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Sobrecarga de mães com filhos diagnosticados com transtorno do espectro autista: estudo de método misto

RESUMO

Objetivo:

Analisar a sobrecarga materna relacionada aos cuidados com filhos diagnosticados com transtorno do espectro autista.

Método:

Estudo de método misto, sequencial explanatório, realizado na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais e em grupo de WhatsApp® Messenger, com 51 mães (fase quantitativa) e seis (fase qualitativa), entre janeiro e outubro de 2019. Para coleta de dados, utilizaram-se, na fase quantitativa, de formulário de caracterização sociodemográfica, econômica e do cuidado realizado com o filho; e do instrumento Zarit Burden Interview. Na fase qualitativa, empregou-se uma entrevista semiestruturada. Realizaram-se análise descritiva, bivariada e multivariada (dados quantitativos) e análise de conteúdo de Bardin (dados qualitativos).

Resultados:

64,7% das mães se sentiam sobrecarregadas, com sobrecarga leve a moderada (52,9%). Emergiram quatro categorias analíticas sobre elementos desencadeadores da sobrecarga materna.

Conclusões:

Urge identificação da sobrecarga materna relacionada aos cuidados de crianças com transtorno do espectro autista, durante a assistência na Atenção Primária à Saúde.

Palavras-chave:
Transtorno autístico; Relações mãe-filho; Cuidadores

ABSTRACT

Objective:

To analyze the maternal burden related to the care of children diagnosed with autism spectrum disorder.

Method:

Study with a mixed-method sequential explanatory design held at the Association of Friends and Families of Special Children and in a WhatsApp® Messenger group, with 51 (quantitative phase) and six (qualitative phase) mothers, between January and October 2019. For data collection, in the quantitative phase, a sociodemographic, economic and child care characterization form and a Zarit Burden Interview instrument were used. Semi-structured interview was used in the qualitative phase. Descriptive bivariate and multivariate analysis (quantitative) and Bardin analysis (qualitative) were performed.

Results:

A total of 64.7% mothers felt burdened, with mild to moderate burden (52.9%). Four analytical categories on elements that trigger maternal burden emerged.

Conclusions:

There is an urgent need to identify maternal burden related to the care of children with autism spectrum disorder, during assistance in Primary Health Care.

Keywords:
Autistic disorder; Mother-child relations; Caregivers

RESUMEN

Objetivo:

Analizar la carga materna relacionada a la atención de niños con trastorno del espectro autista.

Método:

Estudio de método mixto, secuencial explicativo, en la Asociación de Padres y Amigos de los Excepcionales y en grupo de WhatsApp® Messenger, con 51 (fase cuantitativa) y seis (fase cualitativa) madres, entre enero y octubre/2019. Para recolección de datos, se utilizó de formulario de caracterización sociodemográfica, económica y la atención brindada al niño; y del instrumento Zarit Burden Interview (fase cuantitativa); guion para entrevistas semiestructuradas (fase cualitativa). Se realizó análisis descriptivo bivariado y multivariado (cuantitativos) y análisis de contenido (cualitativos).

Resultados:

Total de 64,7% de las madres se sintieron abrumadas, con sobrecarga leve a moderada (52,9%). Surgieron cuatro categorías analíticas sobre elementos que desencadenan la sobrecarga materna.

Conclusiones:

Es importante identificar la carga materna relacionada a la atención de niños con trastorno del espectro autista, en la Atención Primaria de Salud.

Palabras clave:
Trastorno autístico; Relaciones madre-hijo; Cuidadores

INTRODUÇÃO

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um grupo heterogêneo de fenótipos de neurodesenvolvimento1Grove J, Ripke S, Als TD, Mattheisen M, Walters RK, Won H, et al. Identification of common genetic risk variants for autism spectrum disorder. Nat Genet. 2019;51(3):431-44. doi: https://doi.org/10.1038/s41588-019-0344-8
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, com diagnóstico, em grande parte, clinicamente subjetivo, embora a disponibilidade de diferentes escalas contribuiu para refinar o processo de avaliação e auxiliar no esclarecimento diagnóstico2Sharma SR, Gonda X, Tarazi FI. Autism spectrum disorder: classification, diagnosis and therapy. Pharmacol Ther. 2018;190:91-104. doi: https://doi.org/10.1016/j.pharmthera.2018.05.007
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. Os déficits essenciais são identificados em dois domínios: comunicação / interação social e padrões de comportamento repetitivos e restritivos3Hyman SL, Levy SE, Myers SM; Council on children with disabilities, section on developmental and behavioral pediatrics. Identification, evaluation, and management of children with autism spectrum disorder. Pediatrics. 2020;145(1):e20193447. doi: https://doi.org/10.1542/peds.2019-3447
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.

Do ponto de vista epidemiológico, segundo dados da Organização Mundial de Saúde OMS), em todo o mundo, uma em cada 160 crianças tem TEA. A prevalência de TEA em muitos países de baixa e média renda é até agora desconhecida4Organização Pan-Americana da Saúde. Organização Mundial da Saúde. Transtorno do espectro autista [Internet]. Brasília: OPAS; 2017 [cited 2020 Jun 1]. Available from: https://www.paho.org/pt/topicos/transtorno-do-espectro-autista
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. No que diz respeito ao sexo, a primeira estimativa calculada sistematicamente da proporção relativa de meninos e meninas com TEA, por meio de uma metanálise de estudos de prevalência realizados desde a introdução do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, em 1994 (DSM-IV), e da Classificação Internacional de Doenças, Décima Revisão, estabeleceu proporção de homens para mulheres de 3:15Loomes R, Hull L, Mandy WPL. What is the male-to-female ratio in autism spectrum disorder? a systematic review and meta-analysis. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2017;56(6):466-74. doi: https://doi.org/10.1016/j.jaac.2017.03.013
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.

