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Padrão espaço-temporal e fatores relacionados à tuberculose na infância

RESUMO

Objetivo:

Identificar o padrão espaço-temporal da tuberculose na infância e os fatores sociodemográficos a ela relacionados.

Método:

Estudo ecológico, que utilizou como unidades de análise os municípios do estado do Ceará. Utilizou-se como fonte de dados o Sistema de Informação de Agravos de Notificação durante janeiro de 2001 a dezembro de 2017. Realizou-se análise descritiva das características dos casos, do padrão temporal e espacial da incidência da doença e regressão com indicadores sociodemográficos.

Resultados:

Identificou-se incidência média de 3,48 casos/100 mil hab., com redução de 5,7% de durante o período de 2003-2017 (p<0,001). Foram relacionados à tuberculose na infância: proporção da população em domicílios com água encanada (β=0,05), proporção da população em domicílios com densidade >2 (β=0,09) e número de mulheres chefes de família e com filhos menores de 15 anos (β=0,0003).

Conclusão:

Indicadores de condições de moradia e vulnerabilidade foram relacionados a tuberculose na infância.

Palavras-chave:
Tuberculose; Criança; Adolescente; Epidemiologia; Análise espacial

ABSTRACT

Aim:

To identify the spatiotemporal pattern of childhood tuberculosis and the sociodemographic factors related to it.

Method:

This is an ecological study, which used the municipalities of the state of Ceará as units of analysis. The Notifiable Diseases Information System was used as a data source from January 2001 to December 2017. It was conducted a descriptive analysis of the characteristics of the cases, the temporal and spatial pattern of the incidence of the disease and regression with sociodemographic indicators.

Results:

An average incidence of 3.48 cases/100 thousand inhabitants was identified, with a reduction of 5.7% during the period 2003-2017 (p<0.001). The following were related to childhood tuberculosis: proportion of the population in households with piped water (β=0.05), proportion of the population in households with density >2 (β=0.09) and number of female heads of household with children under 15 years of age (β=0.0003).

Conclusion:

Indicators of housing conditions and vulnerability were related to childhood tuberculosis.

Keywords:
Tuberculosis; Child; Adolescent; Epidemiology; Spatial analysis

RESUMEN

Objetivo:

Identificar el patrón espacio-temporal de la tuberculosis en la infancia y factores sociodemográficos relacionados con ella.

Método:

Estudio ecológico, que utilizó municipios del estado de Ceará como unidades de análisis. Se utilizó el Sistema de Información de Enfermedades de Declaración Obligatoria de enero 2001 a diciembre de 2017. Se realizó análisis descriptivo de las características de los casos, patrón temporal y espacial de la incidencia de enfermedad y regresión con indicadores sociodemográficos.

Resultados:

Se identificó una incidencia promedio de 3,48 casos/100 mil hab., con una reducción de 5,7% durante el período 2003-2017 (p<0,001). Se relacionaron con la tuberculosis en la infancia: proporción de población en viviendas con agua corriente (β=0,05), proporción de población en viviendas con densidad >2 (β=0,09) y número de mujeres jefas de hogar con hijos menores de 15 años (β=0.0003).

Conclusión:

Los indicadores de las condiciones de vivienda y vulnerabilidad se relacionaron con la tuberculosis infantil.

Palabras clave:
Tuberculosis; Niño; Adolescente; Epidemiología; Análisis espacial

INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) ainda constitui um problema de saúde pública mundial. Globalmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que, em 2020, cerca de 5,8 milhões de pessoas adoeceram e 1,3 milhões morreram. Esse dado coloca a doença como uma das principais causas de óbitos por agente infeccioso em escala global11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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. No Brasil este problema também merece destaque, uma vez que ele figura entre os 20 países que carregam 84% da carga mundial da doença. De acordo com dados do Boletim Epidemiológico da TB de 2021, no ano de 2020 foram diagnosticados 66.819 novos casos no Brasil, resultando em coeficiente de incidência de 31,6 casos/100 mil hab22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2021 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2021/boletim-tuberculose-2021
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. Ressalta-se diminuição acentuada na notificação dos casos de TB a partir do ano de 2020 devido a pandemia de COVID-19 que expressam considerável subnotificação da real carga da doença no Brasil e no mundo11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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-22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2021 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2021/boletim-tuberculose-2021
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Esta doença acomete principalmente adultos que vivem em nações em desenvolvimento. Entretanto, as crianças também podem ser infectadas e adoecer de TB, sendo este público muitas vezes negligenciado. Sabe-se que, em 2020, a TB na infância (definida pela OMS como TB em indivíduos com idade <15 anos) ocorreu em 11% de todos os casos da doença11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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. Globalmente, a Índia apresenta o maior número de casos nesta faixa etária, com cerca de 306.000 casos estimados para 2020. Ela é seguida da Indonésia (n=99.000), Nigéria (n=77.000), Paquistão (n=74.000) e Filipinas (n=73.000). O Brasil ocupa a 30ª posição com 4.400 casos estimados11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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Vários fatores podem contribuir para o contágio do bacilo da TB na infância. Destaca-se que o contato com adultos em áreas com alta prevalência de TB ativa pode levar ao aparecimento de um estado denominado Infecção Latente por TB (ILTB), especialmente quando ocorre em moradias pequenas, com pouca ventilação, alta densidade domiciliar e baixa iluminação33. Carvalho ACC, Cardoso CAA, Martire TM, Migliori GB, Sant’Anna CC. Epidemiological aspects, clinical manifestations, and prevention of pediatric tuberculosis from the perspective of the End TB Strategy. J Bras Pneumol. 2018;44(2):134-44. doi: https://doi.org/10.1590/S1806-37562017000000461
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. Por mais que 90% das pessoas não fiquem doentes após o contato com o bacilo, a progressão da fase latente para a fase ativa da doença que ocorre devido a fatores de idade, estado nutricional, vacinação com BCG e estado imunológico33. Carvalho ACC, Cardoso CAA, Martire TM, Migliori GB, Sant’Anna CC. Epidemiological aspects, clinical manifestations, and prevention of pediatric tuberculosis from the perspective of the End TB Strategy. J Bras Pneumol. 2018;44(2):134-44. doi: https://doi.org/10.1590/S1806-37562017000000461
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Ressalta-se que, em crianças, a TB manifesta-se mais comumente em formas extrapulmonares, principalmente em menores de cinco anos de idade. Em 2016, 10% de todos os casos novos de TB no mundo eram notificados em crianças e as particularidades do diagnóstico, tratamento e prevenção da doença apenas ganharam destaque na comunidade científica recentemente33. Carvalho ACC, Cardoso CAA, Martire TM, Migliori GB, Sant’Anna CC. Epidemiological aspects, clinical manifestations, and prevention of pediatric tuberculosis from the perspective of the End TB Strategy. J Bras Pneumol. 2018;44(2):134-44. doi: https://doi.org/10.1590/S1806-37562017000000461
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Assim, embora a TB na infância seja frequente ela pode estar subnotificada devido a dificuldades no diagnóstico, pois o quadro clínico e testes radiológicos não conseguem ser específicos para a presença do bacilo neste grupo. Além disso, crianças até 10 anos de idade apresentam dificuldades em expectorar seu escarro, comprometendo o resultado do exame de baciloscopia de escarro e dificultando o rastreamento precoce da doença44. Velizarova S, Gabrovska N, Spasova A, Marais B, Harausz EP, Tiberi S, et al. Management and outcomes of severe childhood tuberculosis in the pediatric intensive care setting: can we identify best practices? J Bras Pneumol. 2019;45(2):e20190043. doi: http://doi.org/10.1590/1806-3713/e20190043
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Diante do exposto, nota-se que no Brasil há crescente aumento da morbidade entre crianças, o que leva à necessidade do desenvolvimento de estudos que abordem a TB neste grupo específico55. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2020 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde ; 2020 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-de-turbeculose-2020
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. Ademais, como a doença está associada às condições de vida da população e aos determinantes sociais da saúde, conhecer como ela se distribui no tempo e espaço pode ser fundamental para a adoção de estratégias de saúde mais eficazes para este público.

Em face disso, as ferramentas de geoprocessamento em saúde podem ser utilizadas nesta situação para uma melhor visualização do contexto situacional da TB na infância. A análise espacial em saúde possibilita ainda descrever o comportamento da doença em cada unidade geográfica representada em um mapa, proporcionando melhor compreensão sobre as regiões que necessitam de maior atenção, além de facilitar o planejamento de ações e determinar o impacto dos programas derivados das políticas públicas vigentes66. Teixeira LO, Belarmino V, Gonçalves CV, Mendoza-Sassi RA. Tendência temporal e distribuição espacial da sífilis congênita no estado do Rio Grande do Sul entre 2001 e 2012. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(8):2587-97. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018238.25422016
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. Assim, este estudo tem como objetivo identificar o padrão espaço-temporal da tuberculose na infância e os fatores sociodemográficos a ela relacionados.

MÉTODO

Trata-se de estudo epidemiológico do tipo ecológico, que utilizou como unidades de análise os municípios do estado do Ceará. O estado possui a oitava maior população do país (estimada em cerca de 9,13 milhões de habitantes), 184 municípios, densidade demográfica de 56,76 habitantes por Km² (11º do ranking nacional) e um rendimento nominal mensal per capita de cerca de 850 reais (https://www.ibge.gov.br). Poucos dados são encontrados a nível regional e local acerca da TB na faixa etária estudada; todavia, dados de 2020 apontam que o Ceará representou 4,3% de todos os casos de TB da faixa de 0-10 anos no Brasil. No Nordeste, cerca de 19% dos casos foram cearenses, o que coloca o estado na terceira posição da região em relação ao total de casos, atrás apenas de Pernambuco e da Bahia55. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2020 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde ; 2020 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-de-turbeculose-2020
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Foi utilizado como fonte de dados os casos de TB registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) que ocorreram entre os residentes do estado do Ceará menores de 15 anos no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2017. O SINAN é alimentado por informações que constam na ficha de notificação e acompanhamento da doença, registros os quais devem ser preenchidos por profissionais de saúde e digitadas por profissionais das secretarias de saúde municipais que, posteriormente, as enviam para a secretaria estadual. As notificações englobaram casos de TB pulmonar, extrapulmonar e mista. Casos de ILTB e em tratamentos especiais não são inseridos no SINAN. As variáveis socioeconômicas que constam na ficha de notificação utilizadas nesse estudo foram: idade, sexo, raça/cor e zona de moradia.

