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Percepção dos profissionais da saúde sobre cuidado compartilhado entre a atenção primária e atenção domiciliar

RESUMO

Objetivo:

compreender de que modo os profissionais de saúde percebem o cuidado compartilhado entre as equipes da Atenção Primária à Saúde e Serviço de Atenção Domiciliar.

Método:

estudo descritivo, de abordagem qualitativa, realizado com 17 profissionais, no município de Campo Grande, MS. Os dados foram coletados no período de agosto a outubro de 2019, mediante entrevistas semiestruturadas audiogravadas e submetidos à análise de conteúdo.

Resultados:

desconhecimentos, falta de qualificação, ausência da ordenação da assistência e, fragilidade na contrarreferência foram alguns desafios citados para o cuidado compartilhado. No entanto, visitas interinstitucionais, comunicação, discussão dos casos, planejamento das ações, foram percebidas como estratégias para efetivá-lo.

Considerações finais:

os profissionais percebem que a atenção domiciliar é permeada por limitações e fragilidades em relação à efetivação do cuidado compartilhado entre as diferentes equipes de saúde.

Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Enfermagem; Assistência domiciliar; Saúde da família; Serviços de assistência domiciliar

ABSTRACT

Objective:

to understand how health professionals perceive the shared care between the teams of Primary Health Care and Home Care Service.

Method:

descriptive study, with a qualitative approach, carried out with 17 professionals, in the municipality of Campo Grande, MS. Data were collected from August to October 2019, through semi-structured audio-recorded interviews and submitted to content analysis.

Results:

lack of knowledge, lack of qualification, lack of ordering of care and weakness in counter-referral were some of the challenges mentioned for shared care. However, interinstitutional visits, communication, discussion of cases, action planning, were perceived as strategies to carry it out.

Final considerations:

professionals perceive that home care is permeated by limitations and weaknesses in relation to the effectuation of shared care between the different health teams.

Keywords:
Primary health care; Nursing; Home nursing; Family health; Home care services

RESUMEN

Objetivo:

comprender cómo los profesionales de la salud perciben la atención compartida entre los equipos de Atención Primaria y Servicio de Atención Domiciliaria.

Método:

estudio descriptivo con abordaje cualitativo, realizado con 17 profesionales, en el municipio de Campo Grande, MS. Los datos se recolectaron de agosto a octubre de 2019, a través de entrevistas semiestructuradas grabadas en audio y se sometieron a análisis de contenido.

Resultados:

las incógnitas, la falta de calificación, la falta de pedidos de asistencia y la debilidad en la contrarreferencia fueron algunos de los desafíos mencionados para la atención compartida. Sin embargo, las visitas interinstitucionales, la comunicación, la discusión de casos, la planificación de acciones, fueron percibidas como estrategias para llevarlo a cabo.

Consideraciones finales:

los profesionales perciben que la atención domiciliaria está impregnada de limitaciones y debilidades con relación a la efectividad de la atención compartida entre los diferentes equipos de salud.

Palabras clave:
Atención primaria de salud; Enfermería; Atención domiciliaria de salud; Salud de la familia; Servicios de atención de salud a domicilio

