.T.) e turistas; b) 2º ambiente de troca - ONG e mercado; c) 3º ambiente de troca - G.L.G.T. e comunidade; c) 4º ambiente de troca - Turistas e comunidade; f) 5º ambiente de troca - pesquisadora/orientador com G.L.G.T., comunidade e ONG.

2 A NOÇÃO DE INTERESSE PARA BOURDIEU APLICADA AO CAMPO

No artigo “É possível um ato desinteressado?” Bourdieu (2011, p. 137) inicia sua análise com dois questionamentos: “Por que a palavra interesse é de certo modo interessante? Por que é importante questionar o interesse que os agentes podem ter em fazer o que fazem?”.

O autor explica que a noção de interesse, inicialmente, se apresentou a ele como um “instrumento de ruptura com uma visão encantada, e mistificadora das condutas humanas” (Bourdieu, 2011, p. 138). Posteriormente, Bourdieu (2011) afirma que a sociologia somente pode ser concebida pelo “princípio da razão suficiente” desenvolvido pelos filósofos clássicos. Ou seja, o princípio defende que os agentes podem agir de modo razoável, sem ser racionais. Isso quer dizer que, pela hipótese da racionalidade, podemos dar razão às condutas humanas, o que não significa atestar que essas mesmas “condutas tenham tido a razão como princípio”. (Bourdieu, 2011, p. 138)

Bourdieu (2011) conclui que, para a teoria sociológica, há uma razão para os agentes agirem de determinado modo. Essa razão norteia a ação humana, e é capaz de justificar porque ações aparentemente incoerentes se transformam em coerentes. Assim, a “sociologia postula que os agentes sociais não praticam atos gratuitos”. (Bourdieu, 2011, p. 138). Portanto, todos os atos são motivados. Por essa perspectiva, compreendemos que existe uma razão, uma justificativa, para que os comunitários de Anã aceitem há 10 anos, manter uma relação assimétrica com a ONG que assessora o turismo no lugar, e que ao longo desse tempo a comunidade ainda não tenha criado estratégias para assumir a autonomia da atividade turística realizada em seu território.

Nesse contexto, Bourdieu (2011) afirma que para compreendermos a ação razoável e indagarmos se é possível uma conduta desinteressada, e em quais condições ela pode ocorrer, devemos primeiro conhecer como os conceitos de habitus, campo, interesse ou illusio, e capital simbólico pode orientar nossa análise sobre a atuação de agentes sociais. Assim, apresentamos, brevemente, esses conceitos a fim de melhor percebermos as condições que geram ora um interesse, ora o desinteresse dos comunitários de Anã em relação ao objeto empírico deste trabalho.

A illusio é uma palavra de origem latina que vem da raiz ludus (jogo). Para Bourdieu (2011), a illusio é estar envolvido no jogo e pelo jogo por meio de uma “relação encantada”, por isso se acredita que vale a pena jogar o jogo. Já o interesse é querer participar do jogo. Assim, para o autor, a illusio e interesse possuem significados similares. Referem-se ao sentido do jogo.

De acordo com Bourdieu (2011) a illusio é o encatamento pelo jogo, de tal modo que somos capazes de esquecermos que estamos enredados em um jogo social, isto porque a illusio é resultado da “cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social” (p. 140). Essas duas estruturas condicionam a ação humana, e correspondem, respectivamente, ao “habitus” e o “campo”. Portanto, de acordo com o autor a illusio é imposta aos agentes, dado que já nascemos inseridos em jogos sociais, e vamos aprendendo através de “habitus” como jogar o jogo, ou seja, aprendemos o sentido do jogo na prática.

Bourdieu (2011) conceitua habitus como um “corpo socializado”, “estruturado” que absorveu as estruturas objetivas de um campo social. Para o autor, é o habitus, também denominado “estrutura estruturada estruturante”, que permite ao indivíduo estabelecer uma relação dialética com a realidade, pois é o instrumento que o agente social utiliza para perceber o mundo, e por meio do qual ele orienta sua ação no mundo.

O “campo”, por sua vez, é um universo social que possui “estruturas objetivas” e leis próprias, um “nomos”, que lhe caracteriza como um ambiente “independente de outros universos” (Bourdieu, 2011, p. 148), e por isso lhe confere autonomia em relação aos outros campos. Para o autor, as normas próprias do campo somente interessam aos agentes sociais daquele campo, assim o que é considerado fora dos padrões morais em um ambiente, não será interpretado da mesma forma, em outro ambiente social.

Nesse contexto, Bourdieu (2011) enfatiza que temos a tendência para pensar que “todas as ações aparentemente desinteressadas esconderão intenções de maximizar alguma forma de lucro” (p. 150). Contudo, a noção de capital simbólico (e de lucro simbólico) descortina outras razões para as pessoas agirem de forma desinteressada do ponto de vista econômico.

O capital simbólico são valores compartilhados pelos agentes que pertencem a um determinado campo, e só tem valor para eles próprios, como a santidade, a generosidade, a honra, o orgulho em pertencer a uma comunidade, como podemos constatar nas entrevistas com os comunitários de Anã, entre outros. Esses valores são interiorizados nos indivíduos pelo habitus e perpetuados na prática pelo “princípio de diferenciação”, que lhes permite reconhecer as suas diferenças e atribuir-lhes valor. Deste modo, em alguns ambientes sociais, esses valores adquirem maior importância na prática social do que a busca do lucro econômico, e assim criam “normas explícitas” ou “injunções tácitas” (Bourdieu, 2011 p. 151), pautadas em interesses antieconômicos.

No campo social do turismo em Anã observamos “injunções tácitas” referentes ao reconhecimento do turismo como uma atividade que gera ganho cultural, portanto, os comunitários que têm a oportunidade de contato com os turistas, manifestaram o desejo de se manterem integrados à dinâmica local da atividade turística pela possibilidade de interação cultural e, consequente, aquisição de outros valores. Exemplo disso é o aprendizado do inglês americano oportunizado pela estadia de jovens do Saint Mary´s College (California/EUA), que envia desde 2014, grupos para passar uma temporada (aproximadamente 15 dias) na comunidade de Anã.

No exemplo mencionado, os jovens americanos utilizam uma espécie de “livreto” com figuras e palavras curtas em inglês, para facilitar a comunicação com os moradores de Anã. Desse modo, os comunitários aprendem algumas palavras que são utilizadas no cotidiano da interação com os turistas, como fish, quando o almoço é peixe. Como o tempo de estadia é relativamente longo: 15 dias, observamos que além do aprendizado de pequenas palavras, ocorre uma verdadeira “comunicação entre almas” (Lanna, 2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
, p. 176), pois esse contato instaura uma amizade entre esses agentes sociais, que ultrapassa o curso da viagem, prova disso é que testemunhamos a troca de endereços eletrônicos, contas de perfis em redes sociais, e muitas demonstrações de afeto na despedida do grupo.

