Resumo
Analisando menções ao mito de Orfeu feitas por Heiner Müller, principalmente o poema em prosa “Orpheus gepflügt” e a peça Der Bau, inquire-se em que medida e como a exposição desse mito pode relacionar-se com uma caracterização do poeta que serve de referência ao autor e, porventura, até justificar elementos de sua poesia e poética. Como resultado dessas investigações, indica-se que, no contexto de “Orpheus gepflügt”, distinguem-se objeções à figura de Orfeu. Não obstante, a representação de seu mito conforma uma justificativa para o fazer do poeta em H. Müller. Em Der Bau, ele é inicialmente uma figura repelida, da qual se distancia e até se escarnece, contudo, delineiam-se, por fim, convergências e mesmo uma identificação entre o poeta que se apresenta na peça e Orfeu. Considera-se que, com essas designações do mito de Orfeu, H. Müller expõe um tipo de defesa e legitimação do seu “trabalho com mitos” na própria poesia. Ao longo deste escrito, a articulação de fontes antigas para a representação do mito por H. Müller é perscrutada.
Palavras-chave:
mito; Orfeu; Heiner Müller; literatura na DDR
Abstract
This article analyses passages where Heiner Müller mentions the Orpheus’ myth, especially the prose poetry “Orpheus gepflügt” and the play Der Bau. It inquires how and to what extent his mentions and treatment of this myth can be related to a poet’s characterization which reflects his concepts of poetry and might even justify elements of his own poetry and poetics. In the examination of this matter, it is presented as a result that in “Orpheus gepflügt” Orpheus serves as a contrastive figure, nonetheless, his myth can display a justification for H. Müllers poetic doing. In Der Bau Orpheus is initially and manifestly a refused figure and even object of mockery, however, the sequence of events in the piece shows proximities and identification between Orpheus and the play’s character Poet (Dichter) (who ‘quotes’ the author). These considered passages of his oeuvre are regarded here as a kind of defense and validation of the ‘work with myths’ in his poetry. It is also an object of investigation the way how the author refers to and deals with ancient sources of the myth in his Orpheus’ representation.
Keywords:
myth; Orpheus; Heiner Müller; literature of East Germany
Referências ao mito de Orfeu aparecem com certa constância ao longo da obra de Heiner Müller. Elas são, em grande parte, vinculáveis ao seu texto “Orpheus gepflügt” (“Orfeu arado”).2 2 Quando não houver indicações relativas à tradução, ela foi feita por mim. Textos literários são citados primeiramente na língua original, com tradução em nota de rodapé, enquanto textos da crítica em língua estrangeira são apresentados em tradução, com o original em rodapé. Supõe-se aqui que o tratamento desse mito na poesia tem o potencial de ser autorreferente. Quer dizer, por meio do mito de Orfeu podem-se expor entendimentos e concepções sobre a poesia e o papel do poeta, bem como sobre a própria atividade poética, tanto de maneira geral quanto particular, ligado a um determinado momento e lugar. Orfeu, afinal, pode ser compreendido como uma figuração do poeta provinda do mito, da Antiguidade. Diante disso, quais motivos são designados, ressaltados por Heiner Müller, em sua apresentação desse mito? Há uma aproximação entre o que se expõe no mito antigo e o fazer do poeta que se distingue na poesia do autor? Existe uma (auto)estilização sua a partir de aspectos desse mito? Orfeu diz respeito a um modelo com o qual se identifica ou do qual se distancia nesse poeta da segunda metade do século XX? Essas questões são tratadas aqui principalmente a partir da consideração de “Orpheus gepflügt” e da peça Der Bau (A construção). Neste caso, concentra-se na passagem da peça que menciona o mito de Orfeu - uma análise e interpretação mais integral de Der Bau excedem os limites deste escrito. Ainda relevante no contexto é a entrevista de H. Müller a Alexander Kluge, na qual os dois dialogam, entre outros assuntos, sobre Orfeu.
Este escrito se insere num âmbito de investigações que visam delinear características da representação do mito de Orfeu na literatura alemã moderna. Esta análise procura lidar basicamente com dois aspectos disso, articulando-os: o das fontes do mito que são retomadas pelo escritor de língua alemã - i.e., um aspecto da recepção literária - e o que se pode designar poetológico. Este é entendido, parafraseando R. Brandmeyer (2011Brandmeyer, R. Poetologische Lyrik. In: Lamping, D. (org.). Handbuch Lyrik. Stuttgart: Metzler, 2011, p. 157-162.: 158), como a tematização de elementos da poesia, literatura em textos literários. Sendo Orfeu uma figura do poeta, o tratamento desse mito por um autor de poesia possui potencialmente esse traço reflexivo de lidar com tópicos, elementos, questões da arte. De modo abrangente, trata-se de perscrutar o recurso ao mito antigo na literatura moderna, seus prováveis sentidos e as estratégias de sua retomada e adaptação em diferentes momentos, as quais, muitas vezes, abrem perspectivas inesperadas para observá-lo e distinguir particularidades do tempo que o refere. Heiner Müller é um autor que se ocupa ostensivamente com mitos em sua poesia (emmerich 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 288). Como se aponta esparsamente ao longo deste texto, a dimensão de terror no mito e sua relação com um modo de racionalidade é um assunto que o ocupa - uma visão geral e condensada sobre esse tema se oferece no artigo de Betinna Gruber (2003Gruber, B. Mythologisches Personal. In: Lehmann, H.-T.; Primavesi, P. Heiner Müller Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2003, p. 75-82.), em Heiner Müller Handbuch. A discussão sobre tais características do mito configura um tipo de pano de fundo deste escrito.
Segundo indicado em antologia publicada pela editora Reclam com textos sobre o mito de Orfeu, “Orpheus gepflügt” foi escrito em 1958 e publicado em 1975 (Müller 2002Müller, H. Orpheus gepflügt. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 228.: 228). Wolfgang Emmerich (1992Emmerich, W. Orpheus in der DDR: Heiner Müllers Autorschaft. In: Grimm, G. E. (org.). Metamorphosen des Dichters: Das Rollenverständnis deutscher Schriftsteller vom Barock bis zur Gegenwart. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1992, p. 286-301.: 288; 2007: 59) - que se ocupou amplamente com “Orpheus gepflügt” - assinala que o texto data de 1958. Em 2011, retomando muito dos escritos anteriormente citados de 1992 e 2007, ele (Emmerich 2011: 342) nota apenas que esse texto de H. Müller é anterior a 1959. Além de em Der Bau, o mito de Orfeu, com ecos de “Orpheus gepflügt”, é retratado ainda no poema “Fahrt nach Plovdiv” (“Viagem a Plovdiv”) (Müller 2002: 65), dos anos 1960. Em 1978/1979, H. Müller insere o texto “Orpheus gepflügt” no início de uma “Discussão sobre o pós-modernismo em Nova York” (“Zu einer Diskussion über Postmodernismus in New York”), intitulada “Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen” (“O terror a primeira aparição do que é novo”) (Müller 1989: 21).3 3 Segundo Emmerich (2011: 344, n. 34), o texto, contudo, não chegou a ser apresentado por H. Müller na ocasião. “Orpheus gepflügt” aparece também no livro Gedichte, preparado pelo próprio autor em 1992 (Müller 1992: 44), numa seção intitulada “1949…”, antes da seção de poemas de “1959…” (Müller 1992: 7, 49). O texto comparece, assim, em um arco que vai praticamente da primeira à última década de produção do escritor. Mais um exemplo de que o autor continuamente volta a esse texto é um vídeo com Alexander Kluge4 4 Disponível em: https://bit.ly/2Yd9evc. Acesso em: 16 jan. 2019. que tem por tema a atualidade de Ovídio, mais especificamente das Metamorfoses. Heiner Müller acaba se debruçando mais sobre o mito de Orfeu, comentando-o ali. Por fim, nesse vídeo, ele lê o seu texto sobre Orfeu (“Orpheus gepflügt”). A entrevista traz uma data póstuma, 29 de janeiro de 1996. “Orpheus gepflügt” é citado na edição de H. Müller (1992: 44):
Orpheus der Sänger war ein Mann der nicht warten konnte. Nachdem er seine Frau verloren hatte, durch zu frühen Beischlaf nach dem Kindbett oder durch verbotnen Blick beim Aufstieg aus der Unterwelt nach ihrer Befreiung aus dem Tod durch seinen Gesang, so daß sie in den Staub zurückfiel bevor sie neu im Fleisch war, erfand er die Knabenliebe, die das Kindbett spart und dem Tod näher ist als die Liebe zu Weibern. Die Verschmähten jagten ihn: mit Waffen ihrer Leiber Ästen Steinen. Aber das Lied schont den Sänger: was er besungen hatte, konnte seine Haut nicht ritzen. Bauern, durch den Jagdlärm aufgeschreckt, rannten von ihren Pflügen weg, für die kein Platz gewesen war in seinem Lied. So war sein Platz unter den Pflügen.5 5 Tradução: “Orfeu o cantor era um homem que não podia esperar. Depois que perdera sua mulher, por ter relação sexual muito prematuramente depois do puerpério ou por olhar proibido ao subir do mundo ínfero depois da liberação dela da morte através do seu canto, de modo que ela voltou ao pó antes que estivesse novamente em carne, ele inventou a pederastia, que poupa o puerpério e é mais próxima da morte do que o amor a mulheres. As que foram desprezadas caçaram-no: com armas de seus corpos galhos pedras. Mas a canção resguarda o cantor: o que ele havia cantado não podia arranhar a sua pele. Camponeses, assombrados pelo barulho da caçada, correram de seus arados, para os quais não houvera lugar na canção dele. Assim foi seu lugar sob os arados”.
O texto, até pela sua publicação em um livro de Poemas (Gedichte), pode ser considerado um prosagedicht, um poema em prosa. A disposição em prosa não deixa de fazer notar um ritmo predominantemente alternado, na maioria das vezes iâmbico: “Orpheus der Sänger war ein Mann” (X - u - u - u -). O autor também se utiliza de cláusula métrica. Duas vezes, antes de ponto final, encontra-se o segmento métrico conhecido como adônio (-uu-u): “Liebe zu Weibern” e “unter den Pflügen” (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44).
Nesse texto, predicados musicais e poéticos de Orfeu são ressaltados. Apesar de se incluírem aí elementos diversos em sua caracterização, trata-se em larga medida de sua designação como um poeta. Seu epíteto é “o cantor” (“der Sänger”) (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44). Ele se distingue por seu “canto” (“Gesang”), por sua “canção” (“Lied”) (“Aber das Lied schont den Sänger”/ “in seinem Lied”). Junto à qualificação geral “cantor”, as palavras “canto” e “canção” possuem forte referência à poesia. Besingen (“besungen”), que também entra nesse quadro de relações, tem ainda um significado de “louvar pelo canto, através do canto”. Nesse âmbito, é provável que, pelo menos em certa camada de sentido desse poema em prosa, Orfeu seja referido por remeter à figuração do poeta; por seu status, conferido na interação entre um plano mítico e sua retomada ao longo da história da literatura,6 6 Independentemente aqui da questão de sua apreciação, Orfeu é uma figura mitológica muito profícua nas artes europeias. Devido a isto, K. Heinrich (1995: esp. 80), por exemplo, alça Orfeu à figuração, ao mitologema do artista. Como ponto de partida aqui da interpretação desse mito por H. Müller, toma-se Orfeu como um exemplo geral do poeta. Este, entendido de forma abrangente como aquele que faz poesia. de o poeta. Na avaliação de Wolfgang Emmerich (2007Emmerich, W. Griechische Mythen als Esperanto - Heiner Müllers Antikenstücke. In: Berg, M.; Holtsträter, K.; Massow, A. von (orgs.). Die unerträgliche Leichtigkeit der Kunst. Köln; Weimar; Wien: Böhlau Verlag, 2007, p. 59-76.: 59), “o texto [‘Orpheus gepflügt’] […] reflete, por fim, o papel do poeta-cantor”.7 7 No original: “der Text […] reflektiert zum Schluss hin die Rolle des Dichtersängers”. Mas reflete esse papel, ainda seguindo Emmerich (2007: 59), no contexto “das lutas de classe (dito de forma marxista, apropriado a Müller)”,8 8 No original: “in den (Müller angemessen marxistisch gesprochen:) Klassenkämpfen”. tema ao qual ainda voltaremos.