As complicações do comportamento associadas ao diagnóstico de TEA originam a necessidade de apoio nos âmbitos comportamental, educacional, familiar, saúde, lazer e outros3Hyman SL, Levy SE, Myers SM; Council on children with disabilities, section on developmental and behavioral pediatrics. Identification, evaluation, and management of children with autism spectrum disorder. Pediatrics. 2020;145(1):e20193447. doi: https://doi.org/10.1542/peds.2019-3447
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. Embora interfiram na vivência de toda a família, geralmente, é a mãe da criança com TEA que busca assistência, dedica-se aos cuidados com o filho e faz adaptações no cotidiano. Com isso, ocorre comprometimento da vida social, afetiva, profissional e intensifica-se a possibilidade de desgaste físico e emocional dessa mulher6Pinto AS, Constantinidis TC. Revisão integrativa sobre a vivência de mães de crianças com transtorno de espectro autista. Rev Psicol Saúde. 2020;12(2):89-103. doi: http://doi.org/10.20435/pssa.v0i0.799
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. Assim, é possível afirmar que a condição de ser mãe de uma criança diagnostica com TEA desencadeia demandas físicas e mentais que merecem atenção dos profissionais de saúde7Aguiar MCM, Pondé MP. Parenting a child with autism. J Bras Psiquiatr. 2019;68(1):42-7. doi: http://doi.org/10.1590/0047-2085000000223
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.

Frente às considerações apresentadas que justificam a realização de estudos para análise do vivido de mães cujos filhos apresentam diagnóstico de TEA, em especial, acerca dos fatores que desempenham papel na carga de cuidados8Akram B, Batool M, Bibi A. Burden of care and suicidal ideation among mothers of children with autism spectrum disorder: perceived social support as a moderator. J Pak Med Assoc. 2019 [cited 2020 Jun 1];69(4):504-8. Available from: https://jpma.org.pk/PdfDownload/9112
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, e por reconhecer que a literatura existente sobre enfrentamento de mães de crianças com autismo é limitada e imprecisa9Bozkurt G, Uysal G, Düzkaya DS. Examination of care burden and stress coping styles of parents of children with autism spectrum disorder. J Pediatr Nurs. 2019;47:142-7. doi: http://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.05.005
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, estabeleceram-se as seguintes questões norteadoras da pesquisa: existe sobrecarga entre mães de crianças com diagnóstico de TEA? Quais aspectos da vivência materna contribuem para sobrecarga? Diante do exposto, objetivou-se analisar a sobrecarga materna relacionada aos cuidados com filhos diagnosticados com transtorno do espectro autista.

MÉTODO

Estudo delineado pelo método misto de pesquisa, com design Sequencial Explanatório (QUAN-qual) que consiste em duas fases distintas: etapa quantitativa, seguida por etapa qualitativa. Os resultados qualitativos foram mobilizados para aprofundar a análise dos resultados quantitativos10Creswell JW. Qualitative inquiry e research design: choosing among five approaches. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2013.. Para etapa quantitativa, utilizou-se de delineamento transversal, descritivo e analítico. A etapa qualitativa foi do tipo descritivo, ocorreu após a realização da análise quantitativa, e incluiu apenas participantes que apresentaram algum nível de sobrecarga na primeira etapa.

Os locais da pesquisa foram a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de um município do interior do estado do Piauí, Brasil; e um ambiente virtual (grupo de WhatsApp® Messenger) intitulado Amigos e Pais de Autistas (APA). Esse ambiente configura-se como um grupo de apoio, idealizado em 2017, quando surgiu a necessidade de pais, familiares e profissionais que cuidam de crianças com diagnóstico de TEA de discutir e trocar experiências sobre suas vivências, desde o processo de diagnóstico até o acompanhamento das crianças. Atualmente, o grupo envolve 124 participantes, tendo como membros, além de pais e mães, enfermeiros, psicólogos, psicopedagogos, professores e lideranças da área. Após convite individual realizado via WhatsApp® Messenger, a escolha do local para realização da coleta de dados ficou a critério de cada participante.

A coleta de dados ocorreu entre janeiro e setembro de 2019. Estabeleceu-se população de 80 mães de crianças com diagnóstico de TEA: 30 identificadas na APAE e 50 no APA. Para composição da amostra, delinearam-se os critérios de inclusão: mães com idades igual ou superior a 18 anos, com filho na faixa etária inferior a 12 anos (conforme a definição de infância do Estatuto da Criança e do Adolescente); e diagnóstico conclusivo de TEA, emitido por médico especialista em neurologia pediátrica. Excluíram-se as participantes cujo filho apresentava outro diagnóstico associado ao TEA que pudesse potencializar a sobrecarga materna. A amostra foi censitária, ou seja, incluíram-se as mães que aceitaram participar do estudo e se enquadravam nos critérios acima descritos. Desta forma, participaram da etapa quantitativa do estudo 51 mães de crianças com diagnóstico de TEA; para etapa qualitativa, seis mães contribuíram.

Na primeira etapa, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com 51 mães, utilizando-se de formulário que abrangeu questões: socioeconômicas, demográficas e relativas à caracterização do cuidado realizado com o filho. Esse instrumento foi submetido a um pré-teste, aplicado e utilizado em amostra idêntica ao previsto para execução da pesquisa.

