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A crença de que a felicidade de todos os seres humanos é possível: escrita, empatia e expansão dos direitos em Die Bürgerpflicht der Frau (1894-1895) de Lily Braun

[The belief in the possibility of happiness for all human beings: writing, empathy and the expansion of rights in Lily Braun’s Die Bürgerpflicht der Frau (1894-1895)]

Resumo

O presente artigo é uma análise do texto Die Bürgerpflicht der Frau (1895), da escritora alemã Lily Braun. O texto é um marco na história do movimento de mulheres alemão e oferece importantes subsídios para a reflexão sobre as contradições e tensões que marcam o pensamento e a atuação de Lily Braun. No artigo, ofereço um breve resumo da vida e obra da autora, apresento os contornos gerais do texto e procuro situá-lo em seu contexto histórico-social. Levanto a hipótese de que o movimento geral do texto de Lily Braun se explica como uma tentativa de expandir a esfera da empatia e o arco dos direitos para incluir segmentos da sociedade - como as mulheres e a classe trabalhadora mais pobre - então largamente excluídos. Essa tentativa deixa uma série de características textuais que procuro analisar em profundidade. Argumento ainda que o utilitarismo clássico milliano pode ter fornecido a Lily Braun uma base ético-filosófica para articular o seu esforço de mobilizar a empatia do público. Por fim, argumento que o texto nos permite refletir sobre as relações entre narrativa e empatia, e que o parâmetro textual do público exerce um papel mediador entre essas duas esferas.

Palavras-chave:
Lily Braun; Lily von Gizycki; Movimento de mulheres alemão; Empatia

Abstract

Lily Braun’s Die Bürgerpflicht der Frau (The Civic Duty of Women / Woman’s Duty as a Citizen) is a landmark text in the history of the German women’s movement and offers valuable insights into the contradictions and tensions within Braun’s life and thought. In this article I provide a brief summary of Braun’s life and work, present the overall argument of the text, and try to place it in its social and historical context. I argue that Braun’s argument can be described as an attempt to widen the circle of empathy and expand the sphere of moral and legal rights to include the women and the working-class poor. This attempt leaves a range of textual features for which I try to offer an in-depth analysis. It is shown that classical utilitarianism may have provided Braun with a framework for articulating her effort to elicit the empathy of her audience. Finally, it is argued that Braun’s text provides valuable insights into the relationship between narrative and empathic responses, as well as into the role of the addressed audience in mediating between these two spheres.

Keywords:
Lily Braun; Lily von Gizycki; German women’s movement; Empathy

1 Introdução

O presente artigo oferece uma análise do texto Die Bürgerpflicht der Frau (o dever cívico da mulher/o dever da mulher como cidadã), de autoria da alemã Lily von Gizycki (1865-1916), mais conhecida como Lily Braun, que se destacou como escritora, defensora dos direitos das mulheres e militante socialista. O artigo se origina de reflexões surgidas durante um projeto de iniciação científica realizado no período de 2020-2021 sob a orientação da Profa Dra Magdalena Nowinska (FFLCH-USP), no qual empreendi a tradução integral deste texto de Braun.

Publicado em 1895 como versão escrita de conferências proferidas por Lily Braun em Berlim, Breslau e Dresden, o texto assumiu ao longo do tempo um significado importante no movimento de mulheres alemão, notadamente em sua vertente burguesa. A conferência proferida em 2 de dezembro de 1894 em Berlim entrou na historiografia e na autorrepresentação da ala dita radical do movimento de mulheres burguês como a primeira defesa pública do sufrágio feminino por uma mulher alemã (Lüders 1904Lüders, Elsa. Der linke Flügel. Berlin: W & S. Lowenthal, 1904.: 23; Briatte 2020Briatte, Anne-Laure. Bevormundete Staatsbürgerinnen: Die radikale Frauenbewegung im Deutschen Kaiserreich. Trad. para o alemão de Meiken Endruweit. Frankfurt: Campus Verlag, 2020.: 70-71). Nada obstante esse dado, e apesar de Lily Braun ter mantido uma carreira exitosa e prolífica como escritora ao longo de cerca de duas décadas (Lischke 2000Lischke, Ute. Lily Braun, 1865-1916: German Writer, Feminist, Socialist. Rochester: Boydell & Brewer-Camden House, 2000.), tanto Die Bürgerpflicht der Frau quanto o restante de sua vida e obra têm sido relativamente pouco estudados, por razões que mereceriam um exame aprofundado. No breve excurso biográfico que ofereço neste artigo, avento duas razões que me parecem promissoras como hipóteses de pesquisa. De todo modo, mencione-se apenas que há um decurso de quase 70 anos entre a morte de Lily Braun e a primeira biografia acadêmica sobre ela, publicada em inglês pelo historiador americano Alfred Meyer (Meyer 1985Meyer, Alfred G. The Feminism and Socialism of Lily Braun. Bloomington: Indiana University Press, 1985.). O próprio texto de Die Bürgerpflicht der Frau não recebeu outras edições além da primeira em 1895, pela editora F. Dümmlers de Berlim, que editava também o periódico Die Frauenbewegung (o movimento de mulheres) da associação Frauenwohl (o bem-estar das mulheres), de que Lily Braun então fazia parte. A importância do texto na história do movimento de mulheres alemão; as diversas questões que suscita tanto do ponto de vista da análise linguística quanto da história das ideias; e, por fim, a circunstância de Lily Braun não ter sido tão intensamente estudada quanto outras figuras importantes do movimento de mulheres alemão são as principais razões que me motivaram a elaborar o presente artigo.

Embora o texto em sua edição original seja relativamente curto, totalizando 24 páginas, a profusão das referências feitas pela autora, a riqueza de sua linguagem e a complexidade de suas estratégias argumentativas levantam uma série de questões que exigem distintas abordagens. No presente artigo, pretendo: 1) oferecer uma visão geral da vida e obra de Lily Braun e do movimento de mulheres alemão; 2) apresentar as características gerais e argumentos centrais do texto Die Bürgerpflicht der Frau; 3) abordar um dos aspectos que mais me interessaram no texto, que é o modo como os mecanismos de empatia são mobilizados pela autora por meio de diferentes recursos estilísticos e argumentativos, a começar pelo emprego das imagens e pela relação construída com o público; 4) examinar como essa escrita, que poderíamos chamar de “escrita empática”, interage com a orientação argumentativa do texto, voltada para a expansão da esfera da empatia e do arco dos direitos e liberdades fundamentais; 5) verificar em que medida é possível identificar nesse tocante certas marcas do utilitarismo clássico, principalmente o de John Stuart Mill; 6) refletir sobre o texto à luz de estudos recentes que têm discutido o papel da leitura e da escrita como veículos culturais da empatia (Hunt 2009Hunt, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.; Keen 2007Keen, Suzanne. Empathy and the Novel. New York: Oxford University Press, 2007.; Pinker 2017Pinker, Steven. Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por que a Violência Diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.).

2 Breve contextualização histórica: vida e obra de Lily Braun e as associações do Frauenbewegung alemão

Antes de entrar no conteúdo do texto, é importante dar um panorama da vida e obra de Lily Braun, bem como da situação do movimento de mulheres alemão no final do séc. XIX. Para todas as informações biográficas que seguem, reporto o(a) leitor(a) às seguintes obras: os dois volumes das memórias ficcionalizadas da própria Lily Braun (Braun 1909; 1922); a biografia escrita por August Meyer em 1985Meyer, Alfred G. The Feminism and Socialism of Lily Braun. Bloomington: Indiana University Press, 1985. (Meyer 1985); a biografia publicada por Ute Lischke em 2000Lischke, Ute. Lily Braun, 1865-1916: German Writer, Feminist, Socialist. Rochester: Boydell & Brewer-Camden House, 2000., na qual são submetidos à crítica alguns aspectos da biografia de Meyer (Lischke 2000); e a obra de Jean Quataert sobre o feminismo no partido socialdemocrata alemão (Quataert: 1979Quataert, Jean H. Reluctant Feminists in German Social Democracy: 1885-1917. Princeton: Princeton University Press, 1979.).

Lily Braun, cujo nome de batismo era Amelia Jenny Emilie Klothilde Johanna von Kretschmann, nasceu em 1865, na cidade alemã de Halberstadt, na Saxônia baixa (Niedersachsen), filha de Jenny von Kretschmann (nascida von Gustedt) e Hans von Kretschmann. Pelo lado da mãe, Lily Braun fazia parte de antigos ramos da aristocracia da baixa saxônia (os Gustedt) e da vestfália (os Rabe von Pappenheim). Sua avó Jenny von Gustedt (nascida Jeromée Catharina Rabe von Pappenheim) era filha extramatrimonial de Jérôme Bonaparte (irmão de Napoleão Bonaparte) com Diana Rabe von Pappenheim, e foi uma escritora e personalidade relativamente conhecida em seu tempo, tendo vivido grande parte de sua vida em Weimar, onde frequentava a família de Goethe (na adolescência ela chegou a conhecer o escritor) e a corte do grão-duque Alexandre.

Lily Braun tinha uma relação muito estreita com a avó, e essa relação a marcará profundamente. Era uma relação tanto intelectual quanto afetiva, em que ela experimentava o acolhimento, a compreensão e o estímulo que, segundo relata na sua biografia ficcionalizada, raramente encontrava em seus pais e seus tios. Já o pai de Lily Braun, Hans von Kretschmann, foi oficial de carreira do exército prussiano. Embora fosse considerado um oficial de talento e tenha alcançado a patente de general de infantaria, o pai de Lily Braun terminou a vida em situação relativamente difícil, desprezado por muitos dos seus pares e afundado em dívidas. Ele pôs a perder não só o patrimônio da família, como a própria herança que a família esperava que Lily Braun recebesse de sua tia Klotilde. Tanto a mãe quanto o pai de Lily Braun parecem ter sido política, social e culturalmente bastante tradicionais; ambos figurarão nas memórias romanceadas de Lily Braun como personificações particularmente destrutivas do Pflicht (dever).

Desde muito cedo Lily Braun desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita. O exercício da escrita era cultivado por meio de seu diário e por cartas a uma prima sua, Mathilde von Colomb, muitas das quais sobreviveram e podem ser consultadas em arquivos. O pai falará certa vez sobre como a filha sucumbira ao Tintenteufel (“demônio da tinta”), termo que sugere a relação tensa (dada a ocasional desaprovação da família) e intensa de Braun com a escrita. Suas primeiras oportunidades de escrever profissionalmente ocorrem quando ela tem cerca de 25 anos, por volta da época da morte da sua avó (com cujos papeis ela ficara). Esses primeiros trabalhos são dedicados sobretudo às lembranças e relatos da sua avó sobre a sua convivência com a família de Goethe. A partir do material reunido nessa época Lily Braun escreverá, anos mais tarde, em 1908, o exitoso livro Im Schatten der Titanen (À sombra dos titãs), um romance biográfico sobre a sua avó Jenny e seu bisavô Jérôme.