INTRODUÇÃO

O cuidado domiciliar teve início no final do século XIX como prática de enfermeiras norte-americanas, e em 1976 foi implantado como modalidade assistencial nos Estados Unidos da América. Contudo, há registros de que a mais antiga organização a prover esse tipo de assistência localizava-se na Inglaterra, em 184811. Oliveira SG, Kruse MHL, Sartor SF, Echevarría-Guanilo ME. Afirmações sobre a atenção domiciliar no panorama mundial: revisão narrativa. Enferm Global. 2015 [cited 2020 Sep 10];14(39):360-89. Available from: Available from: https://revistas.um.es/eglobal/article/view/202571/177441
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No cenário brasileiro, o cuidado domiciliar iniciou com a atuação das enfermeiras visitadoras aos pacientes com tuberculose em meados de 192022. Oliveira SG, Kruse MHL. Genesis of home care in Brazil at the start of the twentieth century. Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(2):e58553. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.58553
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. No entanto, a primeira experiência organizada de Atenção Domiciliar (AD) só ocorreu em 1949, com a implantação do Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU)33. Feuerwerker LCM, Merhy EE. [Home care's contribution to alternative health care networks: deinstitutionalization and transformation of practices]. Rev Panam Salud Pública. 2008;24(3):180-8. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/s1020-49892008000900004
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. Por sua vez, em 1994 foi criado o Programa Saúde da Família (PSF) como estratégia de reorientação dos serviços de atenção à saúde mediante a expansão da Atenção Primária à Saúde (APS) no país, e fortalecimento dos princípios do SUS44. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 825 de 25 de abril de 2016. Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial União. 2016 abr 26 [cited 2020 Sep 10];153(78 Seção 1):33-8. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/04/2016&jornal=1&pagina=33&totalArquivos=112
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Cabe salientar que, no Brasil a APS constitui a principal porta de entrada para a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e é responsável pela coordenação do cuidado e ordenação das ações e serviços disponibilizados pelos diferentes pontos de atenção. Nesse contexto, o PSF, mais tarde denominado Estratégia Saúde da Família (ESF), trouxe de volta ao cenário assistencial a valorização de práticas como as visitas domiciliares e suscitou a emergência da criação da AD, cujos serviços estão organizados em três níveis de atenção que se complementam. No primeiro - AD 1 o cuidado deve ser ofertado pelas equipes de Saúde da Família (eSF) que atuam na APS incluindo equipes de Atenção Básica (eAB). Estas pdoem ser apoiadas pelo Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), ambulatórios de especialidades e de reabilitação44. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 825 de 25 de abril de 2016. Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial União. 2016 abr 26 [cited 2020 Sep 10];153(78 Seção 1):33-8. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/04/2016&jornal=1&pagina=33&totalArquivos=112
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Já no segundo e no terceiro nível (AD 2 e AD 3), a assistência deve ser ofertada com o apoio do Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) representado pelas Equipes Multiprofissionais de Atenção Domiciliar (EMAD) composta por médico, enfermeiro, fisioterapeuta ou assistente social e técnicos de enfermagem, e Equipe Multiprofissional de Apoio (EMAP) que deve ter a composição mínima de três profissionais, dentre eles assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, odontólogo, psicólogo, farmacêutico ou terapeuta ocupacional44. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 825 de 25 de abril de 2016. Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial União. 2016 abr 26 [cited 2020 Sep 10];153(78 Seção 1):33-8. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/04/2016&jornal=1&pagina=33&totalArquivos=112
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No entanto, embora sejam estabelecidos os diferentes níveis, o planejamento e a execução das ações de cuidado devem ser compartilhados entre os pontos da RAS, tendo a APS como coordenadora e ordenadora do cuidado. Salienta-se que as ações desenvolvidas pelas equipes do SAD não substituem aquelas que devem ser realizadas pelas eSF, independentemente do nível de assistência que o paciente necessita, a fim de que resultem em uma assistência integral, continua, resolutiva e de qualidade55. Figueiredo SC, Limeira RRT, Carvalho LGA, Morais Junior RC, Ribeiro ILA, Chaves SPL, et al. Profile of patients attended by the speech therapists of the home care service. Rev CEFAC. 2018;20(5):613-20. doi: https://doi.org/10.1590/1982-021620182055918
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-77. Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002 [cited 2020 May 7]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_p1.pdf
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Nesse tocante, questiona-se: como ocorrem as ações de cuidado compartilhado entre as equipes da APS e do SAD? Assim, visando responder este questionamento, no presente estudo tem-se o objetivo de compreender de que modo profissionais de saúde percebem o cuidado compartilhado entre as equipes da Atenção Primária à Saúde e Serviço de Atenção Domiciliar.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, de natureza qualitativa, e em sua elaboração e descrição do método levou-se em consideração as diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Participaram deste estudo profissionais da saúde de nível médio e superior de duas Unidades de Saúde da Família (USF), sendo uma composta por duas equipes e a outra por quatro. Os atendimentos, por ocasião da coleta de dados, eram ofertados por médicos generalistas, enfermeiros, odontólogos, assistente social, auxiliar de saúde bucal, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde.

Também fizeram parte da pesquisa profissionais de uma equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB) composta por oito profissionais e uma equipe do Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) com nove profissionais. Cabe destacar que ambas equipes atuavam em uma mesma região de saúde, selecionada por conveniência, em um município de grande porte na região Centro-Oeste do Brasil.

À época da pesquisa, o município em estudo era dividido em sete regiões de saúde as quais eram constituídas por 68 Unidades Básicas de Saúde (UBS), das quais 52 eram USF (com atuação de 143 eSF e 12 equipes de Nasf-AB). Contava ainda com quatro Centros Regionais de Saúde (CRS) e seis Unidades de Pronto Atendimento (UPA), incluído o SAD, o qual era constituído por equipes habilitadas que se localizavam dentro de hospitais e na Secretaria Municipal de Saúde Pública.

Eram elegíveis para participar do estudo todos os profissionais de saúde, de nível médio e superior, vinculados às equipes atuantes na região selecionada por conveniência. O único critério de inclusão estabelecido exigia que tivessem atuação mínima de seis meses em uma das modalidades de assistência (eSF, Nasf-AB e SAD). Cabe salientar, que não foram instituídos critérios de exclusão.

Para acesso aos participantes, inicialmente realizou-se contato telefônico com um profissional de referência para a gestão de cada equipe, ao qual foram fornecidas todas as informações sobre a pesquisa. E esse profissional, por sua vez, se encarregou de agendar uma reunião presencial com os integrantes de sua equipe para que lhes fosse apresentado o tema do estudo, os objetivos, o procedimento de coleta de dados, tipo de participação desejada e o convite para participar da presente pesquisa. Para àqueles que não puderam participar da reunião realizou-se o contato individualmente via telefone e aplicativo WhatsApp.

A coleta de dados abarcou o período de agosto a outubro de 2019, mediante entrevistas semiestruturadas, previamente agendadas de acordo com a preferência/disponibilidade do participante e de modo a não interferir na rotina do serviço. As entrevistas foram audiogravadas após autorização do participante e realizadas em sala reservada no próprio local de trabalho, sendo conduzidas por três enfermeiros pesquisadores, sem vínculo com os participantes, e com experiência em entrevistas qualitativas. Elas tiveram duração média de 30 minutos e estiveram presentes apenas o participante e o entrevistador.

