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REFLEXÕES SOBRE O USO DE DIÁRIOS DOS ALUNOS EM UMA PESQUISA DOCENTE

REFLECTIONS ABOUT THE USE OF STUDENTS’ DIARIES IN A RESEARCH CONDUCTED BY TEACHERS

REFLEXIONES SOBRE EL USO DE DIARIOS DE LOS ESTUDIANTES EN UNA INVESTIGACIÓN DOCENTE

Resumo

Este artigo traz reflexões sobre o uso de diários dos alunos como material de pesquisa, para tanto, parte da descrição dos modos como essa modalidade de escrita foi constituída em uma disciplina de graduação em Educação Física, que propõe vivenciar conceitos e experiências com práticas corporais no contexto da formação acadêmica e do autoconhecimento. Demarcamos as singularidades, os referenciais que deram respaldo para a composição deste material e as decisões ético-metodológicas assumidas para considerá-los em uma pesquisa docente interessada em verificar os efeitos da disciplina em questão, na invenção das subjetividades dos alunos. Observamos que a invenção aparece nos diários, no entanto, a pluralidade de expressões que suporta demanda por reflexões dialógicas, do contrário, sua dimensão díspar escapa à pesquisa, mas: como compor pensamentos na disparidade? Este artigo busca respostas para essa questão, amparando-se na pesquisa realizada e na Filosofia da Diferença.

Palavras-chave
Práticas corporais; Autoconhecimento; Diários; Filosofia

Abstract

This article reflects on the use of students’ diaries as research material. It starts by describing the way this type of writing was established in an undergraduate Physical Education course, which proposes to experience concepts and undergo experiences with body practices in the context of academic education and self-knowledge. We underscore singularities and references that supported the making of that material and the ethical-methodological decisions taken to consider them in a study focused on finding out the effects of the discipline in question on the invention of students’ subjectivities. We observe that invention appears in the diaries, but the plurality of expressions it supports demand dialogic reflections, otherwise its conflicting dimension would escape the research. However, how is it possible to reconcile conflicting thoughts? This article seeks answers to this question based on the research produced and on the Philosophy of Difference.

Keywords
Body practices; Self-knowledge; Diaries; Philosophy

Resumen

Este artículo trae reflexiones sobre el uso de diarios de los alumnos como material de investigación. Para ello, parte de la descripción de los modos en que esa modalidad de escritura se constituyó en una disciplina de graduación en Educación Física, que propone vivenciar conceptos y experiencias con prácticas corporales en el contexto de la formación académica y el autoconocimiento. Demarcamos las singularidades, las referencias que dieron respaldo a la composición de este material y las decisiones ético metodológicas asumidas para considerarlos en una investigación docente interesada en verificar los efectos de la disciplina en la invención de las subjetividades de los estudiantes. Observamos que la invención aparece en los diarios, sin embargo, la pluralidad de expresiones que soporta requiere reflexiones dialógicas pues, de lo contrario, su dimensión dispar escapa a la investigación. Pero, ¿cómo componer pensamientos en la disparidad? Este artículo busca respuestas a esa cuestión amparándose en la investigación realizada y en la Filosofía de la Diferencia.

Palabras clave
Prácticas corporales; Autoconocimiento; Diarios; Filosofía

1 INTRODUÇÃO

Este manuscrito traz reflexões sobre o aproveitamento de diários dos alunos como material de pesquisa e na composição de pensamentos tecidos na disparidade.1 1 Na última seção desse manuscrito discutiremos sobre a noção de disparidade a partir do referencial teórico de Deleuze, apoiado principalmente em sua obra Diferença e Repetição (2006). Para tanto, parte da descrição dos modos como essa modalidade de escrita foi constituída em uma disciplina de graduação em Educação Física, que propõe vivenciar conceitos e experiências com práticas corporais no contexto da formação acadêmica e do autoconhecimento.

Primeiramente, convém caracterizar a referida disciplina acima citada. Trata-se da disciplina de Práticas Corporais e Autoconhecimento (PCA), ministrada no primeiro semestre do primeiro ano dos cursos de graduação em Educação Física da Unesp, Campus de Rio Claro. A referida disciplina é semestral, tem uma carga horária total de 60 horas e é oferecida para aproximadamente 60 alunos ingressantes, divididos em duas turmas (I e II).

De modo geral, essa disciplina oportuniza aos estudantes a possibilidade de compreender as noções de práticas corporais e autoconhecimento no âmbito da formação e atuação em Educação Física, para tanto, busca respaldo teórico-conceitual e metodológico em diversas áreas, tais como a Educação Somática, a Filosofia, a Corporeidade e a Saúde Coletiva. Destes pontos referenciais, lança-se a práticas de sensibilização corporal, exercícios de harmonização coletiva, práticas de diálogo sobre esses conteúdos e escritas de diários como exercício avaliativo.

As reflexões aqui desenvolvidas fazem parte de uma pesquisa que buscou compreender o papel da disciplina de PCA na formação em Educação Física e verificar seus possíveis efeitos na invenção das subjetividades dos alunos.2 2 Trata-se de uma pesquisa trienal docente desenvolvida de 2013 a 2016, intitulada “Práticas Corporais e Invenção de Si na Formação em Educação Física”. A referida pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos, do Instituto de Biociências da Unesp (CEP/IB-Unesp-RC). Número do parecer de aprovação: 485.968 (CAAE: 20936413.2.0000.5465). Fez parte do desenho desta pesquisa traçar o exercício investigativo junto ao exercício didático, assim verificou-se que o professor da disciplina em pauta foi também o pesquisador que movimentou o trabalho de campo.