O banco de dados utilizado para este estudo foi disponibilizado pela Secretaria da Saúde do Ceará (SESA), sendo que este compreendeu todos os casos notificados como “caso novo de TB” com idade inferior a 15 anos11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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. Assim, o estudo contou com uma população de 2.611 novos casos de TB na infância durante o período. A incidência foi calculada para cada município no período indicado utilizando o número médio de casos de TB no grupo e no denominar a população de referência <15 anos de idade obtida por meio do último Censo demográfico realizado em 2010, multiplicado por 100.000 habitantes.

Inicialmente, realizou-se análise descritiva das características sociodemográficas dos casos analisados. Posteriormente, foi conduzida a análise da tendência para indicar o padrão temporal da incidência de TB na infância no estado como um todo. Para tanto, foi realizada regressão por pontos de inflexão. Essas regressões indicam se um ou mais segmentos devem ser adicionados em uma regressão linear para indicar qualquer alteração na tendência temporal, o que refuta a hipótese nula de que nenhum ponto deve ser adicionado. Seus resultados são possíveis para estimar a Mudança Percentual Anual (do inglês Annual Percentage Change - APC) da tendência estudada. Assim, o modelo foi ajustado assumindo que o número de pontos de inflexão poderia variar de zero a dois, o que significa uma linha reta ou uma linha com dois ou três segmentos. Um intervalo de confiança de 95% (IC95%) e um nível de significância de 5% foi estabelecido em todas as análises de tendência temporal77. Sousa GJB, Farias MS, Cestari VRF, Garces TS, Maranhão TA, Moreira TMM, et al. Spatiotemporal trends of Chagas disease-related mortality in the Northeast of Brazil, 2007-2017. Parasitology. 2020;147(13):1552-8. doi: https://doi.org/10.1017/S0031182020001419
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Para a análise espacial foi criado inicialmente o mapa temático da incidência média bruta de TB na infância nos municípios cearenses e, em seguida, essas taxas foram suavizadas por meio do método bayesiano empírico local para diminuir as instabilidades causadas pelas taxas brutas. A aplicação desse método se faz necessária, uma vez que gera taxas mais próximas à realidade, pois considera não apenas o valor da taxa de um determinado município, mas o pondera em relação àqueles que fazem fronteira com ele por meio de uma matriz de proximidade espacial. Para a construção da matriz citada levou-se em consideração o critério de contiguidade, atribuindo-se o valor 1 aos municípios que possuem fronteiras em comum e 0 aos municípios que não compartilham fronteiras77. Sousa GJB, Farias MS, Cestari VRF, Garces TS, Maranhão TA, Moreira TMM, et al. Spatiotemporal trends of Chagas disease-related mortality in the Northeast of Brazil, 2007-2017. Parasitology. 2020;147(13):1552-8. doi: https://doi.org/10.1017/S0031182020001419
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Para a identificação de aglomerados espaciais utilizou-se dois métodos distintos, porém, com a mesma finalidade. O primeiro diz respeito à função de autocorrelação espacial, por meio do Índice de Moran Global e Local. O Índice de Moran Global foi usado para testar a hipótese de dependência espacial e fornecer uma medida geral de associação para toda a área do estudo. Uma vez que a presença de autocorrelação espacial global foi constatada, o Índice de Moran Local (Local Index Spatial Analysis - LISA) foi aplicado para verificar a presença de agregados espaciais e quantificar o grau de associação espacial em cada município do conjunto amostral, considerando-se p<0,0577. Sousa GJB, Farias MS, Cestari VRF, Garces TS, Maranhão TA, Moreira TMM, et al. Spatiotemporal trends of Chagas disease-related mortality in the Northeast of Brazil, 2007-2017. Parasitology. 2020;147(13):1552-8. doi: https://doi.org/10.1017/S0031182020001419
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Os resultados do Índice de Moran Local são apresentados por meio do Moran Map e do Lisa Map. O Moran Map permite visualizar graficamente o grau de similaridade entre vizinhos, sendo representado por quatro quadrantes: em vermelho estão os municípios com altas taxas e que estão próximos a municípios com taxas igualmente altas (padrão espacial Alto/Alto); em verde se encontram os municípios que possuem baixas taxas e que são circundados por municípios que também apresentam baixas taxas (padrão espacial Baixo/Baixo); Já os municípios em amarelo (padrão espacial Alto/Baixo) e azul (padrão espacial Baixo/Alto) representam áreas de transição epidemiológica e que apresentam taxas altas e baixas, porém estão muito próximos a municípios que possuem taxas baixas e altas, respectivamente77. Sousa GJB, Farias MS, Cestari VRF, Garces TS, Maranhão TA, Moreira TMM, et al. Spatiotemporal trends of Chagas disease-related mortality in the Northeast of Brazil, 2007-2017. Parasitology. 2020;147(13):1552-8. doi: https://doi.org/10.1017/S0031182020001419
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O segundo método utilizado para detecção de aglomerados espaciais de TB na infância foi a análise de varredura puramente espacial por meio da técnica estatística Scan. Além de identificar clusters espaciais, a varredura também é capaz de localizar áreas de risco para a TB entre crianças. A fim de se identificar os aglomerados puramente espaciais foi utilizado o modelo discreto de Poisson, e os seguintes requisitos: não haver sobreposição geográfica dos aglomerados, tamanho máximo do aglomerado igual a 50,0% da população exposta, aglomerados em formato circular e 999 replicações. O cálculo do risco relativo (RR) foi realizado para cada município cearense, sendo que aqueles que apresentam valores >1 apresentam risco relativo para TB na infância superior ao risco do Ceará como um todo.