“Orpheus gepflügt” apresenta de modo bastante conciso uma narração do mito, a qual se distingue, em grande parte, por articular elementos retratados por Ovídio nos livros dez e onze das Metamorfoses. Além de motivos que possuem certa recorrência na representação deste mito, Ovídio expõe, de forma algo peculiar, que Orfeu é morto com os instrumentos de trabalho de camponeses que, ao verem a horda enfurecida das mênades, mulheres do cortejo de Dioniso, deixam no campo de arado “enxadas, pesadas picaretas, longos restelos” (Ovídio 1984: Met. 11, v. 36).9 9 No original: “sarculaque rastrique graves longique ligones”. Antes, elas o haviam atacado com outros objetos, como a azagaia (Met. 11, v. 7, “hastam”) e a pedra (Met. 11, v. 10); ainda utilizaram como armas varas de tirso, “não feitas para essa função”, torrões, galhos de árvores (Met. 11, vv. 27-39). Mas, por fim, matam e dilaceram Orfeu (juntamente com os bois no arado) com as ferramentas, os utensílios que os camponeses usam para arar.
Em “Orpheus gepflügt”, algumas frases aparecem como sentenças gerais, como um tipo de inferência em relação ao que se conta de maneira mais extensa nas Metamorfoses, mas elas funcionam ainda em consideração ao plano narrativo do próprio poema. Em certa medida, esse poema em prosa de H. Müller se define como uma narração que é comentário e interpretação do mito, ancorados numa narrativa pregressa dele - a de Ovídio, no caso. Um exemplo disso é: “was er besungen hatte, konnte seine Haut nicht ritzen” (Müller 1992: 44)10 10 Tradução: “o que ele [o cantor, Orfeu] havia cantado não podia arranhar a sua pele”. - quando da entrevista a Alexander Kluge, Müller também comenta assim o mito: “tudo que ele tinha cantado não podia machucá-lo”.11 11 No original: “alles, was er besungen hatte, konnte ihn nicht verletzen” (7:37). Essa determinação tem sua contraparte nas Metamorfoses, na cena em que objetos, jogados pelas seguidoras de Dioniso contra Orfeu, são envolvidos, ‘preenchidos’ por sua música e poesia, tornando-se inofensivos, gentis, sendo demovidos do intento de atacá-lo (Met. 11, vv. 1-15). As Metamorfoses retomam aí um tópos muito recorrente no mito de Orfeu - diferentemente de sua morte através de instrumentos de arar, algo mais próprio de Ovídio, segundo os textos supérstites -, o tópos do poder da sua lira sobre pedras, árvores, mesmo animais selvagens. Orfeu seduz, encanta, amansa esses elementos da natureza mineral, vegetal, animal e não é machucado por eles ao cantar.
Heiner Müller, contudo, opera um pequeno deslocamento de tempos, o qual, junto com outros procedimentos composicionais do texto, conduz a uma articulação peculiar de sentidos veiculados em exposições anteriores, antigas, do mito. Na formulação de “Orpheus gepflügt”, a ‘conservação’ de Orfeu é relacionada ao que ele cantara, louvara, tematizara em sua poesia, em suma: a tudo aquilo que “tinha tido lugar em sua canção” (Müller 1992: 44)12 12 No original: “Platz gewesen war in seinem Lied”. ; ou que, de outra forma, ele não desprezara. O uso de um tempo verbal que indica um passado anterior, o Plusquamperfekt (“was er besungen hatte, konnte seine Haut nicht ritzen”)13 13 Tradução: “O que ele cantara não podia arranhar a sua pele”. (Müller 1992: 44), sugere que a questão é o que havia sido contemplado em sua poesia. Não se trata exatamente do que acontece nas Metamorfoses (Met. 11, vv. 1-43), em que existe uma concomitância entre seu cantar e sua preservação; em que os sons harmônicos que Orfeu canta impedem que seja ferido pelos objetos que as mulheres trácias atiram contra ele. Nesse caso, na narrativa de Ovídio, o tópico que se designa é o do encantamento, poder do canto de Orfeu. Isto é algo um tanto secundário, se não sem importância, no poema de H. Müller.
‘Tudo que não tinha tido lugar em sua poesia’ (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44) é, fundamentalmente, a esfera do trabalho, representada nos instrumentos de trabalho, no trabalho algo primordial no campo, dos lavradores. No vídeo com A. Kluge citado anteriormente, H. Müller assim narra e comenta o mito de Orfeu (um pouco antes, ele acrescentara que isto é “certamente mais interpretação minha”; exposição e interpretação convergem)14 14 No original: “sicher mehr meine Interpretation” (8:14). : “então, as mulheres mataram Orfeu com arados e enxadas, quer dizer, com as ferramentas dos camponeses. Porque ele não tinha cantado essas coisas. Ele nunca cantava o trabalho”.15 15 No original: “Und dann haben die Frauen den Orpheus getötet mit Pflügen und Hacken, also mit den Werkzeugen der Bauern. Weil die hatte er nie besungen. Er hat die Arbeit nie besungen”. A. Kluge completa que Orfeu fora, assim, “aniquilado, destroçado, dividido em pedaços com os meios do trabalho”.16 16 No original: “Mit den Mitteln der Arbeit vernichtet, zerschmettert, in Teile geteilt”. Nesse apontamento de A. Kluge, saindo da moldura antiga, deve ressoar uma ideia de alienação através do trabalho, resultando em divisão, mesmo fragmentação no sujeito. Deste modo, algo como uma vulnerabilidade, uma falta, um ponto fraco de Orfeu é seu desprezo, uma desconsideração pelo tema do trabalho e seus meios.
Em relação a esse ponto da tematização poética que se designa em “Orpheus gepflügt”, W. Emmerich (1992Emmerich, W. Orpheus in der DDR: Heiner Müllers Autorschaft. In: Grimm, G. E. (org.). Metamorphosen des Dichters: Das Rollenverständnis deutscher Schriftsteller vom Barock bis zur Gegenwart. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1992, p. 286-301.: 289; 2007: 60) tira a seguinte consequência, em sua(s) análise(s) do texto: “se o poeta tivesse cantado os lavradores e o instrumento de trabalho deles (nós ainda completamos: o trabalho mesmo), a sua solidariedade e proteção também lhe seriam dadas, ele teria se tornado completamente invulnerável, mais: imortal”.17 17 No original: “Hätte der Dichter die Pflüger und ihr Arbeitsgerät (wir ergänzen noch: die Arbeit selbst) besungen, wäre ihm auch deren Solidarität und Schutz zuteil geworden, er wäre ganz und gar unverwundbar, ja: unsterblich geworden”. Essa é uma ideia geral, a que, decerto, o poema em prosa induz e que se distingue como uma determinação do fazer do poeta. W. Emmerich aponta ainda a reflexividade do que se formula em “Orpheus gepflügt” na obra de H. Müller, relacionando esse texto com os escritos do autor entre 1955 e 1965, as suas chamadas peças de produção (Produktionsstücke), compreendidas em sua situação histórica de (re)construção da República Democrática Alemã e do socialismo a partir dos destroços do pós-guerra. Textos dessa época citados por Emmerich (2007: 60), como Der Lohndrücker (O que achata o salário), Die Korrektur (A correção), Traktor (Trator), Die Umsiedlerin, Der Bau (A construção), já assinalam algumas vezes até no título que, quanto à temática, a poesia de Müller se volta então para os ‘lavradores e seus instrumentos de trabalho’. Segundo Uwe Wittstock (2005Wittstock, U. Nachwort. In: Müller, Heiner. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005. p. 113-145.: 120), “Der Bau pode ser lido como uma parábola da reorganização da ainda deteriorada economia da DDR”.18 18 No original: “Der Bau [kann] als eine Parabel auf die Reorganisation der immer noch ramponierten DDR-Wirtschaft gelesen werden”. Nessa leitura‚ a peça diz respeito à construção do novo Estado. Estreitamente vinculada com o tema do arado (pflügen) é a peça Traktor,19 19 Seguindo as indicações em Müller (1987: 134), Traktor é escrito entre 1955 e 1961. “Comentário e montagem em 1974” (“Kommentar und Montage 1974”). que trata, na paráfrase de Emmerich (2007: 60), da reconquista, depois da guerra, de um campo de cultivo que se tornara um campo minado.
Posição muito significativa em nosso contexto possui a peça Der Bau (1963/1964, publicação em 1965) (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 158), na qual a personagem Poeta (Dichter) retoma o mote de “Orpheus gepflügt”, chegando a repetir frases que estavam escritas nesse texto. Nessa peça, da qual uma sentença (Verdikt) do comitê central do partido (SED) em 1965 impossibilitou a encenação (Schulz 1980Schulz, G. Heiner Müller: Realien zur Literatur. Stuttgart: J. B. Metzler, 1980.: 49),20 20 Schulz (1980: 49) e Hörnigk (1985: 35) apontam que a peça Der Bau foi encenada pela primeira vez na República Democrática Alemã (DDR) apenas no começo dos anos 1980. Diferentemente, porém, Wittstock (2005: 121) fala de uma “Premiere” antes do veredito de 1965 do SED. diz o Poeta (Müller 1984: 135):
Letzterer [Orpheus] wurde in Thrakien von Weibern zerrissen, das heutige Bulgarien, übrigens mit Pflügen.
“Denn das Lied schont den Sänger. Der Fleißige hatte besungen/ Alles, Gewächs und Getier und die Glieder lösende Liebe/ Aber den Grund nicht: schweißtreibende Arbeit und Werkzeug”
Sie pflügten ihn. Das war Orpheus, ich heiße -
Ein Dumper fährt vorbei, der Lärm schluckt den Namen. Dichter ab.21 21 Tradução: Este último [Orfeu] foi dilacerado por mulheres na Trácia, atual Bulgária, com arados, aliás. Pois a canção poupa o cantor. O infatigável havia cantado/ Tudo, plantas e animais e o amor que distende os membros/ Mas não o fundamento, o trabalho que faz suar e ferramenta. Elas o araram. Esse foi Orfeu, eu chamo - Um veículo basculante passa, o barulho engole o nome. Poeta sai.
A partir do contexto das peças de 1955 a 1965, Emmerich (2007Emmerich, W. Griechische Mythen als Esperanto - Heiner Müllers Antikenstücke. In: Berg, M.; Holtsträter, K.; Massow, A. von (orgs.). Die unerträgliche Leichtigkeit der Kunst. Köln; Weimar; Wien: Böhlau Verlag, 2007, p. 59-76.: 60), em resumo, julga que H. Müller “fundamenta no muito antigo mito de Orfeu uma forçosamente nova definição da função da autoria socialista na DDR dos anos 50”,22 22 No original: “[d]er marxistische Schriftsteller Heiner Müller begründet so im uralten Orpheus-Mythos eine forciert neue Funktionsbestimmung von sozialistischer Autorschaft in der DDR der 50er Jahre”. a saber, “a produção poética se legitima de modo atual através da aliança com a classe trabalhadora, concretamente: através da sua lida com a produção material e seu expoente, o proletariado” (Emmerich 1992: 289),23 23 “Die poetische Produktion legitimiert sich aktuell durchs Bündnis mit der Arbeiterklasse, konkret: durch ihre Auseinandersetzung mit der materiellen Produktion und ihrem Träger, dem Proletariat”. mas considera ainda que “ele [Heiner Müller] claramente distingue de Orfeu o poeta ‘do novo tempo’” (Emmerich 2007: 61).24 24 No original: “er [Heiner Müller] [setzt] den Dichter der ‘neuen Zeit’ eindeutig von Orpheus […] ab”. Destarte, o mito de Orfeu é referido, usado para uma formulação do papel do poeta. Mas uma distinção fundamental entre Orfeu e o poeta que se designa em Heiner Müller, em sua poesia, é delineada. De maneira geral, este, diferentemente de Orfeu, procura fazer seu canto sobre os instrumentos de arar, “o trabalho que impele suor”25 25 No original: “schweißtreibende Arbeit”. (Müller 1984: 135). Nesse ponto, Emmerich (2007) acentua mais o quanto Orfeu aparece em H. Müller como uma figura de contraste. Como se designa na frase do Poeta de Der Bau, “esse era Orfeu”26 26 No original: “Das war Orpheus”. (Müller 1984: 135): a menção ao mito trata de uma figura e um fazer poético pertencentes ao passado. De todo modo, Orfeu não deixa de significar uma referência: uma estilização, uma justificação do tratamento da temática do arar na poesia é feita por meio desse mito.