No mesmo encontro, a pesquisadora aplicou a versão brasileira, validada do Inventário de Sobrecarga do Cuidador (Zarit Burden Interview - ZBI). Desenvolvido por Zarit e colaboradores em 1985, o instrumento objetiva mensurar aspectos do cuidador: qualidade de saúde, bem-estar psicológico, estabilidade emocional e financeira, vida social e individual, para avaliar a sobrecarga ao cuidar de indivíduos com incapacidades mental e física11Zarit S, Orr NK, Zarit JM. The hidden victims of Alzheimer's disease: Families under stress. New York: NYU press; 1985.. A versão brasileira inclui 22 perguntas, graduadas de zero a quatro, de acordo com a presença e a intensidade das respostas para cada item. A sobrecarga do cuidador é obtida pela soma dos escores do total de questões12Scazufca M. Brazilian version of the Burden Interview scale for the assessment of burden of care in carers of people with mental illnesses. Rev Bras Psiquiatr. 2002;24(1):12-7. doi: http://doi.org/10.1590/S1516-44462002000100006
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.

As entrevistas foram audiogravadas, realizadas de forma individual, em local reservado, em data e horário previamente acordados, com duração de cerca de 20 a 40 minutos. Esta etapa foi desenvolvida em uma sala na APAE, enquanto as mães aguardavam as sessões de terapia dos filhos, ou no domicílio da participante. Enfatizou-se para a participante que ela poderia optar por outro local, data e horário.

Na segunda etapa da pesquisa, buscou-se incluir as participantes que apresentaram algum nível de sobrecarga, mensurada na etapa anterior. Ao todo, 39 nomes foram listados, com a inclusão de seis participantes. Enfatiza-se que, nessa etapa, não foi utilizado critério amostral, uma vez que ao desenvolver a etapa de campo concomitante à análise dos dados, foi possível concluir a produção de dados quando os significados expressos nos relatos maternos mostraram o encontro com o fenômeno investigado.

Realizaram-se entrevistas semiestruturadas a partir da seguinte questão norteadora: como é seu dia a dia no cuidado com seu filho(a) com TEA? A partir dessa indagação, outras questões empáticas foram levantadas, com base em falas que necessitaram de melhor elucidação, sempre atentando-se para não induzir o discurso da participante.

A análise dos dados na pesquisa de método misto ocorre tanto na abordagem quantitativa (análise descritiva, bivariada e multivariada) quanto na qualitativa (descrição e análise temática de texto). Para análise dos dados, utilizou-se o software Statistical Package for Social Sciences for Windows (SPSS) (2009), versão 19.0, para geração dos resultados. Realizaram-se estatística descritiva, médias e desvio padrão das variáveis. As médias das variáveis categóricas foram analisadas estatisticamente pelo teste t de Student, e ANOVA a um fator foi utilizada para comparação de mais de dois grupos. As variáveis que apresentaram valor de p<0,20 na análise bivariada foram inseridas no modelo multivariado, com aplicação de Regressão Linear. Para todas as análises estatísticas, considerou-se o nível de confiança de 95% (p<0,05).

A análise dos dados qualitativos aconteceu em três etapas: pré-análise, mediante a leitura flutuante do material; exploração do material, a fim de definir as categorias; e condensação das informações para interpretação reflexiva e crítica. A pré-análise, fase de organização propriamente dita, ocorreu em cinco fases: leitura flutuante; organização do material, de forma a responder aos critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência; formulação de hipóteses e objetivos ou de pressupostos iniciais flexíveis que permitiram o surgimento de hipóteses a partir de procedimentos exploratórios; referenciação dos índices e elaboração dos indicadores que foram adotados na análise; e preparação do material13Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. .

A fase de exploração do material, também chamada de análise propriamente dita, envolveu a aplicação sistemática das decisões tomadas. Consistiu em operações de codificação, decomposição ou enumeração, em função de regras previamente formuladas. Por fim, desenvolveu-se a categorização dos dados por meio do tratamento dos resultados obtidos e interpretações, quando ocorreu a transformação dos resultados brutos em significativos e válidos13Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. .

O estudo atendeu à Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/12 e 510/2016, cadastrado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, e obteve aprovação conforme parecer número 3.055.460. Ainda relativo aos aspectos éticos, ressalta-se que, na etapa qualitativa, para preservar o anonimato das participantes, estas foram identificadas com código composto pela letra M, seguida do número arábico correspondente à ordem de realização das entrevistas na etapa inicial (M1, M2, M3... M51). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Etapa quantitativa

A análise do nível de sobrecarga materna relacionada aos cuidados do filho com diagnóstico de TEA, por meio da aplicação da Escala Zarit, identificou que das 51 mães participantes, 39 (76,5%) apresentaram algum nível de sobrecarga, com prevalência de sobrecarga leve a moderada (52,9%) (Tabela 1).

Tabela 1 -
Classificação dos níveis de sobrecarga de mães com filho diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista, de acordo com a Escala Zarit. Piauí, PI, Brasil, 2021

As participantes da pesquisa eram mulheres adultas, com idade média de 36 anos ± 7 anos, mais prevalente na faixa etária de 36 a 56 anos (56,9%), que se consideravam pardas (58,8%), procedentes do município do estudo (68,6%), católicas (62,2%), casadas (68,8%), com escolaridade até o ensino superior (52,9%) e referiram ter apenas um filho (51,0%). A maioria trabalhava em casa (52,9%), destacando-se o fato de apresentar média de sobrecarga superior àquelas que referiram vínculo empregatício (média = 33,2 pontos). A maior parte das mães era de famílias com poder aquisitivo de um salário mínimo (54,9%) (Tabela 2).