Antes que esta ambivalência entre a figura do professor e do pesquisador seja caracterizada como indevida, aos olhos de um modo específico de se fazer ciência - que entende que a produção de conhecimento científico só pode ser garantida reservando-se dois princípios fundamentais: a neutralidade do pesquisador e sua oposição e assimetria face ao objeto que pretende estudar3 3 A ciência pautada por estes princípios parte da ideia de que há uma verdade a ser revelada sobre o objeto estudado e para se constituir essa revelação é fundamental que o pesquisador se mantenha neutro e distanciado do objeto que o instiga à pesquisa, do contrário gera dados enviesados, isto é, dados que carecem de objetividade e que, portanto, se distanciam de uma verdade a saber. Essas prerrogativas fundamentais garantem a necessária objetividade para a determinação de uma verdade possível e devidamente legítima sobre o objeto estudado (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Tal política de produção do conhecimento ganhou sua expressão máxima nas pesquisas positivistas. -, convém salientar que os propósitos desta pesquisa de campo se alinham com prerrogativas que buscam respaldo na pesquisa qualitativa, particularmente naquelas do tipo intervenção, para alimentar um exercício reflexivo intensamente envolvido e comprometido com a experiência didática que instiga à pesquisa.4 4 Segundo Passos e Barros (2009, p. 20), as pesquisas do tipo intervenção partem do pressuposto de que não há neutralidade na produção de todo e qualquer conhecimento, “[...] pois toda pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a representa ou constata em um discurso cioso das evidências”. Este argumento desconstrói a ideia de neutralidade como princípio de produção de conhecimentos, colocando-a muito mais como procedimento a serviço de uma política hegemônica, que pretende discriminar o conhecimento científico legítimo, daquele que nunca poderá se caracterizar como tal, por seguir direcionamentos que fogem à trilha objetiva da evidência e que, portanto, estão longe de estar a serviço da produção de verdades.

Os estudantes foram informados logo no início da disciplina acerca das intenções investigativas do professor-pesquisador e foram esclarecidos de que, havendo consentimento por parte deles, os diários produzidos poderiam ser aproveitados como material de pesquisa. No entanto, o registro desse consentimento só aconteceu a posteriori, para evitar que o aluno matriculado na disciplina entendesse a sua participação na pesquisa de campo como fator preponderante na composição de sua avaliação na disciplina realizada - demarcando assim certa dimensão de poder do professor sobre o aluno, difícil de ser sustentada em termos éticos (e que certamente poderia afetar a constituição dos dados). Desta forma, definimos que apenas depois de encerrada da disciplina, isto é, depois que a nota do aluno já tinha sido atribuída, considerou-se a possibilidade de aproveitamento dos diários dos alunos como material de pesquisa, com isto, apenas os diários dos alunos que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aprovado pelo CEP-IB/Unesp Rio Claro foram considerados nesta pesquisa, sendo que os diários dos demais alunos que não assinaram o referido termo foram arquivados e mantidos como material didático. Com essa decisão ético-metodológica, preservamos o direito o aluno sobre a autoria e reuso deste material para fins de pesquisa.5 5 Esse procedimento foi realizado ao longo dos três anos de realização da referida pesquisa e considerou seis diferentes turmas de graduação nos primeiros semestres dos anos de 2014, 2015 e 2016 (Turmas I e II de cada ano).

Esta preocupação ético-metodológica foi importante, pois deu respaldo para entender que, embora o desenho investigativo tenha dissolvido certas fronteiras e disposições formais entre a atividade de ensino e a prática em campo, os termos fundamentais que definem a relação educativa foram mantidos, sem qualquer prejuízo às diretrizes firmadas no projeto político-pedagógico dos cursos de graduação, nos quais a disciplina se insere. Para tanto, foi necessário vivenciar a pesquisa de campo como “ideia”, isto é, como movimento intensivo e indissociável da prática de ensino, que se ocupa das relações e singularidades forjadas durante as aulas.

A noção de “ideia” é particularmente importante para sustentar esse entendimento sobre a pesquisa de campo realizada. Para Deleuze, na obra Diferença e Repetição (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 261), “[...] ideia se define como [...] um sistema de ligação múltipla não localizável entre elementos diferenciais, que se encarna em correlações reais e em termos atuais”. A ideia exprime “[...] a instância problemática, extraproposicional ou sub-representativa: a apresentação do inconsciente, não a representação da consciência”. Foi neste sentido que a pesquisa de campo correu como ideia e, portanto, se manteve como movimento indissociável da prática de ensino, pois esteve ligada a ela em essência, como movimento intensivo que desenhou os acontecimentos da disciplina, ao mesmo tempo em que instigou a prática reflexiva que irrompeu desse encontro educativo.

Na tabela a seguir, apresentamos dados relativos ao número total de diários produzidos por semestre de oferecimento da disciplina e dados relativos ao número de diários considerados na pesquisa:

Tabela 1
Dados relativos aos diários dos alunos.