Além disso, realizou-se a análise da relação entre indicadores socioeconômicos e demográficos com a incidência da TB na infância (desfecho) pelo método de regressão. Foram utilizados os seguintes indicadores (variáveis preditoras): índice de Theil - L, índice de Gini, proporção da população em domicílios com água encanada, proporção da população em domicílios com banheiro e água encanada, proporção da população em domicílios com coleta de lixo, proporção da população em domicílios com energia elétrica, proporção da população em domicílios com densidade >2, proporção de crianças de 0 a 5 anos fora da escola, proporção de crianças de 6 a 14 anos fora da escola, esperança de vida ao nascer, proporção de pessoas em domicílios sem energia elétrica, proporção de pessoas em domicílios com paredes inadequadas, proporção de pessoas em domicílios com abastecimento de água e esgotamento sanitário inadequados, taxa de fecundidade total, mulheres chefes de família e com filhos menores de 15 anos, proporção de crianças de 0 a 5 anos na escola, proporção de crianças de 5 a 6 anos na escola e proporção de crianças de 6 a 14 anos na escola. Todos esses indicadores foram retirados do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil (https://atlasbrasil.org.br/acervo/biblioteca).

Os indicadores mencionados foram inseridos em um modelo de regressão linear múltipla (Ordinary Least Squares - OLS). As variáveis que permaneceram relacionadas à incidência de TB na infância no modelo OLS (p<0,05) também foram analisadas por um modelo de regressão geograficamente ponderado (Geographically Weighted Regression - GWR), uma vez que a dependência espacial dos resíduos da regressão foi observada. A regressão GWR permite analisar fenômenos com diferentes distribuições no espaço. Dessa forma, o modelo GWR gerou um coeficiente de regressão para cada um dos 184 municípios do estado, pois um indicador social pode agir como fator de risco em determinado território e como fator de proteção em outro. Entretanto, os valores apresentados nas tabelas correspondem a uma média desses valores88. Charlton M, Fotheringham S, Brunsdon C. Geographically weighted regression [Internet]. United Kingdom: ESRC National Centre for Research Methods; 2005 [cited 2021 May 17]. Available from: http://eprints.ncrm.ac.uk/90/1/MethodsReviewPaperNCRM-006.pdf
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. Dois mapas temáticos para cada indicador foram criados: um para o coeficiente de regressão e outro para a significância estatística, considerando-se p<0,05.

Diversos softwares foram utilizados neste estudo. A taxa bayesiana empírica local e a função de autocorrelação espacial foram calculadas pelo TerraView 4.2.2. A análise de varredura puramente espacial foi realizada pelo SaTScan 9.6. Já a regressão OLS foi realizada no Stata 12 e a regressão espacial GWR foi realizada no GWR4.0.9. Todos os mapas temáticos foram produzidos no software QGIS 2.4.17.

Esta pesquisa foi encaminhada para apreciação ética da Universidade Estadual do Ceará, sendo aprovada sob protocolo de nº 2.687.046. Reitera-se que no momento da coleta de dados o pesquisador, juntamente com o Núcleo de Vigilância da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará, retirou quaisquer atributos que identificavam a população do estudo como nome, nome da mãe e endereço.

RESULTADOS

De 2001 a 2017 foram notificados 2.611 casos de TB na infância no Ceará. Observou-se que a população estudada possuía idade mediana de oito anos (IIQ: 3 - 12), com ligeira predominância de indivíduos do sexo masculino (50,3%; n=1.313). Notou-se expressivo número de casos notificados como pardos (75,4%; n=1.468) e residentes na zona urbana (84,7%, n=2.139) (Tabela 1).

Tabela 1 -
Análise descritiva das características sociodemográficas dos casos de tuberculose na infância no Ceará de 2001 a 2017. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2021

A incidência média de TB na infância foi de 3,48 casos/100 mil hab. No período 2001-2003 houve crescimento de 39,5% na incidência de TB na infância (IC95%: -5,0 - 104,0), contudo, sem significância estatística. Em contrapartida, no período 2003-2017 houve mudança no padrão temporal da doença, com a inserção de um ponto de inflexão para demonstrar o decréscimo significativo de 5,7% ao ano (IC95%: -5,7 - -4,0) na incidência de TB. Todavia, quando se considera todo o período estudado, detecta-se a diminuição não significante de 1% ao ano (IC95%: -5,4 - 3,6) da incidência da doença na população na infância (Tabela 2).