Ao analisar a sobrecarga da amostra das mães em relação às características socioeconômicas e demográficas, conforme Tabela 2, verificou-se que a sobrecarga estava associada ao número de filhos (p-valor = 0,044), havendo maior sobrecarga entre mães com apenas um filho (média = 35,9 pontos) em relação a dois filhos (média = 26,0 pontos) e três ou mais filhos (média = 26,1 pontos).

Tabela 2 -
Distribuição das características socioeconômicas e demográficas das mães, segundo as médias de sobrecarga. Piauí, PI, Brasil, 2021

No que diz respeito à caracterização dos filhos com TEA e ao cuidado materno prestado, evidenciou-se que as crianças tinham idades entre dois e 11 anos, sendo que a maioria se encontrava na faixa etária entre seis e 11 anos (54,9%), com prevalência do sexo masculino (86,3%). Quanto à idade em que receberam o diagnóstico, houve prevalência da faixa etária entre um e três anos (72,5%), sendo que a maior parte das crianças apresentou nível de suporte 1 (66,7%). Dentre os principais sintomas, constatou-se a dificuldade na fala / comunicação em 62,7% das crianças (Tabela 3).

De acordo com a Tabela 3, 94,1% recebiam acompanhamento do profissional psicólogo, 82,4% do fonoaudiólogo e 54,9% do psicopedagogo, com frequência de, pelo menos, uma a duas vezes por semana (80,4%). Ainda relativo à assistência de saúde, 51,0% das crianças tinham acesso a planos de saúde. Em geral, as mães afirmaram dedicação prioritária em relação aos filhos diagnosticados com TEA, com prevalência de oito ou mais horas diárias (68,6%). Das participantes, 70,6% cuidavam sozinhas das crianças. Quanto às atividades de lazer, 92,2% das mães afirmaram que as crianças realizavam atividades extradomiciliares.

Ao analisar a sobrecarga da amostra das mães em relação às características da criança e do cuidado prestado, ainda conforme a Tabela 3, verificou-se que a sobrecarga estava associada à idade da criança ao receber o diagnóstico (p-valor = 0,023), havendo maior sobrecarga entre mães cujo filho foi diagnosticado com TEA precocemente, entre um e três anos (média = 33,8 pontos), em relação à faixa etária entre quatro e 10 anos (média = 23,7 pontos).

Também de acordo com a Tabela 3, houve associação da sobrecarga das participantes em relação aos sintomas apresentados pela criança (p-valor = 0,014), com maior sobrecarga entre mães de crianças que apresentavam todos os sintomas da tríade sintomatológica do TEA (interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e estereotipados) (média = 36,4 pontos). Por fim, houve associação significativa entre sobrecarga e autopercepção materna de sentir-se sobrecarregada (p-valor 0,000), com maior média entre as mães que referiram positivamente (média = 36,1 pontos).

Tabela 3 -
Distribuição das características da criança e do cuidado prestado, segundo as médias de sobrecarga. Piauí, PI, Brasil, 2021

Na Tabela 4, apresentam-se os resultados da Análise de Regressão Linear Multivariada para avaliar fatores independentemente associados à sobrecarga materna. As variáveis que permaneceram relacionadas à sobrecarga foram: procedência (p=0,028), número de filhos (p=0,013), idade ao receber o diagnóstico (p=0,046), nível de autismo com base no suporte demandado (p=0,031), a criança apresenta todos os sintomas da tríade TEA (p=0,007) e a mãe sente-se sobrecarregada (p=0,000).

Mães que residiam em municípios circunvizinhos apresentaram, em média, escores 5,6 pontos maiores do que os das residentes no local do estudo. Também, mães com dois ou mais filhos tinham redução média de 4,32 pontos no escore de sobrecarga total, comparando-se a mães com filhos únicos. Além disso, participantes cujos filhos foram diagnosticados mais tardiamente, na faixa etária entre quatro e 10 anos, apresentaram redução média de 0,77 pontos no escore de sobrecarga em relação àquelas em que a criança recebeu o diagnóstico de TEA antes dos três anos de idade. Identificou-se, também, aumento médio de 4,16 pontos no escore de sobrecarga entre as mães de crianças com nível de suporte 3 (infere em suporte extremo em todos os momentos), em comparação com nível 2 e nível 1; e incremento médio de 4,57 pontos entre as participantes cujos filhos apresentavam todos os sintomas da tríade TEA, em contraponto àqueles com dois ou apenas um dos sintomas. Por fim, as mães com autopercepção de sobrecarga tiveram, em média, um escore 11,45 pontos mais elevado na escala do que as que não tinham.

O modelo apresentado na Tabela 4 explica 35,4% da variabilidade do escore total de sobrecarga materna. As variáveis com maior explicação sobre essa variabilidade foram, respectivamente, a mãe se sentir sobrecarregada, a procedência, o nível de autismo com base no suporte demandado e a criança apresentar todos os sintomas da tríade TEA.

Tabela 4 -
Análise de Regressão Linear Multivariada para avaliar fatores independentemente relacionados à sobrecarga das mães. Piauí, PI, Brasil, 2021

Etapa qualitativa

Após a realização da etapa quantitativa, investigaram-se, entre as participantes que apresentaram os maiores níveis de sobrecarga, as nuances relativas a essa condição, o que resultou nas categorias analíticas: Sobrecarga relacionada ao cuidar solitário; Sobrecarga relacionada ao papel paterno; Sobrecarga relacionada ao suporte financeiro; e Sobrecarga relacionada ao comportamento do filho.

