Acessibilidade / Reportar erro

Representações sociais sobre o adoecimento de pessoas com doença renal crônica

Resumos

OBJETIVO:

Descrever as representações sociais de pessoas com doença renal crônica em hemodiálise sobre seu processo de adoecimento.

MÉTODO:

Pesquisa qualitativa, descritiva, ancorada na teoria da representação social. Realizada no município de Ponta Grossa (PR), envolveu 23 adultos com doença renal. A coleta ocorreu entre fevereiro e novembro de 2012, por meio de entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados mediante o uso de análise de conteúdo categorial.

RESULTADOS:

Surgiu a categoria "significado do adoecimento renal": constatação da finitude; além da categoria "sobrevivência": o visível no adoecimento renal crônico. A representação de adoecimento revelou diferença e interrupção dos projetos de vida, e a hemodiálise significou perda de liberdade, prisão e estigma.

CONCLUSÃO:

Considerou-se que os vínculos familiares e o papel social do indivíduo constroem representações determinantes para o cuidado.

Insuficiência renal crônica; Diálise renal; Saúde do adulto


OBJECTIVE:

To describe the social representations of illness among people with chronic kidney disease undergoing haemodialysis.

METHOD:

Descriptive, qualitative research, anchored on the social representations theory. This study was conducted in the municipality of Ponta Grossa, Paraná State, Brazil, with 23 adults with chronic kidney disease. Data were collection between February and November 2012 by means of a semi-structured interview, and analyzed using Content Analysis.

RESULTS:

The interviews led to the categories "the meaning of kidney disease": awareness of finitude, and "survival": the visible with chronic kidney disease. The representation of illness unveiled a difference and interruption in life projects, and haemodialysis meant loss of freedom, imprisonment and stigma.

CONCLUSION:

Family ties and the individuals´ social role are determining representations for healthcare.

Renal insufficiency, chronic; Renal dialysis; Adult health


OBJETIVO:

Describir las representaciones sociales de las personas con enfermedad renal crónica en la hemólisis sobre su proceso de enfermedad.

MÉTODO:

Estudio cualitativo descriptivo, anclado en la teoría de la representación social. Realizada en la ciudad de Ponta Grossa (PR), abarcando 23 personas con enfermedad renal. La recogida de datos se realizó entre febrero y noviembre de 2012, a través de entrevistas semiestructuradas. Los datos fueron analizados utilizando el análisis de contenido categorial.

RESULTADOS:

Surgió la categoría el "significado de enfermedad renal": la realización de la finitud, más allá de la categoría: "supervivencia": lo visible en la enfermedad renal crónica. La representación de la enfermedad reveló una diferencia y la interrupción de los proyectos de vida, y la hemodiálisis significó la pérdida de la libertad, el encarcelamiento y el estigma.

CONCLUSIÓN:

Se considera que los vínculos familiares y el papel social del individuo en la sociedad construyendo representaciones determinantes para su cuidado.

Insuficiencia renal crónica; Diálisis renal; Salud del adulto


INTRODUÇÃO

As pessoas com doença renal crônica (DRC) estão imersas em diversos processos de mudanças que condicionarão sua forma de pensar e também de agir. A doença renal impõe uma série de alterações à vida da pessoa, pois os danos físicos vêm acompanhados de prejuízos psicológicos e notificações abruptas no cotidiano(1)Braun L, Sood V, Hogue S,Lieberman B, Copley-Merriman C. High burden and unmet patient needs in chronic kidney disease.Int J Nephrol Renovasc [Internet] 2012 [citado 2012 dez. 01];5:151-63 Disponível em:http://europepmc.org/articles/PMC3534533 .
http://europepmc.org/articles/PMC3534533...
. E isso é agravado no estágio final dessa doença mediante a incorporação do tratamento hemodialítico.

O processo de conviver com uma doença crônica leva as pessoas a centralizarem suas atividades em torno da enfermidade e do tratamento, pois o regime terapêutico de hemodiálise, necessário para garantir condições fisiológicas adequadas, requer periodicidade de sessões semanais(2)Chilcot J, Wellisted D, Farrington K. Illness representations are associated with fluid nonadherence among hemodialysis patients. J Psychosom Res. 2010;68(2):203-12.. Constitui-se, portanto, um fenômeno que ocasiona preocupação e enfrentamentos diários. Fato esse que também leva a pessoa à incorporação de saberes manifestos na forma de um conjunto dinâmico, alicerçado em crenças e percepções.