Saindo do contexto mais imediato das Produktionsstücke, Emmerich (1992Emmerich, W. Orpheus in der DDR: Heiner Müllers Autorschaft. In: Grimm, G. E. (org.). Metamorphosen des Dichters: Das Rollenverständnis deutscher Schriftsteller vom Barock bis zur Gegenwart. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1992, p. 286-301.: esp. 295-298) indica uma proximidade, que se delineia através do texto “Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen. Zu einer Diskussion über Postmodernismus in New York”, entre o tratamento do tema da fragmentação no desmembramento de Orfeu e um enfraquecimento da ideia de autoria para H. Müller. Esse texto de 1979 alude várias vezes a Orfeu. Ele é iniciado com o próprio texto “Orpheus gepflügt” (Müller 1989: 21). A menção, em seu início, ao teórico da pós-modernidade Ihab Hassan deve remeter ao livro deste Dismemberment of Orpheus: Toward a Postmodern Literature (1971) (Desmembramento de Orfeu: para uma literatura pós-moderna), através da referência a Orfeu. Com essa alusão, a imagem do desmembramento de Orfeu, a que se induz em “Orpheus gepflügt” também pela apresentação do mito rente a Ovídio (Met. 11, vv. 36-41, 50-51), mas que não é exatamente explicitada, é mais uma vez sugerida. Mais ao final desse texto de H. Müller, Orfeu retorna novamente ‘entre instrumentos de arar’ como um representante, uma figuração da poesia: “duas figuras da poesia, na hora da incandescência fundindo em uma figura: Orfeu que canta entre os arados, Dédalo em voo através dos intestinos labirínticos do Minotauro”27 27 No original: “Zwei Figuren der Dichtung, in der Stunde der Weißglut verschmelzend zu einer Figur: Orpheus der unter den Pflügen singt, Dädalos im Flug durch die labyrinthischen Därme des Minotauros”. (Müller 1989: 24). Sem entrar em um apreciação mais detalhada desse trecho, note-se que, no que diz respeito à investigação aqui, a expressão “Orpheus der unter den Pflügen singt” (“Orfeu que canta sob os arados” ou “entre os arados”) conforma uma ambivalência que assinala, de modo geral, a representação de Orfeu em H. Müller, pelo que temos visto até aqui: por um lado, aponta para o desmembramento de Orfeu, que é também sua destituição, seu sucumbir, seu aniquilamento (e não existe em “Orpheus gepflügt” o motivo de sua lira e cabeça pelo Hebro, que continuam a produzir sons, por exemplo); por outro, aponta para a poesia, o poeta entre, junto a esses instrumentos de trabalho, como se pode ver em suas Produktionsstücke, mais especificamente em Der Bau, o que remete a uma própria estilização sua como um Orfeu, só que algo transfigurado em uma relação do poeta com o trabalho de construção do socialismo.
Deixando de lado comparações entre H. Müller e Ihab Hassan em suas referências a Orfeu, bem como relações e diferenças quanto a ideias sobre autoria que se encontram em H. Müller e em teóricos da pós-modernidade, as quais nos conduziriam para além do escopo proposto para este escrito, concentra-se, a seguir, ainda em motivos do mito de Orfeu e aspectos de sua formulação, caracterização em H. Müller, sobretudo na ambivalência do tópos de ‘Orfeu entre instrumentos de arar’. Nisso, ecos do tema do desmembramento de Orfeu em “Orpheus gepflügt” também são perscrutados em outros momentos da obra do autor. Como visto, esse texto sobre Orfeu perpassa sua obra. Na sequência, um exame mais detalhado de “Orpheus gepflügt” e dos motivos do mito aí abordados é articulado com a menção a Orfeu em Der Bau. Além das distinções, são sugeridas identificações entre o poeta que se apresenta em H. Müller e Orfeu, principalmente através de um motivo do mito antigo que fica subjacente em textos e falas de H. Müller aqui discutidos.
A asserção inicial de “Orpheus gepflügt” (“Orpheus der Sänger war ein Mann der nicht warten konnte”)28 28 Tradução: “Orfeu o cantor era um homem que não podia esperar”. (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44) resgata, fazendo um comentário interpretativo geral acerca dessa figura mítica, aquele que tradicionalmente talvez seja o motivo, o momento mais característico desse mito: o olhar de Orfeu que se volta a Eurídice, para trás, antes que tivessem deixado o mundo dos mortos, ocasionando a sua perda. Como contado, em relação a essa passagem do mito, de maneira bastante extensiva justamente em Ovídio (Met. 10, vv. 1-63), Orfeu vai ao Hades após a morte de Eurídice, cujo nome, aliás, não aparece em “Orpheus gepflügt” - a designação “seine Frau” (“sua mulher”) (müller 1992: 44), no caso, convém a ela. Ele consegue ali através de seu canto, sua arte, permissão para trazê-la novamente, com a condição de não olhar para trás, para Eurídice, até que tivesse deixado os “vales de Averno” (Met. 10, vv. 51-52), o reino dos mortos. Orfeu transgride esse “acordo”, essa “lei” (“legem”) (Met. 10, v. 50), o que se indica em “Orpheus gepflügt” com a expressão “verbotnen Blick” (“olhar proibido”), perdendo-a novamente. A essa violação do olhar, ao não aguardar a saída do mundo dos mortos, liga-se a ideia de um ‘não saber’, ‘não poder esperar’, a qual se estende ainda sobre outros motivos do mito, como o da “pederastia” (“Knabenliebe”) (Müller 1992: 44), nessa formulação de H. Müller. A característica da pressa atribuída a Orfeu encontra também uma ilustração na metáfora do resguardo, que ele desrespeita (Müller 1992: 44). O tema, tomando a forma de um desprezo, converge em sua desconsideração dos trabalhos no campo. De todo modo, a contraposição e, por outro aspecto, também a aproximação entre Orfeu e o mundo agrícola não deixam de ecoar a apresentação do mito já nas Geórgicas29 29 Texto indicado adiante com a abreviação Georg. , de Virgílio, que, como o próprio nome indica, é um poema sobre agricultura, criação de animais; poema em que o insucesso de Orfeu, por causa de seu ‘olhar proibido’, em trazer Eurídice de volta à vida - o motivo do olhar para trás e sua proibição, aliás, acha-se nos textos supérstites pela primeira vez aí (Deufert 2010Deufert, M. Orpheus in der antiken traditon. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2010, p. 264-271.: 267) - é caracterizado como um descuido, desprezo, uma imprudência dessa figura do poeta (Virgílio 1999: 252: “incautum”, Georg. 4, v. 488), que representa, assim, por determinada perspectiva, certo contraste com uma postura ideal do lavrador em seu cultivo da natureza, em relação com processos de surgimento da vida. Para além dessas representações do mito em Virgílio e Ovídio, para além do âmbito do mito da catábase em torno de Eurídice, a relação que se constitui entre Orfeu e a natureza, de modo geral, pode ser abarcada, de uma feita, como uma que suprime ou elide o trabalho, na medida em que a natureza se curva a ele, ao seu canto e sua lira. De outra, tanto a harmonia que ele produz na natureza quanto o controle que exerce sobre ela com sua lira, os quais se veem em representações do mito, como nas Metamorfoses mesmo, suplantam ou substituem o trabalho, seus efeitos e resultados na natureza.
Em “Orpheus gepflügt”, o caráter de apressado que se determina em Orfeu possui um reflexo na condução do texto, em frases comprimidas pelas preposições “durch”, “nach”, “bei”, por exemplo (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44). Em consideração a isso, a ausência de algumas pausas nessas primeiras frases, que discorrem sobre o não poder esperar, também chama atenção, como a falta da vírgula entre “Mann” (“homem”) e “der” (“que”) ou a falta de vírgula antes de “bevor” (“antes”) (Müller 1992: 44), em frase que justamente indica uma necessidade de esperar pela condição física de sua mulher: “bevor sie neu im Fleisch war”.30 30 Tradução: “antes que estivesse novamente em carne”. A própria escolha pelo texto corrido ao invés da disposição em versos, nesse poema, é um modo de evitar pausas (e tentar evitar quebras). Por vezes, H. Müller apresenta certa peculiaridade na colocação de pontuações, suprimindo-as, como se vê em “Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen”31 31 Tradução: “O assombro a primeira aparição do que é novo”. (Müller 1989: 21) ou em “So lang der Weg reicht bist du meine Last”,32 32 Tradução: “o quanto meu caminho se estende tu és meu fardo”. num trecho em versos da peça Der Bau (Müller 1984: 133). Em “Orpheus gepflügt”, esse procedimento parece reforçar uma aproximação entre elementos díspares, provocando mesmo um choque entre eles. Ele se coaduna aí com um efeito de estranhamento. Nesse texto, isto se relaciona também com componentes formais e de conteúdo que operam em diversos registros, através da narrativa mítica. Exemplos disso são o título, que já causa surpresa no que diz respeito à sua referencialidade e que em sua condensação até remete a uma linguagem jornalística (Zimmermann 2016Zimmermann, N. Mythos als Zivilisationskritik: die pragmatisierung einer erweiterten negativen Dialektik in Werken Heiner Müllers. Master’s Thesis. University of Oregon, Eugene, 2016.: 17-18); a suposição algo verista para a morte de Eurídice, em uma analogia com o tradicional motivo do ‘olhar de volta’; a designação algo insólita do “puerpério” (“Kinderbett”) (Müller 1992: 44), em intersecção com a dedicação de Orfeu ao ‘amor aos jovens’. Entre outras coisas, o choque diz respeito a um encontro entre níveis distintos, âmbitos diversos, que resulta em um dilaceramento, mas também transformação de Orfeu, de seu mito, no embate com o que até então fora desprezado.