Na categoria Sobrecarga relacionada ao cuidar solitário, as participantes relataram as vivências diárias no cuidado com o filho diagnosticado com TEA e enfatizaram que as atividades eram realizadas, em maioria, de modo solitário. Esses relatos sustentaram a evidência quantitativa que determinou alto percentual de mães que afirmaram realizar sozinhas os cuidados com os filhos.

Expuseram rotinas difíceis, geradoras de cansaço e, algumas vezes, exaustão. Os dias considerados mais exaustivos causavam sofrimento significativo, representado nas falas pelo choro, pelo estresse, pelas alterações mentais e no sono, o que culminava, inclusive, no uso de medicamentos. Evidenciou-se, ainda nos relatos, que as mães assumiam totalmente o papel de cuidador principal do filho.

Acordo todo dia e faço praticamente a mesma coisa com ele, mas não é fácil (risos) [...]. Tem dias que não, mas tem dias que eu estou super cansada. Tem dias que eu choro[...], uma criança com autismo exige muito [...] E, aí, a sobrecarga é bastante pesada, choro hoje, daqui a pouco eu estou boa, amanhã eu estou ruim [...] (M 08).

Eu acho sobrecarregado porque é só eu para lidar com ele, às vezes, tem meu filho mais velho, mas assim, eu não tenho o apoio de uma mãe, de uma irmã [...] é minha responsabilidade (M14).

[...] sou eu para casa inteira, aí, o estresse me mata mesmo, tem dia que falto endoidar se eu não tomar esse antidepressivo, [...]eu sinto uma carga muito pesada, muito mesmo e comecei a ir para o psiquiatra, psicólogo, depois do diagnóstico dele [...] (M 31).

Na categoria Sobrecarga relacionada ao papel paterno, as participantes destacaram a importância da presença do pai no cuidado com o filho diagnosticado com TEA. Algumas mães relataram a não aceitação do diagnóstico pelos pais o que, em determinadas situações, culminou com o abandono parental e o estresse emocional, em virtude de o pai não se fazer presente no cotidiano dos filhos ou não colaborar com os cuidados, contribuindo para desencadear sobrecarga materna.

[...] eu me separei do pai dela, ela ainda com um mês de vida. [...] é uma relação muito complicada, onde a participação dele é zero na vida dela, a gente fechou o diagnóstico e tentou conversar com ele e a família dele, mas ele mais uma vez se ausentou, não aceita (M7).

Eu optei por separar do pai dele na situação que a gente estava, de quando eu descobri o autismo dele, como pai, ele não aceitou e até hoje ele não aceita [...] o pai dele nunca se interessou, porque também ele mora muito longe e acha que é um período, e que vai passar (M8).

Na categoria Sobrecarga relacionada ao suporte financeiro, identificou-se que o aspecto econômico representa um dos problemas mais expressivos em relação ao cuidado da criança com TEA, principalmente, pela necessidade de assistência médica especializada. Deste modo, o benefício advindo do governo, o qual constitui direito estabelecido em lei, torna-se significativo. Apesar disso, foi relatado que o auxílio não é suficiente para condições satisfatórias de locomoção, sobretudo, quando a assistência ocorre em outros municípios, configurando, assim, jornada estressante para mãe e criança. Em função disso, percebeu-se que algumas mães realizavam trabalhos informais para complementar a renda familiar, o que culminava em aumento da sobrecarga, visto que essas mulheres passaram a assumir jornada tripla de trabalho.

É ruim, porque toda consulta tem que ser particular, tem que ser paga (M5).

Não é o número exato que ele deveria receber, mas eu não fico sem, porque eu economizo e, faço bico, então, o que eu puder fazer em casa, eu faço. Não dá para fazer terapia [...] não tenho condições de pagar, porque eu pago o transporte para vir duas vezes na semana (M8).

Precisa bastante, porque ele gasta muito eu não trabalho [...] muitas vezes, eu falto por conta de dinheiro, porque ainda tem o carro de Nazaré para cá, da prefeitura, mas do interior para Nazaré eu tenho que pagar porque tem que vir de moto, é muito difícil. É muita poeira, sol quente, muito estressante (M18).

Na categoria Sobrecarga relacionada ao comportamento do filho, percebeu-se, nos relatos maternos, que as mudanças no comportamento da criança diagnosticada com TEA afetavam a dinâmica e convivência familiar. Desvelou-se, ainda nessa categoria, que as mães tinham dificuldade em levar os filhos para ambientes fora da conjuntura domiciliar, geralmente, pela inadequação relacionada ao comportamento esperado, normotípico, visto que a criança poderia demonstrar agitação e irritabilidade. Ao mesmo tempo em que relataram que essa rotina de lazer é necessária para evolução do filho, afirmaram não conseguir, pois contribui para o aumento da sobrecarga. Destacaram, ainda, a presença do incômodo ao perceberem posturas de não aceitação, julgamento ou penalização.

O autismo dele é de grau moderado com hiperatividade, então complica mais ainda [...]. Às vezes, eu não tenho paciência, às vezes, eu extrapolo [...] tem gente que fala assim: ‘mulher, mas como que tu sais? Eu não preciso de ninguém para ter pena de mim, porque tem pessoas que falam assim: ‘ah, meu Deus, e como é que vai ser tua vida?’ (M8).