Lily Braun se aproxima mais dos temas sociais e políticos depois de sua mudança para Berlim, onde conhece o filósofo Georg von Gizycki (1851-1895), com quem se casa em 1893. Já em 1893-1894 passa a conviver com o círculo da Frauenwohl (bem-estar das mulheres), que se tornará uma das principais associações da chamada ala radical do movimento de mulheres burguês. Lily Braun deixa a Frauenwohl já no início de 1896 para se unir à socialdemocracia. Neste mesmo ano ela se casa com o escritor socialdemocrata Heinrich Braun (1854-1927). Tanto o casamento de Lily e Heinrich Braun, que durará até a morte de Lily Braun, quanto a longa atuação desta na socialdemocracia serão marcados por conflitos severos. Tal como o pai de Lily Braun, Heinrich Braun também tinha problemas no trato com o dinheiro, e o casal se viu em diferentes momentos em situação de dificuldade financeira. O casal conseguiu se manter em parte por conta da escrita de Lily Braun. Ela foi uma escritora profissional, no sentido de que dependia da escrita para o seu sustento e de que manteve uma produção regular ao longo da vida. Foi também uma escritora prolífica e muito exitosa, que produziu obras que, em seu tempo, tiveram um considerável sucesso de vendas.

Na socialdemocracia, Lily Braun travará um longo conflito com Clara Zektin (1857-1933) e outras figuras importantes do SPD (Partido Socialdemocrata da Alemanha), que acabará resultando em seu afastamento do partido. Embora questões pessoais pareçam ter também desempenhado um papel nesse conflito, havia entre ambas divergências importantes de natureza ideológica e que refletiam em parte tensões mais amplas no partido socialdemocrata. O socialismo de Lily Braun, marcado por influências díspares ou mesmo contraditórias, que iam desde as suas origens aristocráticas até o influxo do pensamento liberal e da filosofia nietzscheana, aproximava-se mais daquele dos fabianos britânicos (de que se tornou relativamente próxima depois de sua viagem a Londres em 1895) e do revisionismo de Eduard Bernstein (1850-1932) do que daquele de Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. O trabalho mais importante de Lily Braun no período da sua atuação no partido socialdemocrata é o tratado Die Frauenfrage (A questão feminina - 1901), que recebeu uma resenha em grande parte positiva de August Bebel (1840-1913), que anos antes escrevera o clássico Die Frau und der Sozialismus (A mulher e o socialismo - 1879). Lily Braun teve também uma atuação significativa na Bund für Mutterschutz und Sexualreform (Liga para Proteção das Mães e Reforma da Sexualidade), liderada por Helene Stöcker (1869-1943), na qual defendeu, entre outros, a legalização do aborto.

Com seu progressivo afastamento do partido socialdemocrata, Lily Braun passará cada vez mais a se concentrar na escrita das suas obras, entre as quais estão os dois tomos das suas memórias romanceadas, intituladas Memoiren einer Sozialistin (Memórias de uma socialista, 1909-1911); Die Liebesbriefe der Marquise (As cartas de amor da marquesa, 1912) e o já citado Im Schatten der Titanen (À sombra de titãs, 1908). Lily Braun morre em 1916, aos 51 anos, deixando um filho, Otto Braun, que morrerá apenas dois anos depois, vítima da primeira guerra mundial.

As razões de Lily Braun ter sido relativamente pouco estudada em comparação a outras escritoras ou ativistas importantes seja do partido socialdemocrata, seja do movimento de mulheres alemão constituem, por si sós, um relevante tópico de pesquisa e infelizmente extrapolam os limites do presente artigo. Frise-se aqui a palavra “relativamente”, pois a obra de Lily Braun suscitou, nos últimos 50 anos, algum interesse da literatura acadêmica, ainda que não de uma maneira consistente. De todo modo, gostaria, aqui, de oferecer duas hipóteses para essa menor atenção que a autora recebeu desde a sua morte.

A primeira está relacionada ao caráter contraditório da obra de Lily Braun, que pode ter dificultado o resgate do seu trabalho tanto a partir da ótica do socialismo, quanto a partir da ótica do feminismo. Designada por Catherine Dollard como alguém que resiste a uma categorização fácil (Dollard 2009Dollard, Catherine L. The Surplus Woman: Unmarried in Imperial Germany, 1871-1918. Monographs in German History (30). New York: Berghahn Books, 2009.: 153) e por Heinz Niggemann como “não rotulável” (Niggemann 1981Niggemann, Heinz. Emanzipation zwischen Sozialismus und Feminismus. Die sozialdemokratische Frauenbewegung im Kaiserreich. Wuppertal: Hammer, 1981.: 194), Lily Braun produziu uma obra que não se encaixa muito bem em nenhuma das vertentes políticas nas quais atuou. Da perspectiva do socialismo de lideranças como Clara Zektin e Rosa Luxemburgo, como já mencionado acima, Lily Braun parece em alguns aspectos mais próxima de um reformismo liberal (Lischke idem: p. xvi) ou de um reformismo à esquerda influenciado por fontes tão distintas quanto os socialistas fabianos (Lischke idem: p. 32), Nietzsche, o humanismo de Goethe e, não menos importante, o revisionismo de Eduard Bernstein, que ela chegou a apoiar publicamente (Quataert 1979Quataert, Jean H. Reluctant Feminists in German Social Democracy: 1885-1917. Princeton: Princeton University Press, 1979.: 79; Evans 1990Evans, Richard J. Proletarians and Politics: Socialism, Protest and the Working Class in Germany Before the First World War. New York: Palgrave Macmillan, 1990.: 111). Já quando se olha da perspectiva do feminismo, determinadas ideias de Lily Braun já foram consideradas antiquadas ou então foram criticadas por não questionarem as suposições fundamentais a respeito dos papeis de gênero (Meyer idem: p. 143; Bland 1997Bland, Caroline. ‘Am schlimmsten ist’s, wenn auch noch Frauen die Romanen schreiben’: sexual politics in the literary works of Lily Braun. German Life and Letters 50:4, 1997, 460-474.; para uma crítica ao artigo de Caroline Bland, cf. Lischke idem: xviii, n5).

A segunda hipótese é de que a guinada nacionalista e belicista de Lily Braun no final de sua vida tenha lançado uma sombra sobre a obra que desenvolvera até então. À luz dos desdobramentos da história alemã depois da morte de Lily Braun, suas ideias mais tardias parecem adentrar um terreno perigoso. Ute Lischke, por exemplo, considera que algumas dessas ideias de Braun têm pontos em comum com aspectos do nacional-socialismo (Lischke idem: xi; p. 111 ss.). Esse pode ter sido um outro fator a dificultar a recepção da obra de Lily Braun.

Seja como for, pode-se depreender do breve excurso biográfico acima que Lily Braun se tornou conhecida não só como escritora, mas também como socialista e Frauenrechtlerin, termo que se pode traduzir como “defensora dos direitos das mulheres”. Ela se insere, portanto, na história do movimento de mulheres alemão (Frauenbewegung), do qual forneço a seguir uma brevíssima caracterização.

Primeiramente, é útil ter em mente que, no mundo de língua alemã, distingue-se com frequência entre o movimento de mulheres (Frauenbewegung) enquanto movimento histórico heterogêneo que buscava melhorias mais ou menos abrangentes nas condições de vida das mulheres e o feminismo enquanto fenômeno que contempla tanto a dimensão da luta política quanto a da reflexão e teorização crítica a respeito das relações entre os gêneros (Gerhard 2009Gerhard, Ute. Frauenbewegung und Feminismus: Eine Geschichte seit 1789. München: C.H.BECK, 2009.: 6 ss.; Ferree 2012Ferree, Myra Marx. Feminismen: Die deutsche Frauenbewegung in globaler Perspektive. Trad. do inglês de Claudia Buchholz e Bettina Seifried. Frankfurt: Campus Verlag, 2012.: 42-43). Nem todas as associações e indivíduos do movimento de mulheres alemão do séc. XIX eram feministas do ponto de vista do feminismo no sentido acima; algumas eram, quiçá, até mesmo conservadoras e antifeministas, como em geral as associações evangélicas e católicas do movimento de mulheres. Como referido acima, mesmo Lily Braun defendeu ideias que, à luz do feminismo ou dos feminismos mais atuais, já foram consideradas muito limitadas, uma vez que não chegariam a questionar fundamentalmente os papeis e representações de gênero tradicionais (Bland: idem). Meyer aponta, por exemplo, que Lily Braun ainda possuía uma noção relativamente tradicional de feminilidade, que envolvia graça, modéstia, devoção, disposição para o sacrifício e coração materno (Meyer 1985: 142), qualidades que, plasmadas no ideal de Mütterlichkeit (maternidade), também compunham, em maior ou menor grau, a noção de feminilidade presente na ala burguesa do movimento de mulheres alemão (Sachße 1994Sachße, Christoph. Mütterlichkeit als Beruf: Sozialarbeit, Sozialreform und Frauenbewegung1871-1929. 2., überarbeitete Auflage. Wiesbaden: Springer Verlag, 1994.: 102; 127). Braun era, ainda, profundamente avessa à homossexualidade feminina e masculina e via os sexos como complementares. Meyer ressalta que é em parte nessa noção de complementariedade que a linguagem e as ideias de Braun às vezes escorregavam para o sexismo (Meyer idem, ibidem). Para ela, o amor feminino seria um render-se a alguém superior; a confiança cega e a necessidade infantil de proteção seriam da essência da mulher (Meyer idem: 143). Faça-se a ressalva, porém, de que Braun não estava sozinha na defesa de algumas dessas ideias. A maior parte da sexologia da época, por exemplo, seguia a visão de Krafft-Ebing sobre a homossexualidade como patologia (Dollard 2009Dollard, Catherine L. The Surplus Woman: Unmarried in Imperial Germany, 1871-1918. Monographs in German History (30). New York: Berghahn Books, 2009.: 60), o que teve impacto no movimento de mulheres, que por muito tempo silenciou sobre o tema ou mesmo reagiu hostilmente a tentativas isoladas de abordá-lo de uma perspectiva menos negativa (Hacker 2000Hacker, Hanna. Verbete Anna Rüling in: Encyclopedia of Lesbian and Gay Histories and Cultures, vol. 1, editado por Bonnie Zimmerman, New York: Garland Publishing, 2000.: 655; Leng 2018Leng, Kirsten. Sexual Politics and Feminist Science: Women Sexologists in Germany, 1900-1933. Ithaca/London: Cornell University Press, 2018.: 133).