A indicação de duas mortes, duas perdas, de Eurídice tem sua correspondência no mito antigo. Uma morte se refere a que a leva ao Hades; outra, a seu retorno para lá em consequência do insucesso de seu resgate por Orfeu, de modo que a conjunção “ou” (“oder”), no início de “Orpheus gepflügt”, não precisa ser entendida num sentido excludente ou talvez denotando uma indeterminação, incerteza, no paralelismo “durch zu frühen Beischlaf nach dem Kindbett oder durch verbotnen Blick beim Aufstieg aus der Unterwelt” (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44).33 33 Tradução: “por ter relação sexual muito prematuramente depois do puerpério ou por olhar proibido ao subir do mundo ínfero”. A ênfase na distinção de Orfeu como “homem” (“Mann”), nesse início, já deve ressaltar os aspectos amorosos, a latência sexual que faz parte desse mito. Aqui, um elemento da tradição, como a “avidez” (“avidus”, Met. 10, v. 56) de Orfeu no retorno do mundo dos mortos, é reportado à relação entre Orfeu e Eurídice antes da sua passagem pelo Hades. Essa característica é retratada como algo funesto, o que vale também para a transgressão relativa ao olhar para trás. A formulação dessa passagem de “Orpheus gepflügt” induz a uma analogia entre as situações. Uma analogia entre a perda de Eurídice “pela relação sexual muito prematuramente depois do puerpério”34 34 No original: “durch zu frühen Beischlaf nach dem Kindbett”. e o ‘olhar para trás de Orfeu antes de ter deixado o reino das sombras’ é criada, por exemplo, através da designação “antes que ela estivesse novamente em carne”35 35 No original: “bevor sie neu im Fleisch war”. (Müller 1992: 44). Essa sentença, pois, pode referir-se tanto à sombra de Eurídice (na imagética da mitologia grego-romana, cf. p. ex. Georg. 4, vv. 499-502; Met. 10, v. 48), que, apesar de quase voltar à vida, não chega a ter novamente uma existência viva física, pela quebra do acordo de Orfeu no Hades; quanto, num registro algo perverso, ao desrespeito do puerpério, à relação sexual antes que as condições da mulher, o seu corpo e seus órgãos se recuperassem de eventuais complicações do parto e da gestação. Através disto, em “Orpheus gepflügt”, ambas as situações são equiparadas. Nessa confluência, o mito do “olhar proibido” (“verbotnen Blick”) transmitido da Antiguidade, a ‘morte’ de Eurídice por causa de um desrespeito de Orfeu - relativo a não olhar para trás no Hades, esperar que saíssem do reino das sombras para olhar para ela -, é aproximado de uma interpretação um tanto quanto verista ou mesmo racionalista (num tipo de evemerismo) do mito, na ideia de uma violação do puerpério. Assim, a versão do mito antigo que conta da descida de Orfeu ao Hades, de suas capacidades à lira que levam à permissão de resgatar Eurídice, mito que culmina na transgressão que a condena ao mundo dos mortos, apareceria como um tipo de embelezamento. Aliás, na formulação de “Orpheus gepflügt”, não se detém muito na capacidade de Orfeu de ‘tocar’ a morte. Volta-se mais ao momento em que ele a perde. Mesmo sua capacidade de encantar a natureza, criar harmonia com sua música, é um motivo basicamente suprimido, modificado nesse poema para uma questão de tópica poética, na passagem do ataque pelas mênades. A descrição da morte de Eurídice como o retorno ao pó (“so daß sie in den Staub zurückfiel”) (Müller 1992: 44, realce D. S.) serve ainda como referência às duas situações colocadas para a sua ‘perda’: pode indicar uma imagem geral do destino dos seres humanos de voltar ao pó, como na sentença, na metáfora bíblica acerca da morte (Gn. 3, 19)36 36 Na tradução de Lutero: “Im Schweiße deines Angesichts sollst du dein Brot essen, bis du wieder zu Erde wirst, davon du genommen bist. Denn Staub bist du und zum Staub kehrst du zurück”. (“Com teu rosto em suor comerás o teu pão, até que voltes a ser terra, da qual és tomado. Pois és pó e ao pó retornarás.” (realce do texto citado). , i.e., a morte terrena, bem como o retorno de Eurídice ao Hades após o olhar de Orfeu para trás, durante a subida (“revolutaque rursus eodem est”) (Met. 10, v. 63), a volta de Eurídice para o lugar onde estava (ao próprio Hades). Nesse âmbito, “Staub” (Müller 1992: 44), o “pó” lembra ainda o “fumus” (“fumo”) do trecho em Virgílio que retrata o desaparecimento de Eurídice ante os olhos de Orfeu na volta do mundo dos mortos como fumaça misturando-se no ar (Georg. 4, vv. 499-502).
Um eco dessa ‘explicação’, interpretação verista ou mesmo racionalista-evemerista da morte de Eurídice em “Orpheus gepflügt” pode ser percebido na entrada sobre o mito de Orfeu do Dicionário mitológico (1770) (Gründliches mythologisches Lexikon) de Hederich, na seção “Eigentliche Historie und anderweitige Deutung” (“História de verdade e outras interpretações”), a qual comumente é inserida nas explanações sobre os diversos mitos do dicionário. Ali, pode-se ler:
Essa fábula [da tentativa de resgate da mulher no Hades por Orfeu] explica-se também certamente por sua [de Orfeu] habilidade com a medicina, através da qual ele livra Eurídice de uma doença grave, mas ele, antes que ela estivesse de novo totalmente recuperada, pôs tudo de novo a perder por seu amor intempestivo.37 37 Man erkläret diese Fabel auch wohl von seiner Geschicklichkeit in der Arzeneykunst, wodurch er die Eurydice von einer schweren Krankheit befreyet, doch ehe sie noch völlig wieder hergestellet gewesen, habe er durch seine unzeitige Liebe alles wieder verderbet. (hederich 2006b: 6.176)
Nessa passagem especificamente, Hederich não cita fontes da Antiguidade. Ele se apoia em Tzetzes, um erudito bizantino do século XII, e remete ao filólogo clássico alemão dos séculos XVII-XVIII Johann Albert Fabricius. Nesse apontamento, temos também uma designação da morte de Eurídice pela intempestividade, avidez de Orfeu, pela sua falta de autocontrole, que em certa medida também vale para o motivo do mito de seu olhar para trás.
Em termos gerais, a narrativa de “Orpheus gepflügt”, com a ‘invenção’ (“erfand”) por Orfeu do ‘amor sexual aos jovens’ após a morte de “sua mulher” (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44), não deixa de ter uma correspondência - evidente que de maneira bastante mais condensada nesse texto de H. Müller - em Ovídio (Met. 10, vv. 78-85). Em “Orpheus gepflügt”, esses acontecimentos são concatenados numa sequência mais direta e sem a diferença temporal explicitada nas Metamorfoses. Aqui, três anos se passam na narrativa (“Tertius […] annum/ finierat Titan”) (Met. 10, vv. 78-79) entre o episódio em torno da morte de Eurídice (em decorrência de uma picada de cobra, aliás: Met. 10, v. 10) e sua (de Orfeu) ‘invenção entre os trácios de transferir o amor a jovens rapazes’38 38 No original: “ille [Orpheus] etiam Thracum populis fuit auctor amorem/ in teneros transferre mares”. (Met. 10, vv. 83-84). No caso do poema em prosa, suscita-se um choque de situações, componente que perpassa vários aspectos desse texto.
Na qualificação da “pederastia” como “mais próxima da morte do que o amor a mulheres”39 39 No original: “die Knabenliebe, die […] dem Tod näher ist als die Liebe zu Weibern”. (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44), distancia-se, a princípio, das reminiscências às Metamorfoses nesse quesito - a não ser que se considere, por exemplo, a relação da pederastia com a morte de Orfeu pelas mênades; que Orfeu, assim, já ‘está mais próximo da morte’, no desenrolar da narrativa. Em “Orpheus gepflügt”, essa determinação da pederastia o liga mais uma vez à esfera da morte. De algum modo, a ideia de Orfeu como causador, ainda que de maneira involuntária, da morte de sua esposa se impõe também através do mito do olhar para trás. Essa relação com a morte de Eurídice não deixa de permanecer na indicação da transgressão do puerpério. O motivo do mito do olhar para trás, que visualmente pode sugerir algo de atenção, de consideração (Rücksichtsnahme) (Heinrich 2003Heinrich, K. Orpheus / Antiorpheus / Prorsa. Dankrede. In: Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung. Jahrbuch 2002. Darmstadt: Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung, 2003, p. 167-170.: 168), transforma-se em desrespeito, falta de precaução (Vorsicht), em sua identificação com a violação do puerpério.
Em linhas gerais, a recusa às mulheres por Orfeu e sua ‘invenção’ da pederastia após a morte da esposa (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44) lembra o mito em Ovídio. Ainda que a formulação não seja tão detalhada nas Metamorfoses, pode-se pensar que a rejeição de Orfeu às mulheres após a morte de Eurídice remonte a uma fidelidade a ela - “sive [quod Orpheus] fidem dederat” (Met. 10, v. 81); “he had given his troth once for all”, na tradução de Frank J. Miller (Ovídio 1984: 71). Nessa conjuntura peculiar, o ‘amor em proximidade da morte’ (Müller 1992: 44) distingue ainda uma maneira de aproximação com a esposa. Como seja, o modo como a ‘invenção’ por Orfeu dessa prática sexual é posto em “Orpheus gepflügt” contribui para sua caracterização como “homem que não podia esperar” (Müller 1992: 44).
A sugestão de que a ‘invenção’ da pederastia por Orfeu provoca ‘as que foram desprezadas’ (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44), mulheres que por fim o matam, tem seu precedente, não único, também em Ovídio. No alemão, “Die Verschmähten” (Müller 1992: 44) não precisa designar, necessariamente, um plural feminino, mas a referência às “mulheres” é próxima, tanto num plano sintagmático quanto semântico, e deve se aplicar aí em algum nível de sentido, não obstante ‘as coisas desprezadas’ desempenharem importante papel, de modo geral, na narrativa. Mais uma vez, o texto de “Orpheus gepflügt” mostra estar rente a Ovídio: “Die Verschmähten” (Müller 1992: 44), verschmähen ecoa “contemptor” (Met. 11, v. 7), que é como uma das mulheres que ataca Orfeu o acusa, ao iniciar a sua ofensiva - contemnere, a que se liga o nome “contemptor” (também existe a forma contempno), é, na entrada de verschmähen no dicionário Grimm, o correspondente latino dessa palavra alemã,40 40 Cf. https://bit.ly/2VkumTk. Acesso em: 23 jan. 2019. da qual se forma “Verschmähten”. É de se perguntar ainda a que tipo de ‘desprezo’ se refere “contemptor”, em Met. 11, v. 7. Decerto, isto ecoa a rejeição ao amor das mulheres por Orfeu, após a morte de Eurídice, sua predileção pelo amor aos jovens rapazes (Met. 10, vv. 81-82). Mas essa acusação pode ser relacionada a uma questão poética, por assim dizer, ao tratamento das mulheres na poesia que Orfeu apresenta no momento em que é atacado nas Metamorfoses. Nessa obra, a designação de que Orfeu rejeitara o amor das mulheres e a narração do ataque pelas seguidoras de Dioniso são separadas por mais ou menos 600 versos - como aponta Segal (1989Segal, C. Orpheus: The myth of the poet. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1989.: 57), a sequência causal não é explícita nos acontecimentos do episódio de Orfeu nas Metamorfoses -, dos quais a maior parte é preenchida por canções que Orfeu canta na natureza. Seguindo as palavras do próprio Orfeu, o tema de sua poesia ali são ‘jovens queridos por deuses (“superis”) (Met. 10, v. 153) e meninas com desejo, atônitas por paixão não permitida, punidas merecidamente’ (Met. 10, vv. 152-4). Numa referência mais imediata das Metamorfoses, talvez sua caracterização como “contemptor” (Met. 11, v. 7) se ligue ao tratamento dado às mulheres em sua poesia. Já em Fánocles, poeta do alto helenismo que escreveu um catálogo da pederastia da qual temos apenas fragmentos, a morte de Orfeu pelas mulheres é mais diretamente relacionada ao seu amor homossexual (fánocles 1990: 45, vv. 7-10). De acordo com uma motivação geral etiológica que se pode perceber no tratamento do mito de Orfeu em Fánocles, o mítico poeta é referido como o que primeiramente mostrou esse amor homossexual masculino entre os trácios, o que é um ponto em comum com H. Müller (1992: 44) (“erfand”) e Ovídio. Só que, em Fánocles, não há referência a uma mulher, esposa de Orfeu. Mas, também nesse escritor do período helenístico, há outro motivo relacionado ao desprezo que se assinala para a morte de Orfeu: ele “não aprovou os desejos das mulheres” (“οὐδὲ πόθους ἤινεσε θηλυτέρων”) (Fánocles 1990: 45, v. 10). O verbo “ἤινεσε”, que se traduziu como “aprovou”, tem seu sentido ligado à fala. Entre seus significados, estão aconselhar e mesmo louvar.41 41 Cf. a entrada αἰνέω, do Liddell-Scott: https://bit.ly/304sf4R. Acesso em: 23 jan. 2019. Em relação a Orfeu, pode-se pensar no canto como lugar dessa reprovação ou mesmo falta de louvor (Fánocles 1990: 45, v. 10). Assim, ainda que de forma apenas sugestiva, a questão do desprezo é relacionada a um aspecto do canto, da poesia, ao tratamento de temas pelo poeta: algo que, de maneira muito particular, se considerada essa constelação, H. Müller ressignifica em conjunção com os elementos do arar, que não teriam ‘tido lugar’ em sua poesia (Müller 1992: 44).