Minha vida social, depois que eu descobri que ele tinha autismo, mudou muito. Diminuiu os passeios, porque chega nos lugares ele dá crise e as pessoas não entendem e olham para a gente de cara feia, é horrível. Eu quero, às vezes, ir com ele para os lugares, mas não me sinto bem [...] não aguento aqueles olhares que as pessoas fazem para a gente. (M14).

[...] às vezes, eu até planejo de sair, porque eu sei que é muito importante para o desenvolvimento dele, aí, quando chega na hora, eu não vou porque quando chega no lugar, não tem sossego, eu me estresso (M18).

DISCUSSÃO

Os resultados de prevalência de sobrecarga materna relacionada ao cuidado de crianças com TEA reforçaram achados de outras pesquisas9Bozkurt G, Uysal G, Düzkaya DS. Examination of care burden and stress coping styles of parents of children with autism spectrum disorder. J Pediatr Nurs. 2019;47:142-7. doi: http://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.05.005
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,14Wang Y, Xiao L, Chen RS, Chen C, Xun GL, Lu XZ, et al. Social impairment of children with autism spectrum disorder affects parental quality of life in different ways. Psychiatry Res. 2018;266:168-74. doi: https://doi.org/10.1016/j.psychres.2018.05.057
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. A identificação da sobrecarga materna, na graduação de leve a grave (76,6%), aproximou-se da autopercepção materna de sobrecarga (64,7%), com associação significativa entre essas duas variáveis. Os dados qualitativos emergentes dos relatos maternos também contribuíram para confirmar os resultados quantitativos, visto que as mães retomaram repetidas vezes, ao longo da entrevista, a sensação de sobrecarga relacionada ao cuidado prestado ao filho. Nesse âmbito, houve convergência com estudo realizado em Salvador (Bahia), cujo objetivo foi analisar os aspectos subjetivos associados à percepção dos pais sobre as mudanças ocorridas em suas vidas após o nascimento de seu filho com TEA, no qual as participantes relataram sobrecarga emocional e física decorrente dos cuidados com o filho autista 7Aguiar MCM, Pondé MP. Parenting a child with autism. J Bras Psiquiatr. 2019;68(1):42-7. doi: http://doi.org/10.1590/0047-2085000000223
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.

As percepções coerentes de sobrecarga materna decorrem do fato das mães de crianças com TEA precisarem gerenciar diversos papéis, a fim de enfrentar os desafios que a deficiência impõe8Akram B, Batool M, Bibi A. Burden of care and suicidal ideation among mothers of children with autism spectrum disorder: perceived social support as a moderator. J Pak Med Assoc. 2019 [cited 2020 Jun 1];69(4):504-8. Available from: https://jpma.org.pk/PdfDownload/9112
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. A maioria exerce sozinha o cuidado aos filhos e, neste sentido, desvelam-se implicações e privações na vida pessoal, como baixo bem-estar emocional, com sensação de estar sobrecarregada; desespero com a natureza incurável do transtorno, e frustração com a experiência parental que não está de acordo com o esperado15Gobrial E. The lived experiences of mothers of children with the autism spectrum disorders in Egypt. Soc Sci. 2018;7(8):133. doi: https://doi.org/10.3390/socsci7080133
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. Com isso, ocorrem diversos problemas no âmbito da saúde, podendo desencadear alterações graves, como depressão e outros problemas psicossociais8Akram B, Batool M, Bibi A. Burden of care and suicidal ideation among mothers of children with autism spectrum disorder: perceived social support as a moderator. J Pak Med Assoc. 2019 [cited 2020 Jun 1];69(4):504-8. Available from: https://jpma.org.pk/PdfDownload/9112
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A análise quantitativa apontou, ainda, que, apesar da presença física, os pais não são participativos no cuidado com os filhos diagnosticados com TEA, o que contribui para sobrecarga materna, devido ao ato solitário de cuidar. Apesar da análise da variável estado civil ter indicado predominância de participantes casadas, foi relatado que muitos pais não aceitam o diagnóstico dos filhos, trazendo tensões familiares que repercutem na vida conjugal. Nesse contexto, os resultados qualitativos confirmaram os resultados quantitativos, visto que os depoimentos das participantes traduziram o sentimento de abandono e solidão, pela restrita participação paterna na divisão de tarefas.

Com base nessas informações, sugere-se que intensificar o papel do pai em cuidar da criança com TEA teria efeito positivo na diminuição da sobrecarga materna e melhoria da qualidade de vida da mãe16Özgür BG, Aksu H, Eser E. Factors affecting quality of life of caregivers of children diagnosed with autism spectrum disorder. Indian J Psychiatry. 2018;60(3):278-85. doi: https://doi.org/10.4103/psychiatry.IndianJPsychiatry_300_17
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Observou-se que ter um filho com TEA desencadeia sobrecarga significativa para as mães, relacionada aos cuidados infantis. Este fenômeno está relacionado à cultura tradicional, em que elas exercem o papel de principal cuidador dos filhos ao invés de dividi-lo com os pais. Por um lado, devido às demandas sociais, as mulheres têm assumido a função de ficar em casa para cuidar das crianças, principalmente, quando possuem alguma deficiência. Por outro lado, em geral, ocorre a identificação das mulheres com esses papéis, o que também as torna mais dispostas a renunciar interesses pessoais em função da família. Assim, a carga de cuidar dos filhos, frequentemente, recai sobre a mãe, mas não sobre o pai14Wang Y, Xiao L, Chen RS, Chen C, Xun GL, Lu XZ, et al. Social impairment of children with autism spectrum disorder affects parental quality of life in different ways. Psychiatry Res. 2018;266:168-74. doi: https://doi.org/10.1016/j.psychres.2018.05.057
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Na variável quantitativa acerca da realização de terapias, evidenciou-se que as mães compreendiam a assistência à saúde como importante para o desenvolvimento dos filhos. Ao mesmo tempo, a análise qualitativa revelou que as atividades envolvendo a realização dessas terapias, em especial quando necessitava de deslocamento para municípios vizinhos, traziam implicações para sobrecarga materna, gerando intenso cansaço físico e mental. Nesse ínterim, verificaram-se maiores níveis de sobrecarga associados ao fato da participante ser procedente de municípios circunvizinhos ao local onde o estudo foi realizado e se encontram os centros terapêuticos.

