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PEDAGOGIA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS

Na história das ideias pedagógicas, podemos identificar, nas décadas de 1970 e seguintes do século XX, o desenvolvimento de análises do papel da educação nas sociedades capitalistas (centrais e periféricas), bem como a paulatina construção de propostas pedagógicas (que deveriam orientar as práticas educativas) de caráter “crítico”. Não demorou muito para que essas análises e propostas fossem discutidas, assimiladas e incorporadas às discussões no campo específico da Educação Física (SOARES et al.; 1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Editora Cortez, 1992.; KUNZ, 1991KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.). Isto se deu segundo tempos e características, como também a partir de influências teóricas distintas e específicas, nos diferentes países. É possível identificar nações, como as representadas neste dossiê, em que a pedagogia crítica passou a fazer parte do debate pedagógico da área (TINNING, 1985TINNING, Richard. Physical Education and the cult of slenderness. ACHPER National Journal, 1985, v. 107, p. 10-13.; KIRK, 1986KIRK, David. A critical pedagogy for teacher education: Towards an inquiry-oriented approach. Journal of Teaching in Physical Education, 1986, v. 5, n. 4, p. 230-246. DOI: https://doi.org/10.1123/jtpe.5.4.230
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; DEVÍS-DEVÍS, 2006DEVÍS-DEVÍS José. Socially critical research perspectives in physical education. In: KIRK, David; MACDONALD Doune; O’SULLIVAN, Mary. (Ed.). The Handbook of Physical Education. London: Sage, 2006. p. 37-58.). Neste caso, também as diferenças são visíveis, pois, em alguns lugares, este pensamento se tornou bastante influente (tanto no próprio debate pedagógico, como nas políticas públicas); em outros, continuou mais periférico.

Apesar das diferenças, nem sempre pequenas ou desprezíveis, é possível identificar traços comuns que, de alguma forma, justificam a (auto)adjetivação de “crítica” assumida por essas análises e propostas. É possível, também, notar autores (da pedagogia, como Paulo Freire, da sociologia, como Pierre Bourdieu, entre outros) recorrentes, o que, porém, não significa unidade de pensamento, mas muito mais uma preocupação comum em analisar e denunciar como os sistemas educativos, diferentemente do que se propalava oficialmente, eram fatores de reprodução social e, portanto, das desigualdades e injustiças presentes nessas sociedades. As pedagogias críticas têm em comum a preocupação de fazer com que os sistemas educativos colaborem com processos de superação das iniquidades e injustiças denunciadas, o que só é possível com profundas transformações sociais (KIRK, 2019______. Precarity, critical pedagogy and Physical Education. Abingdon: Routledge, 2019.).

Deixemos de lado, nesse momento, a discussão sobre as razões pelas quais esse pensamento pedagógico emergiu e se fortaleceu exatamente naqueles anos. Para nossos objetivos, no presente dossiê, o importante é discutir sua atualidade e colocar em perspectiva seu futuro. Assim sendo, quanto do pensamento pedagógico crítico foi efetivamente assumido nas práticas escolares de diferentes países? Quais as dificuldades a este respeito? Quais as reinvenções realizadas? Quanto da pedagogia crítica foi incorporado à formação superior em Educação Física? Quais são as características dessa presença? Qual o grau de sucesso das pedagogias críticas em colaborar com processos de transformação social? Como a pedagogia crítica vem respondendo às dúvidas post (pós-moderna, pós-estruturalistas...) e à virada linguística (na versão hermenêutica, neopragmatista, habermasiana...) que colocaram em questão princípios epistemológicos dessa tradição? Pode a pedagogia crítica oferecer esperança para a renovada governamentalidade neoliberal e seus impactos desregulamentadores, precarizantes e privatizantes no universo da Educação Física, das práticas corporais, esportivas e da saúde? Estaria ela em condições de fazê-lo?