A conduta dos comunitários no exemplo acima, nos leva a concluir, em análise superficial, que essas pessoas cultivam habitus desinteressados, ou antieconômicos, entretanto, ao pensarmos essa realidade à luz dos postulados de Bourdieu (2011, p. 153), que afirma que “habitus predisposto ao desinteresse” só é possível em universos sociais em que essa disposição seja recompensada, somos obrigados a refletir como as condutas, aparentemente desinteressadas, dos moradores de Anã podem ser recompensadas. Apreendemos duas possibilidades: uma de ordem pessoal e outra coletiva. A pessoal é a possibilidade de um morador de Anã receber uma estadia em território americano, de um jovem envolvido na experiência citada; e a coletiva é a experiência de turismo em Anã ser referendada pela satisfação do grupo atendido, e ser indicada como uma experiência interacional de qualidade na Amazônia.

Essa análise nos mostra como o desinteresse (econômico), na perspectiva de Bourdieu, faz parte do jogo. O autor ressalta, ainda, que embora muitos ambientes sociais sejam regidos por uma “norma” do desinteresse, eles não são totalmente desprovidos de interesse, pois “por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis e camuflados” (Bourdieu, 2011, p. 152). Portanto, para o autor não existem atos desinteressados, e que os interesses sutis, de ações aparentemente desinteressadas, devem ser desvelados por meios de análises sociais cuidadosas.

3 DÁDIVA E TURISMO

A dádiva é uma ação humana relacional que cria vínculos sociais tanto amistosos, como de dependência e dominação. O ato de dar é uma ação que não se restringe à troca de bens materiais, pois para além desses bens, também envolve valores espirituais e interesses subjetivos.

Deste modo, a dádiva estimula o exercício da alteridade, pois de acordo com Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
):

. . . para dar algo adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro (por exemplo, de meu hóspede); entender em maior ou menor grau, como este, recebendo algo de mim, recebe a mim mesmo (como seu anfitrião). (p. 176)

Mauss (1925/2017) foi um estudioso sagaz e interessado na variedade dos fenômenos humanos. Após analisar os dados de campo de antropólogos contemporâneos a ele, como Malinowski e Radcliffe-Brown - haja vista que ele próprio nunca realizara pesquisa de campo - desenvolveu a noção de dádiva e aliança para explicar como a vida social se organiza e é articulada pelos agentes sociais que a vivenciam.

Nesse sentido, na obra Ensaio sobre a dádiva, Mauss (1925/2017) mostra como os atos de dar e receber, em diferentes tempos e lugares do planeta, cria a obrigação de retribuir. A dinâmica entre dar-receber-retribuir é, para Mauss (1925/2017), a base que viabiliza toda forma de sociabilidade e comunicação entre humanos. Portanto, a dádiva é um “fato social ‘total’”, que motiva a vida em sociedade. (Mauss, 1925/2017, citado por Lanna, 2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
, p. 178).

Mauss (1925/2017) explica que em função da expectativa de retribuição, o ato de dar não é um ato desinteressado, pois quem dá sempre aguarda o momento oportuno para receber o retorno, material ou espiritual, do ato praticado.

É por isso que Mauss (1925/2017) afirma que a dádiva é ambivalente, pois ao mesmo tempo em que é voluntária/ espontânea, também é obrigatória; simultaneamente interessada e desinteressada e, na concepção de Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
), útil e simbólica. Esse autor nos apresenta a dialética imanente às trocas:

A mesma troca que me faz anfitrião faz-me também um hóspede potencial. Isto ocorre porque “dar e receber” implica não só uma troca material, mas também uma troca espiritual, uma comunicação entre almas. É nesse sentido que a Antropologia de Mauss é uma sociologia do símbolo, da comunicação; é ainda nesse sentido ontológico que toda troca pressupõe, em maior ou menor grau, certa alienabilidade. Ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, de ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes. (p. 176)

A análise de Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
) evidencia três aspectos da troca: a) ela estabelece a reciprocidade entre as pessoas envolvidas no ato de dar e receber, pois quem recebe assume o compromisso moral de retribuir; b) institui regras para a comunicação entre duas almas; duas individualidades; c) define valores alienáveis entre dois seres humanos; entre duas subjetividades que se encontram e se permitem uma aproximação por meio da “oferta” de um lado, e da “aceitação”, de outro, de um “presente”.

Para Mauss (1925/2017, p. 197), as trocas podem abranger “amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras . . .” ou seja, circulação de bens, pessoas, adornos, privilégios, nomes, esmolas, comunhões, palavras, visitas, etc., uma ampla variedade de “prestações”, que podem ser de ordem material ou espiritual, possuir maior ou menor alienabilidade, e se caracterizarem como “totais” ou “agonísticas” (é o caso do potlatch dos índios do noroeste americano). A “prestação total” refere-se ao envolvimento de todo um grupo social, um “clã”, no processo de troca, como demonstração de reverência ao seu chefe. Esse, por sua vez, se sacrifica por seu grupo em batalhas que podem conduzi-lo até sua morte, por isso são chamadas agonísticas. A rivalidade do tipo agonística entre chefes de clãs tem por objetivo estabelecer hierarquia entre eles.

O mais importante na tese de Mauss (1925/2017) não foi compreender a troca como um momento de “circulação de riquezas”, mas perceber que a dádiva é responsável pela organização de diferentes “esferas sociais” (Lanna, 2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
), no momento em que estabelece “alianças”. Assim, por meio de dádivas, firmam-se alianças matrimoniais, políticas, econômicas, religiosas, jurídicas, diplomáticas, e de hospitalidade entre pessoas, comunidades e povos.

As alianças de hospitalidade são especialmente observadas no turismo, uma vez que o ato de receber alguém em sua casa, sua cidade, sua comunidade, envolve muito além de questões materiais. Ser hospitaleiro é oferecer o melhor de si; é doar-se para a harmonia da interação social; é praticar a alteridade e criar todas as condições favoráveis para o bem-estar do outro. E todas essas ações criam vínculos emocionais, criam a obrigação moral de retribuir a dádiva recebida. No entanto, embora no turismo comercial a hospitalidade seja paga, e por isso a dádiva se torna interessada economicamente, essa relação comercial também cria possibilidades de dádivas desinteressadas, ou com ganho de capital simbólico, como se pode constatar nas interações sociais entre turistas e comunitários na comunidade de Anã.

4 METODOLOGIA

Os dados analisados neste artigo foram coletados em duas imersões à comunidade de Anã, realizadas no período de 18 a 26 de agosto de 2016, e 26 a 31 de janeiro de 2017. Embora a pesquisa de campo tenha sido relativamente, breve, as ações no campo foram orientadas pelos pressupostos da pesquisa etnográfica antropológica, que na perspectiva de Geertz (1926/2015), demandam do etnógrafo a compreensão de enorme variedade de estruturas conceituais complexas, que por vezes se apresentam sobrepostas umas às outras, e que de modo simultâneo são “estranhas, irregulares e inexplícitas” (p.7), exigindo do pesquisador, primeiro sua apreensão, para posterior apresentação.