Assim, quando se fala aqui em movimento de mulheres alemão, trata-se de um fenômeno histórico-social localizado que não necessariamente coincide com o feminismo, nada obstante as eventuais sobreposições que possam ter existido entre ambos em muitos casos.

Qualquer indicação de data para as origens de um fenômeno é sempre problemática. No entanto, para os fins do presente artigo, é suficiente considerarmos que o movimento de mulheres alemão surge como movimento social com as revoltas liberais de 1848 (Gerhard 2009Gerhard, Ute. Frauenbewegung und Feminismus: Eine Geschichte seit 1789. München: C.H.BECK, 2009.: 28). A Frauenrechtlerin mais conhecida dessa primeira geração é Louise Otto-Peters (1819-1895), cuja atividade marcou profundamente a história do movimento de mulheres alemão. Pouco mais de dez anos mais jovem que Otto-Peters, a escritora e Frauenrechtlerin Hedwig Dohm (1831-1919) é outra figura de enorme importância naquilo que poderíamos chamar, grosseiramente, de primeira fase do movimento de mulheres alemão. Dohm antecipa muitas das discussões e posicionamentos que, mais tarde, aparecerão tanto no âmbito do movimento de mulheres como um todo, quanto no âmbito mais restrito da ala radical do movimento (cf. Gerhard 2009: 61 e ss, para uma breve apresentação sobre Hedwig Dohm). A referência à “ala radical” se deve ao fato de que, conforme o movimento de mulheres foi se desenvolvendo e expandindo, começaram a se formar diferentes correntes dentro dele. Mais ou menos a partir da década de 1880, uma divisão grosseira poderia ser feita entre, de um lado, um movimento de mulheres burguês e, de outro, um movimento de mulheres operário (no âmbito do partido socialdemocrata). Mas já a partir do início da década de 1890, o próprio movimento de mulheres burguês começa a se bifurcar numa ala moderada (em alemão, die Gemäßigten) e numa ala radical (die Radikalen). O que representavam essas alas? Else Lüders (1872-1948), uma das radicais, define da seguinte maneira a diferença entre as alas no seu livro Der Linke Flügel (a ala esquerda), publicado em 1904 e que pode ser considerado a primeira autorrepresentação histórica da ala radical: “As radicais encaram o direito de voto como a raiz do movimento de mulheres; as moderadas o consideram um fim distante, o cume do movimento de mulheres, ao qual as mulheres precisariam primeiramente fazer jus...” (Lüders 1904: 50-51) (tradução minha).

Claro está que essa é uma autorrepresentação que privilegia a perspectiva de um determinado grupo de agentes históricas. No entanto, parte importante da literatura acadêmica, ainda que cada vez mais apontando os matizes e relativizando a separação das duas alas, continuará trabalhando com a distinção em algum nível, salientando que, enquanto as moderadas enfocavam principalmente a melhoria gradual nas oportunidades de educação e emprego, as radicais colocavam seu foco nos direitos, no espaço público e na igualdade política entre os gêneros como fundamento do movimento de mulheres (Briatte 2020Briatte, Anne-Laure. Bevormundete Staatsbürgerinnen: Die radikale Frauenbewegung im Deutschen Kaiserreich. Trad. para o alemão de Meiken Endruweit. Frankfurt: Campus Verlag, 2020.: 150; Briatte 2010: 6-13; Gerhard 1984Gerhard, Ute. Bis an die Wurzeln des Übels. Rechtsgeschichte und Rechtskämpfe der Radikalen. Feministische Studien, Volume 3: Issue 1. Berlin: De Gruyter, 1984. Disponível em: https://doi.org/10.1515/fs-1984-0106 (10/09/2020).
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: 78; para uma visão geral sobre os problemas dessa separação, cf. Schaser 2006Schaser, Angelika. Frauenbewegung in Deutschland 1848-1933 (Geschichte Kompakt). Darmstadt: WBG, 2006.: 6; edição eletrônica para o Kindle em 2010). Na ala moderada, as representantes mais conhecidas são duas Frauenrechtlerinnen de enorme talento: Helene Lange (1848-1930) e Gertrud Bäumer (1873-1954); a organização mais famosa quando se fala da ala moderada é a BDF (Bund Deutscher Frauenvereine - Federação das Associações de Mulheres da Alemanha), que era, na verdade, a organização-mãe ou guarda-chuva das associações de mulheres do Frauenbewegung alemão, fundada em 1894 (Schaser idem: 42 e ss.). Na ala radical, a principal associação na década de 1890 se chamava Frauenwohl (bem-estar das mulheres); ela era liderada pela Frauenrechtlerin Minna Cauer (1841-1922).

É a esta associação Frauenwohl que Lily Braun (então von Gizycki) pertencia à época de Die Bürgerpflicht der Frau. Foi também essa associação que, em 2 de dezembro de 1894, organizou, em um salão de concertos na Leipziger Straße em Berlim, a assembleia popular (Volksversammlung) na qual Lily Braun proferiu, pela primeira vez, o discurso de Die Bürgerpflicht der Frau. As fontes que sobreviveram indicam que o salão estava abarrotado e que o discurso de Lily Braun foi recebido com “tempestades de aplauso” (Lindemann 1913Lindemann, Anna. Die Frauenstimmrechtsbewegung in Deutschland. In: Altmann-Gotheiner, Elisabeth (Org.). Jahrbuch der Frauenbewegung: im Auftrage des BDF. Leipzig/Berlin: B.G. Teubner, 1913. Disponível em: http://www.deutschestextarchiv.de (31/03/2021).
http://www.deutschestextarchiv.de ...
: 159-160). Por outro lado, Lily Braun e Minna Cauer receberam alguns ataques na imprensa e fora dela, e muitas mulheres deixaram a associação Frauenwohl por considerarem que o discurso havia ido longe demais (Briatte 2020Briatte, Anne-Laure. Bevormundete Staatsbürgerinnen: Die radikale Frauenbewegung im Deutschen Kaiserreich. Trad. para o alemão de Meiken Endruweit. Frankfurt: Campus Verlag, 2020.: 70-71; Cauer 1913: 13-14). Passo agora a abordar em linhas gerais o conteúdo desse discurso oral e texto escrito que gerou reações tão fortes e polarizadas.

3 Linhas gerais de argumentação de Die Bürgerpflicht der Frau

O gênero de Die Bürgerpflicht der Frau pode ser definido como manifesto político e discurso político. Ute Gerhard o definiu em artigo de 1984Gerhard, Ute. Bis an die Wurzeln des Übels. Rechtsgeschichte und Rechtskämpfe der Radikalen. Feministische Studien, Volume 3: Issue 1. Berlin: De Gruyter, 1984. Disponível em: https://doi.org/10.1515/fs-1984-0106 (10/09/2020).
https://doi.org/10.1515/fs-1984-0106 ...
como Agitationsbroschüre, um panfleto de agitação (Gerhard 1984: 79).

O texto começa com citações tiradas de uma peça de Ibsen (“O Construtor Solness”), da qual Lily Braun se apropria habilmente para, na linha dos debates daquele tempo, anunciar uma nova mulher. Diferentemente das “mulheres atrofiadas” encarnadas pela personagem de Aline na peça de Ibsen, que se retraem no espaço do lar e do dever (Pflicht) doméstico, essa nova mulher, simbolizada pela personagem Hilde Wangel, expande-se ativamente e busca avançar sobre espaços a ela vedados, como as universidades e o parlamento, operando, no mesmo ato, uma abertura e renovação da própria sociedade:

Dever, aquela “palavra medonha, rude”, “soa tão fria, pontuda e pungente”, “eu não posso suportar!”, ela exclama quando Aline Solneß rechaça o agradecimento da jovem donzela com as palavras: “Mas eu apenas faço o meu dever”. Mulheres atrofiadas como essa Aline, as quais jamais serão capazes de ter uma personalidade autônoma, costumam portar a palavra “dever” como um escudo diante de si, a fim de esconder por detrás dele seu espírito vazio e seu coração vazio. Mas a outra parte do sexo feminino, a que adquiriu conhecimento de sua situação de privação de direitos, fica em pé diante da porta como Hilde e deseja entrar. (Braun 1895Braun, Lily. Die Bürgerpflicht der Frau. Berlin: F. Dümmlers Verlag, 1895.: 3)

Com essa mulher, diz Lily Braun, “o ar e a clareza da luz do sol” devem irromper na sociedade fechada e opressiva para libertá-la “de sua estreiteza” (Braun 1895: 3-4). O texto abre, portanto, com a ideia de que, primeiro, existe uma nova mulher capaz de, ao expandir sua própria existência, abrir e expandir a sociedade como um todo; e de que, em segundo lugar, essa nova realidade que se anuncia (e que é também anseio) só pode prosperar sob a redefinição radical do significado de “dever”:

Existe uma palavra que veda o caminho mais cerradamente que todas as fechaduras e todos os portões: a palavra dever. E nós estamos começando, como Hilde, a não suportar mais. “É dever da mulher comandar a casa, servir, obedecer e permanecer em silêncio na comunidade”, objeta-se às mulheres que querem fazer valer seus direitos. E como elas sabem que, diante do tribunal da ética, o valor de um ser humano é aferido segundo o grau com que ele cumpre seu dever, elas frequentemente se calam diante desses adversários que querem fazer valer contra elas a veneranda lei moral. Eles não sabem que é justamente em nome dessa lei moral que elas não deveriam se calar; que o dever não é uma “palavra fria, pungente” em que os santarrões eclesiásticos e seculares o transformaram, mas uma força viva que cativa os seres humanos que ela anima e não permite que eles sejam acuados pelo opróbrio e pela morte quando estão a seu serviço (Braun idem, ibidem)

Toda essa abertura busca consolidar uma ideia de agência para as mulheres, o que se reflete nos verbos utilizados: as mulheres não devem mais sofrer os golpes da palavra dever, palavra medonha, fria e dilacerante. Elas agora agem: declaram sua insatisfação, tomam consciência, pressionam (“batendo às portas”), entram, libertam, fazem irromper o ar e a luz onde antes havia asfixia e trevas.