São questões de difícil resposta (e, seguramente, incômodas), mas também relevantes para prevermos o futuro do pensamento crítico. Buscar essas respostas pode fazer com que a pedagogia crítica se esforce em (re)pensar e avaliar como enfrentar os desafios que o movimento da realidade social vem propondo.

O objetivo deste é provocar uma reflexão sobre a pedagogia crítica da Educação Física, tomando em consideração o que se tem produzido na literatura divulgada em língua inglesa, alemã, e também brasileira. Para tanto, convidamos colegas que, em diferentes partes do globo, tenham operado com essa tradição.

O artigo de David Kirk, a partir de sua experiência no Reino Unido, considera a possibilidade de ser crítico em relação à própria pedagogia crítica. Para tanto, ofereceu cinco aspectos necessários à sua construção com a função de ser autoconsciente e autocrítica a respeito de seus próprios propósitos, evitando algumas armadilhas (como a doutrinação, a abstração e a arrogância) que podem diminuir sua efetividade tanto quanto sua reputação. Considerando tais circunstâncias, considera ser tarefa da pedagogia crítica prover a alfabetização necessária para questionar a precariedade contemporânea, produzindo, além disso, formas pedagógicas que “empoderem” os jovens que vivem em circunstâncias danosas para seu bem-estar e qualidade de vida.

Da Austrália, temos a colaboração de Chris Hickey, Amanda Mooney e Laura Alfrey, cujo artigo interroga o impacto das pedagogias críticas nas práticas curriculares das escolas. Os autores exploram como as promessas críticas da Educação Física podem desempenhar um papel fundamental na interrupção de discursos e práticas que veiculam injustiças sociais que subjugam as pessoas. Nesse contexto, consideraram que a aplicação da pedagogia crítica nas práticas escolares se deve traduzir por meio de uma agenda política que incentive a disposição crítica em favor da justiça social na Educação Física.

Ainda da Oceania, temos mais dois artigos, ambos escritos por colegas da Universidade de Auckland, da Nova Zelândia. No primeiro deles, Rod Philpot, Wayne Smith e Alan Ovens ofereceram uma revisão sobre a presença da pedagogia crítica no âmbito da formação superior de professores de Educação Física. Nesse processo, também a analisam nas práticas educacionais contemporâneas, concluindo, por um lado, que as relações entre professores e alunos, na formação inicial nessa disciplina, devem ser construídas com base na confiança/cuidado e, por outro, que conexões entre os professores do ensino superior e a comunidade mais ampla que ensina Educação Física são importantes pois fornecem as condições necessárias para incorporar pedagogias críticas na formação inicial. No artigo de Katie Fitzpatrick e Darren Powell, por sua vez, os autores apresentaram uma reflexão sobre as conexões do trabalho pedagógico com o neoliberalismo, argumentando em favor de uma pedagogia crítica que ofereça espaços contra-hegemônicos para problematizar e contestar os efeitos do neoliberalismo nas áreas da Educação Física e da saúde.

Christian Gaum, à luz do debate alemão, discutiu o potencial educacional do esporte na Educação Física, refletindo sobre uma pedagogia crítica do esporte pode contribuir para o desenvolvimento daquele potencial nas escolas e, de quebra, providenciar a legitimação pedagógica da disciplina. O autor defendeu a tese de que o esporte tem a capacidade de “empoderar” crianças e jovens. Para tanto, é preciso levar em conta os desenvolvimentos sociais atuais e os desafios que os alunos enfrentam num “mundo da vida” cada vez mais complexo, imprevisível e contingente.

Sara Flory, dos Estados Unidos da América, providenciou uma revisão crítica da literatura relacionada com a pedagogia da Educação Física em escolas urbanas, utilizando como “lente” uma “pedagogia culturalmente sustentada”. Os resultados providenciaram estatísticas descritivas sobre essa literatura crítica. A discussão sugeriu loving critiques que podem ser aplicadas no âmbito das escolas urbanas, perspectiva que visa a oferecer a esse âmbito alternativas para ser crítico e dinâmico numa sociedade em mudança.