As crenças expressas em relação à doença contribuem para que o indivíduo vivencie o adoecimento de modo singular e possa gerir seus cuidados(3)Goodman H, Firouzi A, Banya W, Lau-walker M,Cowie MR. Illness perception, self-care behaviour and quality of life of heart failure patients: a longitudinal questionnaire survey. Int J Nurs Stud [Internet] 2013[citado 2013 jul. 04];50(7): 945-53.. Além disso, essa experiência da enfermidade traz novas incumbências a quem desenvolve a doença renal e a possibilidade de emitir um julgamento acerca de como encarar e conviver com os problemas.

Em consequência disso, estudo sobre as representações da doença renal crônica apontam a intensidade do contexto de perdas, sofrimentos e angústia vivenciado por essas pessoas e destacam as significações do adoecimento e a indissociabilidade entre práticas de cuidado e relações psicoafetivas e sociais integradas à vida delas(4)Lin CC, Chen MC, Hsieh HF, Chang SC. Illness representations and coping processes of Taiwanese patients with early-stage chronic kidney disease. J Nurs Res [Internet] 2013[citado 2013 jun. 01]; 21(2):120-8 Disponível em:http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23681348 .
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23681...
. Ademais, as representações sociais têm sido úteis para investigar percepções que cercam o comportamento de cuidado relativo à aderência ao tratamento em pacientes hemodialisados(2)Chilcot J, Wellisted D, Farrington K. Illness representations are associated with fluid nonadherence among hemodialysis patients. J Psychosom Res. 2010;68(2):203-12..

A compreensão do universo representacional e consensual das pessoas que experienciam a doença renal crônica em estágio final deverá dar voz a elas, as quais recebem cuidados específicos de saúde. Esse entendimento é a via que permite distinguir seus anseios, dificuldades, atitudes e sentimentos construídos diante do seu processo de adoecimento crônico. Conhecer as representações da doença renal e sua influência nas diversas facetas da experiência elaborada e partilhada é o que deverá subsidiar o entendimento de como essas pessoas percebem a doença e de como os cuidados e as práticas para o seu controle podem fazer parte do cotidiano delas(2)Chilcot J, Wellisted D, Farrington K. Illness representations are associated with fluid nonadherence among hemodialysis patients. J Psychosom Res. 2010;68(2):203-12..

Neste sentido questionou-se: Quais são as representações sociais das pessoas com doença renal crônica sobre seu processo de adoecimento? E para responder tal questionamento, estabelece como objetivo descrever as representações das pessoas com doença renal crônica, submetida à hemodiálise, no seu processo de adoecimento.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa, norteado pela Teoria das Representações Sociais (TRS), elaborada por Serge Moscovici(5)Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 8 ed. Petrópolis: Vozes; 2011., que define representações sociais como formas de conhecimento prático do saber por meio do senso comum. Essas representações têm por função estabelecer uma ordem que permite aos indivíduos orientarem-se em seu mundo social e material e possibilitando, dessa forma, a comunicação entre os membros de um mesmo grupo(5).

A Teoria das Representações Sociais aborda um objeto que é partilhado socialmente por um grupo e que concede sentido às experiências coletivas e individuais, além de articular às práticas e contribuir para sustentação da identidade social do grupo. Dessa forma, a TRS envolve, como critério, a existência de um objeto, aquilo que está sendo investigado e a existência de um sujeito, aquele que representa esse objeto investigado(5)Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 8 ed. Petrópolis: Vozes; 2011.. No caso desta pesquisa, esse sujeito são as pessoas com diagnostico de doença renal crônica, e o objeto, o adoecimento renal.

O cenário do estudo foi uma organização de saúde, em âmbito hospitalar e ambulatorial, que presta serviço de terapia renal substitutiva no município de Ponta Grossa (PR). A organização é considerada referência em doenças renais crônicas, atende usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), convênios e particulares, e recebe pacientes no serviço de hemodiálise, oriundos das regiões vizinhas do município.