Tabela 2 -
Padrão temporal da tuberculose na infância no estado do Ceará, 2001-2017. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2021

A Figura 1A mostra que parcela expressiva dos municípios cearenses apresentou pelo menos um caso notificado de TB entre pessoas <15 anos no período analisado. Cidades importantes para o estado apresentaram elevada incidência, destacando-se Fortaleza (15,3 casos/100 mil hab.) e Sobral (16,2 casos/100 mil hab.) e, por isso, estão destacadas em cor mais escura no mapa. Com a aplicação do método bayesiano empírico local (Figura 1B), as instabilidades causadas por municípios com incidências zeradas foram diminuídas e somente a cidade de Campos Sales continuou com incidência igual a zero. Além disso, foi possível observar padrões espaciais mais aparentes, especialmente em Fortaleza (e região metropolitana) e Sobral cujas taxas bayesianas foram de 13,6 e 10,1 casos/100 mil hab., respectivamente.

Para a detecção de aglomerados foi realizado o teste de autocorrelação espacial por meio dos Índices de Moran Global e Local. O Índice de Moran Global foi igual a 0,31 (p=0,01), indicando uma autocorrelação espacial positiva em todo o estado. O Moran map, mapa gerado a partir do cálculo do Índice de Moran Local, mostra que o padrão alto-alto de distribuição se encontra na região metropolitana da capital Fortaleza, assim como em Sobral, importante município do interior do estado, e em cidades vizinhas (Figura 1C). A partir do LISA map (Figura 1D), classificou-se a significância estatística de cada um desses aglomerados.

A técnica de varredura Scan permitiu identificar dois aglomerados puramente espaciais estatisticamente significantes (p<0,05) de TB na infância no estado. O cluster primário, isto é, aquele que possui a menor probabilidade de ter ocorrido ao acaso, foi composto por Fortaleza e sete cidades da sua região metropolitana (Maracanaú, Pacatuba, Itaitinga, Horizonte, Pindoretama, Aquiraz e Eusébio), cujo RR=3,7 (p<0,001). O cluster secundário foi formado por Sobral e Forquilha, cujo RR=2,3 (p<0,001) (Figura 1E).

A técnica Scan também possibilitou a identificação do risco de adoecimento por TB na infância das cidades cearenses. Assim, constatou-se que na maior parte dos municípios cearenses o risco de adoecimento de crianças por TB é inferior ao risco do estado como um todo (Figura 1F). Em contrapartida, os maiores riscos de novas infecções na infância foram evidenciados nos municípios de Fortaleza (RR=3,6), Sobral (RR=2,4) e Eusébio (RR=1,9).

Figura 1 -
Padrão espacial da incidência de tuberculose na infância no Ceará de 2001 a 2017. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2021

Após a identificação dos aglomerados, procedeu-se a análise dos indicadores que poderiam estar relacionados com a incidência da TB na infância. Os indicadores estatisticamente significativos foram inseridos nos modelos multivariados e os resultados das regressões OLS e GWR podem ser observados na Tabela 3. O modelo OLS explicou 19% da variação da incidência da doença, além disso, identificou-se autocorrelação espacial positiva nos resíduos da regressão (I=0,14; p<0,001), indicando dependência espacial e sugerindo a necessidade de aplicação de um modelo geográfico.

Assim, após constatação de variáveis significativas no modelo OLS e sua posterior inserção no modelo espacial GWR, foi verificado que os fatores socioeconômicos que influenciam a TB na infância no Ceará foram: proporção da população em domicílios com água encanada (β=0,05), proporção da população em domicílios com densidade >2 (β=0,09) e número de mulheres chefes de família e com filhos menores de 15 anos (β=0,0003) (Tabela 3). Por meio da aplicação da regressão GWR, obteve-se 37% de explicação do modelo.

Tabela 3 -
Indicadores relacionados a incidência da tuberculose na infância no Ceará de 2001 a 2017. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2021

A Figura 2 mostra os mapas temáticos oriundos dos resultados da regressão GWR. Constatou-se que em praticamente toda a macrorregião de Fortaleza houve relação positiva entre a proporção da população em domicílios com água encanada e a incidência de TB na infância (Figuras 2A e 2B). Além disso, na macrorregião de Sobral, na divisa com o Piauí, observou-se relação positiva entre a proporção da população em domicílios com densidade >2 e a TB na infância (Figuras 2C e 2D). Por fim, observou-se relação entre o número de mulheres chefes de família e com filhos menores de 15 anos e a incidência de TB na infância no norte cearense (Figuras 2E e 2F).

Figura 2 -
Distribuição espacial dos indicadores relacionados à incidência da tuberculose na infância no Ceará de 2001 a 2017. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2021

DISCUSSÃO

Os achados do presente estudo apontam para a necessidade de maior atenção à TB na infância no Ceará, pois observou-se uma população infantil doente extremamente jovem com idade mediana de oito anos. Este padrão etário diverge de estudos conduzidos em outras regiões do país, como em Rondônia, que apresentou idade média de 14,8 anos e no estado de Sergipe, que mostrou que a incidência da doença era diretamente proporcional à medida que a idade avançava99. Xavier JN, Francisco ANA, Órfão NH. Análise espacial da tuberculose infantil em um município da Amazônia Brasileira. Rev Cient Facul Unimed. 2021;2(3):19-35. doi: https://doi.org/10.37688/rcfu.v2i3.137
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-1010. Santos BA, Cruz RPS, Lima SVMA, Santos AD, Duque AM, Araújo KCGM, et al. Tuberculose em crianças e adolescentes: uma análise epidemiológica e espacial no estado de Sergipe, Brasil, 2001-2017. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(8):2939-48. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020258.25692018
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. Logo, a população na região estudada é ainda mais jovem do que em outras regiões do Brasil sendo, portanto, oportuno traçar estratégias considerando essa peculiaridade identificada.