No contexto brasileiro, Valter Bracht e Felipe Quintão de Almeida discutiram três desafios epistemológicos e/ou políticos da pedagogia crítica na Educação Física. O primeiro deles enfrentou o status da crítica na sociedade contemporânea, ocasião para nos posicionar sobre o emprego da expressão pós-crítica para caracterizar a atitude crítica na atualidade. No segundo, analisaram as condições de possibilidade do conhecimento normativo em tempos pós-metafísicos, situando a pedagogia crítica neste bojo. No terceiro, problematizaram os processos de mediação entre o “dizível” e o “indizível”, entre razão e emoção, entre “pensamento” e “movimento” no âmbito da pedagogia crítica.

Outras duas contribuições brasileiras compõem o dossiê. Numa delas, Alexandre Fernandez Vaz ofereceu um comentário sobre o movimento renovador da Educação Física, com ênfase em três conceitos que se confundem com a própria ideia de uma pedagogia crítica no país: cultura corporal, cultura corporal de movimento e cultura de movimento. Após sua descrição, a análise se ocupou de alguns aspectos da cultura corporal, oportunidade para denunciar o “não lugar” do corpo no seio dessa versão da pedagogia crítica e reivindicar, à luz da própria tradição marxista, que outra leitura possível realocaria sua condição.

Paulo Evaldo Fensterseifer, Fernando Jaime González e Sidinei Pithan da Silva, à luz da filosofia política de Hannah Arendt, ofereceram uma reflexão sobre os limites e os desafios dos discursos educacionais críticos que visam à transformação social. De um lado, nos alertaram para os riscos de uma politização da pedagogia que embaralhou as fronteiras entre a política e a educação. De outro lado, reafirmaram o lugar do conhecimento crítico na Educação Física e seu papel no aperfeiçoamento do espírito democrático-republicano.

Esperamos, com este dossiê, estimular a interlocução entre as distintas realidades da Educação Física e da pedagogia crítica ao redor do mundo, separadas não só pela distância e pela língua, mas também pelas diferenças culturais, políticas, econômicas e sociais. É um convite, portanto, à reflexão sobre o pensamento crítico em tempos difíceis, ambíguos e precários, repleto de implicações para a educação escolar e, claro, para a Educação Física.

Agradecemos esta oportunidade aos editores e demais membros da revista Movimento que, no ano em que completa 25 anos de um vitorioso ciclo de vida, acreditou nas potencialidades de uma seção sobre a pedagogia crítica. Mais uma vez, deste modo, o periódico exerceu o protagonismo que vem caracterizando sua atuação no campo sociocultural e pedagógico da área, criando demandas, induzindo temas e provocando o debate. Vida longa, portanto, à Movimento, sem dúvida uma revista do campo “crítico” da Educação Física brasileira. Que assim seja por muitos e muitos anos!

REFERÊNCIAS

  • SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Editora Cortez, 1992.
  • DEVÍS-DEVÍS José. Socially critical research perspectives in physical education. In: KIRK, David; MACDONALD Doune; O’SULLIVAN, Mary. (Ed.). The Handbook of Physical Education. London: Sage, 2006. p. 37-58.
  • KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.
  • KIRK, David. A critical pedagogy for teacher education: Towards an inquiry-oriented approach. Journal of Teaching in Physical Education, 1986, v. 5, n. 4, p. 230-246. DOI: https://doi.org/10.1123/jtpe.5.4.230
    » https://doi.org/10.1123/jtpe.5.4.230
  • ______. Precarity, critical pedagogy and Physical Education. Abingdon: Routledge, 2019.
  • TINNING, Richard. Physical Education and the cult of slenderness. ACHPER National Journal, 1985, v. 107, p. 10-13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019
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