O destaque, a exposição dada aos instrumentos agrícolas para a morte de Orfeu é um distintivo das Metamorfoses, em comparação com fontes da Antiguidade até Ovídio. Na tradição poética supérstite anterior a esse poeta romano, os objetos de arar não chegam a desempenhar papel especial, definitivo, na morte de Orfeu. Heinz Hofmann (1999Hofmann, H. Orpheus. In: Hofmann, H. (org.). Antike Mythen in der europäischen Tradition. Tübingen: Attempto Verlag, 1999. p. 153-198.: 156-157) descreve que se vê Orfeu sendo atacado com os mais variados utensílios, em representações iconográficas de antigos vasos gregos (preponderantemente século V a.C.): “espeto” (“Bratspieß”), “espada” (“Schwert”), “pilão” (“Mörserkeule“), “pedra” (“Stein”), “machado de dupla face” (“Doppelaxt”). Hofmann (1999: 157) nota a “heterogeneidade das armas, que provêm do arsenal dos guerreiros, da cozinha e da própria natureza”.42 42 No original: “Die Heterogenität der Waffen, die dem Waffenarsenal der Krieger, der Küche und der Natur selbst entstammen”. Em Fanócles, Orfeu é morto com “cortantes espadas” (Fánocles 1990Fánocles. The death of Orpheus (trecho de Ἔρωτες ἤ Καλοί). In: Hopkinson, N. (ed.). A Hellenistic Anthology. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 45-46.: 45, v. 8). Ainda em duas estações importantes da transmissão desse mito, Virgílio e (Pseudo-)Eratóstenes, não se encontra tal menção aos instrumentos de arar (porém aos arados, aos campos, em Georg. 4, v. 522, “agros”). No entanto, o desprezo é também ali um motivo para sua morte e dilaceramento: em Virgílio, mulheres Trácias, cícones, desprezadas (“spretae”) pelo lamento, pela contínua lembrança (“quo munere”) do destino de Eurídice pelo cantor, despedaçam-no em ritos báquicos (Georg. 4, vv. 520-522); no grego (Pseudo-)Eratóstenes (2002: 210), em texto do século III a.C., Catasterismos, conta-se que Orfeu é morto pelas seguidoras de Dioniso, por ele não ter honrado esse deus e tratado Apolo, o Sol, como o maior dos deuses (Eratóstenes 1963: 140).
Ponto nevrálgico de “Orpheus gepflügt” é a relação entre desprezo e morte, para a qual convergem vários aspectos da sua narrativa. Existe um entrelaçamento duplo entre esses termos. Um descuido de Orfeu, tanto no que se refere à transgressão do puerpério quanto do olhar para trás no retorno, na saída do Hades, leva sua mulher à morte. Em conjunção com diversos elementos do mito, Orfeu é perseguido por seu desprezo (“Die Verschmähten”) (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44). Por fim, um desprezo, uma desconsideração se relaciona ainda aos seus cantos, ao que ele não havia contemplado em sua poesia. Ainda que o motivo da morte de Orfeu através do uso dos instrumentos agrícolas pelas mênades esteja formulado em Ovídio, a junção desse motivo com o do desprezo, com a questão da tópica poética, do que é tratado em sua poesia, é algo próprio de H. Müller, nessa forma. Essa questão do tópico, do lugar poético se expõe no poema com a menção aos “arados, para os quais não houvera lugar na canção dele”43 43 No original: “Pflüge […], für die kein Platz gewesen war in seinem Lied”. (Müller 1992: 44). Extensivamente, é possível entender que se trata, de maneira geral, de um desprezo pela esfera do trabalho, representada pelos lavradores. Seguindo ainda essa sugestão inicial de desatenção ou mesmo abuso por Orfeu de alguém em estado de extenuação - a mulher no puerpério -, esse poeta parece adquirir certos traços de alheamento ou mesmo de alguém que explora, nessa sua desconsideração do trabalho produtivo. Observado dessa perspectiva - e retomando o argumento e as indicações de Emmerich (1992Emmerich, W. Orpheus in der DDR: Heiner Müllers Autorschaft. In: Grimm, G. E. (org.). Metamorphosen des Dichters: Das Rollenverständnis deutscher Schriftsteller vom Barock bis zur Gegenwart. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1992, p. 286-301., 2007) -, Orfeu, essa figura do poeta, não contempla elementos a que uma produção poética que faz parte da construção do socialismo, na DDR, deve ser sensível: para além do motivo do arar, ao proletariado e seus meios de trabalho, nesse contexto.
Decerto, há, nesse poema de H. Müller, muitos subentendidos que podem ser preenchidos pelo pano de fundo do mito, i.e., por suas narrativas anteriores. Mesmo a morte e o desmembramento de Orfeu é um acontecimento que não está mostrado nessa cena de “Orpheus gepflügt”, não é explicitado nessa narrativa, diferentemente de Ovídio (Met. 11, vv. 29-50), por exemplo, em que a morte do poeta, violenta, apresenta traços de suplício. A ideia de Orfeu desmembrado é trazida pelo título do poema “Orpheus gepflügt” (“Orfeu arado”), que deve referir a Orfeu transpassado e dilacerado pelos instrumentos de arar. Essa imagem se divisa também ao final do poema, em que a frase “So war sein Platz unter den Pflügen”44 44 Tradução: “Assim foi seu lugar sob os arados”. (Müller 1992: 44) ecoa “Orpheus gepflügt”, considerando que unter dem Pflug sein (estar sob o arado) é outra formulação para arar.45 45 O dicionário Duden designa as expressões unter den Pflug kommen/ unter dem Pflug sein como uma forma elevada de exprimir arar, “als Ackerland bestellt werden” (‘ser reservado como terra para o arado, cultivável’). Disponível em http://www.duden.de/rechtschreibung/Pflug. Acesso em: 31 jan. 2019.
Em “Orpheus gepflügt”, pode-se, de certo modo, inferir que “as desprezadas” rasgaram a pele de Orfeu com os instrumentos de arar porque o ataque com outros objetos fracassou: “a canção poupa o cantor: o que ele havia cantado não podia arranhar a sua pele”46 46 No original: “das Lied schont den Sänger: was er besungen hatte, konnte seine Haut nicht ritzen”. (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44). Nessa frase, localiza-se o outro verbo do texto, além de “spart” e “ist”, no tempo presente: “schont” (“poupa”). A frase aparece destacada da narrativa, aproximando-se de um modo sentencial. Apresenta uma definição geral do “cantor”, do poeta. Entre outras coisas, ‘a canção poupa o poeta’ remete a uma ideia de continuidade, conservação do poeta na poesia. A sentença articula ainda uma interpretação algo singular acerca da passagem do mito relativa ao ataque das mênades a Orfeu. Ela se distingue como uma conclusão que, até certo ponto, pode ser baseada no que se encontra em representações de Orfeu na Antiguidade. Um paralelismo entre seu texto e as Metamorfoses é feito, de maneira concisa e expressiva, pelo próprio H. Müller, que em vídeo com A. Kluge assim comenta o mito de Orfeu contado por Ovídio47 47 No original: “Sie [thrakische Frauen] haben Steine auf ihn geworfen, aber Steine hatte er natürlich besungen, die Steine tanzten um ihn herum. Und Äste, mit Ästen nach ihm geschlagen, das ging auch nicht, denn die Bäume hatte er auch besungen. Also alles, was er besungen hatte, konnte ihn nicht verletzen” (7:02). :
elas [mulheres trácias] jogaram pedras nele, mas pedras ele tinha obviamente cantado, as pedras dançaram em torno dele. E galhos, batiam com os galhos atrás dele, e também não deu certo, pois ele tinha cantado também as árvores. Assim, tudo o que ele tinha cantado não podia machucá-lo.
O período “a canção poupa o cantor” (Müller 1992Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.: 44) pode ser entendido como uma abstração generalizante, mas também parte - uma pequena prolepse - da narração do mito: como se conta, as primeiras “armas” usadas contra ele são inefetivas, sucedendo no ataque os instrumentos de arar. Isto é condizente com o mito antigo de Orfeu. Ele é retratado sendo capaz de encantar pedras, árvores etc. - envolvê-las com seu canto, besingen,48 48 Cantu implere (preencher com o canto), na definição do dicionário Grimm. Disponível em: https://bit.ly/2J7Sylp. Acesso em: 31 jan. 2019. no vocabulário de “Orpheus gepflügt” -, mas não se transmite tal relação sua com charruas, instrumentos de arar. Mas, ainda assim, essa narração do mito por H. Müller se calca em uma supressão (esse é seu truque ou artifício, nesse aspecto) em comparação com Ovídio, cuja proximidade com “Orpheus gepflügt” se tem procurado mostrar. Tal supressão fornece mais elementos para essa interpretação, consideração própria do mito por H. Müller. Ela também pode ser percebida no modo como ele narra esse mito no vídeo supracitado. Na narrativa de Ovídio, elemento fundamental são os barulhos que as mênades produzem, os quais acabam sobrepujando a música, a poesia de Orfeu (Met. 11, vv. 1-43). Inicialmente, os objetos que as mênades atiram em Orfeu, basicamente pedras, varas, galhos, tirso, são subjugados pelo poder da lira dele; são encantados por ela, seduzidos em seu caminho, demovidos do intento de atacá-lo. Mas, devido aos gritos e sons desarmônicos das flautas, tambores, bater de mãos delas, os quais suplantam os sons produzidos por Orfeu, as coisas atiradas contra ele podem atingi-lo, com o que começa o suplício do cantor. Em outro trecho de “Orpheus gepflügt”, o barulho das mênades desempenha um papel lateral: “Camponeses, assombrados pelo barulho da caçada, correram de seus arados” (Müller 1992: 44). Em Ovídio, nessa passagem, os camponeses não fogem especificamente pelo barulho, mas ao verem a aproximação da horda furiosa (das mulheres) (“coloni, / agmine qui viso fugiunt”) (Met. 11, esp. vv. 33-34). Algo que resulta disso é que na formulação do mito em “Orpheus gepflügt” o predicado de Orfeu de encantar objetos com sua lira é reduzido. Deveras, ele nem aparece. Significante aí é uma questão do ‘lugar na poesia’. Trata-se da relação de Orfeu com os arados como tema da poesia. Todavia, o motivo do barulho que suplanta Orfeu não é completamente ausente na retomada do mito por H. Müller. Esse motivo reaparece na peça Der Bau, conferindo ainda outros significados para o mito de Orfeu em H. Müller. Mas, antes de analisar esse motivo no contexto da peça, destacam-se logo abaixo alguns aspectos de “Orpheus gepflügt”, texto que perpassa a obra do autor, que se mostram de certo modo programáticos, tanto num contexto temporalmente mais imediato quanto num mais amplo.
“Orpheus gepflügt” apresenta não apenas conteúdos que retornam ao longo da poesia de H. Müller, como o arado e seus instrumentos, o trabalho e a produção com esses instrumentos, o desmembramento, a fragmentação de uma figura, a retomada de um mito e a exposição de um caráter assombroso seu. Também no plano formal, o poema exibe, de maneira algo condensada, elementos que se mostram recorrentes na poesia do autor. Mais em relação ao teatro, Vlado Obad (1989Obad, V. Zu Müllers Poetik des Fragmentarischen (1987). In: Hörnigk, F. Heiner Müller Material. Leipzig: Reclam Verlag, 1989, p. 157-164.: 158) comenta que, na obra de H. Müller do final dos anos 1980,
há frequentemente formações que parecem caóticas, surrealistas, compondo-se tanto de passagens clownescas como também de passagens que se assemelham ao que é clássico, de quadros de gênero, citações próprias, teatros de marionetes, fantasmagorias, de elementos do teatro ritual de Artaud.49 49 No original: “es sind oft surrealistische, chaotisch scheinende Gebilde, bestehend ebenso aus clownesken wie auch klassisch anmutenden Passagen, aus Genrebildern, Selbstzitaten, Puppenspielen, Phantasmagorien, aus Elementen des rituellen Theaters Artauds”.
Mas tais características valem, em sua quase totalidade, também para “Orpheus gepflügt”. Vimos como o texto é citado em outras obras de Müller. A imagem do desmembramento remonta a um fundo ritual. O mito da poesia clássica é justaposto, por exemplo, ao puerpério. Disso, resulta uma composição que faz colidir diferentes registros, um plano mítico-clássico e um mais naturalista, no tema da perda da mulher de Orfeu, sem que se dedique muita ênfase no discernimento entre esses níveis. Por um lado, o texto se mostra em boa medida como interpretação, ancorada em Ovídio, das narrativas desse mito transmitidas pela poesia antiga. Por outro, nesse texto que se pauta em muito por conduções do pensamento, algumas considerações nele se orientam mais por analogias imagéticas. Há pontos mais soltos (e é provável que isso seja feito propositalmente, seguindo o movimento esboçado acima que é constituinte do poema) nesse texto tão suturado por reflexões acerca do mito nas Metamorfoses.50 50 Alguns questionamentos de Alexander Kluge acerca de “Orpheus gepflügt” na entrevista parecem manifestar algo disso. Por volta de 41:43. Disponível em: https://bit.ly/2Vu1AA0. Acesso em: 16 jan. 2019.