Salienta-se que as crianças são particularmente vulneráveis à TB, visto que representam o elo mais frágil entre os complexos mecanismos atualmente envolvidos no controle desta infecção, como rastreio de casos, busca de contatos, ILTB, diagnóstico precoce e tratamento imediato33. Carvalho ACC, Cardoso CAA, Martire TM, Migliori GB, Sant’Anna CC. Epidemiological aspects, clinical manifestations, and prevention of pediatric tuberculosis from the perspective of the End TB Strategy. J Bras Pneumol. 2018;44(2):134-44. doi: https://doi.org/10.1590/S1806-37562017000000461
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. A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi pioneira na iniciativa de divulgar informações sobre a TB nessa faixa etária. Após isso, vários países passaram a divulgar dados de seus programas de TB na infância, no entanto, ainda são poucas as informações disponíveis globalmente e muitas questões ainda não foram abordadas, como identificação em formas extrapulmonares, infecções latentes e tratamentos especiais. Diante desta problemática, observa-se a necessidade de um conjunto de notificações adequadas para que, assim, seja possível o planejamento de medidas de enfrentamento à infecção na população infantil.

A TB apresenta distribuição difusa em todo o território nacional. Esta é uma característica esperada, uma vez que o adoecimento é associado aos processos próprios da urbanização e que mais de 80% da população brasileira reside em áreas urbanas1111. Souza HP, Oliveira WTGH, Santos JPC, Toledo JP, Ferreira IPS, Esashika SNGS, et al. Doenças infecciosas e parasitárias no Brasil de 2010 a 2017: aspectos para vigilância em saúde. Rev Panam Salud Publica. 2020;44:e10. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.10
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. Estes dados alertam para o direcionamento do foco para estas áreas, tornando imperativa a necessidade de atuação dos estados e municípios brasileiros no combate à TB, principalmente entre as crianças de zero a quatro anos, as quais são mais vulneráveis por serem mais dependentes ao contato dos adultos1010. Santos BA, Cruz RPS, Lima SVMA, Santos AD, Duque AM, Araújo KCGM, et al. Tuberculose em crianças e adolescentes: uma análise epidemiológica e espacial no estado de Sergipe, Brasil, 2001-2017. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(8):2939-48. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020258.25692018
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A literatura aponta que um dos principais obstáculos no manejo da doença é a grande proporção de casos de TB na infância não detectada, o que tem levado muitas crianças a morrerem sem diagnóstico ou tratamento. Há também razões institucionais pelas quais a TB na infância tem sido negligenciada, visto que o movimento pela sobrevivência das crianças não abraçou a TB como um problema importante devido à ausência histórica de estimativas precisas que demonstram o verdadeiro impacto da doença na morbimortalidade infantil1212. Starke JR. Tuberculose infantil em 2017: para onde caminhamos? [Editorial]. Resid Pediatr. 2017;7(Suppl 1):3-6. doi: http://doi.org/10.25060/residpediatr-2017.v7s1-02
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Ademais, este estudo identificou pequena queda na incidência da TB na infância ao longo da série temporal 2003-2017, porém, não houve mudança significativa quando considerado todo o período analisado (2001-2017). Os resultados cearenses são semelhantes aos brasileiros uma vez que a taxa em crianças permanece em torno de 4,0/100 mil hab. durante 2010 a 2017, a partir de 2018 há uma elevação no padrão nacional culminando em 5,7/100 mil hab55. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2020 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde ; 2020 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-de-turbeculose-2020
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. Infelizmente esses números podem apresentar-se subnotificados devido a pandemia de COVID-19, podendo erroneamente aparentar que há uma diminuição da incidência da doença11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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-22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de tuberculose 2021 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2021/boletim-tuberculose-2021
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. Assim, salienta-se que tanto as taxas registradas quanto projeções para 2022 ainda estão longe de serem consideradas ideais pela OMS11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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Ressalta-se que, atualmente, uma das principais ações para a prevenção da doença é o tratamento da infecção latente da tuberculose (ILTB), com foco em crianças menores de cinco anos e achados clínicos radiológicos1010. Santos BA, Cruz RPS, Lima SVMA, Santos AD, Duque AM, Araújo KCGM, et al. Tuberculose em crianças e adolescentes: uma análise epidemiológica e espacial no estado de Sergipe, Brasil, 2001-2017. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(8):2939-48. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020258.25692018
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. Essas intervenções em saúde estão em crescimento, especialmente entre as crianças. Ademais, levanta-se a hipótese de que a elevação da incidência em um primeiro momento (2001-2003) pode sugerir melhor rastreamento dos casos, fortalecendo, assim, a busca ativa e qualificando a vigilância dos indicadores de saúde, evitando, com isso, casos de subnotificações.