De um total de 100 pessoas com diagnóstico de doença renal crônica, foram incluídas 23 delas, as quais atendiam os critérios do estudo na integra. Dentre os participantes com idade entre 18 e 60 anos, de ambos os sexos, submetidos ao tratamento de hemodiálise há mais de um ano, conscientes de seus atos e dispostos a participar da pesquisa, foram selecionados apenas 23 indivíduos com a doença renal crônica. Os que não se enquadravam nos critérios estabelecidos pelo estudo foram excluídos. A seleção foi efetuada com ajuda dos profissionais de saúde do serviço de hemodiálise, que indicavam os participantes que se enquadravam nos critérios.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas em aparelho de áudio, realizadas individualmente, no serviço de nefrologia, em local reservado, no período de fevereiro a novembro de 2012. Sua duração oscilou entre 20 e 30 minutos, seguindo um roteiro previamente testado e reelaborado composto por questões fechadas referentes à caracterização dos participantes, tais como: idade, sexo, estado civil, escolaridade, profissão e tempo de hemodiálise. O roteiro também apresentou questões abertas, com enfoque na descoberta da doença, nos sentimentos frente ao diagnóstico e nas mudanças ocorridas nas suas vidas.

Depois da transcrição, as entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo categorial, desenvolvida em três fases: pré-analise, seleção das unidades de análise e processo de categorização(6)Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa:Edições 70; 2011.. Para tanto, as entrevistas foram lidas, repetidas vezes para apreensão do sentido expresso no conteúdo, e posterior identificação das unidades de significados emergentes. Em seguida, procedeu-se à organização, interpretação e análise dessas unidades de significados a partir dos respectivos trechos das falas reveladoras do sentido e da percepção das pessoas que desenvolveram a doença renal crônica em situação de hemodiálise.

Em observância aos aspectos éticos e legais do Conselho Nacional de Saúde(7)Ministério da Saúde (BR).Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1996 out.16;134(201 Seção 1):21082-5., o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR), tendo sido aprovado com o protocolo CEP/SD nº 1216.141.11.09. Antes de realizar as entrevistas, foram apresentados para cada entrevistado, os objetivos, metodologia, riscos e benefícios do estudo, bem como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e solicitado que os participantes o assinassem. Respeitando o compromisso assumido de manter o anonimato dos participantes, estes foram identificados pela letra "P" e ordenados de 1 a 23.

Este estudo foi extraído da dissertação de mestrado intitulada: "As Representações Sociais (RS) sobre a Doença Renal Crônica"(8) 8. GonçalvesCS.. As representações sociais sobre a doença renal crônica dissertação Curitiba(PR): Curso de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná; 2012 ..

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo 16 mulheres e 7 homens, com idade média de 40 anos. A faixa etária predominante ocorreu entre 41 a 50 anos, correspondendo a 8 participantes. Quanto à escolaridade, observou-se que 1 participante não era alfabetizado, 17 haviam concluído o ensino fundamental, 4 o ensino médio, e somente 1 possuía o ensino superior completo. Dos participantes, 11 eram casados ou viviam com o parceiro, 4 separados/divorciados e 8 solteiros.

Em relação à profissão/ocupação, 8 entrevistados recebiam auxílio-doença, 5 possuíam atividade remunerada, 5 eram desempregados e não recebiam benefício da seguridade social, 4 eram aposentados por invalidez e 1 era do lar. Em se tratando do tempo em hemodiálise, verificou-se que houve grande variação: o que fazia mais tempo de tratamento correspondeu a 25 anos, e o menor tempo, a 1 ano.

O significado do adoecimento renal: constatação da finitude

A descoberta do diagnóstico foi extremamente peculiar, e acompanhada de representações ancoradas na relação de prejuízo, manifestas consensualmente nos participantes, devido a seu processo de adoecimento insidioso. Tudo isso provocou insegurança e estabeleceu novos parâmetros do viver, além de ter introduzido uma nova realidade, com sentimentos negativos e imagem de sofrimento que costumam permear essa doença objetivada pelo desespero, medo e aproximação da morte.