Durante as entrevistas utilizou-se um roteiro abordando características sociodemográficas e questões relacionadas à atuação profissional e ao objeto em estudo, e também foram utilizadas questões de apoio divididas nos seguintes eixos: 1) oferta da AD; 2) responsabilidades das equipes; 3) acesso da equipe nas unidades de saúde local; 4) oferta do cuidado compartilhado entre as equipes das USF, Nasf-AB e SAD; 5) realização do cuidado compartilhado com os demais serviços da RAS; 6) plano de cuidado compartilhado; 7) reunião de equipe; 8) aspectos que favorecerem o cuidado compartilhado na AD.

A busca por novas informações ocorreu até o momento em que os dados começaram a se tornar repetitivos e o objetivo da pesquisa já havia sido alcançado. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo, modalidade temática, seguindo as etapas preestabelecidas que incluíram a pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados88. Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016..

Na pré-análise procedeu-se à organização, transcrição e separação do material, seguida de leitura flutuante do conjunto de dados visando identificar aspectos relativos ao objetivo do estudo. Posteriormente, a partir das falas selecionadas foi realizada a identificação dos núcleos de sentido88. Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., sendo seis deles relacionados às estratégias para a realização do cuidado compartilhado, e quatro, aos desafios para a efetivação do cuidado compartilhado.

Na exploração do material, foi feita a classificação e agregação dos dados, mediante um processo minucioso de leitura, com identificação dos aspectos comuns e dos específicos, dando origem às categorias prévias. Por fim, mediante a articulação dos dados empíricos com o material teórico, considerando-se o objetivo da pesquisa e os temas surgidos88. Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., foram originadas as categorias: “desafios para o cuidado compartilhado”; e “estratégias para o cuidado compartilhado”.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 02623818.4.0000.0021). Para garantir o sigilo e anonimato dos participantes, utilizou-se a letra E para designar “entrevistado”, seguida do número indicativo da sequência de realização das entrevistas e a sigla do serviço, ou seja, E01- APS, e assim sucessivamente.

RESULTADOS

Dentre os 18 profissionais elegíveis para o estudo, um foi excluído por perda da gravação, totalizando 17 participantes, dos quais seis pertenciam às equipes das USF, sete à equipe do SAD e quatro à equipe do Nasf-AB. Os participantes tinham idade entre 26 e 55 anos (média de 36,4 anos), sendo 11 do sexo feminino. Quanto à carga horária de trabalho, 12 deles realizavam jornada de 40 horas por semana. Em relação à categoria profissional, quatro eram enfermeiros, dois médicos, dois técnicos de enfermagem, dois agentes comunitários de saúde, dois fisioterapeutas, um terapeuta ocupacional, um fonoaudiólogo, um profissional de educação física, um assistente social e um psicólogo.

No tocante à escolaridade, 14 entrevistados possuíam ensino superior completo, sendo que: três possuíam Especialização em Saúde da Família/Saúde Pública; nove eram especialistas em outras áreas da saúde; e um tinha mestrado em saúde da família. O tempo de atuação na equipe variou de seis a180 meses (média de 36 meses).

Desafios para o cuidado compartilhado

No que concerne aos desafios para o cuidado compartilhado, os profissionais destacaram alguns fatores que interferem no processo de trabalho e que impactam diretamente na sua realização no contexto da atenção domiciliar: desconhecimento das atribuições das diferentes equipes; falta de qualificação dos profissionais atuantes na APS para a execução do atributo de coordenação do cuidado; não entendimento dos critérios de acompanhamento pelo SAD, associado à ausência da ordenação da assistência para manter a intercomunicação com os demais pontos da RAS.

O SAD é um serviço novo [...] muita gente na rede [profissionais] não conhece [...] nós fazemos reuniões com as unidades para mostrar o serviço, agora que eles estão começando a conhecer e saber o que é o SAD, quais são os critérios, como funciona [...] (E02-SAD).

[...] quando eles [USF] passam o caso, chegamos lá e vemos que muitas vezes a pessoa até tinha condição de ir à unidade, ou que não é tão urgente, ou às vezes nem é caso para o Nasf-AB [...] partindo do princípio que este serviço não é porta de entrada, a unidade de saúde já tinha que ter esse mapeamento na triagem, perceber quais são os casos realmente para o Nasf-AB, qual a emergência desse caso (E10- Nasf-AB).

[...] Eu não sei como é feito o encaminhamento para o SAD [...] (E13-USF).

[...] temos dificuldade de solicitar que eles [APS] cumpram o seu papel, como a visita regular da estratégia de saúde da família, a vacinação em casa, quando foi a vacinação da gripe, tivemos que solicitar que a unidade fosse lá vacinar um paciente que é da própria área que não tinha sido vacinado até então. A maior dificuldade hoje é que quando nós assumimos um paciente todo mundo some, o paciente é encargo do SAD, então só o SAD faz, todo mundo larga aquele paciente para nós cuidarmos, e não é o principal objetivo, porque o objetivo é que nós sejamos uma equipe de apoio, admitir por um tempo e dá alta para o paciente continuar seu segmento normal pela unidade básica (E05-SAD).