Nesse sentido, para “apreender” as dinâmicas relacionais entre agentes internos e externos à comunidade de Anã envolvidos na experiência turística, aplicamos a técnica de observação direta e entrevista em profundidade, de modo simultâneo, nas duas imersões citadas, ou seja, à medida que a observação nos ia revelando quem era quem, no “jogo social” (Bourdieu, 2011) do turismo em Anã, solicitávamos a entrevista. Assim, foram realizadas 10 entrevistas, das quais 7 referem-se às principais lideranças de Anã, 2 foram aplicadas a turistas, e 1 foi direcionada ao representante da ONG que assessora o turismo na comunidade. O quadro 1 apresenta a função de cada entrevistado na Rede Social do Turismo em Anã, bem como as outras funções que eles desempenham. Outro dado relevante presente no quadro é a sinalização de pertencimento ao Grupo Local Gestor de Turismo (G.L.G.T.).

Quadro 1
Perfil dos entrevistados integrantes da Rede Social do Turismo em Anã

A combinação das técnicas nos permitiu: a) identificar os agentes sociais internos e perceber os papéis desempenhados por cada um no microcosmo da comunidade; b) identificar os agentes sociais externos e verificar seus interesses na experiência turística, incluindo nesse grupo as entidades públicas, privadas, do terceiro setor e turistas; c) Identificar que os agentes internos e externos à comunidade, envolvidos com o turismo, estabelecem relações de troca e reciprocidade, que por sua vez abarcam “prestações”, conforme os pressupostos teóricos de Mauss (1925/2017); d) Constatar que todas as relações de troca observadas possuem interconexões que ligam os agentes em uma rede social, que é condição para que a experiência de turismo se realize.

Compartilhamos da visão de Peirano (2014Peirano, M. (2014). Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20(42), 377-391.https://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015
https://dx.doi.org/10.1590/s0104-7183201...
) de que a etnografia não é simplesmente um método, mas uma formulação teórica, sendo assim, a dinâmica social que permeia a experiência de turismo em Anã não será apresentada neste artigo somente pelo viés de uma descrição, como se espera a priori de pesquisas sociais com abordagem etnográfica. O que se almeja é interpretar a “ação vivida” (Peirano, 2014, p. 336) no campo de pesquisa à luz de constructos teóricos já testados em outras realidades empíricas, e assim colaborar para ampliar o leque de interpretações teóricas sobre o que é Turismo de Base Comunitária.

Pelo exposto, utilizamos o termo “etnografia da troca” elaborado por Marcos Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
, p. 176) para construir um caminho metodológico que nos auxiliasse a melhor interpretar os dados coletados. Para o autor, se faz necessário compreender “como as trocas são concebidas e praticadas nos diferentes tempos e lugares . . .” [itálicos nossos] (Lanna, 2000, p. 175), a fim de se conhecer as diferentes formas de sociabilidade fecundadas pela dádiva. Deste modo, a concepção de Lanna nos inspirou a criar a categoria “ambientes de troca” para agregar as várias relações de dádivas observadas em campo, em cinco ambientes interacionais, os quais denominamos: 1º ambiente de troca; 2º ambiente de troca; 3º ambiente de troca; 4º ambiente de troca; 5º ambiente de troca.

Para cada ambiente de troca identificado, foi desenvolvida uma breve etnografia, a fim de percebermos como as relações de dádivas se estabelecem entre os agentes internos e externos à Anã, quais as “prestações” envolvidas, e como elas geram “alianças” (Mauss, 1925/2017) que conectam esses agentes em uma estrutura de rede social (Wellman & Berkowitz, 1991Wellman, B., & Berkowitz, S.D. (1991). Introduction: Studying Social Structures. In: Wellman, B.; Berkowitz, S.D (Orgs.). Social Structures. A Network Aprroach. (pp. 1-14). Cambridge: Cambridge University Press. ) interdependente, sem a qual a experiência de turismo na comunidade não acontece. Esse conjunto de relações, que possuem interconexões, forma a Rede Social do Turismo em Anã, que está representada no infográfico 1:

Infográfico 1
Rede Social do Turismo em Anã/Santarém/Pará

Nos ambientes de troca incidem diversos interesses dos agentes sociais, que, de alguma forma, são contemplados pelas dádivas trocadas. Esses interesses correspondem ao que Bourdieu (2011) chama de “forças” sobre o campo, que em alguns ambientes foram identificadas como assimétricas. Deste modo, os postulados do autor serão utilizados para desvelar os interesses “sutis”, “camuflados” em atos supostamente desinteressados, que por vezes confundem a assimetria nas relações de dádivas.

No conjunto da análise, aplicamos o conceito de “campo” de Bourdieu para afirmar que a experiência de turismo em análise é um universo social independente do de outros universos, que possui normas próprias, um “nomos”, e que por isso se constitui como um campo “auto-nomos” (Bourdieu, 2011, p. 148). O “nomos” presente no campo social do turismo em Anã refere-se às regras que orientam o “jogo social” (Bourdieu, 2011, p. 139), as quais devem ser conhecidas e compartilhadas pelos agentes envolvidos, a fim de que eles mantenham a “illusio” (o interesse) no jogo, e estejam cônscios de como operar seus “habitus” no campo.

Por fim, ressaltamos que em função de Mauss (1925/2017) ter afirmado que as dádivas estabelecem hierarquias (2017, p. 320), a análise dos dados também apresenta como a hierarquia se estabelece nas relações de dádivas observadas no campo social do turismo em Anã.

5 RELAÇÕES DE DÁDIVAS NO CAMPO SOCIAL DO TURISMO EM ANÃ: UMA ETNOGRAFIA DAS TROCAS

Para Mauss (1925/2017, p. 193), nas sociedades ditas primitivas e arcaicas, existiam fatos sociais complexos, por meio dos quais se percebia “tudo o que constitui a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas”, por isso, o autor definiu esses fatos como “fenômenos sociais totais”. Para melhor compreender esses fenômenos, o autor concentrou-se em estudar como funcionava o direito contratual e o sistema das prestações econômicas entre os grupos sociais daquelas sociedades, e assim descobriu que “as trocas e os contratos se fazem sob a forma de presentes, em teoria, voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos” (Mauss, 1925/2017, p. 193), Desse modo, o autor desvelou o princípio que rege a troca de presentes: a ação aparentemente livre e gratuita, e, no entanto, obrigatória e interessada.

Assim, a dádiva na perspectiva de Mauss (1925/2017), é um tipo de prestação, que assume a forma do regalo, de “presente oferecido generosamente” ainda que nesse ato de oferta se observe “somente ficção, formalismo e mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e interesse econômico” (p. 194). Desse modo, utilizamos a concepção de dádiva de Mauss (1925/2017) para analisar como se dá o caráter ambivalente das dádivas, ora como atos desinteressados, ora como atos interessados, nas trocas observadas em Anã.