A fragmentação na obra de H. Müller também possui esse caráter duplo, de ser componente tanto do conteúdo quanto da forma. Obad (1989Obad, V. Zu Müllers Poetik des Fragmentarischen (1987). In: Hörnigk, F. Heiner Müller Material. Leipzig: Reclam Verlag, 1989, p. 157-164.: 157s.), mesmo assinalando que as primeiras peças do autor, como Traktor e Der Bau, ainda devem a sua forma em muito ao teatro épico de Brecht, ressalta já aí a tendência à segmentação da forma dramática (justamente o caráter fragmentário de Der Bau foi julgado como problema por parte da crítica literária da década de 1960 na DDR, cf. hörnigk 1985: 45s.), à conjunção mosaica, ao “estilhaçamento das cenas” (“Zersplitterung von Szenen”), aos excertos, em vez da apresentação extensa de diferentes situações e campos sociais. A fragmentação não se restringe à forma composicional e à própria linguagem, mas perpassa mesmo as personagens. Como escreve Wittstock (2005Wittstock, U. Nachwort. In: Müller, Heiner. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005. p. 113-145.: 130): “suas [de H. Müller] figuras sofrem não apenas o dilaceramento interior […], mas também são regularmente dilaceradas perante os olhos do público. […] Os membros amputados, os corpos destruídos e lacerados transformam-se em Leitmotiv”.51 51 No original: “Seine Figuren leiden nicht nur unter der inneren Zerrissenheit […], sondern sie werden regelrecht vor den Augen des Publikums zerrissen. […] Die amputierten Glieder, die zerstörten, zerfleischten Körper werden zu einem Leitmotiv”. Desmembramentos de personagens podem ser vistos, por exemplo, na peça Die Hamletmaschine (Müller 2005 [1977]: 38) e no poema (publicado no livro Gedichte) “Medeaspiel” (Müller 2002: 64). “Orfeu arado” é uma figura que passa por um processo de desmembramento, em referência a um episódio transmitido do mito. Utilizando essa imagem de “Orpheus gepflügt” num nível mais metafórico, como separação de partes (desmembramento) e preparação para uso (na ideia do arar), Orfeu passa por um processo analítico-compositivo, sendo ‘revolvido’ no tratamento de seu mito, de suas partes narrativas, nesse poema em prosa. Com sua disposição particular de motivos do mito, “Orpheus gepflügt” expõe uma consideração do que não deixa de estar em Ovídio, a qual, no entanto, recebe significados específicos no presente (de H. Müller).
‘Orfeu entre os arados’, “seu lugar entre os arados” (“Sein Platz unter den Pflügen”) (Müller 2002Müller, H. Orpheus gepflügt. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 228.: 44) acaba tendo outros significados em H. Müller devido a que o arar não deixa de ser um tópos em sua obra. ‘O seu lugar entre os arados’ faz pensar na cena de desmembramento, mas também no lugar, num tópico: Orfeu entre os arados, ele sendo ali tematizado. Decerto, em “Orpheus gepflügt” temos, em certa camada de sentido, uma ocorrência de arar que evoca uma imagem de fragmentação do corpo e morte de Orfeu, mas essa atividade e esses instrumentos não são ligados apenas a conotações negativas em H. Müller. Como aponta Katharina Ebrecht (2001Ebrecht, Katharina. Heiner Müllers Lyrik: Quellen und Vorbilder. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2001.: 45-48), no poema “Traktoristenliedchen” (1956) e na peça Traktor, arar tem um sentido de preparação do campo para a frutificação, renovação, paz. O tema do arar e do maquinário trator usado para isso remonta, segundo Ebrecht (2001: 47), ao contexto dos anos 1950, em que esse assunto estava na ordem do dia pelo momento de (re)construção da DDR e de sua capacidade produtiva (também agrícola); momento em que a União Soviética dispõe para a DDR instrumentários agrícolas, “1.000 tratores”, como se diz na propaganda do governo de 1952 “Freundschaft der Tat - Wie die Sowjetunion hilft”52 52 Tradução: “Amizade da ação - como a União Soviética ajuda”. (ebrecht 2001: 46s.). Talvez saindo um pouco das proximidades de “Orpheus gepflügt”, mas registrando outros usos do arar (pflügen) na poesia de H. Müller, ainda se vê sua utilização no sentido de engravidar, schwängern (cf. Ebrecht 2001: 48, n. 2) - certamente por sua ligação com a ideia de frutificação: atividade a que se associa, num primeiro momento, Orfeu em relação com o puerpério de sua esposa (Müller 2002: 44). No poema “Ödipuskommentar” (“Comentário ao Édipo”) (1959), pflügen significa também o ato sexual.53 53 O dicionário Grimm registra sentido que implica relação sexual tanto de Pflug quanto de pflügen, nas entradas destas palavras (esp. na seção 2). Disponíveis em: https://bit.ly/2VQdYJH; https://bit.ly/2H8H6nm. Acesso em: 25 fev. 2019. Esta frase do poema se refere ao próprio Édipo: “Jahrlang in glücklicher Stadt drauf/ Pflügte das Bett, in dem er gepflanzt war” 54 54 Tradução: “Anos a fio, em feliz cidade então/ Arou a cama, na qual fora plantado”. (Müller 1992: 51s.) - aqui, um aspecto ameaçador, catastrófico, delineia-se pela conjuntura do mito de Édipo.
‘Orfeu arado’ é resultado do trabalho do poeta, do autor de “Orpheus gepflügt” com o mito - o conceito de trabalho junto ao mito ou trabalho sobre o mito (Arbeit am Mythos) talvez seja mais conhecido de Hans Blumenberg (2014Blumenberg, H. Arbeit am Mythos (1979). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 20144. [1979]), mas vale mencionar aqui, nas palavras de A. Kluge (9:07 do vídeo já citado), as “muito famosas preleções” (“ganz berühmte Vorlesungen”) de Klaus Heinrich, das quais a de 1975-1976, por exemplo, que lida com representações do mito de Héracles, ganha o título arbeiten mit herakles (2006) (trabalhos com héracles). Numa analogia com o trabalho no campo de arar, que se caracteriza como um de renovação e/ou construção de algo novo, o poema apresenta a elaboração, preparação de um tópos, também no sentido de um lugar-comum, para a produção poética. ‘Arar Orfeu’ - cujo resultado parece anunciado no título “Orpheus gepflügt” (“Orfeu arado”) - se distingue como uma atividade de ‘recuperação’ do mito. A partir dessa análise e exposição do mito de Orfeu, que é “Orpheus gepflügt”, obtém-se não apenas uma justificativa do fazer do poeta que, por seu turno, dedica-se à temática do arar, põe-se entre os arados (na adaptação da imagem de “Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen. Zu einer Diskussion über Postmodernismus in New York”, Müller 1989Müller, H. Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen. Zu einer Diskussion über Postmodernismus in New York (1979). In: Hörnigk, Frank (org.). Heiner Müller Material. Leipzig: Reclam Verlag, 1989, p. 21-24.: 24), mas se delineia também, principalmente pelo título (“Orfeu arado”), uma identificação do trabalho do poeta com o trabalho de arar, com aqueles que realizam esse trabalho.
“Orpheus gepflügt” é um poema predominantemente narrativo, uma narrativa com a grande maioria dos seus verbos em um tempo pretérito. Presente é a ação de fazer o poema a partir do(s) mito(s) de Orfeu. Na frase final “So war sein Platz unter den Pflügen”55 55 Tradução: “Assim foi seu lugar entre os arados”. (Müller 2002Müller, H. Orpheus gepflügt. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 228.: 44), “so” ecoa o sentido de uma conclusão narrativa, funciona no âmbito narrativo como um advérbio com um significado consecutivo, mas também sugere um modo, o desmembramento de Orfeu, seguindo o pano de fundo do mito antigo. A frase, entendida como realização do poema que elabora o mito de Orfeu, não deixa de referir-se a que ‘assim’ Orfeu tem lugar na literatura de Heiner Müller, na República Democrática Alemã; Orfeu é inserido ali. Isto ainda ganha outros sentidos pela tematização do arar em sua poesia e pela menção a Orfeu na peça Der Bau. Numa ponderação geral do que foi exposto, Orfeu serve como uma figura de contraste (no que concerne à tematização do arar na poesia), mas também como motivo para o fazer poético em H. Müller. A referência a Orfeu na peça der Bau apresenta outras determinações nesse âmbito de reflexão poética: num nível textual, ele é uma figura de rejeição, mas aparece ainda identificado com o poeta, como se pretende destacar aqui por fim.
O nome Orfeu é mencionado pela personagem Donat, o secretário do partido, já ao final de Der Bau. Donat é, nas palavras de Wittstock (2005Wittstock, U. Nachwort. In: Müller, Heiner. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005. p. 113-145.: 120), o “vitorioso na obra” (“auf der Bau-Stelle Sieger”), “vitorioso no canteiro de obra”. Com certo sucesso, ele consegue impor suas medidas de produção para ‘a construção’ objetivada. Nessa condição, ele se dirige ao personagem Poeta (Dichter), que somente nesse momento aparece na peça. Donat o apostrofa ali (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 135) como Orfeu: “Passen Sie auf, daß Sie nicht die Beine brechen, das Gesicht im Nacken, Orpheus”.56 56 Tradução: “Preste atenção para que você não quebre as pernas, o rosto pressionado no pescoço, Orfeu”. Nesse momento de conclusão da ‘obra’, Donat alega que o poeta não tem função no local; talvez nem devesse estar ali, pois poderia acidentar-se - ou, de maneira mais própria à indicação, à imagem do mito de Orfeu, ‘ser desmembrado’.
O aparecimento de um poeta, ainda mais chamado de Orfeu, é, decerto, algo inusitado. A peça, porém, trata, um tanto quanto sutilmente, também do tema da arte, da representação e recriação da realidade na arte, através de comparações, reflexões de personagens (cf. ainda Schulz 1980Schulz, G. Heiner Müller: Realien zur Literatur. Stuttgart: J. B. Metzler, 1980.: 56). Donat, por exemplo, no início de Der Bau, assim descreve uma contradição sua: “Wenn ein Maler einen Baum kopfstellt, geben wir ihm seine Leinwand zu fressen, und in unsern Büros ist der Abstraktionismus Fakt” (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 87).57 57 Tradução: “quando um pintor põe uma árvore de cabeça para baixo, nós lhe damos sua tela para comer, e em nossos escritórios o abstracionismo é um fato”. Hasselbein, por seu turno, chamado “colega” por Poeta (Müller 1984: 135), mostra uma visão mais favorável à abstração na arte (Müller 1984: 128). O mesmo Hasselbein, engenheiro, figura do intelectual (Schulz 1980: 57), cita Anfião, uma figura mitológica até certo ponto semelhante a Orfeu, a qual podia, com suas capacidades musicais à lira, fazer as pedras se movimentarem e, com isso, edificar cidades, construir muros - A. Kluge, na entrevista com H. Müller, imbrica características de Anfião e Orfeu,58 58 A. Kluge [sobre Orfeu]: “As árvores obedeciam seu canto e se punham em fileiras, as pedras se ordenavam em cidades […]. Ele é, no fundo, um gênio da civilização. (“die Bäume [gehorchten] seinem Gesang und [stellten] sich in Reihen auf, die Steine [ordneten] sich zu Städten, […]. Er ist eigentlich ein Zivilisationsgenie”). Müller: “Sim, aí já é outra história. Foi Anfião que construiu uma cidade. (“Ja. Da ist schon eine andere Geschichte, Amphion war das, der hat eine Stadt gebaut”) (7:41). algo tradicionalmente realizado com esses mitos (Anfião e Orfeu, ver também Hederich 2006aHederich, B. Amphíon. In: Hederich, Benjamin. Gründliches mythologisches Lexikon: Neusatz und Faksimile der Ausgabe Leipzig 1770. Berlin: Directmedia, 2006a, p. 927-934.: 933). Na peça, Hasselbein assim menciona Anfião: “Aber Amphion schlug die dreisaitige Leier und Steine/ Paarten mit Steinen sich und siebentorig stand Theben”.59 59 Tradução: “mas Anfião tocou a lira de três cordas e pedras/ Se uniam a pedras e de sete portas Tebas estava em pé”. E idealiza: “Drei Saiten. Stellen Sie sich den Effekt von zehn Klavieren vor”60 60 Tradução: “Três cordas. Imaginem o efeito de dez pianos”. (Müller 1984: 104). O que se ressalta desse mito é a capacidade de produção e o engenheiro projeta a possibilidade de incrementá-la, se ela pudesse ser manejada. Essa capacidade mítica-poética, musical, de conduzir pedras é ainda sugerida em fases do planejamento e da realização da construção da obra. O ato 8 se chama “Zyklogramm oder der Tanz der Steine” (“ciclograma ou a dança das pedras”) (Müller 1984: 125). O trabalho da linha de montagem (Fließarbeit) é apresentado, também em falas dos personagens, em seu aspecto de Akkord, de ritmo coordenado (Müller 1984: 127, 130).