Por sua vez, alguns participantes revelaram que a inconsistência entre a densidade populacional e a capacidade de atendimento das equipes, recursos humanos em número insuficiente, deficiência na disponibilização de transporte para o deslocamento dos profissionais, e a fragilidade na realização da contrarreferência também dificultavam o cuidado compartilhado dentro da RAS.

[...] sabemos que há a falha de ter alguns locais descobertos pelas equipes, não ter unidade básica de referência para o paciente e a falta de recursos humanos[...] (E06-SAD).

[...] falta carro, falta deslocamento, o nosso carro vem somente um dia, um período [...] então tem que dar prioridade para os casos mais severos [...] (E08- Nasf-AB).

A contrarreferência é péssima, ficamos sabendo pelos pacientes, as unidades fora da SESAU, os outros setores nos procuram por emergência, então essa contrarreferência não tem, nós precisamos procurar com o próprio paciente, como anda, o que ele está fazendo, se ele está indo [...] porque das unidades, dos setores não recebemos nenhuma informação (E09- Nasf-AB).

Identificou-se também que a falta de rotina para a discussão de casos entre as equipes não favorecia a participação e interação dos profissionais.

[...] bem difícil manter contato com eles [USF] [...] conseguimos por telefone ou passamos o caso para nossa coordenadora, ela entra em contato, ou também em último caso, vamos pessoalmente na unidade básica de saúde (E03-SAD).

Estratégias para o cuidado compartilhado

Em relação às estratégias para o cuidado compartilhado, os participantes disseram que, apesar dos desafios enfrentados, já implementavam algumas ações/estratégias que favoreciam a efetivação do cuidado compartilhado dentro da RAS, e outras que julgavam necessárias para aprimorar esse compartilhamento.

Nesse sentido, E15-USF destacou que a realização de visitas pelas equipes do SAD às instituições de saúde em que o paciente estava sendo assistido, utilizando do diálogo com os profissionais que atuavam nos diferentes pontos da RAS, aprimorava os cuidados ao paciente em AD.

[...] paciente que sai do hospital, que necessita do SAD já é feito um primeiro contato ali, eu trabalho junto com eles, porque no SAD já tem toda uma equipe, então a gente entra como apoio mesmo, um do outro, o que o SAD pode ir lá fazer vai lá e faz, o que eu posso solicitar, ir lá fazer de contrapartida eu faço também. Trabalham os dois juntos em cima do paciente (E15-USF).

Já a comunicação entre as equipes da APS e SAD, no que tange ao fornecimento de insumos para a AD, era percebida como estratégia para a promoção do cuidado compartilhado.

[...] a enfermagem quando precisa de uma coisa de curativo eles entram em contato com o Centro de Especialidades Médicas para ver que material eles têm para ceder ao paciente ou para fazermos, isso eu acho que já é cuidado compartilhado (E04-SAD).

[...] nós [ACS] passamos o caso para eles [Nasf-AB], eles vem marcam visita e vai a equipe, eu precisava esses dias atrás para fazer o pedido da alimentação da paciente, ela não se alimentava por sonda, tinha tirado há muito tempo, agora teve que voltar (E17-USF).

Além disso, os participantes apontaram a importância de se identificar as necessidades de saúde do indivíduo a fim de realizar pactuações que cooperem com o processo de trabalho das equipes, e de planejar ações que fortaleçam a operacionalização da referência e da contrarreferência, considerada ferramenta indispensável para o cuidado compartilhado entre os diferentes pontos da RAS.

[...] fiz a visita, vi a necessidade de cadeira de rodas e cadeira de banho [...] o fisioterapeuta da equipe já incluiu esse paciente no sistema de regulação. É agendado um dia para ele ir fazer um atendimento para as medidas das cadeiras, articulamos, marcamos para ele ser atendido [...] se eu vejo que o paciente está necessitando de um apoio social, do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), até da Secretaria Municipal de Assistência Social, comunicamos eles, por telefone mesmo. E assim nós vamos cuidando junto (E03-SAD).

[...] já tivemos uma unidade básica que estava com pouco servidor, eles não podiam ir fazer um curativo todos os dias na casa do paciente, acordamos que nós iríamos duas vezes na semana e eles [USF] uma vez para acompanhar a evolução, ensinar a mãe fazer, e deu certo, fechou a ferida (E04-SAD).

Já tivemos casos que o paciente precisou de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), ligamos para um CAPS que seja referência, vamos conversando, eles orientam como que faremos para encaminhar esse paciente ou eles fazem uma visita domiciliar (E07-SAD).

[...] o CAPS, ele vem na unidade, ele conversa sobre um paciente que é do território, estabelece meios de continuar o acompanhamento desse paciente no território. A escola procura para aquele aluno que tem alguma suspeita de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, autismo, quando nos disponibilizamos a ir à escola, a escola recebe bem (E10- Nasf-AB).

Os profissionais destacaram, ainda, a importância da discussão, entre as equipes, sobre os casos em acompanhamento, considerando-a estratégia que favorece o cuidado compartilhado.