5.1 1º ambiente de troca: ONG e o Grupo Local Gestor de Turismo (G.L.G.T.)

Essa relação se dá entre a ONG e um grupo formado por cinco pessoas da comunidade, que nomeamos Grupo Local Gestor de Turismo (G.L.G.T.). O quadro 2 mostra que há uma relação hierárquica da ONG para o G.L.G.T.

Quadro 2
1º ambiente de troca

Por meio da troca, o G.L.G.T. oferta à ONG toda a operação local dos roteiros vendidos aos turistas por aquela entidade, assim, os comunitários recepcionam os turistas; acompanham os visitantes nas atividades locais; gerenciam a hospedaria e o restaurante, e finalmente, embarcam os turistas de volta ao destino de origem. Da sua parte, a ONG oferta para a realização da experiência de turismo em Anã, o apoio técnico, financeiro e de mercado. Ela é responsável por captar o turista no mercado nacional e internacional e organizar sua logística até a chegada à comunidade.

Consideramos essa relação como dádiva assimétrica, pois desde que iniciou suas atividades na comunidade de Anã, em 2008, a ONG estabeleceu uma relação de dominação e dependência com o G.L.G.T., que ainda permanece nos dias atuais. Por isso, apontamos no quadro 2 que a ONG está na condição de colonizador e o G.L.G.T. de colonizado.

Ao longo desses 10 anos, a ONG captou recursos para financiar a “Hospedaria Comunitária de Anã” (que oferece hospedagem em uma maloca/redário, e restaurante); realizou treinamento da mão-de-obra local para trabalhar com o turismo; idealizou o produto que denomina “Turismo de Base Comunitária” e tornou-se o único agente distribuidor no mercado, haja vista que não permite que agências de turismo, nem a própria comunidade intermedeie a relação comercial com o consumidor-turista.

Como o turismo vem crescendo na comunidade (Assis, 2017Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.), e isso movimenta a economia local em diferentes aspectos, os comunitários enxergam a ONG como uma entidade provedora de recursos que eram escassos ou até inexistentes no cenário local. Nesse contexto, os comunitários não consideram ainda a possibilidade de assumir maior grau de controle e gestão do turismo, no sentido de melhorar uma relação de dádivas que se apresenta, por ora, hierarquizada e relativamente desfavorável.

A relação comercial entre os agentes deste ambiente de troca é assimétrica porque o valor que a ONG repassa à comunidade como “prestação” (Mauss, 1925/2017) pelos serviços realizados é desproporcional diante do valor que ela lucra com o valor do pacote pago pelos turistas. Para ilustrar essa questão, informamos que em agosto de 2016, adquirimos um pacote individual, de quatro dias e três noites por R$ 950,00, com estadia, alimentação e visitas aos projetos locais. Desse total, constatamos através das entrevistas realizadas com os membros do G.L.G.T., que a Cooperativa de Turismo e Artesanato da Floresta (TURIARTE)1 1 No dia 1 de maio de 2015 foi realizada, na comunidade de Atodi, a assembléia de fundação da Cooperativa de Ecoturismo e Artesanato da Floresta (TURIARTE). A TURIARTE visa potencializar o turismo e favorecer a comercialização dos produtos artesanais produzidos pelos artesãos de sete comunidades da região do Arapiuns/PA. (Campelo, 2015). , corresponsável pela gestão financeira dos pacotes, diz que repassa à associação comunitária local, Associação de Produtores Rurais de Anã - APROANÃ, aproximadamente R$ 30,00 por pacote vendido, com a finalidade desse dinheiro ser aplicado na comunidade. Além disso, a TURIARTE também afirma que paga R$ 20,00 reais para o projeto de criação de peixes em tanque-rede, e R$ 15,00 reais para o projeto de criação de abelhas sem ferrão. Portanto, cada pacote gera, em nossa concepção, de modo direto para a comunidade apenas R$ 65,00 reais. Também é importante informar que no valor do pacote está incluso a contratação de mão-de-obra local e aquisição de alimentos produzidos localmente, entretanto, a presidente da TURIARTE (Entrevistado 2), afirmou que não possui uma planilha de contabilidade para registrar o efeito multiplicador do dinheiro auferido pelo turismo. Ou seja, ela não sabe dizer quanto cada pacote turístico gera, de modo direto e indireto, para a comunidade. Nesse sentido, nos causou estranhamento quando um produtor de mel deu a seguinte declaração:

Tem vez que vem grupo grande e deixa assim de R$ 20.000 mil reais, R$30.000 mil, e esse dinheiro fica todo aqui na comunidade, circula todo aqui, não precisa assim comprar material de outras comunidades, então esse dinheiro circula todo aqui na comunidade . . . (Entrevistado 3)

Diante o exposto, e para compreender como o dinheiro circula em Anã, inquirimos o presidente da APROANÃ (Entrevistado 9), sobre quais ações são desenvolvidas na comunidade com o dinheiro repassado pela TURIARTE. Ele nos informou que desconhece o montante citado pelo Sr. A. Godinho (Entrevistado 3), bem como não sabe dizer quanto a TURIARTE já repassou para sua entidade, pois não há prestação de contas periódicas entre ambas, nem controle de fluxo de caixa. Por sua vez, como presidente da associação comunitária local, ele demonstrou omissão no controle do fluxo de turismo, pois afirmou não ter a contabilidade de quanto sua entidade deveria ter recebido da TURIARTE. Essa mesma realidade foi observada na associação de criadores de peixes.

Desse modo, constatamos em Anã, o postulado de Mielke (2009Mielke, E.J.C. (2009). Desenvolvimento turístico de base comunitária. Campinas, SP: Editora Alínea. , p. 26), quando afirma que “comunidades não possuem, por questão de sua própria realidade, conhecimentos amplos acerca das consequências - impactos positivos e negativos - da atividade turística”. O fato das associações locais não perceberem que são corresponsáveis no processo de controle de entrada e saída de visitantes está gerando a perda de arrecadação de renda. Assim, toda a comunidade é prejudicada, pois deixa de receber projetos sociais que poderiam ser desenvolvidos com os recursos provenientes do turismo.

É importante ressaltar que a ONG deixa a desejar no que tange à transferência de conhecimentos capazes de favorecer a independência da comunidade na gestão do turismo em seu território. Embora o G.L.G.T. esteja capacitado nas rotinas operacionais da experiência turística, ele não tem condições técnicas de acessar o mercado, seja pelo desconhecimento de seu funcionamento e como operar nele, seja porque a comunidade não possui torre de comunicação para instalação de internet no local.

Está evidente que a relação entre a ONG e a comunidade está estruturada de modo a manter a subordinação desta, o que expressa uma relação típica da colonialidade do poder, pautada em outra relação de subjugação, que é a colonialidade do ser (Assis, 2017Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.).