No tocante à análise espacial, identificou-se a ocorrência de dependência espacial das taxas de TB na infância no território cearense. Destaque é dado às regiões metropolitanas da capital Fortaleza e de Sobral que apresentaram tanto os mais altos padrões de incidência da infecção, bem como os maiores riscos relativos para novas infecções. Este padrão de adoecimento corrobora estudo realizado em outro estado no Nordeste brasileiro1313. Mendes MS, Oliveira ALS, Pimentel LMLM, Figueiredo TMRM, Schindler HC. Spatial analysis of tuberculosis in children under 15 years of age and socioeconomic risk: an ecological study in Paraíba, Brazil, 2007-2016. Epidemiol Serv Saúde. 2021;30(3):e20201038. doi: https://doi.org/10.1590/s1679-49742021000300006
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, que também apontaram altas taxas de incidência de tuberculose TB em grandes cidades e suas regiões metropolitanas.

Esses achados provavelmente justificam-se devido ao fato de cidades como Fortaleza e Sobral apresentarem aglomerados urbanos secundários à inserção de polos comerciais que atraem a população para o mercado de trabalho. No entanto, devido a migração desenfreada, nota-se o aumento no número de moradias não planejadas e baixas condições sociais que, por conseguinte, resultam na precarização da rede de saneamento e esgoto1414. San Pedro A, Gibson G, Santos JPC, Toledo LM, Sabroza PC, Oliveira RM. Tuberculosis as a marker of inequities in the context of socio-spatial transformation. Rev Saúde Pública. 2017;51:9. doi: https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2017051006533
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. Assim, aglomerados urbanos em baixas condições sanitárias podem favorecer o surgimento de doenças infecciosas, entre elas a TB.

Somado a isso, as características das regiões com alto risco para a transmissão de TB, em sua maior parte, são lugares economicamente vulneráveis e que refletem a desigualdade social. Pesquisa realizada com grupos que possuíam baixa renda aponta que esta população tende a apresentar mais problemas de saúde do que aqueles que possuem melhores condições de vida1515. Arroyo LH, Yamamura M, Protti-Zanatta ST, Fusco APB, Palha PF, Ramos ACV, et al. Identificação de áreas de risco para a transmissão da tuberculose no município de São Carlos, São Paulo, 2008 a 2013. Epidemiol Serv Saúde. 2017;26(3):525-34. doi: https://doi.org/10.5123/S1679-49742017000300010
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. Sob este prisma, é primordial direcionar ações com base nas diretrizes nacionais, adotando a vigilância e o planejamento estratégico com maior atenção em áreas consideradas prioritárias.