Feito esse anúncio, Lily Braun recuará no tempo, não só para perscrutar as trevas daquele mundo “estreito” que ela caracteriza na abertura, mas para buscar os primeiros lampejos da luz representada pela nova mulher, a mulher que, como Hilde, começa a “bater às portas” dos espaços masculinos (Braun idem: 4 e ss.). Lily Braun buscará mostrar, em outras palavras, que tanto essa nova mulher com sua nova ideia de dever quanto o mundo que ela enfrenta possuem uma longa história. Essa abertura para o passado é simultaneamente um movimento de expansão, uma negação daquela estreiteza que ela condena no parágrafo inicial, dado que os horizontes das práticas, discursos e ideais apresentados no texto deverá ir muito além da Alemanha para mergulhar na realidade política de diferentes países, em diferentes períodos (Braun idem: 4-16). É como se Lily Braun estivesse também sinalizando para seu público, com entusiasmo e admiração, o tamanho do universo que aquela estreiteza excludente deixava de fora. E se a história do mundo fechado e opressivo é quase imemorial, a história da nova ideia sobre o dever é bem mais recente: ela começa a tomar contornos mais claros a partir de Condorcet, Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, no período das Luzes e da revolução francesa, e ganhará força no século XIX com John Stuart Mill, as abolicionistas e os abolicionistas americanos (Lloyd Garrison, Abby Kelley, as irmãs Grimké), as integrantes do movimento para a temperança (Frances Willard e outras) e as socialistas inglesas (como Beatrice Webb). Esse recuo no tempo é o que ocupa a maior parte do texto de Lily Braun. Ele segue uma orientação cronológica porque seu objetivo é chegar aos dias de Lily Braun, à situação do mundo e, mais especificamente, da Alemanha naquele dezembro de 1894. O presente de Lily Braun deveria ser visto em sua historicidade: não só aquilo que ela caracteriza como estreiteza e escuridão deveria aparecer como possuindo uma história, mas também a luta das - e pelas - mulheres precisava aparecer em seu movimento histórico, justamente para evidenciar que se chegara - na época de Lily Braun - a um momento chave desse movimento, um momento de enormes desafios, por um lado, mas também de avanços e conquistas. Mais importante, este era um momento do qual as mulheres alemãs deveriam fazer parte; elas precisavam integrar essa história em movimento e ajudá-la a avançar.

Coerente com essa dinâmica argumentativa, o início do clímax do texto se dá quando o foco de Lily Braun abandona a América e a Inglaterra, cruza os mares e passa a mirar a Alemanha:

Da Inglaterra até o Império alemão, cruzando o canal, o caminho não é longo. E mesmo o oceano que está entre nós e a América ou a Austrália já foi superado há muito pela tecnologia. Mas a mulher alemã, ao que parece, diferencia-se de tal modo das suas irmãs de além-mar em suas características morais e mentais, que é como se houvesse dez oceanos entre elas. Pois senão, como poderiam os legisladores justificar o ato de conferir a elas o lugar de seres humanos de segunda classe perante a lei? Ou será que a mulher alemã, ao negligenciar os seus deveres, jogou fora os seus direitos? Ela é louvada como boa mãe e boa dona de casa desde tempos imemoriais; em toda cidade, dúzias de associações filantrópicas, à frente das quais estão mulheres, dão testemunho do coração amoroso dela. Mas eu pergunto: será que toda mulher é mãe e dona de casa? (Braun idem: 16 e ss.)

Ainda que nem sempre explicitamente, agora ela fala dela mesma, das suas colegas de associação, daquele público reunido na sala de concertos da Leipziger Straße, das trabalhadoras e trabalhadores alemães, do imperador e do império, das questões e representações que agitavam a Alemanha do seu tempo, como o estereótipo da “alte Jungfer” (algo como “velha solteirona”), tão bem estudado por Catherine Dollard em The Surplus Woman. Nesse ponto do texto, portanto, o assunto começa a se tornar cada vez mais próximo do público pretendido por Lily Braun e, por isso, começa também a provocar com mais intensidade. Esse terço final é marcado por ironias, antíteses, exortações, imagens concretas, metáforas e intertextos com potencial provocador, e nos dá uma ideia de por que Cauer e Lüders afirmaram que a Frauenwohl recebera ataques severos por conta do discurso. A partir da Alemanha, Lily Braun completará então, na parte final, o movimento de expansão que caracteriza o texto como um todo. Nesse ponto, é toda a humanidade que passa a ser visada; e, como requisito para a promoção do bem-estar de toda a humanidade, estariam os direitos da cidadania e as liberdades básicas para as mulheres. A ideia de dever é então reformulada: da estreiteza do lar doméstico para a amplitude do espaço público em que se decidem as questões fundamentais da sociedade.

4 Estratégia argumentativa, empatia e expansão dos direitos

A primeira hipótese que levanto no presente artigo é de que uma das estratégias argumentativas fundamentais do texto de Lily Braun consiste na mobilização dos mecanismos de empatia do público. Isso se dá por meio de recursos estilísticos que a todo momento convidam o público a simultaneamente: 1) projetar-se no lugar de um outro que sofre e que passa por todo tipo de obstáculo. Aqui, o recurso estilístico predominante é o emprego de imagens marcadas por maior concretude e que visam evocar o outro nas suas horas de sofrimento. Por concretude refiro-me ao fato de que o corpo e as emoções do outro, bem como os espaços em que ele vive, são trazidos para dentro do texto como realidades a serem imaginadas pelo público; 2) desidentificar-se de si mesma(o) nos aspectos que o texto apresenta como negativos: a estreiteza, o confinamento no âmbito dos deveres domésticos, o desinteresse pela sorte dos outros, o comportamento predatório para com as pessoas mais desfavorecidas da sociedade, a exemplo dos trabalhadores e trabalhadoras pobres. Aqui, os recursos estilísticos predominantes são a ironia, a comparação desvantajosa com outros países e o emprego polêmico da linguagem religiosa; 3) assimilar o movimento geral do texto, que vai do estreito/restrito/privado para o amplo/abrangente/público. Esse movimento busca, em última análise, operar a expansão da esfera da empatia e do arco dos direitos e liberdades fundamentais para incluir pessoas que até então estavam deles largamente excluídas, como as mulheres e a classe trabalhadora mais pobre. Vejamos alguns exemplos de como isso ocorre no texto.2 2 Esclareço que as citações são todas feitas a partir da minha tradução, apresentada no relatório final da iniciação científica desenvolvida na FFLCH-USP. Entretanto, como a tradução não está disponível para consulta, dou como referência o número da página correspondente no original.

Começo pelo modo como o texto apresenta William Lloyd Garrison (1805-1879) e as irmãs Angelina Emily Grimké Weld (1805-1879) e Sarah Moore Grimké (1792-1873), figuras pivotais do abolicionismo que desempenharem também um papel importante na história do movimento de mulheres americano. O texto apresenta William Lloyd Garrison como o “apóstolo da libertação dos escravos” e o “pobre impressor desconhecido” que, movido por um “fervor sagrado”, contou ao mundo sobre a “miséria desses pobres negros subjugados à condição de animais de carga de seus senhores cristãos” (Braun 1895Braun, Lily. Die Bürgerpflicht der Frau. Berlin: F. Dümmlers Verlag, 1895.: 7). Na sequência, o texto relatará as agruras por que Garrison passou: os “pregadores da palavra de Cristo” utilizaram o púlpito para vilipendiá-lo; a turba lhe atirou pedras; a imprensa despejou “escárnio e zombaria” sobre ele (idem, ibidem). Chamo primeiramente a atenção para o fato de que a descrição é toda marcada por termos e expressões que evocam sofrimento e apuro: “pobre”, “desconhecido”, “subjugados”, “animais de carga”, “escárnio e zombaria”, “lhe atirava pedras”. A concretude da imagem “animais de carga” é reforçada pelo uso do dêitico “destes” (dieser armen, zu Lasttieren...), que aproxima o público do tormento dos escravos. Ao mesmo tempo, “cristãos” e “de Cristo” aparecem como modificadores colados a uma classe de indivíduos desprovidos dos sentimentos básicos de humanidade. No plano do texto, a palavra “cristãos” está ainda em atrito com uma outra que normalmente lhe seria contígua, qual seja, “apóstolo”, gerando mais uma vez um efeito de estranhamento e desidentificação. Garrison, aquele que foi ao encontro do outro no seu sofrimento, o “apóstolo” que falava com “fervor sagrado” e que aparece como mártir, jamais é designado no texto como cristão, embora efetivamente o fosse; e aqueles que são de fato designados como “cristãos” aparecem desprovidos daquilo mesmo que, no discurso tradicional, deveria ser o traço distintivo do cristianismo: a compaixão e a prontidão para o sacrifício em favor dos que sofrem.

A apresentação de Angelina e Sara Grimké se dá em termos semelhantes. Definindo-as como as primeiras mulheres que haviam “ousado atuar publicamente”, o texto salienta que elas enfrentaram uma série de “duras perseguições”, não para promover os seus próprios interesses, mas para ir ao socorro dos “mais pobres e desprezados entre os seus irmãos: os escravos” (idem: ibidem). As perseguições ganham concretude quando o texto descreve como elas foram capazes de, em meio aos risos e zombarias da população e de instituições como a imprensa e a igreja, escutar o “lamento dos escravos e os gritos das mães que foram arrancadas do lado dos seus filhos” (idem: 7-8). E avança na apresentação de ambas destacando que, para suportar por tanto tempo o ódio geral e os ataques virulentos, precisava-se ter a “coragem de um mártir e a fé/crença (Glaube) de um santo” (idem: 8). Novamente os sofrimentos são enfocados, tanto os das abolicionistas quanto os dos escravos. O cristianismo institucionalizado aparece novamente num papel de antagonista, enquanto que a fé e o martírio estão ao lado daquelas que enfrentam as instituições vigentes. Recupera-se a noção cristã de uma família humana, mas com o intuito de integrar nela os escravos, que são designados como “irmãos”. O recurso à empatia parece operar nesses trechos em várias camadas: Lily Braun está se valendo de uma linguagem afetivamente carregada, em que imagens concretas e sentimentos são mobilizados para tocar o público e fazê-lo se colocar no lugar do outro - no caso, dos escravos e das abolicionistas. Ao mesmo tempo, o que ela descreve com essa linguagem empática é a própria empatia em ação, já que o trecho se ocupa de pessoas que foram além do âmbito restrito dos seus interesses imediatos para se dedicar à proteção, à liberdade e ao bem-estar de seres humanos então largamente excluídos seja do âmbito dos direitos legais, seja da esfera da empatia.