Der Bau trata, num sentido lato, da construção e produção no novo país, na DDR, também em sua face de abstração e alienação (cf. Schulz 1980Schulz, G. Heiner Müller: Realien zur Literatur. Stuttgart: J. B. Metzler, 1980.: 49s.; 53; 57s. e Wittstock 2005Wittstock, U. Nachwort. In: Müller, Heiner. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005. p. 113-145.: 120s.). Na premência da construção, Donat introduz um terceiro turno de trabalho (Dreischichtenmodell) (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 98-99). Os trabalhos prosseguem, calcando-se em extenuação dos trabalhadores no canteiro de obra (Baustelle). A continuidade e conquistas de andamento da obra nessas condições devem levar Donat a fazer troça de figuras que representam de forma mitológica capacidades de construção, de levantar e ordenar pedras e outros elementos da natureza. Nesse âmbito de considerações, a partir da perspectiva de Donat, um poeta não tem serventia no local, não tem o que fazer na ‘obra’, não deveria estar no canteiro. Até porque, em suas palavras (de Donat) para o Poeta, as catástrofes na obra não são “motivo para a poesia”: “lange genug haben wir euch mit Katastrophen beliefert. Ein Verstoß gegen die Arbeitsschutzbestimmungen ist ein Verstoß gegen die Arbeitsschutzbestimmungen, kein Grund für Poesie”61 61 Tradução: “por muito tempo já, nós suprimos vocês com catástrofes. Uma violação contra as normas de segurança do trabalho é uma violação contra as normas de segurança do trabalho, não um motivo para a poesia”. (Müller 1984: 135). Nessa visão, a poesia é algo inefetivo, sem eficácia na realidade.
Então, ao ser interpelado por Donat como Orfeu, a personagem Poeta diz (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 135):
Letzterer [Orpheus] wurde in Thrakien von Weibern zerrissen, das heutige Bulgarien, übrigens mit Pflügen.
“Denn das Lied schont den Sänger. Der Fleißige hatte besungen/ Alles, Gewächs und Getier und die Glieder lösende Liebe/ Aber den Grund nicht: schweißtreibende Arbeit und Werkzeug”
Sie pflügten ihn. Das war Orpheus, ich heiße62 62 Tradução: “Este último [Orfeu] foi dilacerado por mulheres na Trácia, atual Bulgária, com arados, aliás. Pois a canção poupa o cantor. O infatigável havia cantado/ Tudo, plantas e animais e o amor que distende os membros/ Mas não o fundamento: trabalho que faz suar e ferramenta. Elas o araram. Esse foi Orfeu, eu chamo”. -
Retomando o texto de “Orpheus gepflügt”, o Poeta explica elementos, componentes do mito de Orfeu. Essa retomada apresenta aspectos interpretativos em relação ao próprio texto “Orpheus gepflügt”, explicitando, desenvolvendo considerações que se encontram ali de modo latente. Ovídio continua a ecoar, como em “schweißtreibende Arbeit und Werkzeug” (“trabalho que faz suar e ferramenta”) (Müller 1984Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.: 135), que se remetem a Met. 11, vv. 32-35 “preparando com muito suor as colheitas/ musculosos lavradores que ao verem aquela horda,/ se põem em fuga, abandonando os apetrechos de seu labor”63 63 No original: “fructum sudore parantes/ dura lacertosi fodiebant arva coloni,/ agmine qui viso fugiunt operisque relinquunt/ arma sui”. (Ovídio 2017: 579). A designação de Orfeu como “Der Fleißige” (“O infatigável”) sugere simpatia em relação a ele e o aproxima da esfera do trabalho tematizado. Ainda assim, o Poeta expõe esse mito pretérito aparentemente para se distinguir dele (algo que se indica, por exemplo, no contraste entre o passado e o presente verbal: “Das war Orpheus, ich heiße”; “Esse foi Orfeu, eu chamo”). Na continuação, a rubrica, contudo, informa que “um veículo basculante passa, o barulho engole o nome, Poeta sai” (“Ein Dumper fährt vorbei, der Lärm schluckt den Namen. Dichter ab.”) (Müller 1984: 135). O poeta é aqui também superado pelos barulhos, repetindo algo por que passa Orfeu em seu suplício (Met. 11, esp. vv. 15-19), identificando-se com ele. Orfeu tem lugar nessa poesia também nessa imagem do que acontece ao Poeta. Orfeu é mencionado como um representante da poesia nessa ‘obra’; também da ‘violação contra ela’, sob ameaça de ser silenciada - curiosamente, a encenação da peça foi proibida64 64 As declarações e reações de H. Müller com respeito à crítica de Der Bau pelo plenum da SED em 1965 são, como mormente nesse escritor, complexamente dúbias (Hörnigk 1985: 48; Wittstock 2005: 121). (Schulz 1980Schulz, G. Heiner Müller: Realien zur Literatur. Stuttgart: J. B. Metzler, 1980.: 49). A referência a Orfeu fornece um reflexo, um motivo para o tratamento na poesia dessa esfera do trabalho, dos trabalhadores e de suas relações com os meios do trabalho, da ‘violação contra eles’.
Referências bibliográficas
- Blumenberg, H. Arbeit am Mythos (1979). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 20144
- Brandmeyer, R. Poetologische Lyrik. In: Lamping, D. (org.). Handbuch Lyrik. Stuttgart: Metzler, 2011, p. 157-162.
- Deufert, M. Orpheus in der antiken traditon. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2010, p. 264-271.
- Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm. 16 Bd. in 32 Teilbänden. Leipzig 1854-1961. Quellenverzeichnis Leipzig 1971. Disponível em: http://woerterbuchnetz.de/cgi-bin/WBNetz/wbgui_py?sigle=DWB Acesso em: 28 jan. 2019.
» http://woerterbuchnetz.de/cgi-bin/WBNetz/wbgui_py?sigle=DWB - Duden. Pflug. Disponível em: https://bit.ly/2V4XY2h Acesso em: 28 jan. 2019.
» https://bit.ly/2V4XY2h - Ebrecht, Katharina. Heiner Müllers Lyrik: Quellen und Vorbilder. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2001.
- Emmerich, W. Orpheus in der DDR: Heiner Müllers Autorschaft. In: Grimm, G. E. (org.). Metamorphosen des Dichters: Das Rollenverständnis deutscher Schriftsteller vom Barock bis zur Gegenwart. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1992, p. 286-301.
- Emmerich, W. Griechische Mythen als Esperanto - Heiner Müllers Antikenstücke. In: Berg, M.; Holtsträter, K.; Massow, A. von (orgs.). Die unerträgliche Leichtigkeit der Kunst. Köln; Weimar; Wien: Böhlau Verlag, 2007, p. 59-76.
- Emmerich, W. Im Besitz der Wahrheit? Autorschaft im DDR-Sozialismus: Christa Wolf - Heiner Müller. In: Meier-Staubach, C.; Wagner-engelhaaf, M. (orgs.). Autorschaft: Ikonen - Stile - Institutionen. Berlin: Akademie Verlag, 2011. p. 331-346.
- Eratóstenes. Catasterismorum Reliqviae. Ed. revisada por Carolvs Robert. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1963.
- Fánocles. The death of Orpheus (trecho de Ἔρωτες ἤ Καλοί). In: Hopkinson, N. (ed.). A Hellenistic Anthology. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 45-46.
- Gruber, B. Mythologisches Personal. In: Lehmann, H.-T.; Primavesi, P. Heiner Müller Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2003, p. 75-82.
- Hassan, I. Dismemberment of Orpheus: toward a postmodern literature (1971). 2th ed. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1982.
- Hederich, B. Amphíon. In: Hederich, Benjamin. Gründliches mythologisches Lexikon: Neusatz und Faksimile der Ausgabe Leipzig 1770. Berlin: Directmedia, 2006a, p. 927-934.
- Hederich, B. Orphevs. In: Hederich, Benjamin . Gründliches mythologisches Lexikon. Neusatz und Faksimile der Ausgabe Leipzig 1770. Berlin: Directmedia, 2006b, p. 6163-6177.
- Heinrich, K. Der Untergang von Religion in Kunst und Wissenschaft. In: Heinrich, Klaus. Das Floß der Medusa. Frankfurt am Main: Stroemfeld, 1995, p. 75-110.
- Heinrich, K. Orpheus / Antiorpheus / Prorsa. Dankrede. In: Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung. Jahrbuch 2002. Darmstadt: Deutsche Akademie für Sprache und Dichtung, 2003, p. 167-170.
- Heinrich, K. Dahlemer Vorlesungen 9: arbeiten mit herakles (1975-6). Zur Figur und zum Problem des Heros. Ed. Hans-Albrecht Kücken. Frankfurt am Main; Basel: Stroemfeld, 2006.
- Hofmann, H. Orpheus. In: Hofmann, H. (org.). Antike Mythen in der europäischen Tradition. Tübingen: Attempto Verlag, 1999. p. 153-198.
- Hörnigk, F. ‘Bau’-Stellen. Aspekte der Produktions- und Rezeptionsgeschichte eines dramatischen Entwurfs. Zeitschrift für Germanistik, Berlim, v. 6, n. 1, 1985, p. 35-52.
- Liddell-Scott Greek Lexicon. (LSJ). Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform Acesso em 28.01.2019.
» http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform - Lutherbibel. Revision 2017. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2016.
- Müller, H. Geschichten aus der Produktion 1 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1984.
- Müller, H. Geschichten aus der Produktion 2 (1974). Berlin: Rotbuch Verlag, 1987.
- Müller, H. Der Schrecken die erste Erscheinung des Neuen. Zu einer Diskussion über Postmodernismus in New York (1979). In: Hörnigk, Frank (org.). Heiner Müller Material. Leipzig: Reclam Verlag, 1989, p. 21-24.
- Müller, H. Gedichte. Berlin: Alexander Verlag, 1992.
- Müller, H. Orpheus gepflügt. In: Storch, W. (org.). Mythos Orpheus: Texte von Vergil bis Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 228.
- Müller, H. Die Hamletmaschine (1977). In: Müller, H. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005, p. 38-46.
- Obad, V. Zu Müllers Poetik des Fragmentarischen (1987). In: Hörnigk, F. Heiner Müller Material. Leipzig: Reclam Verlag, 1989, p. 157-164.
- Ovídio, P. N. Metamorphoses: books IX-XV. Trad. F. J. Miller. Cambridge: Harvard University Press, 1984.
- Ovídio, P. N. Metamorfoses. Ed. bilíngue lat./port. Trad., introdução e notas Domingos Lucas Dias. Apresentação João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2017.
- Schulz, G. Heiner Müller: Realien zur Literatur. Stuttgart: J. B. Metzler, 1980.
- Segal, C. Orpheus: The myth of the poet. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1989.
- Virgílio. Georgica. In: Virgílio. Eclogues/Georgics/Aeneid. Trad. H. R. Fairclough. Cambridge: Harvard University Press, 1999. p. 96-259.
- Wittstock, U. Nachwort. In: Müller, Heiner. Der Auftrag und andere Revolutionsstücke. Stuttgart: Reclam, 2005. p. 113-145.