O aumento da incidência de TB na infância em grandes cidades também pode estar relacionado à condução do rastreio da doença de maneira mais eficaz. Em contrapartida, a investigação apontou a insuficiência de profissionais para a realização das visitas domiciliares ou para acompanhar o paciente durante o tratamento diretamente observado (TDO)1616. Harling G, Lima Neto AS, Sousa GS, Machado MMT, Castro MC. Determinants of tuberculosis transmission and treatment abandonment in Fortaleza, Brazil. BMC Public Health. 2017;17(1):508. doi: https://doi.org/10.1186/s12889-017-4435-0
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. Diante disso, verifica-se que a necessidade de disponibilização tanto de uma estrutura de trabalho adequada às equipes de saúde, bem como de um quadro de profissionais suficiente para prestar um atendimento qualificado. Quando se tem número adequado de trabalhadores da saúde com condições de trabalho satisfatórias, é possível ter mais eficiência no conhecimento da situação epidemiológica da população, assim como o diagnóstico, o manejo e o controle dos casos de tuberculose11. World Health Organization. Global tuberculosis report 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 May 17]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
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Os resultados deste estudo mostraram que à medida que aumenta a proporção de pessoas que vivem em domicílios com densidade >2, a incidência de TB na infância também aumenta. Essa problemática deve-se às baixas condições econômicas, visto que indivíduos com baixa renda possuem moradias com limitações de cômodos. Dessa forma, o convívio de muitas pessoas no mesmo cômodo aumenta o risco de transmissão de doenças entre os familiares, especialmente da TB, cuja transmissão se dá pelo ar. Logo, casas com poucos cômodos e com muitos residentes resultam em menor ventilação, o que favorece um ambiente de maior infectividade33. Carvalho ACC, Cardoso CAA, Martire TM, Migliori GB, Sant’Anna CC. Epidemiological aspects, clinical manifestations, and prevention of pediatric tuberculosis from the perspective of the End TB Strategy. J Bras Pneumol. 2018;44(2):134-44. doi: https://doi.org/10.1590/S1806-37562017000000461
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Além disso, também foi possível identificar em municípios próximos à Fortaleza a relação positiva entre a proporção da população em residências com água encanada e a taxa de incidência de TB na infância. Apesar de paradoxal, esse resultado está relacionado com o indicador anterior de densidade domiciliar, pois ambos apresentam como características aglomerados populacionais, concentrados primordialmente na zona urbana em subdesenvolvimento. Assim, embora essas áreas populosas apresentam tratamento de água, elas enfrentam outros problemas sociais, como a pobreza. Nesse contexto, áreas que apresentam maior densidade populacional, e possuem maior deficiência de investimentos em saúde são mais suscetíveis a desenvolverem doenças1717. Kivimäki M, Vahtera J, Tabák AG, Halonen JI, Vineis P, Pentti J, et al. Neighbourhood socioeconomic disadvantage, risk factors, and diabetes from childhood to middle age in the Young Finns Study: a cohort study. Lancet Public Health. 2018;3(8):e365-e373. doi: https://doi.org/10.1016/S2468-2667(18)30111-7
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Também foi possível observar aumento da incidência da TB na infância à medida em que o percentual de lares nos quais as mulheres são chefes de família também aumenta. Essa situação traz à tona o fenômeno de feminização da pobreza, caracterizado pelo empobrecimento progressivo das mulheres e exclusão social. Isso reflete as condições de subocupação vivenciadas pelas mulheres, principalmente devido à exigência de cuidados domésticos e com os filhos, falta de tempo para capacitação profissional e necessidade de ingressar no mercado de trabalho1818. Szul KD, Silva LM. Feminização da pobreza no Brasil. II Seminário Nacional de Serviço Social, Trabalho e Política Social; 23 a 25 de outubro de 2017; Florianópolis. Florianópolis: UFSC; 2017 [cited 2021 May 17]. Available from: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/180215/101_00108.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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. Diante disso, os moradores desses domicílios também estão mais propícios a adoecimento por doenças infecciosas e parasitárias1111. Souza HP, Oliveira WTGH, Santos JPC, Toledo JP, Ferreira IPS, Esashika SNGS, et al. Doenças infecciosas e parasitárias no Brasil de 2010 a 2017: aspectos para vigilância em saúde. Rev Panam Salud Publica. 2020;44:e10. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.10
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Em face do exposto, uma vez que a vulnerabilidade socioeconômica está diretamente relacionada com a TB na infância, verifica-se a necessidade de diferentes estratégias de manejo do problema direcionadas ao público infantil para garantir um controle adequado do problema1919. Tucker EW, Dooley KE. Preclinical tools for the evaluation of tuberculosis treatment regimens for children. Int J Tuberc Lung Dis. 2018; 22(5): 57-514. doi: https://doi.org/10.5588/ijtld.17.0354
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. Dentre essas estratégias, destaca-se a implementação de programas de transferência de renda, como o Programa de Bolsa Família. A literatura mostra que o benefício apresentou efeito positivo na saúde das populações, garantindo maior acesso à melhores alimentos, serviços de saúde e melhora das condições ambientais nos lares de pessoas de baixa renda. Estes fenômenos resultaram em uma melhor qualidade de vida das crianças e na redução do coeficiente geral de mortalidade infantil2020. Oliosi JGN, Reis-Santos B, Locatelli RL, Sales CMM, Silva Filho WG, Silva KC, et al. Effect of the Bolsa Familia Programme on the outcome of tuberculosis treatment: a prospective cohort study. Lancet Glob Health. 2019;7(2):e219-e226. doi: https://doi.org/10.1016/S2214-109X(18)30478-9
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Outro programa que impacta positivamente no controle da tuberculose na infância é o Programa Saúde na Escola (PSE)99. Xavier JN, Francisco ANA, Órfão NH. Análise espacial da tuberculose infantil em um município da Amazônia Brasileira. Rev Cient Facul Unimed. 2021;2(3):19-35. doi: https://doi.org/10.37688/rcfu.v2i3.137
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, especialmente por ser um excelente dispositivo na divulgação de informações e na busca ativa de casos no público infantil. Além disso, outros programas de transferência de renda, moradia, evasão escolar e até transporte podem indiretamente contribuir na proteção contra TB, porém precisam de estudos quanto aos seus reais efeitos. Assim, nota-se que ações intersetoriais são fundamentais no combate a essa doença, pois a cadeia de transmissão não se dá apenas por meio de fatores biológicos, mas também através de fatores sociais e ambientais.

Este estudo apresenta algumas limitações. Dentre elas, destaca-se o uso de base de dados secundários que podem estar passíveis a incompletude e inconformidade de preenchimento. Além disso, o uso dos municípios como unidades de análise pode apresentar maior heterogeneidade das características socioeconômicas ao invés de bairros, entretanto, estes não estão disponíveis para os dados analisados. Ademais, os coeficientes dos indicadores inseridos no modelo final da regressão estão muito próximos a zero e devem ser interpretados com cautela.

CONCLUSÃO

Por meio deste estudo observou-se que não houve mudança no padrão temporal da TB na infância entre o período de 2001 a 2017. Quanto ao padrão espacial, foi possível identificar a formação de clusters da doença nas regiões metropolitanas de Fortaleza e Sobral. Os fatores relacionados à incidência da doença foram: proporção da população em domicílios com água encanada, proporção da população em domicílios com densidade >2 e número de mulheres chefes de família e com filhos menores de 15 anos.

Assim, necessita-se de estratégias de saúde pública mais eficazes voltadas ao adoecimento por TB em crianças e adolescentes, principalmente em áreas que apresentam maior risco de novas infecções. O fortalecimento da atenção primária à saúde, de estratégias de rastreio e de diagnóstico diferencial são pontos chave no manejo da doença neste grupo. Por fim, a promoção de moradias com abastecimento sanitário adequado e o aumento da cobertura de programas de transferência de renda, principalmente em regiões com alta incidência, podem ser estratégias importantes na quebra da cadeia de transmissão da doença.

Agradecimentos:

À Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA).

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Editado por

Editor associado:

Rosana Maffacciolli

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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