[...] no Centro de Especialidades Médicas tem a parte dos curativos, conseguimos trocar ideia com a enfermeira de lá que é bem receptiva conosco, conseguem doar alguns produtos que precisamos utilizar ou ela orienta a gente em algumas coisas, porque eles são mais especialistas em certos curativos, então nessa parte conseguimos fazer o cuidado compartilhado, com jeitinho vamos tentando (E07-SAD).

A nossa equipe aqui é bem unida, trabalha bem, tem um bom relacionamento, mas verbal, chega passa o caso discute e solicita a visita. Alguns profissionais exigem o encaminhamento por escrito, mas com o Nasf-AB geralmente é mais verbal mesmo, as vezes fazemos na hora do cafezinho “Oh, vamos fazer aquela visita, tal paciente precisa do apoio de vocês” (E12-USF).

E em relação às condutas que podiam ser melhoradas dentro do serviço, as falas dos profissionais apontaram a necessidade de planejar a assistência e elaborar o Projeto Terapêutico Singular (PTS) para potencializar o cuidado compartilhado.

[...] ao admitir um paciente na atenção domiciliar seria importante realizar um planejamento da assistência, traçar os objetivos de todos os profissionais envolvidos no cuidado perante aquele indivíduo no serviço [...] chegar em um consenso do tempo de permanência e plano terapêutico [...] (E01-SAD).

Eu acho assim: que a minha equipe precisa melhorar tanto a criação dos PTS para não ficar apenas os pacientes graves, eu falo minha equipe eu também me incluo, porque sempre achamos que não dá tempo para fazer as coisas. Eu acho que precisamos criar mais PTS e estipular metas e responsabilidades de mais pacientes que eu sei que necessita e organizar nosso dia de visitas [...] (E09- Nasf-AB).

O cuidado compartilhado do paciente domiciliar é muito feito de boca [...] é mais completo quando criamos o PTS, pois criamos as metas, objetivos, até quando é para cumprir [...] as definições dos papéis é o que facilita o trabalho compartilhado entre nós e a unidade básica de saúde da família (E11- Nasf-AB).

Às vezes não realizadas, e consideradas desafios, dificuldades e fragilidades vivenciadas pelos profissionais, algumas ações foram destacadas como estratégias que poderiam fortalecer a AD e favorecer o cuidado compartilhado entre as equipes, sendo estas sugestões referidas como uma possibilidade de aumentar a resolutividade e organizar melhor o serviço.

As principais intervenções propostas relacionaram-se à necessidade de estabelecer rotinas e fluxos dos serviços, por exemplo o estabelecimento de dias para a oferta dos atendimentos e discussão de casos entre as equipes, instrumento norteador do cuidado domiciliar, e fortalecimento da comunicação para acompanhamento dos desfechos.

Poderia ter uma interação maior entre todo mundo [USF/ Nasf-AB e o SAD], um contato mais fácil [...] um consenso para uma equipe passar em um dia e a outra num dia depois, o paciente podia evoluir mais rápido (E04-SAD).

Eu acho que tinha que ter um instrumento para todo paciente domiciliar, do mais grave ao mais básico, às vezes é um paciente idoso só, que só está restrito ao domicílio, que ele tem uma limitação, caso uma artrose, não tem uma condição clínica grave [...] se conseguíssemos formalizar um instrumento que estratificasse os pacientes primeiro e conseguíssemos definir metas e as responsabilidades dos profissionais, tanto Nasf-AB, quanto estratégia da saúde da família seria o ideal (E09- Nasf-AB).

[...] sendo um paciente da nossa micro área, acho que eles [SAD] também tinha que passar uma devolutiva para unidade, tipo assim “fizemos o atendimento do paciente tal, na residência tal”, nem que fosse por e-mail para gerência e a gerência estar passando para enfermeira responsável, para sabermos o que eles estão fazendo, porque eu não sei [...] (E17-USF).

Diante dos achados pode-se compreender que o cuidado compartilhado realizado pelos profissionais se baseava em duas realidades distintas, mas complementares, e que os profissionais vivenciavam dificuldades na sua execução, entretanto, conseguiam estabelecer e planejar estratégias para lidar com tais desafios e promover melhor oferta desse cuidado.

DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa possibilitaram identificar alguns fatores que influenciam na realização do cuidado compartilhado entre as diferentes equipes que assistem pacientes e famílias no domicílio.

O desconhecimento sobre os serviços que compõem a rede de assistência e sobre as atividades que necessitam ser desenvolvidas de acordo com a responsabilidade de cada equipe constituem aspectos que influenciam negativamente a realização do cuidado integral, continuado e compartilhado, além de destoar dos atributos da APS77. Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002 [cited 2020 May 7]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_p1.pdf
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Por sua vez, a deficiência na qualificação dos profissionais também foi considerada um entrave que pode prejudicar a concretização dos atributos da APS e o cuidado compartilhado. Situação semelhante foi identificada em estudo realizado em Barretos-SP, o qual evidenciou que a falta de profissional com formação generalista na APS prejudica o cuidado99. Bousquat A, Giovanella L, Campos SEM, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Primary health care and the coordination of care in health regions: managers’ and users’ perspective. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(4):1141-54. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
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. A inexistência, na maioria das vezes, de exigências de qualificação específica para atuação na APS pode ser um fator que dificulta a operacionalização do cuidado compartilhado entre os diferentes pontos da RAS.