Infere-se que a disponibilidade e facilidade para acessar as instalações de acompanhamento de TEA, conforme também observado em estudo que objetivou determinar a sobrecarga de cuidado percebida pelos cuidadores principais de crianças ou adolescentes autistas que visitam unidades de saúde na cidade de Lucknow, Uttar Pradesh, na Índia, devem ser a razão mais provável para menor percepção de sobrecarga identificada pelas mães provenientes da mesma cidade onde o estudo foi realizado17Jain A, Ahmed N, Mahour P, Agarwal V, Chandra K, Shrivatav NK. Burden of care perceived by the principal caregivers of autistic children and adolescents visiting health facilities in Lucknow City. Indian J Public Health. 2019;63(4):282-7. doi: https://doi.org/10.4103/ijph.IJPH_366_18
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Os resultados quantitativos apontaram que a maioria das participantes estava inserida em famílias de baixa renda, em que, pelo contexto de dedicação aos filhos, não poderiam trabalhar fora do domicílio. A análise qualitativa permitiu a compreensão mais abrangente dessa conjuntura, demonstrando, por meio dos relatos das mães, sentimentos de preocupação e frustração, em decorrência da renda insuficiente, que gera dificuldades, inclusive no que concerne ao acompanhamento dos filhos. Interessante notar, ainda, que as mães que não tinham vínculo empregatício apresentaram média de sobrecarga maior do que as mães que trabalhavam fora do domicílio e que, consequentemente, apresentavam renda inferior. Esse fato é importante, visto que a renda, deficiente ou limitada, associa-se a maiores níveis de sobrecarga materna, sendo uma possível explicação para esse achado o fato de que a maioria dessas mães pode não estar conseguindo fornecer nenhum tipo de assistência para os filhos autistas17Jain A, Ahmed N, Mahour P, Agarwal V, Chandra K, Shrivatav NK. Burden of care perceived by the principal caregivers of autistic children and adolescents visiting health facilities in Lucknow City. Indian J Public Health. 2019;63(4):282-7. doi: https://doi.org/10.4103/ijph.IJPH_366_18
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No que diz respeito à variável comportamento dos filhos, apesar de 92,2% das participantes terem afirmado realizar atividades de lazer com as crianças, os relatos revelaram que grande parte se exclui de lugares onde a movimentação social está presente. Percebeu-se que, em muitas situações, o comportamento da criança gera desconforto e constrangimento nas mães, porque é julgado por pessoas desconhecidas. Com isso, apesar de considerarem o lazer fundamental para abreviação dos sintomas de sobrecarga, as mães afirmaram não o usufruir livremente. Apresentou-se, portanto, dado qualitativo contraditório ao evidenciado na análise quantitativa.

Nesse aspecto, estudo que objetivou compreender as experiências de mães de crianças com TEA no Egito, confirma que a ampla gama de sintomas que distinguem a criança com TEA e a acompanha ao longo da vida, afeta as mães, as quais se sentem socialmente isoladas e constrangidas com o comportamento do filho em público e, por esse motivo, preferem manter a criança em casa, com consequente impacto negativo na vida social da criança e da família15Gobrial E. The lived experiences of mothers of children with the autism spectrum disorders in Egypt. Soc Sci. 2018;7(8):133. doi: https://doi.org/10.3390/socsci7080133
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. No entanto, é importante refletir que tal conjuntura decorre do fato da sociedade, de um modo geral, ter dificuldades de incluir pessoas neurodivergentes em seus diversos ambientes.

O estudo em tela apresentou também associação da sobrecarga da mãe em relação ao número de filhos, com maior prevalência entre mães com apenas um filho. Esse dado convergiu com estudo transversal que objetivou examinar a sobrecarga do cuidador e os estilos de enfrentamento do estresse de 131 pais de crianças com TEA matriculadas em centro de prática de ensino privado em Istambul, o qual identificou sobrecarga do cuidador significativamente maior para pais de um filho em comparação com pais de mais filhos9Bozkurt G, Uysal G, Düzkaya DS. Examination of care burden and stress coping styles of parents of children with autism spectrum disorder. J Pediatr Nurs. 2019;47:142-7. doi: http://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.05.005
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. A análise qualitativa desvelou que a presença de outro filho, em especial mais velho, pode ajudar a reduzir o cuidar solitário, e, assim, diminuir a sobrecarga materna, fato também identificado em um estudo que objetivou avaliar o nível de estresse em mães de crianças com TEA18Christmann M, Marques MAA, Rocha MM, Carreiro LRR. Estresse materno e necessidade de cuidado dos filhos com TEA na perspectiva das mães. Cad Pós-Grad Distúrb Desenv. 2017 [cited 2020 Jun 1];17(2):8-17. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-03072017000200002
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. Ademais, irmãos neurotípicos de crianças com TEA tendem a manter um senso protetor e empático, ajudando-as conforme as necessidades, o que contribui positivamente no desenvolvimento, uma vez que crianças com TEA não possuem suporte social adequado19Carmo MA, Zanetti ACG, Santos PL. Family environment and the development of a child with autism. J Nurs UFPE online. 2019 [cited 2020 Jun 1];13(1):206-15. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/237617/31155
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, o que pode colaborar para diminuir a sobrecarga materna.