Eu senti bastante medo do diagnóstico, pensava que já ia melhorar [...] Eu tenho medo de morrer. (P22) Eu achei que ia morrer mesmo, porque pensava no sofrimento das pessoas que fazem hemodiálise. (P14)

O adoecimento renal é aí caracterizado de forma impresumível e temível, como uma condição que exige tratamento especializado; também consiste numa barreira no processo de viver, alterando o estilo de vida e determinando a mudança de papel social. A partir do impacto em longo prazo no estado dessas pessoas na realização de atividades normais da vida diária, verificam-se sentimentos de preocupação, incômodo e tristeza.

Neste ponto o ignorado evoca o medo, pois ameaça o sentido de ordem e controle sobre o mundo presentes na subjetividade humana(5)Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 8 ed. Petrópolis: Vozes; 2011.. É o que motiva as pessoas a criarem representações sociais de algo familiar para o objeto se tornar menos ameaçador. Normalmente, o problema é passível de superação quando integrado ao mundo mental e físico dessas pessoas, tornando essa dificuldade enriquecida e possivelmente desigual. Sendo assim, o desconhecido é formado de pontos de tensão do universo simbólico de uma sociedade e tem o poder de ameaçar o sentido da ordem e controle do indivíduo sobre si e sobre o mundo( 5Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 8 ed. Petrópolis: Vozes; 2011. ). Esta tensão possibilita a construção das representações sociais que vão estabelecer uma intermediação entre o sistema cognitivo destas pessoas e a realidade social.

Além disso, o significado da terapêutica implicou reconhecer-se carregado de sofrimento e limitações, possivelmente determinado por conhecimentos prévios desses participantes, relacionados ao caráter invasivo e permanente do tratamento da hemodiálise. O sofrimento é mais intenso no momento do recebimento da notícia da perda da função renal, pois a DRC possui um curso silencioso para o início do problema: os doentes não sentem dor e continuam urinando com a falsa impressão de que seus rins continuam funcionando(9)Terra FS, Costa AMD, Ribeiro CCS, et al. O portador de insuficiência renal crônica e sua dependência ao tratamento hemodialítico:compreensão fenomenológica. Rev Bras Clin Med [Internet] 2010[citado 2010 ago. 02];8(4):306-10 Disponível em:http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2010/v8n4/a003.pdf .
http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2...
.

A incerteza quanto ao futuro, o medo e o pânico vão surgir com mais intensidade quando as pessoas que desenvolvem a doença renal crônica constatam a perda definitiva da função renal, o que resulta em mudanças abruptas, uma vez que a Terapia Renal Substitutiva (hemodiálise) é imediata. Nesse momento, a doença sai do campo imaginário, das possibilidades e passa a ser realidade. A materialização da imagem da morte associada à doença renal projetou sentimentos de perda, ancorados nas lembranças de afastamento e ruptura do vínculo familiar.

Eu entrei em desespero, só pensava na minha filha. Se eu morrer, com quem vou deixar ela. (P7)

A preocupação com a ruptura do vínculo familiar manifestada neste estudo ante a possibilidade da morte, relacionada ao diagnóstico da doença, caracteriza uma realidade esmagadora na qual a pessoa revê suas relações e responsabilidades. A família é afetada pela doença e pode apresentar medos reais que são proporcionais à gravidade da enfermidade. A família precisa traçar estratégias de enfrentamento para superar as imposições da doença renal crônica(10)10 Schmitz J, Sandri JVA. A trajetória da família de portadores de insuficiência renal crônica: desafios e a emergência familiar. Nursing. 2011;13(154):138-43..

A família é um bem maior que serve como fonte de apoio e tem uma importância substancial no enfrentamento da doença e suas consequências, já que faz parte do contexto de inserção dessas pessoas. Esse é um dos aspectos que repercute no rompimento de regras de reciprocidade e que contribui de alguma forma para tais pessoas reverem a situação de cronicidade, podendo influenciar na experiência da doença e na busca pelo alicerce de enfrentamento dela.