Depois desses esclarecimentos sobre o desenho investigativo e suas relações com a referida disciplina de graduação, situamos novamente os propósitos deste manuscrito, organizando as reflexões da seguinte forma: primeiramente apresentamos reflexões sobre o modo como a escrita dos diários foi constituída, demarcando suas singularidades, os referenciais que deram respaldo para a composição deste material e as decisões ético-metodológicas assumidas para seu aproveitamento no campo da pesquisa; depois, refletimos sobre o exercício interpretativo realizado a partir deste material, demarcando as especificidades que apontam para uma política de produção de conhecimentos diferenciada daquela firmada no modelo da representação.6 6 Mais adiante no texto faremos uma apresentação mais detalhada sobre essas especificidades na produção de conhecimentos.

2 DIÁRIOS DOS ALUNOS

Escrever o que penso é uma forma de dar significado àquilo que sinto na prática e o legal deste exercício de escrita é que só transformo em palavras aquilo que consegui entender com meu próprio corpo e com meu próprio entendimento, e isso é muito legal! (Diário de aluno, 1º semestre de 2016).

Praticar a escrita é para mim algo muito trabalhoso e às vezes chato de se fazer, mas reconheço que é um exercício muito importante (Diário de aluno, 1º semestre de 2015).

Para ser bem franco, não vi nexo na elaboração desses diários, apesar de ter percebido que a matéria será muito utilizada no meu futuro profissional (Diário de aluno, 1º semestre de 2014).

Nas rodas de conversa que acontecem depois da prática foi possível perceber que muitas pessoas tinham dificuldades de expressar o que pensam, por isso é interessante a ideia do diário, pois nele podem registrar aquilo que não têm coragem de dizer (Diário de aluno, 1º semestre de 2016).

Esses trechos de diários foram selecionados aleatoriamente e dão uma noção de como os próprios alunos transformaram em palavras as aprendizagens experimentadas nas aulas de PCA. Nota-se que, diferentemente de outras formas de registros, como relatórios ou atas de aula, os diários abrem possibilidades mais inventivas de escrita, que valorizam a expressividade de cada aluno-escritor, no traço peculiar de seus modos próprios de pensar, significar e aprender (ALVES; CARVALHO; DIAS, 2011ALVES, Flávio Soares; CARVALHO, Yara Maria; DIAS, Romualdo. A “escrita de si” na formação em Educação Física. Movimento, v. 14, n. 2, p.239-258, 2011).

Observem que nem todos os fragmentos registram coisas positivas, um dos fragmentos, por exemplo, revela a dificuldade de um aluno de entender o nexo dessa prática de escrita dentro da disciplina. Essa expressão concorre a favor da verificação dessa modalidade escrita como prática expressiva, que admite o traço de toda e qualquer expressão, desde que seja sincera com aquilo que se passa no âmbito dos afetos do aluno-escritor e que diga respeito à experiência acontecida em aula.

Ao dar vez e voz à expressividade dos alunos, no traço daquilo que os afeta e os convida ao encontro com a escrita, os diários colocam em cena uma experiência de subjetivação do aluno-escritor. Para compor com essa ideia, buscamos respaldo na leitura de Larrosa Bondía (2002)LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002., sobre a noção de experiência e sentido. Segundo este autor, “[...] a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA BONDÍA, 2002LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002., p. 21), neste sentido, a experiência de escrita dos diários se constitui como espaço de passagem e acontecimento, em meio ao qual o aluno-escritor deixa vir, nos traços de sua escrita, aquilo que lhe afeta de algum modo, produzindo afetos e inscrevendo marcas, vestígios e efeitos que movimentam sua subjetividade.

Todavia, para que a experiência de escrita produza sentidos que funcionem como “potentes mecanismos de subjetivação” é preciso operar:

[...] um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA BONDÍA, 2002LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002., p. 24).

No contexto da disciplina de PCA, buscamos tangenciar esse nível de experiência através de práticas de sensibilização corporal (tais como, práticas de respiração, massagem, relaxamento, perscrutação corporal, práticas introdutórias de Yoga, Pilates e Antiginástica) e práticas de harmonização coletiva (tais como jogos de contato e improvisação, jogos de presença, escuta e atentividade7 7 Estes jogos são frequentemente utilizados nas práticas de criação e treinamento cênico, no âmbito das artes de performance e, de modo geral, objetivam ampliar a atenção do praticante no momento presente, uma ampliação que se constituiu na potencialização da habilidade de escuta (um escutar com o corpo todo) e na potencialização dos níveis de atenção nos três níveis relacionais (eu comigo mesmo, eu com o espaço e eu com os outros) (BOUGART; LANDAU, 2017). ). Essas atividades oportunizam espaços de encontro com os afetos, tocando os sentidos de forma gradual e progressiva, no jogo que se institui entre alunos e entre professor e alunos na sala de aula.

Logo após o encerramento de cada aula, os alunos eram instigados à escrita, para que assim, com a experiência ainda “fresca” na memória, pudessem dar sentidos às práticas realizadas, movidos não só pelo registro descritivo, ordinal e informacional de tudo que se passou na aula, mas também, e principalmente, pelo curso das sensações, dos sentidos, significados e de outros tantos vestígios afetivos que reclamam por expressão, no livre curso das palavras esboçadas sobre a folha de papel.