Outra variável associada à sobrecarga materna foi a idade da criança ao receber o diagnóstico, identificando-se maior sobrecarga entre mães cujo filho foi diagnosticado com TEA precocemente, entre um e três anos. Infere-se que esta associação é proveniente do fato de que para maioria dos sinais de TEA, o nível de suporte mais alto é preditivo de uma idade mais precoce do diagnóstico20Sicherman N, Charite J, Eyal G, Janecka M, Loewenstein G, Law K, et al. Clinical signs associated with earlier diagnosis of children with autism spectrum disorder. BMC Pediatr. 2021;21(1):96. doi: https://doi.org/10.1186/s12887-021-02551-0
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. Estudo transversal realizado com 90 cuidadores (com idade <60 anos) de crianças e adolescentes com diagnóstico de TEA, atendidos em unidades de saúde públicas e privadas que oferecem tratamento para autismo em Lucknow, Uttar Pradesh, Índia, também verificou que os cuidadores cujos filhos foram diagnosticados com menos de 24 meses de idade perceberam maior sobrecarga, com redução da carga percebida à medida que a idade do diagnóstico aumentava, sendo estatisticamente significativa ao comportamento do paciente17Jain A, Ahmed N, Mahour P, Agarwal V, Chandra K, Shrivatav NK. Burden of care perceived by the principal caregivers of autistic children and adolescents visiting health facilities in Lucknow City. Indian J Public Health. 2019;63(4):282-7. doi: https://doi.org/10.4103/ijph.IJPH_366_18
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Também, houve associação da sobrecarga das participantes em relação aos sintomas apresentados pela criança, determinando-se maior sobrecarga entre mães de crianças que apresentavam todos os sintomas da tríade sintomatológica do TEA: interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e estereotipados. Esse achado corrobora estudo que objetivou avaliar a qualidade de vida de pais chineses de crianças pré-escolares com TEA e a associação com comprometimento social infantil e carga de cuidado infantil, o qual identificou que quanto maior o agravamento dos sintomas de TEA, maior o nível de estresse parental e sobrecarga, especialmente para as mães14Wang Y, Xiao L, Chen RS, Chen C, Xun GL, Lu XZ, et al. Social impairment of children with autism spectrum disorder affects parental quality of life in different ways. Psychiatry Res. 2018;266:168-74. doi: https://doi.org/10.1016/j.psychres.2018.05.057
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. Nesse mesmo direcionamento, evidenciou-se correlação positiva entre o nível de suporte necessário ao cuidado da criança e a sobrecarga total de cuidados percebida pelas mães. Esse dado é consistente com estudos da literatura16Özgür BG, Aksu H, Eser E. Factors affecting quality of life of caregivers of children diagnosed with autism spectrum disorder. Indian J Psychiatry. 2018;60(3):278-85. doi: https://doi.org/10.4103/psychiatry.IndianJPsychiatry_300_17
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-17Jain A, Ahmed N, Mahour P, Agarwal V, Chandra K, Shrivatav NK. Burden of care perceived by the principal caregivers of autistic children and adolescents visiting health facilities in Lucknow City. Indian J Public Health. 2019;63(4):282-7. doi: https://doi.org/10.4103/ijph.IJPH_366_18
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.

CONCLUSÃO

A prevalência de sintomas de sobrecarga na amostra do estudo foi alta, ratificando dados apresentados em pesquisas nacionais e internacionais. A identificação da sobrecarga materna, na graduação de leve a grave, corrobora a autopercepção materna de sobrecarga, demonstrando que as participantes apresentaram crítica adequada em relação à própria condição de saúde. Nessa conjuntura, os dados qualitativos emergentes do vivido materno também contribuíram para confirmar os resultados quantitativos.

A limitação do estudo se relaciona ao fato de apresentar informações obtidas em um determinado momento e, por esses motivos, pode-se estar sujeito a influências temporais e socioculturais.

Nesse contexto, destaca-se a importância da implementação da identificação de sinais e sintomas de sobrecarga, na rotina de assistência e cuidado às mães de crianças com diagnóstico de transtorno do espectro autista, na Atenção Primária à Saúde. Para tanto, faz-se necessária a qualificação dos profissionais de saúde, em especial do enfermeiro, para que possam desenvolver o cuidado fundamentado no conhecimento integral do processo de diminuição da sobrecarga materna relacionada ao cuidado de crianças com o referido diagnóstico.

Os dados do presente estudo podem ser utilizados na formação de recursos importantes à assistência à mulher, principalmente, à mãe cuidadora de criança com transtorno do espectro autista, assim como para o fortalecimento da realização de outras pesquisas nesta área do conhecimento humano. Por fim, destaca-se que o conhecimento dos fatores que influenciam a sobrecarga de mães pode contribuir no planejamento e desenvolvimento de estratégias de orientação/reorientação e assistência a mães e crianças neurodivergentes, que devem ter seus diretos respeitados, com a garantia da inclusão social em todos os espaços de convivência humana.

Agradecimentos:

À Universidade Federal do Piauí e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da Bolsa de Iniciação Científica que possibilitaram a realização deste estudo.

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Editado por

Editor associado:

Helga Geremias Gouveia

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
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