No trecho a seguir, Lily Braun discute o tema da feminidade ou feminilidade (Weiblichkeit). A discussão se segue a uma consideração de Lily Braun de que, após “séculos de pregação” sobre o tema da “feminilidade” (ela mesma coloca o termo entre aspas), a mulher alemã seria “de todas as mulheres do mundo ocidental, a mais desprovida de direitos e a que tem menos força para se indignar com sua falta de direitos”. E ela prossegue:

A média das mulheres alemãs educadas e bem-situadas frequentemente acredita que o eterno feminino esteja incorporado justamente nelas. E os homens as encorajam a zelar por essa feminilidade e a não a colocar em perigo intrometendo-se nos “assuntos masculinos”. Mas contra a mulher no trono jamais foi levantada até hoje a acusação de falta de feminilidade [Unweiblichkeit], e a consideração pela feminilidade ainda não impediu nenhum homem de mandar mulheres para as pedreiras e as minas. Não consigo ver como uma mulher que joga sua cédula na urna eleitoral colocaria mais em risco a sua “feminilidade” do que uma outra que empurra uma carreta cheia de pedras. E não consigo compreender por que a visão de uma mulher grávida em um local de votação deva causar mais indignação do que a visão de uma tal mulher nas fábricas de chumbo. A mãe que elege um representante para o órgão legislativo cuida do bem-estar do seu filho, mas a mãe que é obrigada a inalar o ar tóxico da fábrica mata o seu filho ou o sacrifica a uma enfermidade duradoura. Tampouco sei o que corresponda mais ao conceito de feminilidade: ir trajada socialmente até o local da votação ao lado do marido, do pai ou do irmão a fim de lançar a sua cédula na urna, ou voar dos braços de um estranho para os de outro vestida em trajes de baile. E o que é mais adequado à dignidade de uma mulher: quando ela, na companhia de amigas de mesma mentalidade, despedaça a reputação do vizinho, ou quando ela discute, com mulheres e homens sérios, como promover o bem-estar de todos? (Braun 1895Braun, Lily. Die Bürgerpflicht der Frau. Berlin: F. Dümmlers Verlag, 1895.: 18-19)

Primeiramente, gostaria que se tivesse em mente na leitura desse trecho que, no tempo de Lily Braun, foram travados muitos debates sobre a definição do feminino. A ideia de que as mulheres colocariam em risco a sua feminilidade ao se interessar por política ou ir votar efetivamente circulava então (Briatte 2020Briatte, Anne-Laure. Bevormundete Staatsbürgerinnen: Die radikale Frauenbewegung im Deutschen Kaiserreich. Trad. para o alemão de Meiken Endruweit. Frankfurt: Campus Verlag, 2020.: 321). Também a escolha da imagem da mulher no baile como contraponto para a imagem da mulher votante pode ser rastreada a partir das fontes disponíveis. Penso que a passagem evoca o mundo da infância e adolescência da própria Lily Braun, o mundo da aristocracia e da alta sociedade prussianas em que os bailes cumpriam funções sociais importantes (Meyer 1985Meyer, Alfred G. The Feminism and Socialism of Lily Braun. Bloomington: Indiana University Press, 1985.). Os pais nutriam expectativas em relação à presença, apresentação e desempenho de suas filhas nos bailes, na esperança de que elas cativassem pretendentes que fossem social e financeiramente interessantes para a família (Meyer, biógrafo de Lily Braun, designa esse aspecto do mundo da alta sociedade como “ludicrous husband-catching business” - Meyer 1985: 11). Lily Braun fez parte desse mundo, participou desses jogos aristocráticos, apreciava as festas e danças (cf. Meyer idem: ibidem) e, mesmo mais tarde em sua vida, parece ter continuado a vestir-se à maneira aristocrática mesmo na presença de suas colegas operárias da socialdemocracia (ponto que Gilbert Badia, biógrafo de Clara Zetkin, salienta com certo colorido e espalhafato que talvez reforce estereótipos sobre a autora - Badia 2003: 93-94). Aparece no trecho, ainda, o estereótipo da mulher maledicente, também corrente nas representações da época; ele funciona mais ou menos como uma extensão da mulher no baile, um elemento a mais na longa cadeia isotópica com a qual Lily Braun constrói no texto o tema da estreiteza e da restrição. Parece-me, portanto, que todo esse complexo de imagens e expectativas da época parece estar sendo evocado por essa breve passagem de texto, mas com uma peculiaridade: essas imagens são reinseridas em um quadro de ideias e representações que está orientado para a empatia. É dentro desse quadro que essas imagens então correntes ganham uma nova significação e passam a representar outros valores; no caso da mulher votante, um esforço positivo tanto de liberdade pessoal quanto de cuidado com o outro que sofre; no caso da mulher no baile e da mulher maledicente, a possível crítica à noção de que os âmbitos de visibilidade e atuação das mulheres devessem ficar restritos à vida familiar e às relações íntimas.

Sabemos a partir das ciências cognitivas que as categorias em geral e os estereótipos em particular (os protótipos na vida social) são elementos estruturantes da percepção, da linguagem e do pensamento humanos, e que exemplos e imagens vívidos possuem um papel relevante na conformação destes elementos (Lakoff 1990Lakoff, George. Women, Fire, and Dangerous Things: What Categories Reveal about the Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1990.; Kahneman 2012). Sabemos também que o contexto em que um problema de avaliação ou decisão qualquer é apresentado influencia a categoria à luz da qual a avaliação ou a decisão são efetuadas. Aspectos distintos de um determinado conjunto de questões tornam-se visíveis ou ficam ofuscados, entram em evidência ou se apagam conforme, por exemplo, as questões sejam avaliadas individual ou conjuntamente (Kahneman idem: 439-442). Destaco esses pontos porque eles podem nos ajudar a refletir sobre essa e outras passagens do texto de Lily Braun. Parece-me que Lily Braun procura redefinir normas de categorias, associá-las a complexos distintos de imagens e, com isso, influenciar a avaliação moral de determinadas situações. No texto em geral trata-se de redefinir a categoria do dever, de modo que seu elemento prototípico seja não a restrição das obrigações domésticas e religiosas, mas sim a amplitude das responsabilidades e conquistas do espaço público. Esse esforço de redefinição está sempre presente. Mas no trecho acima há um esforço adicional de redefinição da categoria do feminino, ou pelo menos de desgaste de uma dada norma da categoria do feminino. E nesse ponto a concretude das imagens exerce um papel fundamental. Veja-se que toda a discussão sobre a feminidade é reenquadrada por Lily Braun contra o fundo ominoso, concreto e nítido da exploração das trabalhadoras pobres nas minas e nas fábricas. Questões que a princípio poderiam aparecer separadas - a definição do feminino, o sofrimento das trabalhadoras pobres e o direito de voto - são reunidas para provocar uma nova avaliação, na qual a atividade política fosse parte integrante do feminino e o voto fosse visto no seu poder de aliviar o sofrimento dos grupos mais desfavorecidos. É o sofrimento do outro - neste trecho, o das trabalhadoras pobres; mais à frente na argumentação, o de toda a humanidade excluída da esfera da empatia e dos direitos - que, no texto, dá às diferentes imagens da mulher um sentido ético fundamental e as disponibiliza para a redefinição do feminino. Chamo a atenção para como a exploração é evocada vividamente: a carreta cheia de pedras sendo empurrada, o ar tóxico que é inalado pela mãe e que contamina o filho. O ato de votar também é representado concretamente: Lily Braun faz seu público visualizar como possibilidade a imagem da mulher lançando a cédula na urna e indo ao local de votação trajada socialmente. O baile é evocado por meio da representação do corpo da mulher que se lança ou é lançado dos braços de um para os de outro. A mulher maledicente, que não deixa de ser um negativo da empatia buscada pelo texto, é representada na companhia de outras e como dona de uma fala que “despedaça” a reputação alheia. O termo traduzido por “despedaça” é o sugestivo zerpflücken, o mesmo verbo utilizado, por exemplo, para o ato de arrancar as pétalas das flores e as folhas dos ramos, de desfazer alimentos (como o pão) em pedaços pequenos, entre outros. Por extensão, o verbo significa ainda, de um modo mais geral, “despedaçar”, “partir”, “desfazer em pedaços menores”, e tem usos metafóricos no contexto da argumentação, no sentido de se buscar refutar minuciosamente uma afirmação, ponto por ponto3 3 Cf. entrada no DWDS: https://www.dwds.de/wb/zerpfl%C3%BCcken (último acesso: dia 9. Abr. 2021, 23:55) . Como efeito gerado pela passagem no seu contexto, penso que se pode identificar aquilo que apontei mais acima como sendo um dos elementos estruturantes do texto: a identificação com o outro que sofre e a desidentificação de uma postura de egoísmo. Essa nova dinâmica de identificação e desidentificação, por sua vez, orienta a reconstrução de categorias e estereótipos, seja do dever, seja do feminino.

Ainda tratando do estado de coisas na Alemanha, Lily Braun emprega procedimentos semelhantes, mas com algumas peculiaridades. A primeira delas é o maior grau de detalhamento das imagens; a segunda, a oportunidade de fazer exortações diretas ao público para que este se imagine no lugar do outro. No trecho abaixo, em que comenta as condições das trabalhadoras e trabalhadores alemães, ela conclama o público a sair da esfera restrita dos interesses individuais para adentrar os espaços de penúria e sofrimento. A conclusão desse exercício empático é formulada como um desafio direto ao público, que se veria na circunstância de ter de concordar com a oradora/autora para não se mostrar cúmplice dos horrores viva e ritmicamente relatados por ela. Aqui se mostram cruciais a concretização dos lugares da miséria e a representação vívida dos pobres em seus movimentos, trajes e hábitos. Transcrevo abaixo o trecho e chamo atenção para os verbos: sair às ruas (lembre-se aqui de novo da superação das estreitezas e restrições); olhar (as imagens da miséria, que evocam a empatia); quatro vezes o verbo ir no imperativo, acompanhado dos lugares concretos e metafóricos da miséria (prisões, casas de correção, mas também os “infernos do vício”); pensar (o momento da reflexão que se segue à empatia e que permite associar todo o horror com a estrutura política da sociedade alemã); e, por fim, a conclusão em forma de desafio com o verbo ousar no imperativo:

Saiam às ruas e vejam as inúmeras crianças crescendo na pobreza e na ignorância; olhem para o vício e a miséria que as cercam. Vão às nossas prisões e casas de correção, onde mulheres, que talvez tenham se tornado ladras apenas para aplacar a fome de seus filhos, são aglomeradas no mesmo espaço com as mais depravadas do seu sexo. Vão às fábricas e vejam como homens e mulheres, entra ano e sai ano, empregando todas as energias, tecem os vestidos de vocês, fazem os brinquedos dos filhos de vocês, enquanto eles mesmos andam em trapos e os filhos deles brincam na rua. Vão aos abrigos de pobres dos vilarejos, onde jovens e velhos moram espremidos uns nos outros e ainda precisam se mostrar agradecidos por essa “caridade”. Vão aos infernos do vício, onde homem e mulher descem à condição de animais. Pensem no passado recente, quando o representante de Sua Majestade o Imperador, o chanceler Leist, violou mulheres, mas apesar disso foi declarado um “funcionário aplicado e cioso dos deveres” - e então ousem ainda dizer: nós não temos nenhum dever como cidadãs! (Braun idem: 22)

Chamo ainda a atenção para a abrangência do movimento de expansão da esfera da empatia e dos direitos nesse trecho. O chanceler Leist a que Lily Braun se refere é Karl Theodor Heinrich Leist (1859-1910), chanceler do governo colonial alemão nos Camarões. São inúmeras as atrocidades atribuídas a Leist no seu período junto ao governo colonial: assassinados, destruição de plantações, incêndio de casas. Braun, porém, refere-se ao que ficou conhecido como “caso Leist”, ocorrido entre meados de 1893 e o início de 1894, quando Leist substituiu o governador colonial dos Camarões Eugen von Zimmerer (1843-1918), então em férias na Alemanha. Ele mandou prender, despir e chicotear as mulheres daomés que se recusaram a servir o governo colonial, fazendo ainda os seus maridos assistirem às agressões (Bösch 2009Bösch, Frank. Öffentliche Geheimnisse: Skandale, Politik und Medien in Deutschland und Großbritannien 1880-1914. München: Oldenbourg Wissenschaftsverlag, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1524/9783486707465.225 (06/04/2021).
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: 266). Também contra o seu vice, Alwin Karl Wehlan, foram erguidas várias acusações, entre elas a de que suas tropas haviam cometido assassinatos e violação de cadáveres (Bösch idem: 267). Em abril de 1894, poucos meses antes do discurso de Lily Braun, o jornal Die neue deutsche Rundschau começou a publicar relatos sobre crimes sexuais cometidos pelo chanceler Leist, que havia mandado prender mulheres para submetê-las à prostituição forçada (Bösch idem: 268). A princípio a punição dada a Leist foi bastante branda, não acarretando nem mesmo rebaixamento na hierarquia do serviço público. Em 1895, pouco tempo depois do discurso de Lily Braun, o tribunal disciplinar em Leipzig, revisando as acusações, exonerou Leist do serviço público e ele então emigrou para os Estados Unidos (Bösch idem: 271-272). A expansão da esfera da empatia e dos direitos visada por Lily Braun no texto é suficientemente ampla para incluir também as mulheres fora da Alemanha; neste caso, as mulheres africanas que viviam sob o regime colonial do império alemão.

Em outro trecho em que comenta a situação das trabalhadoras alemãs, Lily Braun tece considerações a respeito dos baixos salários que lhes eram pagos. Mas ela não se limita a esses dados. Ela procura, como nos trechos acima, colocar diante dos olhos da imaginação de seu público os espaços em que as trabalhadoras moravam com suas famílias - cubículos de poucos metros quadrados - e o impacto da exploração econômica sobre os seus corpos, empregando ainda elementos concretos como o vestuário e o suor para tornar palpável o vínculo entre a condição das trabalhadoras e a atitude das mulheres das classes mais altas:

Dificilmente haverá alguma peça do nosso vestuário em que não esteja grudado o suor das trabalhadoras esfoladas; para o adorno de nossas casas, para os prazeres da nossa mesa contribuiu o trabalho de meninas famintas, violadas. E sim, nós não hesitamos em cultivar a vergonha cobiçando para nossos bebês a energia vital de garotas pobres (Braun idem: 21).

A linguagem empregada nesse trecho parece buscar aquele duplo movimento no público a que fiz referência acima: primeiro, um distanciamento que permitisse a esse público olhar criticamente para si mesmo a partir da perspectiva da justiça, da igualdade e da solidariedade; em segundo lugar, um movimento de aproximação e identificação com o outro, retratado em suas horas de sofrimento mais atroz. Esses movimentos parecem estimulados retoricamente pela inclusão da própria falante - Lily Braun - na situação de crítica, como mulher e como integrante das camadas mais privilegiadas. Constrói-se a ideia de um “nós” predatório que precisa dar lugar a um “nós” mais inclusivo. Este “nós” cultiva a vergonha - o verbo utilizado é züchten, o mesmo empregado para a criação de plantas e animais - e cobiça a energia das crianças alheias à maneira de aves de rapina. Nisso tudo se percebe ainda, novamente, a utilização algo polêmica da linguagem religiosa. Parece-me que está em jogo no trecho a matriz cristã do cobiçar os bens do próximo. O termo que Lily Braun usa é begehren, uma palavra alemã que, conquanto corrente na acepção mais geral de desejo e não necessariamente negativa, é uma das correspondentes do latim cupiditas (Georges 1853Georges, Karl E. Kleines Lateinisch-Deutsches und Deutsch-Lateinisches Handwörterbuch. Deutsch-Lateinischer Teil. Leipzig: Hahn’sches Verlag Buchhandlung, 1853.Disponível em: https://books.google.com.br [ultimo acesso em 22/09/2022, às 12:27]
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: 443-444) e possuía forte ressonância religiosa pela via dos tabus e interditos incidentes sobre a propriedade de bens materiais (que na lógica patriarcal incluía a própria mulher), como no mandamento do catecismo menor: “Du solt nicht begeren deines nehisten Weib, Knecht...” (Luther 1853Luther, Martin. D. Martin Luthers Kleiner Kathecismus. Nach den Originalausgaben kritisch bearbeitet von K.F.Th. Schneider. Berlin: Wiegandt und Grieben, 1853. Disponível em https://books.google.com.br (31/09/2021).
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: 19). O nosso equivalente seria “cobiçar”. Também Schande (vergonha) é um termo de amplo uso em traduções alemãs da bíblia e nos catecismos históricos; já na tradução de Lutero aparecia a expressão eine Schande begehen (praticar uma vergonha) para designar um pecado de ordem sexual (por exemplo em 3.Mose.20:12, correspondente ao nosso Levítico 20:12). No catecismo menor, Schande é associada a Laster (vício), como no comentário ao sexto pedido do pai nosso (Luther 1853: 37).

Outro índice do movimento argumentativo aqui discutido é o emprego da palavra Menschheit, humanidade. A palavra ocorre 9 vezes e é, com isso, um dos substantivos mais recorrentes no texto, isso sem levar em conta o vocábulo de que ela é derivada por meio do sufixo -heit (Mensch). A Menschheit é o grau máximo do movimento de expansão do texto, a vitória sobre os diversos tipos de restrição e estreiteza que Lily Braun aponta. Mas o termo é usado também para enfocar a parte dos seres humanos a que se deve destinar a empatia. Uma dessas expressões é leidende Menschheit, a humanidade sofredora ou humanidade que sofre. A expressão aparece no último parágrafo do texto, quando Lily Braun aponta:

Nós seremos corresponsáveis por cada garota sacrificada ao vício, por cada mulher faminta, por cada criança crescendo na miséria, enquanto não sentirmos a obrigação sagrada de, com toda nossa força, com todo nosso pensamento e sensibilidade, entrar na luta pela humanidade que sofre (Braun idem: 24).

Outra expressão usada por Lily Braun - já no seu tempo bastante corrente em textos do movimento de mulheres alemão - é die andere Hälfte der Menschheit, a outra metade da humanidade, a saber, as mulheres.

Note-se que a generalidade implicada por Menschheit é ainda replicada por outros termos que possuem importância crucial nas correntes intelectuais a partir do Iluminismo, como allgemein (geral, universal). Coerentemente com o aprofundamento da perspectiva iluminista e também com a filosofia utilitarista clássica, o termo aparece normalmente ligado à ideia de bem-comum (Allgemeinwohl) e dos direitos humanos universais (der allgemeinen Menschenrechte), aí incluído o sufrágio universal (das allgemeine Wahlrecht). O bem-comum ou bem-estar geral também é designado como “bem-estar de todos” (Wohlfahrt Aller), sendo que all- (todos, todas, tudo) é, naturalmente, o morfema que se encontra no referido termo allgemein (geral, universal). Lily Braun chega mesmo a igualar no texto a expressão “princípios do estado moderno” a “direitos humanos universais”, o que é um passo bastante interessante não apenas do ponto de vista do movimento argumentativo do texto, mas também da perspectiva da discussão política alemã no final do século XIX, já que estava longe de ser óbvio que essas duas expressões fossem sinônimas.

Até esse ponto tentei apenas evidenciar a importância do movimento de expansão da esfera da empatia e do arco dos direitos e liberdades na argumentação de Lily Braun. Uma etapa seguinte dessa investigação é verificar quais princípios político-filosóficos estão sendo acionados pela argumentação. Uso essa expressão ampla “estão sendo acionados” porque não pretendo argumentar que o texto de Lily Braun parta de uma determinada convicção político-filosófica ou tenha nesta a sua origem última. Para os fins da minha argumentação, basta que: 1) o movimento operado no texto se deixe justificar filosoficamente por um conjunto reconhecível de princípios éticos e políticos; 2) esse conjunto de princípios tenha potencialmente uma ressonância emocional no contexto da argumentação.