A interrupção no curso normal de suas vidas incorreu em aparecimentos de reações emocionais intensas, como "o desespero" marcado pela mudança do papel social. O grande impacto gerado pelo adoecimento renal crônico na vida produtiva e a dificuldade de manutenção do lar produziu preocupações que permeiam essas representações, indicando seu efeito potencial deletério sobre a vida emocional dessas pessoas.

Tive que vender tudo para pagar parte do meu tratamento. Trabalho agora para meu sustento, não posso dar mais conforto para minha família. (P9)

O fato de serem confrontados com essa situação produz uma interrupção no fluxo da rotina, o que faz com que a vivência do adoecimento seja mais conflituosa. Nesse caso, predomina a atitude de distanciamento em relação às próprias emoções, que são vivenciadas como hostis e potencialmente destrutivas por envolverem uma carga de sofrimento psíquico.

Eu trabalhava na lavoura, ajudava minha família, agora não consigo trabalhar mais, não aguento. Eu perdi meu emprego, perdi minha felicidade. ( P11)

O reconhecimento e a valorização do emprego tanto pela satisfação de suas necessidades de sobrevivência quanto pela realização, pois desempenhavam atividades que lhes proporcionava prazer e contentamento. Outro aspecto relacionado a estes eventos sobrevém do medo de depender dos familiares ou vice versa. Quando tais pessoas são as provedoras do sustento da família, passam a sentir angústia e sofrimento, o que pode contribuir para a negação da condição de doente como forma de fugir da situação.

Essa circunstância está em consonância com estudo desenvolvido com a população renal crônica, o qual constatou que a restrição no trabalho provoca na pessoa prejuízo na autonomia e dependência financeira. Também demonstrou, em alguns casos, que a responsabilidade de manter a família é transferida para outra pessoa, advindo com isso à insegurança financeira em razão da perda laboral e ou aposentadoria precoce(11)11 Patat CL, Stumm EMF, Kirchner RM, Guido LA,Barbosa DA. Análise da qualidade de vida de usuários em hemodiálise.Enferm Glob [Internet]. 2012[citado 2012 jul. 01];11(3):66-76 Disponível em:http://scielo.isciii.es/pdf/eg/v11n27/pt_clinica4.pdf .
http://scielo.isciii.es/pdf/eg/v11n27/pt...
.

Ainda, mesmo quando essas pessoas se encontram em condições clínicas estáveis, elas não conseguem ter outro emprego, pois requerem horas realizando a terapia dialítica. Muitos, portanto, perdem sua fonte de renda primária, tendo como resultado as dificuldades de manter financeiramente a si e sua família(12)12 Simpson CA, Silva FS. Trajetória de vida de transplantados renais: apreendendo as mudanças ocorridas na vida dos pacientes. Cienc Cuid Saude. 2013 jul/set;12(3): 467-74.. Esse fato pode trazer consequências individuais como a desvalorização de si em virtude da interrupção de suas atividades profissionais

Acredita-se que o estado de cronicidade facultado as pessoas com doença renal crônica, por meio do tratamento e afastamento laboral, acarreta a possibilidade de mudança de valores, crenças, hábitos e conhecimentos - individuais e coletivos. Isso propicia uma cultura que relaciona o estar com a doença renal crônica com o estar mais próximo da morte, a cultura do portador de um estigma social e, portanto, marginalizado e desacreditado(13)13 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008..

Ao analisar os processos de formação das representações sociais do adoecimento renal crônico, a constatação da finitude esteve associada ao prenúncio da morte como uma ameaça - além da perda da vida, da família e do emprego. De fato, a representação do processo de adoecimento renal surge como algo ruim, desagradável, que afeta essas pessoas e as incapacita, que revela a diferença e interrompe os projetos de vida.

Sobrevivência: o visível no adoecimento renal crônico

A doença renal crônica foi representada pela imagem do "rim que seca" e esteve associada à percepção da sua trajetória inicial silenciosa à constatação da cronicidade. Essa ideia está ancorada em um conceito por enquanto não totalmente compreendido por essas pessoas, apreciação por ora ainda confusa, multifacetada, porém determinante. O termo "o rim que seca" muitas vezes consiste em um recurso que auxilia os profissionais de saúde a comunicarem a nova condição, para auxiliarem nesse processo de construção de uma nova identidade após o adoecimento.