- Zimmermann, N. Mythos als Zivilisationskritik: die pragmatisierung einer erweiterten negativen Dialektik in Werken Heiner Müllers. Master’s Thesis. University of Oregon, Eugene, 2016.
-
2
Quando não houver indicações relativas à tradução, ela foi feita por mim. Textos literários são citados primeiramente na língua original, com tradução em nota de rodapé, enquanto textos da crítica em língua estrangeira são apresentados em tradução, com o original em rodapé.
-
3
Segundo Emmerich (2011: 344, n. 34), o texto, contudo, não chegou a ser apresentado por H. Müller na ocasião.
-
4
Disponível em: https://bit.ly/2Yd9evc. Acesso em: 16 jan. 2019.
-
5
Tradução: “Orfeu o cantor era um homem que não podia esperar. Depois que perdera sua mulher, por ter relação sexual muito prematuramente depois do puerpério ou por olhar proibido ao subir do mundo ínfero depois da liberação dela da morte através do seu canto, de modo que ela voltou ao pó antes que estivesse novamente em carne, ele inventou a pederastia, que poupa o puerpério e é mais próxima da morte do que o amor a mulheres. As que foram desprezadas caçaram-no: com armas de seus corpos galhos pedras. Mas a canção resguarda o cantor: o que ele havia cantado não podia arranhar a sua pele. Camponeses, assombrados pelo barulho da caçada, correram de seus arados, para os quais não houvera lugar na canção dele. Assim foi seu lugar sob os arados”.
-
6
Independentemente aqui da questão de sua apreciação, Orfeu é uma figura mitológica muito profícua nas artes europeias. Devido a isto, K. Heinrich (1995: esp. 80), por exemplo, alça Orfeu à figuração, ao mitologema do artista. Como ponto de partida aqui da interpretação desse mito por H. Müller, toma-se Orfeu como um exemplo geral do poeta. Este, entendido de forma abrangente como aquele que faz poesia.
-
7
No original: “der Text […] reflektiert zum Schluss hin die Rolle des Dichtersängers”.
-
8
No original: “in den (Müller angemessen marxistisch gesprochen:) Klassenkämpfen”.
-
9
No original: “sarculaque rastrique graves longique ligones”.
-
10
Tradução: “o que ele [o cantor, Orfeu] havia cantado não podia arranhar a sua pele”.
-
11
No original: “alles, was er besungen hatte, konnte ihn nicht verletzen” (7:37).
-
12
No original: “Platz gewesen war in seinem Lied”.
-
13
Tradução: “O que ele cantara não podia arranhar a sua pele”.
-
14
No original: “sicher mehr meine Interpretation” (8:14).
-
15
No original: “Und dann haben die Frauen den Orpheus getötet mit Pflügen und Hacken, also mit den Werkzeugen der Bauern. Weil die hatte er nie besungen. Er hat die Arbeit nie besungen”.
-
16
No original: “Mit den Mitteln der Arbeit vernichtet, zerschmettert, in Teile geteilt”. Nesse apontamento de A. Kluge, saindo da moldura antiga, deve ressoar uma ideia de alienação através do trabalho, resultando em divisão, mesmo fragmentação no sujeito.
-
17
No original: “Hätte der Dichter die Pflüger und ihr Arbeitsgerät (wir ergänzen noch: die Arbeit selbst) besungen, wäre ihm auch deren Solidarität und Schutz zuteil geworden, er wäre ganz und gar unverwundbar, ja: unsterblich geworden”.
-
18
No original: “Der Bau [kann] als eine Parabel auf die Reorganisation der immer noch ramponierten DDR-Wirtschaft gelesen werden”.
-
19
Seguindo as indicações em Müller (1987: 134), Traktor é escrito entre 1955 e 1961. “Comentário e montagem em 1974” (“Kommentar und Montage 1974”).
-
20
Schulz (1980: 49) e Hörnigk (1985: 35) apontam que a peça Der Bau foi encenada pela primeira vez na República Democrática Alemã (DDR) apenas no começo dos anos 1980. Diferentemente, porém, Wittstock (2005: 121) fala de uma “Premiere” antes do veredito de 1965 do SED.
-
21
Tradução: Este último [Orfeu] foi dilacerado por mulheres na Trácia, atual Bulgária, com arados, aliás. Pois a canção poupa o cantor. O infatigável havia cantado/ Tudo, plantas e animais e o amor que distende os membros/ Mas não o fundamento, o trabalho que faz suar e ferramenta. Elas o araram. Esse foi Orfeu, eu chamo - Um veículo basculante passa, o barulho engole o nome. Poeta sai.
-
22
No original: “[d]er marxistische Schriftsteller Heiner Müller begründet so im uralten Orpheus-Mythos eine forciert neue Funktionsbestimmung von sozialistischer Autorschaft in der DDR der 50er Jahre”.
-
23
“Die poetische Produktion legitimiert sich aktuell durchs Bündnis mit der Arbeiterklasse, konkret: durch ihre Auseinandersetzung mit der materiellen Produktion und ihrem Träger, dem Proletariat”.
-
24
No original: “er [Heiner Müller] [setzt] den Dichter der ‘neuen Zeit’ eindeutig von Orpheus […] ab”.
-
25
No original: “schweißtreibende Arbeit”.
-
26
No original: “Das war Orpheus”.
-
27
No original: “Zwei Figuren der Dichtung, in der Stunde der Weißglut verschmelzend zu einer Figur: Orpheus der unter den Pflügen singt, Dädalos im Flug durch die labyrinthischen Därme des Minotauros”.
-
28
Tradução: “Orfeu o cantor era um homem que não podia esperar”.
-
29
Texto indicado adiante com a abreviação Georg.
-
30
Tradução: “antes que estivesse novamente em carne”.
-
31
Tradução: “O assombro a primeira aparição do que é novo”.
-
32
Tradução: “o quanto meu caminho se estende tu és meu fardo”.
-
33
Tradução: “por ter relação sexual muito prematuramente depois do puerpério ou por olhar proibido ao subir do mundo ínfero”.
-
34
No original: “durch zu frühen Beischlaf nach dem Kindbett”.
-
35
No original: “bevor sie neu im Fleisch war”.
-
36
Na tradução de Lutero: “Im Schweiße deines Angesichts sollst du dein Brot essen, bis du wieder zu Erde wirst, davon du genommen bist. Denn Staub bist du und zum Staub kehrst du zurück”. (“Com teu rosto em suor comerás o teu pão, até que voltes a ser terra, da qual és tomado. Pois és pó e ao pó retornarás.” (realce do texto citado).
-
37
Man erkläret diese Fabel auch wohl von seiner Geschicklichkeit in der Arzeneykunst, wodurch er die Eurydice von einer schweren Krankheit befreyet, doch ehe sie noch völlig wieder hergestellet gewesen, habe er durch seine unzeitige Liebe alles wieder verderbet.
-
38
No original: “ille [Orpheus] etiam Thracum populis fuit auctor amorem/ in teneros transferre mares”.
-
39
No original: “die Knabenliebe, die […] dem Tod näher ist als die Liebe zu Weibern”.
-
40
Cf. https://bit.ly/2VkumTk. Acesso em: 23 jan. 2019.
-
41
Cf. a entrada αἰνέω, do Liddell-Scott: https://bit.ly/304sf4R. Acesso em: 23 jan. 2019.
-
42
No original: “Die Heterogenität der Waffen, die dem Waffenarsenal der Krieger, der Küche und der Natur selbst entstammen”.
-
43
No original: “Pflüge […], für die kein Platz gewesen war in seinem Lied”.
-
44
Tradução: “Assim foi seu lugar sob os arados”.
-
45
O dicionário Duden designa as expressões unter den Pflug kommen/ unter dem Pflug sein como uma forma elevada de exprimir arar, “als Ackerland bestellt werden” (‘ser reservado como terra para o arado, cultivável’). Disponível em http://www.duden.de/rechtschreibung/Pflug. Acesso em: 31 jan. 2019.
-
46
No original: “das Lied schont den Sänger: was er besungen hatte, konnte seine Haut nicht ritzen”.
-
47
No original: “Sie [thrakische Frauen] haben Steine auf ihn geworfen, aber Steine hatte er natürlich besungen, die Steine tanzten um ihn herum. Und Äste, mit Ästen nach ihm geschlagen, das ging auch nicht, denn die Bäume hatte er auch besungen. Also alles, was er besungen hatte, konnte ihn nicht verletzen” (7:02).
-
48
Cantu implere (preencher com o canto), na definição do dicionário Grimm. Disponível em: https://bit.ly/2J7Sylp. Acesso em: 31 jan. 2019.
-
49
No original: “es sind oft surrealistische, chaotisch scheinende Gebilde, bestehend ebenso aus clownesken wie auch klassisch anmutenden Passagen, aus Genrebildern, Selbstzitaten, Puppenspielen, Phantasmagorien, aus Elementen des rituellen Theaters Artauds”.
-
50
Alguns questionamentos de Alexander Kluge acerca de “Orpheus gepflügt” na entrevista parecem manifestar algo disso. Por volta de 41:43. Disponível em: https://bit.ly/2Vu1AA0. Acesso em: 16 jan. 2019.
-
51
No original: “Seine Figuren leiden nicht nur unter der inneren Zerrissenheit […], sondern sie werden regelrecht vor den Augen des Publikums zerrissen. […] Die amputierten Glieder, die zerstörten, zerfleischten Körper werden zu einem Leitmotiv”.
-
52
Tradução: “Amizade da ação - como a União Soviética ajuda”.
-
53
O dicionário Grimm registra sentido que implica relação sexual tanto de Pflug quanto de pflügen, nas entradas destas palavras (esp. na seção 2). Disponíveis em: https://bit.ly/2VQdYJH; https://bit.ly/2H8H6nm. Acesso em: 25 fev. 2019.
-
54
Tradução: “Anos a fio, em feliz cidade então/ Arou a cama, na qual fora plantado”.
-
55
Tradução: “Assim foi seu lugar entre os arados”.
-
56
Tradução: “Preste atenção para que você não quebre as pernas, o rosto pressionado no pescoço, Orfeu”.
-
57
Tradução: “quando um pintor põe uma árvore de cabeça para baixo, nós lhe damos sua tela para comer, e em nossos escritórios o abstracionismo é um fato”.
-
58
A. Kluge [sobre Orfeu]: “As árvores obedeciam seu canto e se punham em fileiras, as pedras se ordenavam em cidades […]. Ele é, no fundo, um gênio da civilização. (“die Bäume [gehorchten] seinem Gesang und [stellten] sich in Reihen auf, die Steine [ordneten] sich zu Städten, […]. Er ist eigentlich ein Zivilisationsgenie”). Müller: “Sim, aí já é outra história. Foi Anfião que construiu uma cidade. (“Ja. Da ist schon eine andere Geschichte, Amphion war das, der hat eine Stadt gebaut”) (7:41).
-
59
Tradução: “mas Anfião tocou a lira de três cordas e pedras/ Se uniam a pedras e de sete portas Tebas estava em pé”.
-
60
Tradução: “Três cordas. Imaginem o efeito de dez pianos”.
-
61
Tradução: “por muito tempo já, nós suprimos vocês com catástrofes. Uma violação contra as normas de segurança do trabalho é uma violação contra as normas de segurança do trabalho, não um motivo para a poesia”.
-
62
Tradução: “Este último [Orfeu] foi dilacerado por mulheres na Trácia, atual Bulgária, com arados, aliás. Pois a canção poupa o cantor. O infatigável havia cantado/ Tudo, plantas e animais e o amor que distende os membros/ Mas não o fundamento: trabalho que faz suar e ferramenta. Elas o araram. Esse foi Orfeu, eu chamo”.
-
63
No original: “fructum sudore parantes/ dura lacertosi fodiebant arva coloni,/ agmine qui viso fugiunt operisque relinquunt/ arma sui”.
-
64
As declarações e reações de H. Müller com respeito à crítica de Der Bau pelo plenum da SED em 1965 são, como mormente nesse escritor, complexamente dúbias (Hörnigk 1985: 48; Wittstock 2005: 121).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jul 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
-
Recebido
04 Fev 2019 -
Aceito
05 Abr 2019