O próprio G.L.G.T. não se considera habilitado para gerir a atividade como um todo, e tampouco reivindica maior participação e conhecimento no processo. Assim, questionamos: seria possível fazer evoluir essa relação de troca entre o G.L.G.T. e a ONG no sentido de proporcionar maior grau de autonomia à comunidade na atividade do turismo? Para a experiência merecer a denominação de Turismo de Base Comunitária essa autonomia é um requisito fundamental.

5.2 2º ambiente de troca: ONG e mercado

Esse ambiente de troca envolve uma relação hierárquica da ONG para com a TURIARTE. Embora a TURIARTE tenha sido criada como uma entidade associativa para fomentar e comercializar o turismo e o artesanato de sete comunidades da região do Arapiuns/PA, ela ainda não tem condições (técnicas, infraestrutura, pessoal) para acessar o mercado consumidor de forma independente da ONG, deste modo, sua função restringe-se a responder os contatos virtuais dos turistas captados pela ONG, e operacionalizar os roteiros junto com o G.L.G.T. Nessa condição, a TURIARTE encontra-se na posição de subalterna na relação com a ONG, conforme mostrado no quadro 3.

Quadro 3
2º ambiente de troca

Como organização não governamental que desenvolve ações sociais na Amazônia há 30 anos (Assis, 2017Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.), o PSA tem ampla projeção de mídia, por isso muitas ações de divulgação dos roteiros turísticos foram associadas à imagem da ONG, e assim o turismo ganhou visibilidade, como nos esclarece Pompermaier (2016):

A gente se valeu do fato que o Saúde e Alegria tem historicamente uma boa projeção de mídia, aparece muito na televisão, publicação, em muitas revistas, nós colamos nisso e fomos divulgando as viagens nesse processo [itálicos nossos], então conseguimos ao longo do tempo ter uma sequência de divulgação mais consistente, e aí ajudou a sair no programa da Regina Casé, saiu no Fantástico, veio Luciano Huck, aí com vários financiadores conseguimos uma matéria na revista da TAM, e agora conseguimos uma matéria na AZUL, então eu consigo ter post com 6.000 acessos, não consigo muita gente curtindo a página (facebook), mas na divulgação de viagem tenho 6.000, 7.000 acessos, isso ajuda bastante, então nós optamos por vender direto. (Entrevistado 1)

Esse relato demonstra como a influência midiática da ONG impactou positivamente a divulgação da experiência turística em Anã, e como esse processo possibilitou que a comercialização do produto “turismo em Anã” seja direta com o turista, sem a intermediação de agências de viagens.

A relação direta com o mercado consumidor foi uma postura adotada pelo gestor executivo do projeto de turismo da ONG, Sr. Pompermaier, por entender que a “cadeia de distribuição do turismo convencional é muito cara para o brasileiro”, por isso, ele não aceita conceder comissionamento para os intermediários que tenham interesse em enviar turistas para conhecer Anã, pois de acordo com sua concepção de mercado global (ele é italiano), o mundo mudou e está conectado pela internet, portanto, os turistas estão mais independentes e não querem pagar mais caro para adquirir produtos que eles podem acessar sem atravessadores. Sobre essa questão ele afirma que:

A agência me procura e eu digo: esse é o nosso preço, vende teu pacote com o resto, com a pousada em Alter do chão, com os traslados, com hotel, e agrega o resto e inclui o meu lá dentro pra tu poder ganhar o teu, mas eu não te dou comissionamento, esse é o meu preço [itálicos nossos]. (Entrevistado 1)

Pelo exposto, Sr. Pompermaier informa que as operadoras convencionais não trabalham vendendo Anã, e que esse tipo de produto não interessa ao grande público, mas a um nicho mais segmentado de consumidores, que procuram agências de turismo especializadas. Sr. Pompermaier também enfatiza, que é mais fácil estabelecer diálogo com agências menores e segmentadas porque elas aceitam a estratégia de compor preço.

Essa estratégia de mercado e esse tipo de parceria foram constatados quando entrevistamos uma turista paulista que informou ter chegado a Anã por meio da agência “Turismo Consciente” (www.turismoconsciente.com.br), que atua em São Paulo fazendo viagens exclusivamente para a Amazônia. A turista explicou (Entrevistado 6) que a agência paulista vendeu o roteiro completo até Anã, com tudo incluso, inclusive a alimentação vegetariana solicitada por ela.

Sobre a comercialização, preferencialmente gerenciada de modo independente da cadeia distributiva tradicional do turismo e de modo virtual, e ainda, sem o estabelecimento de alianças com redes colaborativas de turismo comunitário, coloca em evidência uma das estratégias da ONG para manter uma relação de dependência, assimétrica, com a comunidade, pois em função de não haver sinal de internet em Anã, esta fica totalmente dependente da estrutura de comunicação que só está disponível em Santarém, no escritório da ONG.

É fato que a ausência de antena de comunicação denota omissão do poder público no provimento de infraestrutura básica, contudo, é importante reconhecer que, se o objetivo da ONG fosse promover a autonomia de Anã sobre o gerenciamento do turismo no seu território, o tempo de 10 anos de assessoria técnica já teria sido suficiente para implantar instrumentos alternativos de comunicação por telefone e internet na comunidade.

Destacamos ainda que, embora os membros do G.L.G.T. tenham sido patrocinados pela ONG a viajar para conhecer outras iniciativas de turismo comunitário no cenário brasileiro, a fim de aprender boas práticas, eles não tiveram capacitação para técnicas de comercialização de produtos turísticos no mercado. Por isso, se considerássemos que o problema da comunicação fosse superado, mesmo assim, as lideranças locais não saberiam “vender” Anã como produto turístico. Essa situação revela mais um entrave no caminho da autonomia comunitária para a gestão da experiência turística.

Pelo exposto, está claro que essa relação de troca está pautada no interesse econômico, no entanto, ele está disfarçado, ou melhor, na concepção de Bourdieu (2011) “camuflado”, pelo discurso da ONG de que o turismo promove a “geração de renda e desenvolvimento territorial”2 2 Em sua homepage (www.saudeealegria.org.br), a ONG declara que as experiências de turismo que apoia, na região do Tapajós, são iniciativas de turismo de base comunitária que contribuem “com a geração de renda e com o desenvolvimento territorial da região”. Fonte: homepage da ONG. Acesso em 20 de setembro de 2015. . Além do discurso, o interesse econômico está presente em ações que estabelecem novas formas de colonialidades na Amazônia, como a colonialidade do saber (Assis, 2017Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.).

Por outro lado, a comunidade de Anã aceita os termos dessa relação de dependência porque reconhece que, além do ganho de renda extra, o turismo possibilita ganho de capital simbólico pelas trocas culturais. A comunidade também percebe que não têm condições de reivindicar e assumir um maior protagonismo no processo, o que caracteriza uma “colonialidade do ser” (Fanon, 2008Fanon, F. (2008). Peles negras, máscaras brancas. Salvador, BA: EDUFBA.), ou seja, emana um sentimento de subalternidade por parte dos comunitários.