Para compor seus diários, os alunos voltaram um passo atrás, lá no momento mesmo em que a aula se deu como evento, para desencadear o movimento da escrita. Para Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 338), esse movimento de retorno à experiência é o que acontece na “escrita implicada”. Segundo este autor, a escrita implicada é a extensão de uma experiência intensiva que se constitui como se lá, nas intensidades da experiência, ainda estivesse envolvida. A escrita implicada exige certo recolhimento do escritor, não para demarcar os traços de sua pessoalidade e autoria, mas para permitir o ecoar espontâneo das intensidades sentidas no coletivo, no traço de qualidades e extensões que explicam, sem apegos, essas intensidades (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.).

Esse movimento da escrita requer um aprendizado e uma atenção permanentes, sem os quais o escritor se rende à sedução de uma política cognitiva que isola o objeto de estudos, na busca de soluções e regras forjadas fora da experiência que lhe instiga à escrita. A noção de aprendizagem, na leitura de Deleuze, dá respaldo a essa nossa ideia, segundo esse autor, aprender é constituir espaços de encontro, nos quais se aninham “atos vivos”, que arrancam o pensamento de seu ponto de estacionamento - onde reina a imagem de um pensamento que pressupõe a si mesmo - forçando-o a pensar (criar: “engendrar pensamento” - 2006, p. 213).

Neste sentido, o movimento da escrita reclama por atitudes de humildade e abertura, que nem sempre são facilmente experimentadas pelos alunos, tendo em vista que na escola não foram encorajados a dar vazão a esse modo mais sensível e inventivo de escrita. A leitura de Júlio Groppa Aquino sobre as práticas escriturais constituídas no âmbito escolar ajuda desenvolver essa ideia. Segundo este autor, a escrita escolar é alvo frequente “[...] das mais implacáveis formas de normalização, de enquadramento e de policiamento”. Quando embotado nessa lógica normatizante, o ato de escrever possui uma “[...] vocação nitidamente dogmática, que arregimenta um tipo de apropriação dominante da escrita entre seus protagonistas”. Para sustentar a prevalência desse jargão normativo e “pedagogicamente correto”, exercem-se uma série de ações pedagógicas, dentre as quais destaca-se a prática de “patrulhamento” da escrita, para imposição de uma “disciplinarização forçosa do campo escritural” (AQUINO, 2011AQUINO, Julio Groppa. A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, v.37, n.3, p. 641 - 656, set./dez. 2011., p. 647).8 8 Após delimitar essa problemática, Aquino defende a necessidade de mobilização de modos de escrita (e de vida) mais potentes no âmbito escolar. Para tanto, busca suporte na leitura de Foucault sobre o ato de escrever, adensando sua discussão a partir da tematização da “escrita de si”. Em composição com esse quadro teórico, Aquino (2011, p. 644) observa que “[...] o trabalho da escrita se confunde com o de viver ou, mais precisamente, com um modo intensivo de conduzir a própria existência. Escrever consistiria, assim, numa experiência de transformação do que se pensa e, acima de tudo, do que se é; uma experiência avessa, ademais, a qualquer apelo comunicativo ou normativo”.

O previsível bloqueio dos alunos à escrita, que se constituiu particularmente no início da disciplina, deu sinais da força cerceadora desse patrulhamento, mas como dissolvê-lo? Como ultrapassá-lo, para dar vez e voz à expressão das sensibilidades mobilizadas no encontro educativo da disciplina de PCA?

Foram fornecidas algumas pistas para a composição dos diários. Essas pistas foram apresentadas principalmente através de questionamentos, tais como: “O que sentiu com esta experiência?”, “Como ela te afetou?”, “O que aprendeu com esta aula?”. Tais questões pretendiam funcionar como provocação à inquietude latente dos alunos.

No final de cada disciplina foi solicitada a produção de um “Memorial de Encontros”, no qual os alunos expressaram seus afetos, impressões, dificuldades, receios, facilidades, invenções e aprendizagens constituídas no semestre. A discussão sobre o aproveitamento desses registros será tratada na seção que discute as especificidades do exercício interpretativo assumido, antes, porém, é necessário apresentar como esse material foi organizado.

3 ORGANIZAÇÃO DOS DIÁRIOS COMO MATERIAL DE PESQUISA

Como já informado, o aproveitamento dos diários como material de pesquisa só aconteceu mediante a autorização do aluno, via assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Depois de resolvida essa questão ético-metodológica, foi necessário dar conta da seguinte questão: como aproveitar as escritas de diário como material de pesquisa?

Os diários considerados foram transcritos, mas não de forma integral, depois da sua leitura, foram selecionados os trechos que apontavam para possíveis encaminhamentos reflexivos acerca da proposta investigativa assumida. Particularmente estávamos atentos à seleção dos trechos que esboçavam ideias sobre as relações que os próprios alunos conseguiam traçar entre os conteúdos e práticas desenvolvidos na disciplina e seus possíveis efeitos na invenção da subjetividade desses alunos. Com isto, o último registro de diário, realizado na seção que chamamos de “Memorial de Encontros”, foi o momento no qual conseguimos recolher maior quantidade de expressões sobre aquilo que nos interessava na pesquisa.