Em relação a essas dificuldades, os entrevistados citaram o fato de as equipes da APS não determinarem a coordenação do cuidado. Sob esse aspecto, estudo realizado em Barretos-SP identificou que a APS não se responsabilizava pelo cuidado regular, inclusive nos casos de usuários em condições crônicas. Também enfatizaram que as visitas domiciliares realizadas pelos agentes comunitários de saúde eram baseadas em rotinas burocráticas, com o objetivo apenas de identificar a presença de alguma intercorrência ou problemas específicos, sem considerar ações de prevenção de complicações e promoção da saúde, e que o profissional só passava para perguntar se estava tudo bem99. Bousquat A, Giovanella L, Campos SEM, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Primary health care and the coordination of care in health regions: managers’ and users’ perspective. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(4):1141-54. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
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No que concerne ao funcionamento do SAD, os profissionais consideram necessário que haja maior divulgação entre os profissionais atuantes nos diferentes pontos da RAS, em relação ao fluxo do atendimento e critérios de admissão dos pacientes, pois acreditam que isto poderá contribuir para a integralidade e a longitudinalidade do cuidado e para o acesso ao primeiro contato. Isso porque, o desconhecimento sobre as responsabilidades específicas dos diferentes pontos da RAS fragiliza a continuidade do cuidado em decorrência da não integração entre os serviços e os profissionais99. Bousquat A, Giovanella L, Campos SEM, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Primary health care and the coordination of care in health regions: managers’ and users’ perspective. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(4):1141-54. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
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. Vale destacar que, do mesmo modo que os integrantes de uma categoria profissional sozinhos não conseguem atender todas as necessidades de um paciente e sua família, um serviço isolado também não é capaz, o que justifica a importância do trabalho em rede1010. Sousa SM, Bernardino E, Crozeta K, Peres AM, Lacerda MR. Integrality of care: challenges for the nurse practice. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):504-10. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0380
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para a integralidade e a qualificação da assistência.

Além disso, a definição dos papéis dos integrantes de cada equipe é primordial para a efetivação das relações interpessoais e eficácia dos sistemas de saúde. Essas ações podem evitar a ocorrência de encaminhamentos desnecessários, fortalecer o cuidado compartilhado, favorecer o acesso e o acolhimento dos usuários no ponto adequado da RAS de acordo com sua real necessidade1111. Silveira RP, Siqueira DF, Mello AL, Cunha FA, Terra MG. Sharing care in psychosocial care: perception of workers and users. SMAD: Rev Eletrôn Saúde Mental Álcool Drog. 2019;15(2):69-76. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.000431
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A identificação da presença de alguns fatores, entre os quais recursos humanos e materiais insuficientes, baixa capacidade de atendimento das equipes e fragilidade na realização da contrarreferência, vem ao encontro dos resultados de estudo realizado no Sul do Brasil, com 15 enfermeiros da ESF, o qual apontou esses mesmos aspectos como prejudiciais para a execução do cuidado integral1212. Figueira AB, Barlem ELD, Amestoy SC, Silveira RS, Tomaschewski-Barlem JG, Ramos AM. Health advocacy by nurses in the Family Health Strategy: barriers and facilitators. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):57-64. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0119
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. Outro estudo similar, realizado em um município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, também apontou que a baixa cobertura da ESF relacionada à limitação de recursos e problemas organizativos colabora para fragilizar a assistência ofertada pela APS1313. Viegas APB, Carmo RF, Luz ZMP. Fatores que influenciam o acesso aos serviços de saúde na visão de profissionais e usuários de uma unidade básica de referência. Saúde Soc. 2015;24(1):100-12. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100008
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Cabe destacar que dificuldades funcionais e estruturais limitam o cuidado, sobretudo no que diz respeito à falta de organização e problemas relacionados à comunicação1010. Sousa SM, Bernardino E, Crozeta K, Peres AM, Lacerda MR. Integrality of care: challenges for the nurse practice. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):504-10. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0380
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. Esses fatores influenciam diretamente o manejo dos casos, em especial aqueles mais complexos, e prejudicam a oferta de uma atenção intersetorial e multiprofissional segura e com bons prognósticos1414. Schenker M, Costa DH. Avanços e desafios da atenção à saúde da população idosa com doenças crônicas na Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(4):1369-80. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018244.01222019
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Do mesmo modo, estudo realizado com gestores e coordenadores dos SAD, no estado de Minas Gerais, evidenciou que eles reconhecem a existência de dificuldades na comunicação com outros serviços que compõem a RAS, e que a fragilidade dessa integração compromete a continuidade da atenção à saúde e também a resolutividade e a qualidade dos mesmos1515. Silva AE, Sena RR, Braga PP, Paiva PA, Dias OV. Challenges in ways of thinking and doing home care management in Minas Gerais. Ciênc Cuid Saúde. 2017;16(1):e33190. doi: https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v16i1.33190
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. Atinente a isso, a realização de treinamentos com foco no estímulo e desenvolvimento da habilidade de comunicação, a utilização de simulações práticas e de padronização na apresentação de dados referentes aos pacientes, pelas diferentes equipes, podem ajudar o compartilhamento do cuidado.