5.3 3º ambiente de troca: G.L.G.T. e Anã

Nesse ambiente de troca o G.L.G.T estabelece relação hierárquica com a comunidade porque ele é o gerenciador local do turismo, ou seja, sendo o beneficiário direto do turismo, o G.L.G.T. determina quem serão os beneficiários indiretos, como pode ser observado no quadro 4.

Quadro 4
3º ambiente de troca

O G.L.G.T., se beneficia de forma direta de duas formas: a) benefícios econômicos diretos - eles recebem pagamentos por diária de trabalho em diferentes tarefas, que vão desde a recepção de grupos ou pessoas, até serviços gerais na hospedaria e restaurante; b) poder político - eles representam a “comunidade” para o turista, e para todas as ações que fazem referência ao turismo em Anã, como projetos de desenvolvimento, ações de divulgação da iniciativa de turismo. Esse poder também se constitui pelo fato de esse grupo ter a responsabilidade de mobilizar e contratar as famílias que trabalham diretamente com o turismo, e as famílias que se beneficiam indiretamente da atividade turística em Anã, vendendo os alimentos que produzem localmente.

A comunidade em geral oferece três tipos de dádivas nessa troca, que por serem remuneradas, podem ser interpretadas como “dádivas modernas” (Lanna, 2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
), quais sejam: venda de sua mão-de-obra para as atividades na hospedaria e restaurante; venda de alimentos produzidos localmente (peixe, horti-fruti, galinha, mel, etc.); exposição guiada para conhecer o projeto de criação de peixes em tanque-rede das Mulheres Sonhadoras de Anã em Ação (MUSA), e o projeto Meliponário, de criação de abelhas nativas.

O projeto MUSA foi fundado em 2002 por iniciativa de um grupo de mulheres que percebeu a necessidade de obter alimentação para seus filhos, assim, iniciaram a criação de peixe tambaqui em tanque-rede. A comunitária R. Godinho (Entrevistado 8), aponta o protagonismo do gênero feminino e a posição colaborativa do gênero masculino no projeto: “o projeto MUSA é composto por 15 mulheres, e atrás dessas 15 mulheres, porque você sabe né (sic), ora tem trabalhos braçais, confecção de gaiolas, então é preciso um homem”.

As pessoas que vendem sua mão-de-obra para o empreendimento turístico também são consideradas beneficiárias diretas do turismo, uma vez que são remuneradas de modo diretamente proporcional ao fluxo de visitação turística. Ou seja, de acordo com o volume de turistas, a renda obtida aumenta ou diminui.

As famílias que produzem alimentos na comunidade, como o peixe, horti-fruti, galinha, mel, etc., são consideradas beneficiários indiretos do turismo, pois sua produção não é consumida exclusivamente pelos turistas. Assim, parte dos produtos é vendida na comunidade e parte ao empreendimento turístico. Contudo, observamos que o turismo estimulou novos negócios na comunidade, conforme relatado por um produtor de mel:

Mudou muita coisa, por exemplo, hoje em dia, muitas pessoas não faziam negócio de beiju mole, faziam só pra comer mesmo, hoje não fazem só beiju, só tapioca pra vender pra pousada, pra visitante, mudou várias coisas que as pessoas não faziam com a mandioca e agora fazem bastante pra vender. (Entrevistado 3)

5.4 4º ambiente de troca: Turistas e Anã

Nessa troca, os turistas apresentam uma suposta superioridade cultural em relação à comunidade, por isso compreendemos que eles estabelecem relação hierárquica com Anã, como mostrado no quadro 5.

Quadro 5
4º ambiente de troca

O interesse dos turistas para os comunitários é simbólico. Eles almejam conhecer a cultura ribeirinha e o modo de viver de populações tradicionais que habitam a comunidade. Chegam à Anã com a expectativa de ter contato com uma cultura mais “genuína” e “autêntica”, haja vista que foram persuadidos por propagandas que exaltam o caráter “exótico” do “povo da floresta” (Assis, 2017Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.). Eles tendem a se sentir superiores, culturalmente, em relação aos habitantes locais, pois a partir do olhar da cultura “moderna” na qual estão inseridos, eles enxergam o modus vivendi amazônico como “atrasado”, não moderno, subalterno. Essa suposta superioridade cultural denota a assimetria nesta relação. Além disso, pode justificar maior curiosidade dos turistas, e desejo em interagir com os habitantes ribeirinhos da Amazônia. O interesse do visitante ficou evidente no depoimento de uma turista italiana:

Eu gosto de vir aqui porque eu gosto de ver a realidade das pessoas que vivem aqui, que não é somente onde vivem, o que fazem, mas também eles, a pessoa, então eu gosto de falar, de ver o que pensa, do que conhece do resto do mundo, do que gosta de fazer, de jogar e de rir também, então mais do que fazer coisas em silencio, gosto mais de falar com uma pessoa, de interagir. (Entrevistado 4)

A turista demonstrou interesse em conhecer o “mundo” particular da pessoa que ela vir a encontrar, e também o desejo de compartilhar atividades lúdicas, como jogar e rir. Essa turista possuía experiências em visitas a comunidades africanas e relatou que viveu momentos de muita interação com crianças africanas por meio de jogos, e que achou muito “estranho” a falta de vida social entre as crianças de Anã. Esperava encontrar crianças brincando na rua, e se disse “decepcionada” em observar cada família dentro de sua casa, o que ela própria atribuiu à posse de aparelhos de televisão por habitação, fato não observado nas comunidades africanas visitadas por ela.

Analisando o fluxo da dádiva da comunidade para os turistas, constatamos que ele é interessado e desinteressado. O interesse econômico está na necessidade de obter “prestação” financeira em dois aspectos: pela venda dos produtos locais aos turistas; e por ela própria figurar como o fator de atratividade para o turismo, em função de ser a protagonista do modus vivendi amazônico. A possibilidade de a comunidade ser considerada atraente para o turista gera um sentimento de orgulho entre seus moradores, o que desperta o desejo em pertencer à Rede Social do Turismo.

O desinteresse econômico está no interesse simbólico, na medida em que os comunitários estabelecem relações culturais com os turistas, percebidas por eles como uma oportunidade de “ampliação” de conhecimentos, como expõe um integrante do G.L.G.T.:

Pra mim é tão legal tá trabalhando dessa forma porque eu ganho com a experiência das pessoas que venham [sic], das que tão colaborando com a gente, são culturas diferentes né, vai ajudando a ampliar os conhecimentos, a gente ganha com eles, eles ganham com a gente. (Entrevistado 7)

O depoimento mostra que o comunitário percebe a relação de troca entre a comunidade e os turistas como benéfica, pois ambos saem ganhando. Ressaltamos que os momentos de interação social propiciam a troca de saberes entre duas culturas bem distintas, duas alteridades, promovendo assim, o encontro com o outro, aproximando-os, o que na concepção de Lanna (2000Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
https://dx.doi.org/10.1590/S0104-4478200...
), torna os indivíduos semelhantes.