Foram selecionados 127 trechos, dos 108 diários considerados como material de pesquisa. Depois da seleção esses trechos escritos foram tratados como extensões implicadas na experiência de aula, o que tornou possível um deslocamento da atenção sobre a autoria desses registros. Enquanto extensões, importou muito mais “como” estas escritas foram constituídas do que “quem” as escreveu. É fato que a escrita expressa o traço de uma autoria, no entanto, esta pesquisa parte do pressuposto de que anterior ao movimento do entendimento, que reconhece que aquilo que foi escrito foi escrito por alguém (reclamando assim pela autoria da escrita), há o movimento em si (lá no momento mesmo em que escrita é puro ato do pensamento), que se ancora na experiência para, deste espaço-tempo dinâmico, forjar traços de escritas, na levada intensiva daquilo que se constitui na relação, isto é, nos atravessamentos de forças, nas singularidades que compõem o encontro que serviu de ponto de partida para a escrita.

Para tanto, buscamos respaldo nos estudos de Deleuze. Segundo este autor, tais singularidades não se recolhem ao registro de uma autoria e, portanto, não se fecham unicamente em um plano pessoal, pois emergiram de um “centro de envolvimentos” (a aula), portanto, “se constituíram como extensões deste centro”, sendo impensável sua constituição fora deste centro (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 358). Desta forma, interessou muito mais o “como” a escrita se constituiu do que “quem” a escreveu efetivamente, uma vez que é na singularidade deste “como” que teremos acesso a ideia, isto é, à instância problemática (o campo de envolvimentos) na qual se ancorou o movimento da escrita.

Não obstante, estivemos atentos à necessidade de aproveitar o máximo possível de toda a amostra considerada, evitando o favorecimento de uma parcela (supostamente mais eloquente, isto é, com uma escrita mais consistente e interessante), em detrimento de outras, de expressão mais tímida, restrita, ou aparentemente contrária às pretensas intenções da investigação.

4 DIÁRIOS NA COMPOSIÇÃO DE PENSAMENTOS DÍSPARES

Os trechos de diários selecionados abaixo foram produzidos no final da disciplina de PCA:

Por mais que os conteúdos tenham sido interessantes e geraram grandes reflexões, eu particularmente não me interessei pelas aulas, pois acho que não serão úteis para o plano acadêmico que pretendo seguir (Diário de aluno, 1º semestre de 2014).

Uma frase que nunca vou esquecer, e que discutimos em aula, é que ‘o professor de Educação Física é um gestor de comportamentos’. Isso significa que seja onde for que esse profissional vá trabalhar, ele é aquele quem cuida do cuidado que o aluno precisa ter consigo mesmo, fazendo com que ele sempre busque o aperfeiçoamento dele próprio dentro daquilo que ele se envolve, respeitando suas limitações, mas também as limitações dos outros (Diário de aluno, 1º semestre de 2014).

A disciplina é muito interessante, pelo menos para mim, mas acredito que para os alunos estarem conectados com ela seja necessário ter uma certa sensibilidade e isso é uma coisa que não é encontrada na maioria dos alunos do curso de Educação Física (pelo menos não os da minha classe). Talvez eu tenha visto a disciplina de outra forma porque na minha vida sempre fui influenciada pela arte e por práticas ligadas à sensibilidade, mas a maioria dos meus colegas de classe estavam muito longe disso. Não que seja culpa deles, mas é que eles vieram para o curso de Educação Física com outros propósitos, totalmente diferentes desse que envolve sensibilização e tals, aí, logo no primeiro ano vem essa disciplina e aí parece que entraram no curso errado. Mas eu entendo, muitos são atletas e só fizeram isso na vida, ou seja, só sabem competir e competir, por isso não aproveitaram muito. Perderam os detalhes (Diário de aluno, 1º semestre de 2014).

Desde que comecei a frequentar a disciplina pude perceber constantes mudanças em meu comportamento. De início achava tudo muito difícil e não buscava concentrar ou dar meu melhor. Hoje percebo o quanto as aulas me ajudaram a desenvolver o cuidado comigo mesma, a olhar diferente sobre as práticas que me envolvo... procuro mais me concentrar e trabalhar entre meus limites de conforto e superação, pois acredito que sempre podemos nos superar (Diário de aluno, 1º semestre de 2016).

Observem que cada aluno tem seu jeito próprio de se expressar, uns mais eloquentes, outros mais objetivos e diretos, mas cada um, do seu jeito, registrou suas impressões sobre a disciplina, sem que outro alguém tenha feito isto por eles. Observem, também, que não há um consenso sobre os efeitos da disciplina, inclusive há afirmações que apontam para direções aparentemente contrárias, revelando a impossibilidade de se eleger uma expressão escrita que represente todas as outras. Ao reconhecer esse caráter díspar dos registros escritos, e perceber que não podem ser desconsiderados na composição de reflexões mais afinadas com esses diferentes modos de pensar, abre-se a possibilidade de engendrar pensamento na disparidade.