O médico disse para mim que meus rins secaram. A doença renal começou bem silenciosa. (P4) Não sei direito, não sei dizer bem certo, problema no rim que não tem cura. O rim não filtra o sangue, o rim seca. (P13)

Contudo, a percepção silenciosa da doença não foi uniforme. Para alguns, esteve subordinada ao aparecimento e exacerbação dos sintomas e complicações como a hipertensão arterial. Para outros, a mudança nos hábitos de vida representou a rotina visível e possível frente ao adoecimento, pois mesmo diante das limitações, houve a incorporação da nova condição sem que deixassem de viver.

Eu não vivo em função da doença, mas muda muita coisa na vida da gente e da minha família. (P5) Minha vida mudou bastante [...] mas eu levo a vida, não tem jeito não, não dá para voltar no tempo. (P11)

O significado da cronicidade renal concretizou-se na figura da doença como inimigo silencioso, cujas manifestações e exacerbação de sintomas orgânicos estão atreladas à regularidade condicionada ao tratamento de hemodiálise. As pessoas que fazem hemodiálise precisam do acesso aos serviços de saúde para a realização do tratamento, necessitam controles rigorosos nutricionais e medicamentosos e restrições na vida laboral, as quais incidem no contexto do adoecimento e na vida pessoal, familiar e social (14)14 Mattos M, Maruyama SAT. A experiência de uma pessoa com doença renal crônica em hemodiálise. Rev Gaúcha de Enferm [Internet]. 2010 [citado2011 mar. 04];31(3):428-34 Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n3/v31n3a04.pdf .
http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n3/v31...
. Porém, a necessidade de tratamento pode interferir no plano de vida em face do tempo gasto, e levar a sintomas como desânimo, cansaço e falta de energia(15)15 CoutinhoNPS, VasconcelosGM, LopesMLH, WadieWCA, TavaresMCH. Qualidade de vida de pacientes renais crônicos em hemodiálise. Pesqui Saúde [Internet]. 2010[citado 2010 mar. 3];11(1):13-17 Disponível em:http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahuufma/article/view/328.
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
.

A compreensão da nova rotina, visível diante do adoecimento renal, esteve associada à presença da máquina como garantia de vida. Elementos de representação da doença, como a esperança e o cansaço, coexistiam através da dualidade em meio à dificuldade em submeter-se à rotina do tratamento e à necessidade deste para a sobrevivência. Tal dualidade implicou agregação entre sofrimento físico (a dor no braço, dificuldade de mobilidade) e psíquico (a doença renal crônica como algo incurável).

É cansativo depender de uma máquina para viver, mas eu venho sempre, não falto porque é a única esperança que eu tenho. (P1) Não gosto de estar aqui. É sofrimento estar ligada nesta máquina, não dá para se mexer direito, sinto dor no braço. Então venho mesmo para limpar meu sangue e viver mais, sobreviver. Eu não posso morrer agora. (P5)

Aqui a morte aparece fortemente presente na expressão "para sobreviver". As pessoas também procuram nos vínculos familiares a busca de sentido para a manutenção da vida diante da cronicidade renal. Dessa forma, a apreensão dos significados da máquina, bem como as restrições e limitações com as quais o indivíduo passou a conviver vão sendo tecidos em meio às representações de perda de liberdade, de sentimentos de prisão e do estigma da própria doença. A máquina permite a manutenção da vida. Por outro lado, representa para alguns um sinal de diferença decorrente das marcas no corpo.

A parceria da pessoa com a máquina produz uma ambiguidade de sensações, que pode incorrer na dualidade raiva e gratidão, pois significa dependência e manutenção da vida(15)15 CoutinhoNPS, VasconcelosGM, LopesMLH, WadieWCA, TavaresMCH. Qualidade de vida de pacientes renais crônicos em hemodiálise. Pesqui Saúde [Internet]. 2010[citado 2010 mar. 3];11(1):13-17 Disponível em:http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahuufma/article/view/328.
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
. A representação de perda de liberdade e prisão remete ao processo de estresse vivenciado rotineiramente por essas pessoas ao internalizar o tratamento no seu viver e à impossibilidade de desvincular-se deste, pois a falha terapêutica passa a ser vista como uma abreviação da vida. O impacto dessa condição poderá levar a pessoa a outras limitações na vida social como atividades de lazer e viagens, além das mudanças na imagem corporal.