Por parte da comunidade, essa aproximação com o turista também é uma oportunidade de eles mostrarem que a Amazônia não é só floresta, que existe vida a ser valorizada, pois, as pessoas que não pertencem à região amazônica, têm uma ideia pré-concebida de que esta parte do território brasileiro é um vazio demográfico. Por isso, destacamos abaixo, parte do discurso de uma comunitária:

O povo lá fora pensa que a floresta é só as árvores e os bichos, eles não levam em consideração a ‘nossa vida’, não levam em consideração nós os ribeirinhos, nós daqui, principalmente do Oeste do Pará, que a gente fica no abandono, e aí, vende-se a ilusão de que só existe mato aqui . . . . não é só mato . . . . tem gente, e muita gente. (Centro de Estudos Avançados em Promoção Social e Ambiental - Projeto Saúde e Alegria, 2011, p. 15)

Portanto, apreendemos que, embora o contato dos ribeirinhos com os visitantes possa gerar uma suposta inferioridade cultural, pois o modo de vida daqueles é visto como atrasado pelo mundo globalizado, essa mesma oportunidade de interação social, pode produzir elementos que desmistifiquem a imagem pré-concebida que o turista tem do habitante da floresta, e transforme esse encontro num momento único, singular, de dádivas culturais expressivas, e de trocas verdadeiras com o outro. Esse foi o sentimento de uma turista paulista quando afirmou que estava satisfeita com “a qualidade das pessoas” que encontrou, e quando questionada sobre o significado desta “qualidade”, justificou:

Eu acho que talvez seja um trabalho muito mais de coração e dedicação do que um trabalho comercial puramente, então você realmente encontra com outras pessoas, que eu direi que é uma relação com o ser humano, eu acho que esse tipo de viagem, é uma viagem que você encontra pessoas com o coração mesmo né, aberta. (Entrevistado 6)

Pelo exposto, constatamos que a relação de dádiva entre turistas e comunitários é atravessada por interesses que sobrepujam o econômico. Esses interesses orientam condutas positivas para uma relação interacional de qualidade. Não observamos nos relatos coletados, animosidades que poderiam ser provenientes da assimetria constatada em relação à suposta superioridade de um lado, e suposta inferioridade de outro. Isto ocorre devido ao interesse, de ambos os lados, estabelecerem uma “vivência cultural” (termo utilizado na mídia para referir-se ao encontro cultural) satisfatória, na qual eles reconheçam benefícios.

Contudo, devemos registrar que essa “aparente” harmonia interacional é resultado de um ambiente de “vivência cultural” monitorado pela ONG, pois os turistas não adentram a comunidade sem aquisição de pacotes turísticos, e depois de lá chegarem, não circulam livremente pela comunidade sem o acompanhamento de algum integrante do G.L.G.T., ou de alguém de confiança desse grupo. Além disso, a estrutura de hospedaria fica espacialmente distante da vila comunitária, o que favorece a segregação da comunidade da dinâmica turística.

Identificamos que os contatos dos visitantes com os anfitriões são mediados por pessoas preparadas para a oferta da experiência turística, excluindo assim, a naturalidade genuína de um contato intercultural. A preparação dos habitantes do lugar visa minimizar a “estranheza” (Kincaid, 2005Kincaid, J. (2005). A small place. In Hernandez, J. B. (Ed.) Women writing resistance: essays on Latin América and the Caribbean. (pp. 147-156).. South End Press Cambridge, Massachusetts. ) que o modo de ser, agir e/ou falar dos turistas causa nos nativos de um lugar turístico. Kincaid (2005) afirma que os nativos não gostam dos turistas porque estes parecem estranhos aos seus olhos, não só pela aparência física, mas pela forma como se comportam e expressam seus hábitos, o que leva as pessoas do lugar visitado, segundo o autor, a tratar os visitantes com jocosidade. Essa talvez seja uma justificativa para que a ONG monitore os ambientes de interação sociocultural entre anfitriões e turistas. Nesse contexto, a comunidade perde o protagonismo no destino e a oportunidade de maior troca cultural. Irving (2009Irving, M. A. (2009). Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária - inovar é possível? In Turismo de base comunitária: Diversidade de olhares e experiências brasileiras. (pp. 108-119). Rio de Janeiro, RJ: Letra e Imagem.) ressalta que a condição para o desenvolvimento do TBC é atuação da comunidade como “sujeito” e não como “objeto” do processo turístico, o que nos leva a concluir que a experiência turística de Anã ainda não pode ser classificada nesse modelo.

Uma forma de sanar essa questão é a comunidade criar momentos interacionais com os turistas, que envolvam suas atividades cotidianas, como fazer roça de mandioca, coletar mel e frutas, retirar peixe da gaiola, entre outras. De posse dessa programação, a comunidade poderia negociar maior participação nos roteiros turísticos.

5.5 5º ambiente de troca: pesquisadora/orientador com G.L.G.T., Anã, e ONG

Esse ambiente de troca pode ser definido como o mais importante dentre os diagnosticados, pois é dele que emanam todas as inferências da pesquisa. As relações de troca estabelecidas entre a pesquisadora de doutoramento e seu orientador, com o G.L.G.T., a comunidade, e a ONG estão pautadas na parceria, sem hierarquia, como mostrado no quadro 6.

Quadro 6
5º ambiente de troca

A relação da pesquisadora/ orientador com os agentes envolvidos nesse ambiente de troca iniciou em agosto de 2016 quando ocorreu a primeira visita de caráter exploratório ao campo de pesquisa. Essa viagem foi muito importante porque possibilitou o estabelecimento de interação social com os integrantes do G.L.G.T., e a partir dele foi possível mapear todos os outros agentes que compõem a rede social interligada para a oferta da experiência de turismo em Anã.

Após essa viagem exploratória, ocorreu outra viagem em janeiro de 2017, na qual foi possível ter contato com um grupo de turistas internacionais que estavam passando uma “temporada” na hospedaria comunitária. Certamente, nessa viagem de pesquisa foi possível perceber como essa experiência articula um grupo interno e externo de agentes sociais, e como a comunidade está envolvida numa relação de poder e dependência com a ONG.

A partir de todas as observações em campo já anotadas e de futuras imersões na comunidade de Anã, almejamos, ao final da pesquisa de doutoramento, oferecer como dádiva aos comunitários de Anã, uma pesquisa reflexiva sobre estratégias para gerar a autonomia dessa comunidade, e o seu protagonismo na relação com o turista e o turismo que ocorre em seu território. Além disso, desejamos oferecer à ONG, sugestões de ações para a transferência de conhecimentos para a comunidade, a fim de que Anã alcance a gestão independente do turismo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou mostrar as várias relações de troca na prática da atividade turística em Anã/Santarém/Pará, tornando operacional o conceito de dádiva de Marcel Mauss (1925/2017), analisada em seu caráter ambivalente pela noção de interesse de Bourdieu (2011). A experiência de turismo analisada envolve cinco ambientes de troca, nos quais circulam dádivas/prestações entre agentes internos e externos à Anã. Assim, concluímos que as dádivas trocadas geram interconexões entre os ambientes, que por sua vez conectam os agentes em uma estrutura de rede social necessária para a oferta da vivência turística na comunidade.