Segundo Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 314), a disparidade “[...] é condição de tudo aquilo que aparece e que aponta para um estado da diferença infinitamente desdobrada, ressoando indefinidamente”. É corrente na disparidade um movimento que transita por diversas vozes sem firmar pontos de vista com nenhuma delas. Assim, a composição de pensamentos torna-se um exercício de invenção: seu compromisso é com a experiência trilhada e não com uma suposta verdade que a represente.9 9 Segundo Passos, Kastrup e Escóssia (2009), o pesquisador que compõe pensamento a partir do modelo da representação parte do pressuposto que tem algo a dizer sobre aquilo que estuda, portanto reafirma sua posição de neutralidade, suspensão e oposição face àquilo que pretende estudar.

A prática interpretativa assentada na disparidade não busca descobrir coisas, mas acompanhar processos, nos traços de uma escrita que irrompe como exercício de composição aberto à eterna reinvenção (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.). Desta forma, o movimento da análise não subjuga o material empírico coletado na investigação, mas compõe com ele, como movimento lúdico de invenção da pesquisa no campo da escrita.

Convém salientar, no entanto, que de forma nenhuma a noção de invenção aqui suscitada tem a pretensão de se reconhecer como ação inovadora e inédita. A invenção na ordem do método, neste sentido, está mais relacionada à sua capacidade composicional e à sua abertura para suportar novas disposições frente a velhas e cristalizadas formas. Neste sentido, buscamos suporte nas ideias de Ferracini (2016FERRACINI, Renato. Inventar com Protocolos: presença e treinamento. In: CARVALHO, Yara Maria; GOMES, Ivan M.; FRAGA, Alex Braga (Orgs.). As Práticas Corporais no Campo da Saúde: pesquisa interinstitucional e formação em rede. São Paulo: Hucitec, 2016.p. 139-153., p. 146) sobre este assunto, quando argumenta sobre a invenção como “postura ético-política”, que propõe ampliação de potência de todas as partes envolvidas. Uma ampliação que gera alegria, animação, por se constituir no seio da experiência intensiva, tal como acontece em um jogo.

Voltemos a atenção novamente aos registros de diários apresentados no início desta seção, observem que as reflexões que veiculam não estão a serviço de uma verdade cabal e absoluta sobre a disciplina, como regra geral para todo e qualquer sujeito que por ela passe, mas está a serviço de uma expressão sincera sobre o que se passou, que reclama por movimento e que irrompe como extensão que só existe e só significa às voltas com o encontro educativo que disparou o movimento da escrita. É por isto que compor reflexões no campo da pesquisa que considerem a irredutibilidade desses diários implica trazê-los para o corpo do texto, pois a reflexão díspar se alimenta desses trechos para compor pensamentos dialógicos e diferenciais.

Os termos dialógico e diferencial são particularmente importantes para se compreender o movimento da disparidade. Com eles demarcam-se dessemelhanças com a noção de dialética, na concepção aristotélica, na qual as discussões buscam chegar a um entendimento comum. A discussão dialógica, por outro lado, não resulta na identificação de um entendimento comum, no entanto, embora não se chegue a um acordo (a síntese), há a possibilidade de ampliação da compreensão recíproca, sem abrir mão da afirmação dos pontos de vista que a compõem (SENNETT, 2012SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012.).

Segundo Richard Sennett (2012SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 37), respaldado no pensamento de Bakhtin, os termos que compõem a discussão dialógica não se encaixam perfeitamente “como peças em um quebra-cabeças”, ainda assim, podemos extrair conhecimentos e encontrar prazer na afirmação de diferentes pontos de vista, aprendendo com eles, ou ainda se conscientizando mais dos seus próprios. Neste sentido, a discussão dialógica traz um esforço de compreensão do diferente em seus próprios termos. Para tanto, é necessário assumir uma postura empática e curiosa, sem a qual impedimo-nos à escuta da diferença.

A curiosidade pelo outro, isto é, pelo pensamento diferente, é essencial nesse movimento dialógico. Sennett (2012SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 36) afirma: “[...] a conversa dialógica, como vimos, prospera através da empatia, o sentimento de curiosidade sobre os outros e o que são realmente”. O pesquisador como aquele que traz para a escritura da pesquisa essa discussão dialógica precisa assumir uma atitude de experimentação criativa da escrita, movida por aquilo que Bakhtin diz se tratar de “entendimento criativo”, por meio do qual os traços da escrita se situam fora do entendimento pessoal do escritor (SENNETT, 2012SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012., p. 143).

Para compor com essa ideia acrescento aqui o pensamento deleuzeano, na obra Diferença e Repetição (2006), para observar que esse “fora” não implica em anulação do entendimento do escritor, mas na composição de escritas constituídas sem apegos (inclusive de seus próprios pontos de vista). Essa escrita irrompe como extensão envolvida nas intensidades do diálogo, forjando um entendimento díspar, que aponta indefinidamente para uma compreensão diferencial, ou seja, uma compreensão que não se confunde com o ponto de vista do pesquisador-escritor.