No tocante a ausência de sistematização pelos profissionais em relação à falha na contrarreferência para o compartilhamento do cuidado, também foi encontrada em outro estudo, que observou a ocorrência de encaminhamentos informais, após a alta hospitalar, para outros serviços de reabilitação, além do fato de a família tornar-se a responsável pelas buscas aos serviços, sem contar com a orientação da APS99. Bousquat A, Giovanella L, Campos SEM, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Primary health care and the coordination of care in health regions: managers’ and users’ perspective. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(4):1141-54. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
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No que concerne à disponibilidade de recursos materiais, estudo realizado em Minas Gerais apontou que gestores enxergam que a disponibilidade de recursos materiais é suficiente para a operacionalização da AD, o que demonstra uma visão distorcida do real significado da mudança no processo de estruturar o cuidado compartilhado, resultando em assistencialismo material e descaso para com outras facetas de relevância no SAD, como o cuidado integral e continuado1515. Silva AE, Sena RR, Braga PP, Paiva PA, Dias OV. Challenges in ways of thinking and doing home care management in Minas Gerais. Ciênc Cuid Saúde. 2017;16(1):e33190. doi: https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v16i1.33190
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Outros aspectos a serem destacados no presente estudo é a falta de periodicidade estabelecida para a reunião geral entre as equipes da APS, visando à organização e ao planejamento de trabalho, a dificuldade de realizar a discussão conjunta dos casos em acompanhamento, os quais fragilizam a comunicação entre os diferentes pontos da RAS e se caracterizam como barreiras que impactam o cuidado integral e compartilhado1212. Figueira AB, Barlem ELD, Amestoy SC, Silveira RS, Tomaschewski-Barlem JG, Ramos AM. Health advocacy by nurses in the Family Health Strategy: barriers and facilitators. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):57-64. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0119
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. Nesse sentido, a oportunidade de discutir os casos, em especial os complexos, na perspectiva das diferentes equipes, pode favorecer a elaboração de um plano de cuidados mais efetivo e orientar a divisão de responsabilidades, de acordo com as especificidades dos diferentes pontos da RAS.

Desse modo, prioritariamente, destaca-se a necessidade de as equipes repensarem o planejamento do processo de trabalho para o cuidado compartilhado, a fim de incluírem momentos que propiciem encontros periódicos entre as equipes que realizam a AD para a discussão dos casos que são assistidos no domicílio.

O desafio do cuidado integral aos indivíduos que necessitam da AD também está presente no cenário internacional, como evidenciado em estudo realizado na Noruega, que apontou limitações do conhecimento em relação à necessidade de cuidados que os pacientes recebem em domicílio e a forma como esses indivíduos são atendidos, o que resulta em lacunas que dificultam a avaliação da qualidade e efetividade dos serviços prestados nesse ambiente1616. Næss G, Kirkevold M, Hammer W, Straand J, Wyller TB. Nursing care needs and services utilised by home-dwelling elderly with complex health problems: observational study. Health Serv Res. 2017;17:645. doi: https://doi.org/10.1186/s12913-017-2600-x
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Nesse sentido, a elaboração conjunta de um plano de cuidados individualizado/ pessoalizado pelos profissionais que atuam na AD, é de grande valia para a qualidade da assistência prestada. Isto porque, cada profissional lança um olhar diferenciado sobre as demandas e a complexidade dos problemas de saúde experienciados pelo indivíduo e sua família, contribuindo para a promoção da saúde, atendimento e prevenção de agravos1010. Sousa SM, Bernardino E, Crozeta K, Peres AM, Lacerda MR. Integrality of care: challenges for the nurse practice. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):504-10. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0380
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. Esse plano deve, inclusive, prever a instrumentalização das pessoas responsáveis pelos cuidados no domicílio, que engloba ensiná-los e auxiliá-los a desenvolver habilidades para o cuidado cotidiano nesse ambiente, de modo a garantir, de forma adequada, sua continuidade mesmo quando a equipe não estiver presente1717. Andrade AM, Silva KL, Seixas CT, Braga PP. Nursing practice in home care: an integrative literature review. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):210-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0214
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Essa atitude possibilita que o cuidado seja compartilhado também com os membros da família. A importância de elaborar um plano de cuidado também foi detectada em um estudo realizado em um município de médio porte da região Sul do Brasil, o qual apontou que a elaboração de planos de cuidado proporciona às equipes de saúde maior desempenho em suas práticas assistenciais e nos atendimentos individuais1818. Silva RLDT, Arruda GO, Barreto MS, Oliveira MLF, Matsuda LM, Marcon SS. Elaboration of care plan as a differential in care practice for hypertensive patients. Acta Paul Enferm. 2016;29(5):494-505. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201600070
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O fato de a comunicação relacionada à dispensação de insumos médico-hospitalares ao paciente em AD ter sido elencada como uma ação com potencial para favorecer a interação entre as equipes da APS e SAD é promissor. Destarte, a troca de informações, mesmo que relacionada à necessidade de insumos, possibilita que os profissionais identifiquem aquelas específicas de cada caso, e as incluam na construção do plano de cuidados compartilhados1212. Figueira AB, Barlem ELD, Amestoy SC, Silveira RS, Tomaschewski-Barlem JG, Ramos AM. Health advocacy by nurses in the Family Health Strategy: barriers and facilitators. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):57-64. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0119
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Ainda em relação ao planejamento das ações de cuidado, os participantes destacaram que o PTS, embora não utilizado em todos os casos em acompanhamento, constitui uma ferramenta fundamental para a realização de um cuidado integral e compartilhado. Pois, além de auxiliar a organização do cuidado, o PTS contribui para a gestão da assistência dos casos complexos e de difícil resolubilidade1919. Silva AI, Loccioni MFL, Orlandini RF, Rodrigues J, Peres GM, Maftum MA. Singular therapeutic project for professionals in the family health strategy. Cogitare Enferm. 2016;21(3):e45437. doi: https://doi.org/10.5380/ce.v21i3.45437
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, sendo elemento central e estruturante para a articulação da rede; instrumento norteador para a elaboração do plano e execução do cuidado compartilhado.