Observamos que, embora a atividade turística gere ganhos de capital e simbólico para a comunidade, a ONG que assessora o turismo em Anã, ainda não criou as condições para que os comunitários possam gerir o turismo em seu território de modo autônomo, a fim de evitar uma relação de poder assimétrica, que engendra outas colonialidades, como a do saber e do ser.

É essa colonialidade do ser, o sentimento de subalternidade em relação à ONG, que justifica o fato de a comunidade não ter, até o presente momento, reivindicado a autogestão do turismo, e manter-se numa relação de dependência há 10 anos, contentando-se com um retorno financeiro desequilibrado e injusto, especialmente, se considerarmos que é a própria comunidade e seu modo de vida, o principal fator de atratividade para os turistas.

Chama atenção o protagonismo feminino em Anã, motivo pelo qual o turismo começou a ser desenvolvido na comunidade, e mantém-se vigorosamente até a atualidade, favorecendo o destaque desta comunidade perante as outras iniciativas comunitárias localizadas às margens do rio Arapiuns/Pará. Contudo, observamos que apesar de seu vigor, esse grupo ainda não é capaz de reivindicar o poder da ONG, sendo também permissivo com a ascendência dessa entidade sobre a comunidade.

Nesta experiência de turismo marcada por trocas assimétricas, também queremos destacar que a comunidade, por meio de suas mais expressivas associações locais, como a APROANÃ, MUSA e grupo de criadores de abelhas, não procura estabelecer estratégias para monitorar o fluxo de visitantes enviados pela ONG, assim, as associações citadas não tem ideia se estão recebendo os valores acordados com a ONG, bem como, não sabem informar quanto auferem com a atividade turística. Isto é extremamente relevante, pois sem o conhecimento da real relevância econômica do turismo, a comunidade não percebe a importância de fazer a autogestão, e é conivente com o controle exercido pela ONG.

Por fim, ressaltamos que a observação da experiência de turismo em Anã nos fez perceber que, para além de ser uma atividade econômica, o turismo pode ser interpretado como uma dádiva em ambientes sociais que ele promova a troca de bens e de sua espiritualidade de forma ambivalente. Como atividade relacional entre humanos, que exige o estabelecimento de trocas para se efetivar, o turismo estabelece vínculos morais entre quem doa e quem recebe dádivas de hospitalidade. Por isso, consideramos o turismo como mais uma forma de praticar a Teoria da Dádiva, de Mauss (1925/2017).

Finalmente a pesquisa demonstrou que iniciativas comunitárias de turismo demandam articulação de agentes em rede, e para compreendermos como essa rede está estruturada devemos lançar um olhar acurado nos interesses sutis e camuflados que atravessam as relações entre os agentes sociais.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Dra. Guaciara Barbosa de Freitas pelo direcionamento de recursos do projeto "Jovens, tecnologias e movimentos sociocomunicacionais em cidades amazônicas". MCTI/CNPq Edital Universal 14/2014, para financiar parte da coleta de dados em campo.

REFERENCES

  • Assis, G. C. (2017). A cultura ribeirinha como fator de atratividade para o turismo no Arapiuns/pa - Uma análise sobre a colonialidade do saber amazônico. Seminário Internacional América Latina: Políticas e Conflitos Contemporâneos. II Sialat. Belém, PA: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.
  • Bourdier, P. (2011). É possível um ato desinteressado? Razões Práticas: sobre a teoria da ação. (M. Corrêa, trad.). (pp. 137-156). 11a ed. Campinas, SP: Papirus.
  • Campelo, L. (2015, out., 14). Turismo de base comunitária e artesanato da floresta ganham força com a fundação da primeira cooperativa do Rio Arapiuns. 2015. Disponível em: <http://rogerioalmeidafuro.blogspot.com.br/2015/05/turismo-de-base-comunitaria-e.html>.
    » http://rogerioalmeidafuro.blogspot.com.br/2015/05/turismo-de-base-comunitaria-e.html
  • Centro de Estudos Avançados em Promoção Social e Ambiental - Projeto Saúde e Alegria. (2011). Prazer em conhecer Anã. Santarém, PA: CEAPS.
  • Fanon, F. (2008). Peles negras, máscaras brancas. Salvador, BA: EDUFBA.
  • Geertz, C. (2015) A interpretação das culturas. [Reimpr.] Rio de Janeiro, RJ: LTC. (Trabalho original publicado em 1926).
  • Irving, M. A. (2009). Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária - inovar é possível? In Turismo de base comunitária: Diversidade de olhares e experiências brasileiras. (pp. 108-119). Rio de Janeiro, RJ: Letra e Imagem.
  • Kincaid, J. (2005). A small place. In Hernandez, J. B. (Ed.) Women writing resistance: essays on Latin América and the Caribbean. (pp. 147-156).. South End Press Cambridge, Massachusetts.
  • Lanna, M. (2000). Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, (14), 173-194.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
    » https://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782000000100010
  • Mauss, M. (2017). Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In Mauss, M. Sociologia e Antropologia. (P. Neves, trad.). (pp.191-308). São Paulo, SP: Ubu Editora. Originalmente publicado em 1925.
  • Mielke, E.J.C. (2009). Desenvolvimento turístico de base comunitária. Campinas, SP: Editora Alínea.
  • Peirano, M. (2014). Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20(42), 377-391.https://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015
    » https://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015
  • Rodrigues Guimarães, A. C. (2013) ¿Será Bourdieu utilitarista?. Trabajo y Sociedad, 20, Verano, Santiago del Estero, Argentina.
  • Wellman, B., & Berkowitz, S.D. (1991). Introduction: Studying Social Structures. In: Wellman, B.; Berkowitz, S.D (Orgs.). Social Structures. A Network Aprroach. (pp. 1-14). Cambridge: Cambridge University Press.
  • 1
    No dia 1 de maio de 2015 foi realizada, na comunidade de Atodi, a assembléia de fundação da Cooperativa de Ecoturismo e Artesanato da Floresta (TURIARTE). A TURIARTE visa potencializar o turismo e favorecer a comercialização dos produtos artesanais produzidos pelos artesãos de sete comunidades da região do Arapiuns/PA. (Campelo, 2015).
  • 2
    Em sua homepage (www.saudeealegria.org.br), a ONG declara que as experiências de turismo que apoia, na região do Tapajós, são iniciativas de turismo de base comunitária que contribuem “com a geração de renda e com o desenvolvimento territorial da região”. Fonte: homepage da ONG. Acesso em 20 de setembro de 2015.
  • Revisado por pares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    04 Fev 2019
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo Rua Silveira Martins, 115 - cj. 71, Centro, Cep: 01019-000, Tel: 11 3105-5370 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: edrbtur@gmail.com