A hipótese que eu gostaria de oferecer aqui é de que o texto de Lily Braun encontra a sua justificativa ética e política na filosofia utilitarista clássica, especialmente na versão de Stuart Mill. Antes de entrar em pontos específicos que revelam essa aproximação, gostaria antes de indicar a sua plausibilidade histórica. Lily Braun menciona Stuart Mill no texto e reconhece seu papel como precursor na defesa dos direitos das mulheres, ainda que aqui ela provavelmente tenha em mente menos On Liberty ou Utilitarianism do que The Subjection of Women (a sujeição das mulheres), publicado em 1862. Ademais, é sabido que seu então marido Georg von Gizycki foi fortemente influenciado por Mill e Bentham (Lischke 2000Lischke, Ute. Lily Braun, 1865-1916: German Writer, Feminist, Socialist. Rochester: Boydell & Brewer-Camden House, 2000.: 23) e que o Frauenbewegung alemão, de que Lily Braun então fazia parte, era em grande parte burguês e liberal (Evans 1976Evans, Richard J. The Feminist Movement in Germany 1894-1933. Sage Studies in 20th Century History. Volume 6. London and Beverly Hills: Sage Publications, 1976.). Isso não deve levar à conclusão de que a perspectiva de Lily Braun seja um reflexo das visões de Georg von Gizycki ou da associação Frauenwohl; o que isso mostra é como essas figuras estavam inseridas em contextos socioculturais que se intersectavam e como, a partir de determinadas referências comuns, elaboraram suas perspectivas muito próprias. O historiador Thomas Nipperdey caracteriza Lily Braun como alguém que chegou à socialdemocracia a partir do Linksliberalismus, o liberalismo de esquerda (Nipperdey 1990: 92). Não bastasse, lembre-se aqui que mais tarde, já no período em que havia declarado abertamente sua adesão à socialdemocracia e ao socialismo, Lily Braun passará a defender um socialismo marcado por preocupações humanitárias e por um reformismo que talvez a aproximasse mais dos socialistas fabianos ou, no limite, mesmo de liberais progressistas na linha de Stuart Mill do que de alguns dos seus colegas e de suas colegas de partido como Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. O próprio Eduard Bernstein, com cujas ideias Lily Braun mais tarde passou a simpatizar, era grande admirador de Stuart Mill e foi influenciado por este (Fletcher 1984Fletcher, Roger. Revisionism and Empire: Socialist Imperialism in Germany 1897-1914. London: George Allen & Unwin, 1984.: 166). No seu estudo clássico e aprofundado, Jean Quataert reflete da seguinte forma a respeito do socialismo que Lily Braun desenvolverá mais tarde:

Socialista de preocupações basicamente humanitárias, Lily Braun rejeitava os vieses de classe da visão de mundo socialista. O materialismo histórico, com sua reivindicação de objetividade científica, era-lhe igualmente estranho. Ela abraçou ardorosamente a obra Socialismo Evolutivo de Eduard Bernstein, publicada pela primeira vez em 1898, e se tornou uma revisionista ética, mais próxima dos reformistas no espectro ideológico do que dos radicais. (Quataert idem: p. 79).

Quanto ao conteúdo da obra de Stuart Mill, começo lembrando uma passagem do ensaio On Liberty deste autor, publicado em 1859 e dedicado à sua esposa Harriet Taylor Mill, a quem ele atribui papel fundamental na elaboração do texto. Ao resumir a visão calvinista sobre liberdade e vontade do indivíduo, Stuart Mill observa que, segundo essa visão, “tudo o que não constituir dever (duty) é pecado” (Mill 2000: 94). No ensaio como um todo, Mill pensa a história como um drama em que se confrontam dois feixes de princípios antagônicos: de um lado, autoridade, obediência e costumes; de outro, liberdade, espontaneidade e originalidade (Mill idem: 108). Os efeitos desse conflito podem ser mapeados em metáforas correspondentes: enquanto a prevalência da autoridade/obediência leva indivíduos e sociedades à estagnação (p. 98 - “lago estagnado”), à secura e ao definhamento (p. 94 - faculdades humanas “secas e definhadas”), a prevalência da liberdade/espontaneidade faz com que os seres humanos se expandam e cresçam à maneira de árvores frondosas:

A natureza humana não é uma máquina que se construa segundo um modelo e que se regule para realizar precisamente o trabalho para o qual foi designada. É antes uma árvore que precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo com a tendência das forças internas que a tornam algo vivo. (Mill idem: 91).

Ao longo de diferentes pontos da obra percebe-se o funcionamento de metáforas conhecidas como ser humano é planta, aprimoramento é expansão, aprimoramento é florescimento. Diferentemente da quase totalidade dos filósofos de então, Mill acreditava que desse “florescimento” deviam fazer parte igualmente as mulheres, e critica o poder que sobre elas era exercido seja pela sociedade (p. 104), seja pelo marido (p. 159).

Ora, o primeiro nível da expansão construída por Lily Braun em Die Bürgerpflicht der Frau está relacionado a essa ordem de ideias. Trata-se da expansão do próprio indivíduo enquanto ser que é livre para explorar e desenvolver as suas potencialidades.

Também no texto de Lily Braun se observam metáforas da natureza para a liberdade e as potencialidades humanas. Logo no início, quando invoca passagens da peça de Ibsen, Lily Braun diferencia dois grupos de mulheres: aquelas conscientes de seus direitos e que buscam autonomia, expandindo o seu âmbito de atividades e avançando para espaços que lhes eram vedados; e as “atrofiadas” (Verkümmerte), que se orientam e se justificam pelo dever. Já no tempo de Lily Braun verkümmern (atrofiar, definhar, estagnar) era um verbo muito ocorrente no contexto de Blüte (flor, inflorescência) e Pflanzen (plantas), de modo que parece plausível que esteja aqui em operação uma metáfora botânica. Essa impressão se reforça quando se leva em conta a importância das metáforas da natureza na obra de Lily Braun como um todo (é com uma metáfora da natureza que ela descreve nas suas memórias a reação do público ao Die Bürgerpflicht der Frau - cf. Braun 1909: 622).

Outro ponto importante de contato entre o texto de Lily Braun e On Liberty e Utilitarianism está na relação entre liberdade individual, bem-estar individual e bem-estar comum. Vale lembrar que, em Utilitarianism, Mill derivara diretamente da desejabilidade da felicidade individual a desejabilidade da felicidade de todos ou, colocando nas suas palavras, a soma da felicidade. Seguindo de perto essa lógica, Lily Braun faz uma operação semelhante em diferentes pontos do texto, como no trecho em que o caminho ou pista livre (freie Bahn) para o desenvolvimento de si mesmo aparece em associação direta com o aumento do bem-estar geral: “E assim exigimos caminho livre para o nosso desenvolvimento, em prol de nós mesmas e da humanidade que sofre” (Braun 1895: 23). Na lógica argumentativa de Lily Braun, assim como na filosofia milliana, bem individual e bem comum estão estreitamente associados, um condicionando ou mesmo implicando o outro; e o bem individual, por sua vez, não prescinde da liberdade - a imagem da freie Bahn - para viver, fazer experiências e desenvolver-se na amplitude do mundo, para além daquilo que é construído no texto como estreiteza dos deveres doméstico-religiosos (e que em Mill é tanto a limitação dos deveres tradicionais quanto as restrições colocadas pela opinião pública).

Note-se ainda a ênfase de Lily Braun na felicidade (Glück) de todos. Tanto em Die Bürgerpflicht der Frau como na filosofia de Mill, uma sociedade desejável seria uma sociedade que maximizasse a função do bem-estar. Parece-me mesmo que é essa uma das chaves do texto de Lily Braun: a colocação de toda a moral sob o princípio máximo da felicidade - que, tal como no utilitarismo clássico, é entendida como bem-estar - do maior número (idealmente, todos os seres humanos). E tanto no utilitarismo de John Stuart Mill quanto na argumentação desenvolvida por Braun esse princípio é inseparável da ideia de liberdade. Daí que, na argumentação de Lily Braun, as mulheres devam ter o direito ao voto: não só porque isso se justifica do ponto de vista da igualdade, mas também porque isso é requisitado por uma ideia de liberdade construída como pressuposto do aumento do bem-estar (as mulheres devem poder moldar autonomamente as suas existências para conseguir vidas melhores para elas e para a sociedade em geral). No trecho que cito abaixo, Lily Braun exprime essas ideias de modo particularmente eloquente:

Eu quero de caminhar de lugar em lugar e plantar nos corações das mulheres aquela insatisfação salutar que é a mãe de todas as reformas, e gostaria de sacudir a sua consciência dormente, a fim de que elas se conscientizem da sua responsabilidade por toda a miséria no mundo. Mas ainda um outro sentimento poderoso, que animou todos aqueles que serviram à humanidade, precisa se tornar forte nos corações: a crença de que a felicidade de todos os seres humanos é possível. Quanto mais firmemente nós direcionarmos nossa vontade para esse fim, tanto mais energicamente exigiremos o poder de fazer valer a nossa vontade pela via legal (Braun 1895Braun, Lily. Die Bürgerpflicht der Frau. Berlin: F. Dümmlers Verlag, 1895.: 22).

Outros pontos de contato poderiam ser mencionados. Lembre-se mais acima a descrição que Lily Braun faz de figuras como Lloyd Garrison e as irmãs Grimké. Ao longo do texto, emergem vários outros heróis e mártires da liberdade e do bem comum, cujos esforços e conquistas são narrados entusiasticamente. Mas o que desejo salientar aqui é que os heróis do texto de Lily Braun são heróis racionais millianos, que fazem sacrifícios individuais porque entendem que nenhum indivíduo e nenhuma sociedade podem atingir o máximo de bem-estar se os interesses da coletividade não são considerados. Diferentes passagens da obra de Stuart Mill poderiam ser citadas. Vou me ater apenas a uma que me parece bastante ilustrativa. Depois de definir o egoísmo como uma das fontes da insatisfação (mill idem: 197) e apontar que todo espírito “inteligente e generoso” volta de alguma maneira sua atenção para a luta (p. 200) contra os sofrimentos humanos (lembre-se aqui que Lily Braun fala em “luta pela humanidade sofredora”), Mill observa que:

Isso nos conduz a uma justa apreciação dos argumentos adversários relativos à possibilidade e à obrigação de aprender a viver em felicidade. Dezenove vigésimos da humanidade vivem voluntariamente assim, mesmo naquelas regiões do mundo atual que estão menos afundadas na barbárie; o herói ou mártir com frequência deve voluntariamente viver assim, em nome de algo que ele preza mais do que sua felicidade individual. Mas o que é esse “algo”, senão a felicidade de outros ou alguns dos requisitos da felicidade? Há nobreza em ser capaz de renunciar inteiramente à porção particular de felicidade ou das oportunidades de alcançá-la. (Mill idem: 200)

Encerrando esse tópico, observo como esses pressupostos filosóficos estão estreitamente ligados à dimensão da empatia. Como apontei mais acima, Lily Braun não procura apenas convencer com números e argumentos lógicos; esses elementos são muito importantes, mas constituem uma parte do texto. Ela também constrói textualmente a empatia, e faz isso recorrendo tanto a exemplos de conduta (positivos e negativos) quanto à descrição vívida dos sofrimentos e misérias de seres humanos que ela percebe como excluídos da esfera da empatia e dos direitos. Essa dinâmica empática de identificação com o outro e desidentificação das posturas estreitas e egoístas se deixa articular filosoficamente por meio de uma doutrina ética que estabelece como princípio máximo a maior felicidade do maior número de pessoas, a saber, o utilitarismo clássico.