A vida muda, é difícil, porque eu gostava de passear, agora estou aqui sem poder sair direito. (P6) Eu me senti preso, não posso sair mais, gostava de sair, viajar e pescar, agora não dá, eu perdi a vontade. (P10) Eu tenho vergonha porque todo mundo fica olhando. No começo eu chorava bastante, agora não ligo mais porque uso roupa comprida. (P17) [...] não gosto da fístula porque isso marca meu corpo. Não gosto quando as pessoas olham, quando as pessoas falam. (P23)

As marcas assumem um significado importante na vida dos entrevistados, pois os tornam diferentes perante a sociedade, que desconhece as envolvências da doença. Depender da hemodiálise trouxe outro impacto na trajetória de suas vidas. Além das mudanças físicas perceptíveis decorrentes do adoecimento, somam o desconforto da condição clínica e rotina do tratamento dialítico.

Os procedimentos para criar um ponto de acesso para diálise, como cateteres e fístulas, produzem impacto significativo sobre a imagem do corpo, e as pessoas se sentem diferentes e pouco atraentes(16)16 Finnegan-JohnJ, Thomes VJ. The psychosocial experience of patients with end-stage renal disease and its impact on quality of life: findings from a needs assessment to shape a service. ISRN Nephrol [Internet]. 2012[citado 2013 out. 21]:308986 Disponível em:http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4045426/?report=reader.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
. As alterações visíveis do corpo do renal crônico ante as marcas resultantes do tratamento e nova condição levam a uma transformação definitiva em seu estilo de vida. Nesse caso, o significado do corpo está intimamente relacionado à construção de subjetividade, influenciada pelo contexto social e histórico dele.

Consequentemente, as representações que as pessoas com doença renal crônica possuem acerca dessas marcas afetam e orientam a maneira como irão responder afetiva e comportamentalmente a elas. Isso é particularmente importante, pois se acredita que a experiência do adoecimento renal crônico antes e depois do tratamento dialítico seja determinante para a forma como eles vão se posicionar em relação ao processo saúde-doença.

CONCLUSÕES

Considera-se que assumir-se uma pessoa que vivencia a doença renal crônica, em situação de hemodiálise, significa conviver com um rol negativo de perdas e com a ameaça explícita da possibilidade de morrer, além de submeter-se a mudanças e adaptações necessárias em decorrência da enfermidade. Este fato incide na construção de representações sociais singulares acerca do que significa ser doente, associada às constantes transformações, por vezes dolorosas, variando conforme a individualidade e as modificações decorrentes da vida.

Consequentemente, a constatação da finitude representou, para as pessoas entrevistadas, tristeza, fracasso e interrupção dos projetos de vida mediante interrupção de suas atividades profissionais. Também houve o reconhecimento e a valorização do emprego, por parte delas, tanto pela satisfação de suas necessidades de sobrevivência quanto pela realização ao desempenharem atividades que lhes proporcionavam prazer e satisfação.

A descrição das representações sociais de adoecimento renal crônico sugere a visão multidimensional do impacto para a vida cotidiana dessas pessoas. Esses elementos enfatizam o isolamento, o estigma associado à mudança no papel social. Nesta perspectiva, este estudo permanece em aberto e é importante que pesquisas futuras reavaliem o impacto dessas mudanças, particularmente com relação à interação entre a experiência individual e a posição social. Há necessidade de considerar o contexto mais amplo, pois a investigação em questão apresenta limitações em razão do fato de que somente adultos foram entrevistados, caracterizando um tipo de representação que poderia ser alterado, caso tivessem sido abordadas todas as faixas etárias.

Finalizando, pode-se afirmar que no cenário do cuidado às pessoas com doença renal, além da oferta de tratamentos de alta tecnologia, devem ser levadas em consideração as representações construídas ante os vínculos familiares e sociais em que a pessoa está inserida, as quais são determinantes para o cuidado nessa população específica.