Para Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.), compor pensamentos na disparidade exige uma atitude de desapego, por parte do pesquisador, dos elementos que estão em jogo na pesquisa (pesquisador, sujeito, intenções, estudos, relações e devires). Tais elementos “gravitam” em torno de um ponto de “a-fundamento”, ou seja, em torno de um ponto em constante deslocamento que insiste em fugir do enquadre da representação, para forçar o pensamento a pensar ao redor desse ponto sem fundo. Assim, às voltas com o sem fundo, a análise é tecida não com os movimentos da recognição - que tudo quer dobrar sob os contornos restritivos operados pela razão suficiente - mas com a disparidade.

Convém salientar, mais uma vez, que a análise constituída na disparidade é extensão que só existe dentro desse “campo gravitacional” movimentado pela relação entre pesquisador e sujeitos (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.). Esse adendo é importante, pois julgar a legitimidade científica da disparidade implica ter que aceitar os deslocamentos que ela exige, do contrário, firmam-se julgamentos precipitados que tendem a desmerecer o exercício reflexivo tecido na disparidade, em função de entendimentos outros que escapam a esse outro modelo de produção de conhecimentos.

Uma das principais críticas que recaem sobre a reflexão díspar é que ela seria potencialmente “enviesada” e que, portanto, não veicula verdades sobre aquilo que está sendo pesquisado, o que compromete sua validade e verossimilhança aos olhos da ciência. O problema desta interpretação é que a disparidade não pretende representar, mesmo que provisoriamente, o objeto da pesquisa como prova de sua validade factível na determinação de um conhecimento objetivo e racional acerca daquilo que é investigado.

A disparidade precisa ser entendida nos domínios de outra política de produção de conhecimentos, alheia àquela que busca verdades sobre as coisas e que se assenta nos trilhos da lógica binária, que define o certo do errado, a verdade da mentira (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.). Desta forma, os registros de diários não estão potencialmente certos ou errados, justamente porque não se dobram a esse tipo de análise, sem antes prescindir daquilo que é essencial nesta modalidade de escrita: a expressão, assim, enquanto movimentos expressivos, os diários trazem modos de pensar, portanto sua importância não está no valor de verdade que suportam, mas na expressividade enredada no traço dos afetos que irrompem nos sulcos da escrita.

Para considerar os diários na composição de pensamentos díspares é preciso reconhecer que a pluralidade de expressões que suportam também garante o necessário rigor que caracteriza todo e qualquer exercício de verificação científica. A diferença é que a noção de rigor, na disparidade, não está comprometida com a ação asséptica do pesquisador, que separa o fazer e o dizer, como recurso para edificação de verdades neutras (e por isso mesmo legítimas) aos olhos da ciência, ao contrário, a noção de rigor, na disparidade, está atrelada justamente à necessidade de se reconhecer a falácia da neutralidade do pesquisador, o que significa pensar que não há rigor sem mergulho na experiência, sem compromisso de se reconhecer que o pesquisador não só afeta, mas também é intensamente afetado quando mergulha no território que pretende estudar. Fazer pesquisas na disparidade é se deixar levar por esse campo movente de intensos cruzamentos afetivos (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões aqui realizadas dão indícios de que a experiência da escrita de diários permite o alcance de dimensões formativas mais amplas, que extrapolam a formação acadêmica, afetando a subjetividade do aluno-escritor. Isto porque a composição de diários oportuniza espaços de “treino de si sobre si mesmo”, que colocam o aluno como protagonista de seu próprio processo formativo.

É Foucault (2006FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Ética, Sexualidade, Política. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. v.5, p. 144-162., p. 146) quem nos ajuda a complementar essa ideia. Segundo esse autor, “[...] nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício”. Assim, pensar os diários como exercício de um sujeito que se dobra sobre si para compor pensamento sobre aquilo que lhe afeta implica pensá-los como espaços de encontro com uma formação mais estética e existencial. Todavia, para observar vestígios desse movimento formativo essencialmente estético e existencial é preciso considerar os diários de forma dialógica e diferencial, do contrário, as dimensões díspares e plurais, que lhes são próprias, escapam às análises engendradas na pesquisa.

Mas como compor reflexões dialógicas e diferenciais a partir dos diários? Uma possibilidade, particularmente potente, é dar vez e voz, na escritura da pesquisa, às palavras escritas nos diários, tal como estão registradas no material original, pois são através delas que os sentidos são veiculados, dando indícios de seus engajamentos com os mecanismos de subjetivação.

Como salienta Larrosa Bondía (2002LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002., p. 21):

As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, [...]. E pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. [...] o sentido [...] é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.

Ao considerar a potência de subjetivação das palavras, oportunizamos a composição de análises não generalizantes sobre as proposições investigativas assumidas na pesquisa. Desta forma, as reflexões alcançam outros movimentos, alheios àqueles pressupostos pelo docente-pesquisador.

Os diários como “espaços de passagem”, tal como diria Larrosa Bondía (2002)LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002., escoam significações e marcas de afeto, portanto, aproveitá-los na pesquisa impede que as discussões sejam resumidas e perigosamente assentadas nas elucubrações solitárias de um pesquisador que pretende se dobrar sobre o próprio exercício docente para compor seu exercício interpretativo.