5 A escrita como veículo cultural da empatia

As características textuais que procurei discutir acima poderiam ser objeto de diferentes tipos de abordagem. O caminho que pretendo seguir nesse tópico é mais amplamente o da reflexão sobre as relações entre leitura/escrita e empatia. De modo mais específico, reflito ainda sobre como o público enquanto parâmetro textual pode desempenhar um papel importante na mediação dos efeitos de empatia.

Em 2007, a historiadora americana Lynn Hunt, uma das principais estudiosas da Revolução Francesa, publicou um livro com o título provocador de “A Invenção dos Direitos Humanos” (Hunt 2009 para a edição brasileira). O estudo de Hunt veio na esteira de diversas obras de divulgação científica em que se abordam as bases biológicas e psicológicas da empatia e se oferecem explicações evolucionárias para a origem da moral (ou dos sentimentos morais, considerando que tais estudos se filiam em última análise à perspectiva de David Hume e Adam Smith). O enfoque de Lynn Hunt, porém, está não nas bases neurobiológicas, mas nos mecanismos culturais que, segundo sua argumentação, exploram e desenvolvem a capacidade dos seres humanos para a empatia. Entre estes mecanismos, argumenta Lynn Hunt, estão justamente a escrita e a leitura, notadamente de textos ficcionais. Pela leitura, a imaginação do indivíduo é colocada no lugar do outro, e este outro é potencialmente qualquer pessoa ou mesmo qualquer ser. A tese provocadora de Lynn Hunt é que essa capacidade da leitura de explorar e desenvolver a empatia foi fundamental para a emergência e a receptividade da ideia de direitos humanos. E uma vez lançada essa ideia, nada impedia que ela fosse explorada - de novo, inclusive pela escrita/leitura - para abarcar uma parcela cada vez maior da humanidade (Hunt: 2009). A tese tem sido discutida de diferentes perspectivas nos últimos anos, com pesquisadoras e pesquisadores discordando sobre o seu mérito (cf. Pinker 2017Pinker, Steven. Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por que a Violência Diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. para uma recepção favorável e Keen 2007Keen, Suzanne. Empathy and the Novel. New York: Oxford University Press, 2007. para uma avaliação crítica).

Parece-me que o texto de Lily Braun nos ajuda a refletir sobre essa questão. Com isso não quero sugerir que o texto de Lily Braun de alguma maneira “prove” que a leitura seja um mecanismo de promoção da empatia e da expansão dos direitos, até porque, como a própria Lynn Hunt aponta, uma comprovação empírica de sua tese é extremamente difícil, senão mesmo improvável no atual estado das pesquisas (Hunt idem: 31). Além disso, minha preocupação no presente artigo é mais o modo como a empatia é construída textualmente do que os efeitos que essa construção possa ter exercido na recepção histórica efetiva do texto, na qual pretendo me aprofundar em trabalho posterior. Embora pareça haver poucas dúvidas de que a leitura constitua um estímulo para as reações empáticas (Decety et. al. 2004Decety, Jean et al. The Functional Architecture of Human Empathy. Behavioral and Cognitive Neuroscience Reviews, v. 3, n. 2, 71-100, 2004.: 73 e 84), não está claro até que ponto esses estímulos poderiam contribuir para mudanças políticas, sociais e culturais de grande envergadura, como é o caso da emergência e avanço da ideia de direitos humanos em diversos países do globo a partir do final do século XVIII. Outros estudos têm apontado a dificuldade de se encontrar evidências para apoiar a tese de Hunt e salientado a complexidade e ambiguidade dos efeitos da leitura (Armstrong 2020Armstrong, Paul B. Stories and the Brain: The Neuroscience of Narrative. Baltimore: Johns Hopkings Univeristy Press, 2020.: 150-186; Keen 2007Keen, Suzanne. Empathy and the Novel. New York: Oxford University Press, 2007.) Além disso, tanto o livro de Lynn Hunt quanto outros livros importantes sobre o tema, como o de Suzanne Keen, fixam-se principalmente nas narrativas de ficção.

Assim, a hipótese que levanto no presente artigo é mais restrita. Sugiro que o texto de Lily Braun evidencia que ela própria muito possivelmente acreditava na potencialidade da escrita/leitura para mobilizar a empatia em favor de mudanças sociais profundas, e que é só em razão dessa expectativa que se explica por que ela emprega uma linguagem tão viva e concreta que, longe de ficar apenas na abstração dos direitos e da lei, avança, à maneira da literatura ficcional, para a nomeação e descrição dos sofrimentos, convidando o público a se colocar no lugar das mulheres e das classes desfavorecidas. Procurei ressaltar no tópico anterior como essa concretude está ligada mesmo à descrição tanto dos lugares do sofrimento quanto do corpo sob sofrimento, o que me parece altamente sugestivo tendo em vista o reconhecido papel do corpo e da representação mental do corpo na cognição em geral e na dinâmica da empatia em particular (Lakoff et al 1999Lakoff, George et al. Philosophy in the Flesh: the Embodied Mind and its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books, 1999.; Damásio 2004: 125 ss.). Ressalte-se ainda que, em pontos cruciais do texto, quando discute a situação específica das mulheres alemãs, Lily Braun busca fazer com que o público se identifique com a sua voz enunciadora (daí o uso do pronome “nós”), projetando ou imaginando, parece-me, um público constituído principalmente por mulheres. Dado que o texto enfoca em grande parte o sofrimento de mulheres, é possível levantar a hipótese de que os efeitos de empatia - efetivos ou simplesmente buscados pela autora - se devam também ao mecanismo de identificação entre leitora/receptora e as figuras de mulheres representadas textualmente. Embora a literatura de ficção forneça ampla evidência de que semelhanças entre leitor(a) e personagem não são requisitos para a produção de efeitos de empatia, já que leitoras e leitores podem ser levados a se identificar e sensibilizar com animais não humanos e até mesmo com robôs e monstros, é possível que a existência de tais semelhanças facilite a mobilização da empatia em determinados contextos (Sanford 2012Sanford, Anthony J. Mind, Brain and Narrative. New York: Cambridge University Press, 2012, 208 ss.: 211).

Se isso estiver correto, então a linguagem de Lily Braun se explicaria, pelo menos em parte, por uma visão utilitarista da moral (na formulação clássica da maior felicidade para o maior número) e pela crença na capacidade da linguagem de mobilizar os mecanismos de empatia e provocar mudanças sociais em favor de segmentos excluídos da esfera dos direitos. Aqui é crucial lembrar que: 1) Lily Braun era também uma escritora de ficção e que, em seu tempo, foram justamente suas obras ficcionais que tiveram maior recepção. Die Bürgerpflicht der Frau abre, aliás, com a referência a um texto ficcional; 2) que, na obra de Lily Braun, as fronteiras entre ficção e não-ficção são porosas, e nada evidencia isso mais claramente que a estrutura narrativa das suas memórias (Memoiren einer Sozialistin - Memórias de uma socialista), em que a protagonista e narradora é uma personagem ficcional que, no entanto, baseia-se largamente na vida da própria Lily Braun. Em Die Bürgerpflicht der Frau encontramos duas faces: de um lado, dados, números, relação de fatos históricos, argumentação que segue uma lógica implacável que liga o texto do começo ao fim; de outro, uma prosa concreta, o rico uso de diferentes figuras de linguagem, a descrição vívida dos horrores da exploração, enfim, a disposição de imaginar o outro em suas experiências mais penosas: todos esses recursos são habilmente manejados como o faria uma talentosa escritora ficcional, só que servindo a um chamado vigoroso e direto à transformação da sociedade.

Esse aspecto do texto de Lily Braun me levou também a refletir sobre a importância da categoria do público no modelo de análise textual com que trabalho: o modelo funcionalista de Christiane Nord (Nord 2016Nord, Christiane. Análise textual em tradução: bases teóricas, métodos e aplicação didática. Trad. e adaptação: Meta Elisabeth Zipser. Coleção Transtextos. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2016.). Para a autora, o público é uma função textual; ele emerge do próprio texto como público projetado ou idealizado pela instância produtora/emissora. Parece-me que todo o texto de Lily Braun só faz sentido se considerarmos que nele é projetado um público que deve se colocar no lugar do outro para, em seguida, colocar-se a serviço da mitigação dos sofrimentos e opressões que afligem não só as mulheres, mas toda a “humanidade sofredora”, para usar a expressão que ocorre ao final do texto. A construção textual da empatia é, portanto, função do próprio modo como o parâmetro do público é construído pelo texto; um não tem como ser pensado sem o outro.

Se essa hipótese tiver lastro, então se poderia recorrer a ela para explicar o fato de Lily Braun, então uma das radicais, empregar uma linguagem que poderia ser a princípio qualificada de antiquada e conservadora, dada a ênfase na noção de dever e a proliferação de termos relacionados aos sentimentos e à maternidade. Como Gisela Bock argumenta, Die Bürgerpflicht der Frau é um exemplo de como são problemáticas as tentativas de separar de modo estanque os movimentos de mulheres radical e moderado com base no emprego, respectivamente, da linguagem dos direitos e da igualdade (as radicais) e da linguagem dos deveres, da comunidade e da natureza feminina (as moderadas). Lily Braun era então figura de proa do movimento de mulheres radical, mas constrói sua argumentação em torno da noção de dever, mobilizando o termo, porém, em proveito da igualdade de direitos (Bock 2014: 189). Bock insere o texto de Lily Braun na tradição iluminista, o que é seguramente correto, mas creio que talvez se pudesse especificar ainda mais a ancoragem do texto de Lily Braun se, como argumentei, trouxermos à tona o utilitarismo anglo-saxão, notadamente o de Stuart Mill (ele próprio um desdobramento do iluminismo), e se considerarmos o movimento de expansão que caracteriza todo o argumento. O Pflicht funciona no texto como a dobradiça que permite abrir o horizonte intelectual e afetivo do indivíduo e da sociedade; de termo que implica restrição ele passa a instrumento que deveria possibilitar a integração do outro em uma esfera de direitos comuns na qual todos seriam igualmente visíveis nos seus sofrimentos.

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  • 2
    Esclareço que as citações são todas feitas a partir da minha tradução, apresentada no relatório final da iniciação científica desenvolvida na FFLCH-USP. Entretanto, como a tradução não está disponível para consulta, dou como referência o número da página correspondente no original.
  • 3
    Cf. entrada no DWDS: https://www.dwds.de/wb/zerpfl%C3%BCcken (último acesso: dia 9. Abr. 2021, 23:55)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2022
  • Aceito
    19 Abr 2022
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