A construção do PTS pode estimular habilidades e a capacidade de diálogo, potencializando a comunicação entre os envolvidos na assistência, a fim de acolher as demandas e exercitar o indivíduo e/ou sua família para o protagonismo no cuidado. Além disso, com essa ferramenta é possível identificar as fragilidades da RAS, e elencar necessidades a serem trabalhadas por meio da educação permanente, visando instrumentalizar da melhor maneira possível as equipes para sua prática assistencial.

Nesse sentido, o cuidado compartilhado pode mudar a fragmentação da assistência, e contribuir para o fortalecimento do cuidado em rede. Para tanto, é importante que os profissionais assumam o cuidado com práticas integradas a todas as profissões de saúde, objetivando a integralidade1010. Sousa SM, Bernardino E, Crozeta K, Peres AM, Lacerda MR. Integrality of care: challenges for the nurse practice. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):504-10. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0380
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Por fim, os participantes também destacaram outras ações necessárias para a melhoria da qualidade da AD, as quais estão relacionadas à organização e sistematização do processo de trabalho, com ênfase na governabilidade dos profissionais envolvidos, embora esta seja limitada.

Para o funcionamento efetivo da AD e compartilhamento do cuidado, é fundamental a organização conjunta do processo de trabalho das equipes, com pactuações, elaboração de fluxos e protocolos entre os diferentes pontos da RAS do município1414. Schenker M, Costa DH. Avanços e desafios da atenção à saúde da população idosa com doenças crônicas na Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(4):1369-80. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018244.01222019
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. Contudo, a vivência clínica e sugestões dos diferentes profissionais envolvidos devem ser valorizadas, pois elas implicam a praticabilidade dos fluxos de funcionamento dessa modalidade de cuidado. Isto porque a inexperiência na AD e o desconhecimento sobre as características singulares desse serviço podem influenciar, dificultar e até mesmo impedir que um cuidado compartilhado entre as equipes ocorra.

Destarte, a atuação isolada e sem conhecer/considerar o que já está sendo realizado ou sem priorizar a assistência integral e continuada, as equipes podem acreditar que estão cumprindo adequadamente seu papel/função, mas, na realidade, alguns cuidados podem até estar sendo duplicados, enquanto outros, negligenciados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os profissionais percebem a AD como uma modalidade assistencial permeada por limitações e fragilidades em relação à efetivação do cuidado compartilhado entre as diferentes equipes e pontos da RAS envolvidos.

Diante disso, e da importância da atuação compartilhada para a desospitalização e estabelecimento de uma AD de qualidade, conclui-se que, embora sua organização seja um processo complexo que exige envolvimento e comprometimento por parte dos gestores, profissionais de saúde que atuam nos diferentes pontos da rede, usuários e familiares, ela é fundamental.

De acordo com os resultados obtidos, é possível inferir que, para a efetivação do cuidado compartilhado, é preciso elaborar o PTS, estabelecer papéis/atribuições específicas a todos os diferentes membros das equipes que realizam a AD de forma complementar. Para isso, é importante o uso de algumas estratégias apontadas, entre as quais: o estreitamento da comunicação entre as equipes da APS e SAD, no que tange ao fornecimento de insumos para o cuidado domiciliar; a discussão dos casos em acompanhamento; e, sempre que necessário, a realização de encaminhamentos para outros pontos da RAS.

Frente a esses resultados, torna-se premente e estratégica, a inclusão de questões sobre a AD e o cuidado compartilhado nos componentes curriculares, considerando-se, em especial, a crescente demanda de utilização dessa modalidade assistencial.

As possíveis limitações do estudo referem-se às características próprias do método qualitativo que não permite a generalização de seus resultados, os quais podem ser reproduzidos e divulgados, porém com cautela. Contudo, como a AD é uma modalidade de atenção à saúde relativamente nova, os resultados encontrados são pertinentes e podem subsidiar positivamente a organização desse serviço em outros contextos.

Por fim, sugere-se a realização de novos estudos, sobretudo de intervenção, a fim de possibilitar a construção de fluxos de trabalho e instrumentos que favoreçam o compartilhamento de ações de cuidado realizadas pelas equipes de saúde no âmbito domiciliar.

Agradecimentos:

À Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS/MEC - Brasil.

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Editado por

Editor associado:

Rosana Maffacciolli

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2020
  • Aceito
    19 Abr 2021
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