É no seio desse “espaço de passagem”, por meio do qual a experiência da escrita se engendra, que se edificam as reflexões díspares desta pesquisa. A Filosofia da Diferença nos deu um respaldo teórico e conceitual para afirmá-las no pleno vigor daquilo que insiste como força de criação, sendo assim, nota-se certa relevância dos diários como instrumento potente para registrar os movimentos que entram na composição da subjetividade do aluno-escritor. Aproveitá-los como material de pesquisa implica dar vazão às palavras neles veiculadas, não como informações objetivas e racionais, mas como marcas de afeto que produzem sentidos só compreendidos plenamente na disparidade.

REFERÊNCIAS

  • ALVES, Flávio Soares; CARVALHO, Yara Maria; DIAS, Romualdo. A “escrita de si” na formação em Educação Física. Movimento, v. 14, n. 2, p.239-258, 2011
  • AQUINO, Julio Groppa. A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, v.37, n.3, p. 641 - 656, set./dez. 2011.
  • BOGART, Anne; LANDAU, Tina. O livro dos Viewpoints: um guia prático para Viewpoints e composição. São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
  • FERRACINI, Renato. Inventar com Protocolos: presença e treinamento. In: CARVALHO, Yara Maria; GOMES, Ivan M.; FRAGA, Alex Braga (Orgs.). As Práticas Corporais no Campo da Saúde: pesquisa interinstitucional e formação em rede. São Paulo: Hucitec, 2016.p. 139-153.
  • FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Ética, Sexualidade, Política. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. v.5, p. 144-162.
  • LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002.
  • PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana. Pistas do método da cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.
  • PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides. Por uma política da narratividade. In: KASTRUP, Virgínia; ESCOSSIA, LilianaPistas do método da cartografia . Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina , 2009.p 17-31.
  • SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012.
  • 1
    Na última seção desse manuscrito discutiremos sobre a noção de disparidade a partir do referencial teórico de Deleuze, apoiado principalmente em sua obra Diferença e Repetição (2006).
  • 2
    Trata-se de uma pesquisa trienal docente desenvolvida de 2013 a 2016, intitulada “Práticas Corporais e Invenção de Si na Formação em Educação Física”. A referida pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos, do Instituto de Biociências da Unesp (CEP/IB-Unesp-RC). Número do parecer de aprovação: 485.968 (CAAE: 20936413.2.0000.5465).
  • 3
    A ciência pautada por estes princípios parte da ideia de que há uma verdade a ser revelada sobre o objeto estudado e para se constituir essa revelação é fundamental que o pesquisador se mantenha neutro e distanciado do objeto que o instiga à pesquisa, do contrário gera dados enviesados, isto é, dados que carecem de objetividade e que, portanto, se distanciam de uma verdade a saber. Essas prerrogativas fundamentais garantem a necessária objetividade para a determinação de uma verdade possível e devidamente legítima sobre o objeto estudado (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Tal política de produção do conhecimento ganhou sua expressão máxima nas pesquisas positivistas.
  • 4
    Segundo Passos e Barros (2009, p. 20), as pesquisas do tipo intervenção partem do pressuposto de que não há neutralidade na produção de todo e qualquer conhecimento, “[...] pois toda pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a representa ou constata em um discurso cioso das evidências”. Este argumento desconstrói a ideia de neutralidade como princípio de produção de conhecimentos, colocando-a muito mais como procedimento a serviço de uma política hegemônica, que pretende discriminar o conhecimento científico legítimo, daquele que nunca poderá se caracterizar como tal, por seguir direcionamentos que fogem à trilha objetiva da evidência e que, portanto, estão longe de estar a serviço da produção de verdades.
  • 5
    Esse procedimento foi realizado ao longo dos três anos de realização da referida pesquisa e considerou seis diferentes turmas de graduação nos primeiros semestres dos anos de 2014, 2015 e 2016 (Turmas I e II de cada ano).
  • 6
    Mais adiante no texto faremos uma apresentação mais detalhada sobre essas especificidades na produção de conhecimentos.
  • 7
    Estes jogos são frequentemente utilizados nas práticas de criação e treinamento cênico, no âmbito das artes de performance e, de modo geral, objetivam ampliar a atenção do praticante no momento presente, uma ampliação que se constituiu na potencialização da habilidade de escuta (um escutar com o corpo todo) e na potencialização dos níveis de atenção nos três níveis relacionais (eu comigo mesmo, eu com o espaço e eu com os outros) (BOUGART; LANDAU, 2017).
  • 8
    Após delimitar essa problemática, Aquino defende a necessidade de mobilização de modos de escrita (e de vida) mais potentes no âmbito escolar. Para tanto, busca suporte na leitura de Foucault sobre o ato de escrever, adensando sua discussão a partir da tematização da “escrita de si”. Em composição com esse quadro teórico, Aquino (2011, p. 644) observa que “[...] o trabalho da escrita se confunde com o de viver ou, mais precisamente, com um modo intensivo de conduzir a própria existência. Escrever consistiria, assim, numa experiência de transformação do que se pensa e, acima de tudo, do que se é; uma experiência avessa, ademais, a qualquer apelo comunicativo ou normativo”.
  • 9
    Segundo Passos, Kastrup e Escóssia (2009), o pesquisador que compõe pensamento a partir do modelo da representação parte do pressuposto que tem algo a dizer sobre aquilo que estuda, portanto reafirma sua posição de neutralidade, suspensão e oposição face àquilo que pretende estudar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2017
  • Aceito
    08 Jan 2018
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