REFERENCES

  • 1
    Braun L, Sood V, Hogue S,Lieberman B, Copley-Merriman C. High burden and unmet patient needs in chronic kidney disease.Int J Nephrol Renovasc [Internet] 2012 [citado 2012 dez. 01];5:151-63 Disponível em:http://europepmc.org/articles/PMC3534533 .
    » http://europepmc.org/articles/PMC3534533
  • 2
    Chilcot J, Wellisted D, Farrington K. Illness representations are associated with fluid nonadherence among hemodialysis patients. J Psychosom Res. 2010;68(2):203-12.
  • 3
    Goodman H, Firouzi A, Banya W, Lau-walker M,Cowie MR. Illness perception, self-care behaviour and quality of life of heart failure patients: a longitudinal questionnaire survey. Int J Nurs Stud [Internet] 2013[citado 2013 jul. 04];50(7): 945-53.
  • 4
    Lin CC, Chen MC, Hsieh HF, Chang SC. Illness representations and coping processes of Taiwanese patients with early-stage chronic kidney disease. J Nurs Res [Internet] 2013[citado 2013 jun. 01]; 21(2):120-8 Disponível em:http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23681348 .
    » http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23681348
  • 5
    Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 8 ed. Petrópolis: Vozes; 2011.
  • 6
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa:Edições 70; 2011.
  • 7
    Ministério da Saúde (BR).Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1996 out.16;134(201 Seção 1):21082-5.
  • 8
    8. GonçalvesCS.. As representações sociais sobre a doença renal crônica dissertação Curitiba(PR): Curso de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná; 2012 .
  • 9
    Terra FS, Costa AMD, Ribeiro CCS, et al. O portador de insuficiência renal crônica e sua dependência ao tratamento hemodialítico:compreensão fenomenológica. Rev Bras Clin Med [Internet] 2010[citado 2010 ago. 02];8(4):306-10 Disponível em:http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2010/v8n4/a003.pdf .
    » http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2010/v8n4/a003.pdf
  • 10
    Schmitz J, Sandri JVA. A trajetória da família de portadores de insuficiência renal crônica: desafios e a emergência familiar. Nursing. 2011;13(154):138-43.
  • 11
    Patat CL, Stumm EMF, Kirchner RM, Guido LA,Barbosa DA. Análise da qualidade de vida de usuários em hemodiálise.Enferm Glob [Internet]. 2012[citado 2012 jul. 01];11(3):66-76 Disponível em:http://scielo.isciii.es/pdf/eg/v11n27/pt_clinica4.pdf .
    » http://scielo.isciii.es/pdf/eg/v11n27/pt_clinica4.pdf
  • 12
    Simpson CA, Silva FS. Trajetória de vida de transplantados renais: apreendendo as mudanças ocorridas na vida dos pacientes. Cienc Cuid Saude. 2013 jul/set;12(3): 467-74.
  • 13
    Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008.
  • 14
    Mattos M, Maruyama SAT. A experiência de uma pessoa com doença renal crônica em hemodiálise. Rev Gaúcha de Enferm [Internet]. 2010 [citado2011 mar. 04];31(3):428-34 Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n3/v31n3a04.pdf .
    » http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n3/v31n3a04.pdf
  • 15
    CoutinhoNPS, VasconcelosGM, LopesMLH, WadieWCA, TavaresMCH. Qualidade de vida de pacientes renais crônicos em hemodiálise. Pesqui Saúde [Internet]. 2010[citado 2010 mar. 3];11(1):13-17 Disponível em:http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahuufma/article/view/328.
    » http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahuufma/article/view/328
  • 16
    Finnegan-JohnJ, Thomes VJ. The psychosocial experience of patients with end-stage renal disease and its impact on quality of life: findings from a needs assessment to shape a service. ISRN Nephrol [Internet]. 2012[citado 2013 out. 21]:308986 Disponível em:http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4045426/?report=reader.
    » http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4045426/?report=reader

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2014
  • Aceito
    28 Abr 2015
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@enf.ufrgs.br